agosto 24, 2004

Mitos e Ideologias 3

Economia de Mercado sim, Sociedade de Mercado não

Analisemos agora a «palavra de ordem» «economia de mercado sim, sociedade de mercado não».

Numa sociedade pluralista, baseada na livre iniciativa individual e na liberdade de escolha não é possível delimitar uma esfera social onde não haja competição a menos que a iniciativa individual e a liberdade de escolha sejam limitadas (ou reguladas) por lei. A economia sem a sociedade é um jogo abstracto e a sociedade sem a economia uma realidade hemiplégica. A liberdade pressupõe competição e não há liberdade sem competição. A concorrência é parte intrínseca da vida social numa sociedade livre. Começa nos bancos da escola onde, por exemplo, sonhar com uma aprendizagem sem competição tem sido uma das quimeras que tem ajudado a tornar o nosso desempenho escolar uma desgraça colectiva.

É evidente que a competição deve ser regulada. Em primeiro lugar há que assegurar que ela não é desvirtuada por políticas anti-concorrenciais perpetradas pelos agentes económicos (cartelização, monopólio ou monopsónio, etc.). Como a concorrência pura e perfeita é uma situação de referência inatingível na moderna organização industrial (economias de escala, diferenciações dos produtos, barreiras naturais à entrada, etc.), devem ser regulados os procedimentos que permitam uma prática o mais próxima possível dessa situação ideal.

Em segundo lugar verifica-se que a concorrência produz na sociedade um efeito idêntico ao da selecção natural das espécies (empresas e famílias): cavam assimetrias e produzem a prazo a sua extinção. Se no caso das empresas a intervenção estatal só deve ter lugar se, e unicamente, a empresa em vias de extinção for viável por as suas dificuldades serem apenas conjunturais, no caso das famílias a sociedade deve intervir para assegurar a equidade (e não igualdade) social conforme escrevi no meu texto anterior (Mitos e Ideologias 2).

Portanto, é contraditório apostar numa economia de mercado e apostrofar a sociedade de mercado. A menos que este anátema se destine apenas a consumo caseiro.

Um texto que consubstancia as contradições socialistas foi o publicado por Jorge Bateira no Público (22-08-04 – O Estado Estratega). Jorge Bateira, que Aarons de Carvalho qualifica noutro artigo no mesmo jornal de «reputado economista», desfia uma série de proposições ou pouco rigorosas ou mesmo absolutamente incorrectas.

Sobre o mercado escreve: «os mercados são uma construção social, não resultaram de qualquer ordem natural. ... É falsa a ideia de que “no princípio era o mercado”». Pois não, Jorge Bateira, ao princípio era o Australopithecus. Enquanto os hominídeos viveram em bandos, subsistindo através da colecta (frutos e caça) não havia mercado, nem economia, nem socialismo, nem debates no Público ... O mercado iniciou-se com a divisão social do trabalho (diferenciação e especialização progressivas das diversas tarefas e empregos necessários à boa evolução de uma sociedade, conforme escreveu Marx).

Com a divisão social do trabalho aparece a necessidade das trocas (aliás, para Adam Smith é o inverso: a divisão do trabalho é fruto do gosto visceral dos homens pela troca e pelo lucro) e a existência da propriedade (no mínimo, a propriedade do stock de bens para troca posterior) e a necessidade do estabelecimento de uma entidade que, de alguma forma, proteja ou dê segurança à propriedade. Escreve Adam Smith: "É, pois, a aquisição de propriedade ... que necessariamente exige o estabelecimento de um governo civil. Onde não há propriedade, ou ao menos, propriedade cujo valor ultrapasse o de dois ou três dias de trabalho, o governo civil não é tão necessário". Sem haver Estado e um enquadramento legal (escrito ou consuetudinário) que proteja a propriedade e dê segurança à actividade económica, não há mercado, mas também não há economia, apenas miséria. A aquisição pela violência e pelo saque, através da guerra ou da pirataria, conduz ao sofrimento, à miséria e à desmotivação pela actividade económica dada a insegurança que pende sobre os seus frutos.

Portanto quando o «reputado economista» Jorge Bateira escreve que «apenas os economistas de matriz ideológica neoliberal continuam a raciocinar como se fosse possível haver mercado sem intervenção pública» está a dizer um completo disparate pois para haver mercado, economia e civilização, o Estado tem que assegurar a protecção da propriedade e que o mercado funcione sem imperfeições. Nenhum neoliberal tem dúvidas sobre isso. Onde o pensamento neoliberal torce o nariz é ao que considera um excessivo protagonismo do Estado em matéria de justiça social.

Para Hayek: O salário mínimo? Uma inépcia que impede a mobilidade de trabalho, reduz a produtividade e o nível de vida colectivo. A fiscalidade, e em especial o imposto progressivo? Calamitosa: a progressividade perturba a alocação óptima dos recursos; o imposto deve ser proporcional, afim de salvaguardar a sua neutralidade. O Estado-Providência? Uma máquina para fabricar efeitos perversos: a socialização da economia que a acompanha não pode, por definição, ir a par com a realização do óptimo. A intervenção pública? Um crime contra a economia, se o Estado pretender ir além da formulação de regras gerais.

Às vezes é necessário gritar que o rei vai nu para se começar a notar que o vestuário do rei é absolutamente inadequado. Hayek, inicialmente maldito, passou ao estatuto de guru quando, a partir do fim dos anos 70, o estatismo ultrapassou os limites do razoável e os seus efeitos perversos nas economias ocidentais se tornaram visíveis e iniludíveis. Foi a partir daí que, inicialmente nos países anglo-saxónicos (Reagan e Thatcher) e depois na Europa continental, se começaram a implementar as privatizações de empresas públicas e as parcerias público-privadas para gestão de sectores até então considerados como vocação exclusiva do serviço público.

Prossegue o «reputado economista» Jorge Bateira: «... Não percebendo que sem Estado não há mercado, para estes economistas (os neoliberais ... claro) a intervenção do Estado é uma “impureza” ... um mal menor. ...Ora os mercados, não sendo entidades cognitivas, também não tomam decisões sobre o futuro, não elaboram estratégias».

No meu texto anterior acima referido escrevi que «o mercado não é uma entidade, é o conjunto de vendedores e compradores de um dado bem ou serviço. ... Portanto, «o mercado não define estratégias», mas as empresas que funcionam numa Economia de mercado tomam decisões estratégicas» e decisões sobre o futuro ... acrescento agora. E acrescento igualmente que «os mercados, não sendo entidades cognitivas», as empresas que constituem o mercado são-no.

Queria abrir entretanto um parêntesis sobre o termo neoliberalismo. Apesar da aplicação progressiva, embora muito tímida, de algumas receitas neoliberais, ter permitido um novo fôlego às economias ocidentais (incluindo a portuguesa), tem havido um coro enorme de calúnias movidas contra o termo neoliberalismo, mesmo pela gente de esquerda que quando no governo se vê constrangida a que aplicar algumas das suas receitas. O neoliberalismo passou a ser o culpado de tudo o que de mau que acontecia no mundo, sobretudo em regiões onde jamais houve qualquer pensamento neoliberal, como na África, onde predominam regimes que se intitulavam ou intitulam marxistas ou socialistas. O termo "neoliberal" adquiriu uma conotação negativa, embora os que a apliquem não expliquem o porquê. Ora, pode concordar-se ou não das ideias neoliberais, desde que se procure conhecer o que são exactamente essas ideias, submetendo-as então a uma crítica fundamentada. É absurdo “debater” ideias pela imagem caricatural forjada pelos seus detractores. Mas é exactamente isso que ocorre. Por exemplo, Jorge Bateira apenas o usa como elemento pejorativo. Para facilitar, atribui-lhe intenções que não correspondem às doutrinas dos pensadores neoliberais.

Regressemos a Jorge Bateira: ... «importa reconhecer as limitações da intervenção do Estado na economia ... vários factores ... imprevisibilidade decorrente da mudança tecnológica; dificuldade em encontrar um nível de intervenção adequado para reduzir a incerteza do investimento; criação de efeitos perversos em algumas políticas

Estas limitações deixam-me perplexa. Não é o Estado, mas as empresas, fundamentalmente as empresas industriais, que estão confrontadas com a imprevisibilidade decorrente da mudança tecnológica, ou com a incerteza do investimento. São elas que estão permanentemente confrontadas com as incertezas dos mercados. O Estado não tem qualquer vocação para tal. As empresas correm riscos, mas são elas que pagam se cometem erros. Quando o Estado comete erros nas suas decisões sob risco (ou na incapacidade de tomar decisões), quem paga esses erros são os contribuintes. Foi isso que os contribuintes portugueses têm andado a fazer relativamente aos erros cometidos pelo Estado no seu sector público empresarial. Portanto não se vê que tal constitua problema para o Estado, a menos que este regresse às nacionalizações.

Quanto aos «efeitos perversos em algumas políticas» estou de acordo. O Estado português tem tomado medidas enviesando o funcionamento de alguns mercados que a longo prazo se têm virado contra os grupos sociais que pretendiam proteger. Muitas dessas medidas foram entretanto abolidas. Outras ainda se mantêm (mercado laboral, mercado do arrendamento urbano, etc.). A perversidade dos efeitos dessas políticas é de tal monta que a sua abolição, embora necessária, pode causar no imediato situações em extremo complicadas e ter custos sociais elevados, e os resultados positivos só serem sentidos a médio ou longo prazo.

Jorge Bateira termina de forma tranquilizadora: a sua tese «não é compatível com uma Administração Pública desqualificada porque grande parte deste processo só tem eficácia se os interlocutores por parte do Estado forem credíveis.» ... e ... «contudo, há uma condição essencial para que esta alternativa ao neoliberalismo possa fazer o seu caminho: é indispensável que a qualidade cívica, técnica e política dos protagonistas do PS seja consistente com esta visão do Estado».

Ou seja, duas condições que inviabilizam as suas proposições. Podemos ficar tranquilos.

Publicado por Joana em agosto 24, 2004 11:22 PM | TrackBack
Comentários

Boa análise, Joana. Esta e as anteriores.

Afixado por: Novais de Paula em agosto 25, 2004 03:58 PM

Hoje apareceu um artigo no Público de um tal Nuno Ribeiro cujo começo o identifica logo. Deve sofrer de BSS.

Afixado por: Novais de Paula em agosto 25, 2004 04:00 PM

Leigo nestas matérias (mas apreciando o excelente português escrito de Joana) arrisco, no âmbito destes «Mitos e Ideologias», uma pergunta que decorre do próprio Regime :
- Como há-de perdurar uma «economia saudável», se a essência do Regime é a alternância política de concepções económicas que se opõem parcial ou totalmente e, ainda por cima, num potencial curtissímo espaço de tempo de quatro ou oito anos ?
Tenho o pressentimento de que me escapa qualquer coisa ...


Afixado por: asdrubal em agosto 25, 2004 05:08 PM

Esta segunda quinzena de Agosto tem sido muito fraca quanto aos debates nos jornais.

Afixado por: Coruja em agosto 25, 2004 07:31 PM

Novais de Paula em agosto 25, 2004 04:00 PM:
É o gongorismo político-literário mais vazio e rico em palavras que li esta semana.
«Esta metamorfose sistémica» de Sócrates «uma máscara sem cérebro» a Alegre, «um cérebro à procura de nova máscara» !!!

Afixado por: Joana em agosto 25, 2004 09:34 PM

asdrubal em agosto 25, 2004 05:08 PM:
Para isso é que se fala em «pactos de regime» para a educação, justiça, controlo orçamental, etc.
Por isso muita gente, além de alguns socialistas, prefere Sócrates, que lhes parece ser capaz de uma política mais consequente e de interesse nacional que os seus concorrentes.

Afixado por: Joana em agosto 25, 2004 09:38 PM

Não sei se o Sócrates será capaz disso.
Aliás a Joana, noutro post, também duvida, pois acha que ele é capaz de ficar debaixo dos mafiosos do PS

Afixado por: Valente em agosto 25, 2004 11:58 PM

Ai Janica,

Como eu tinha razão sobre tudo! A cadência, o conteúdo, as horinhas, etc.

Pagam bem?

Afixado por: Átila em agosto 26, 2004 01:47 AM

Átila em agosto 26, 2004 01:47 AM:
Estou em férias! Há 2 semanas!
Se você lesse os textos em vez de plhar apenas para as horas teria percebido isso!

Afixado por: Joana em agosto 26, 2004 03:46 PM

Átila em Agosto 26, 2004 01:47 AM:
Vamos começar de novo com as histórias do cavalo?... Por amor de Deus...

Afixado por: Pde_Aº_Vieira em agosto 26, 2004 04:09 PM

Os seus argumentos estão bem vistos, mas eu julgo que a ideia da "sociedade de mercado, não" é a tentar obviar a exclusão social e as grandes assimetrias.
Também há muita demagogia e eleitoralismos nestas frases

Afixado por: vitapis em agosto 26, 2004 07:16 PM

Tanta graxa

Afixado por: Cisco Kid em agosto 27, 2004 12:20 AM

Estão bem alinhavados, mas não concordo com as comclusões

Afixado por: c seixas em agosto 27, 2004 09:25 AM

Conclusões e não "comclusões", claro.

Afixado por: c seixas em agosto 27, 2004 09:27 AM

vitapis em agosto 26, 2004 07:16 PM:
Como você disse, há muita demagogia e o chavão "economia de mercado sim, sociedade de mercado não" é apenas demagogia, para enganar uns, mostrando que acredita na economia de mercado, e outros, para mostrar o seu horror ao mercado.

Afixado por: Novais de Paula em agosto 29, 2004 02:58 PM

Não me parece que a demagogia seja apenas para enganar os eleitores. Também tem a ver com a falta de consistência ideológica dos políticos

Afixado por: c seixas em setembro 1, 2004 02:38 PM

Se fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei

Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AM

Se fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei

Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AM

Se fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei

Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AM

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Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AM

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Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AM

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Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AM

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Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AM

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Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AM
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