Economia de Mercado sim, Sociedade de Mercado não
Analisemos agora a «palavra de ordem» «economia de mercado sim, sociedade de mercado não».
Numa sociedade pluralista, baseada na livre iniciativa individual e na liberdade de escolha não é possível delimitar uma esfera social onde não haja competição a menos que a iniciativa individual e a liberdade de escolha sejam limitadas (ou reguladas) por lei. A economia sem a sociedade é um jogo abstracto e a sociedade sem a economia uma realidade hemiplégica. A liberdade pressupõe competição e não há liberdade sem competição. A concorrência é parte intrínseca da vida social numa sociedade livre. Começa nos bancos da escola onde, por exemplo, sonhar com uma aprendizagem sem competição tem sido uma das quimeras que tem ajudado a tornar o nosso desempenho escolar uma desgraça colectiva.
É evidente que a competição deve ser regulada. Em primeiro lugar há que assegurar que ela não é desvirtuada por políticas anti-concorrenciais perpetradas pelos agentes económicos (cartelização, monopólio ou monopsónio, etc.). Como a concorrência pura e perfeita é uma situação de referência inatingível na moderna organização industrial (economias de escala, diferenciações dos produtos, barreiras naturais à entrada, etc.), devem ser regulados os procedimentos que permitam uma prática o mais próxima possível dessa situação ideal.
Em segundo lugar verifica-se que a concorrência produz na sociedade um efeito idêntico ao da selecção natural das espécies (empresas e famílias): cavam assimetrias e produzem a prazo a sua extinção. Se no caso das empresas a intervenção estatal só deve ter lugar se, e unicamente, a empresa em vias de extinção for viável por as suas dificuldades serem apenas conjunturais, no caso das famílias a sociedade deve intervir para assegurar a equidade (e não igualdade) social conforme escrevi no meu texto anterior (Mitos e Ideologias 2).
Portanto, é contraditório apostar numa economia de mercado e apostrofar a sociedade de mercado. A menos que este anátema se destine apenas a consumo caseiro.
Um texto que consubstancia as contradições socialistas foi o publicado por Jorge Bateira no Público (22-08-04 O Estado Estratega). Jorge Bateira, que Aarons de Carvalho qualifica noutro artigo no mesmo jornal de «reputado economista», desfia uma série de proposições ou pouco rigorosas ou mesmo absolutamente incorrectas.
Sobre o mercado escreve: «os mercados são uma construção social, não resultaram de qualquer ordem natural. ... É falsa a ideia de que no princípio era o mercado». Pois não, Jorge Bateira, ao princípio era o Australopithecus. Enquanto os hominídeos viveram em bandos, subsistindo através da colecta (frutos e caça) não havia mercado, nem economia, nem socialismo, nem debates no Público ... O mercado iniciou-se com a divisão social do trabalho (diferenciação e especialização progressivas das diversas tarefas e empregos necessários à boa evolução de uma sociedade, conforme escreveu Marx).
Com a divisão social do trabalho aparece a necessidade das trocas (aliás, para Adam Smith é o inverso: a divisão do trabalho é fruto do gosto visceral dos homens pela troca e pelo lucro) e a existência da propriedade (no mínimo, a propriedade do stock de bens para troca posterior) e a necessidade do estabelecimento de uma entidade que, de alguma forma, proteja ou dê segurança à propriedade. Escreve Adam Smith: "É, pois, a aquisição de propriedade ... que necessariamente exige o estabelecimento de um governo civil. Onde não há propriedade, ou ao menos, propriedade cujo valor ultrapasse o de dois ou três dias de trabalho, o governo civil não é tão necessário". Sem haver Estado e um enquadramento legal (escrito ou consuetudinário) que proteja a propriedade e dê segurança à actividade económica, não há mercado, mas também não há economia, apenas miséria. A aquisição pela violência e pelo saque, através da guerra ou da pirataria, conduz ao sofrimento, à miséria e à desmotivação pela actividade económica dada a insegurança que pende sobre os seus frutos.
Portanto quando o «reputado economista» Jorge Bateira escreve que «apenas os economistas de matriz ideológica neoliberal continuam a raciocinar como se fosse possível haver mercado sem intervenção pública» está a dizer um completo disparate pois para haver mercado, economia e civilização, o Estado tem que assegurar a protecção da propriedade e que o mercado funcione sem imperfeições. Nenhum neoliberal tem dúvidas sobre isso. Onde o pensamento neoliberal torce o nariz é ao que considera um excessivo protagonismo do Estado em matéria de justiça social.
Para Hayek: O salário mínimo? Uma inépcia que impede a mobilidade de trabalho, reduz a produtividade e o nível de vida colectivo. A fiscalidade, e em especial o imposto progressivo? Calamitosa: a progressividade perturba a alocação óptima dos recursos; o imposto deve ser proporcional, afim de salvaguardar a sua neutralidade. O Estado-Providência? Uma máquina para fabricar efeitos perversos: a socialização da economia que a acompanha não pode, por definição, ir a par com a realização do óptimo. A intervenção pública? Um crime contra a economia, se o Estado pretender ir além da formulação de regras gerais.
Às vezes é necessário gritar que o rei vai nu para se começar a notar que o vestuário do rei é absolutamente inadequado. Hayek, inicialmente maldito, passou ao estatuto de guru quando, a partir do fim dos anos 70, o estatismo ultrapassou os limites do razoável e os seus efeitos perversos nas economias ocidentais se tornaram visíveis e iniludíveis. Foi a partir daí que, inicialmente nos países anglo-saxónicos (Reagan e Thatcher) e depois na Europa continental, se começaram a implementar as privatizações de empresas públicas e as parcerias público-privadas para gestão de sectores até então considerados como vocação exclusiva do serviço público.
Prossegue o «reputado economista» Jorge Bateira: «... Não percebendo que sem Estado não há mercado, para estes economistas (os neoliberais ... claro) a intervenção do Estado é uma impureza ... um mal menor. ...Ora os mercados, não sendo entidades cognitivas, também não tomam decisões sobre o futuro, não elaboram estratégias».
No meu texto anterior acima referido escrevi que «o mercado não é uma entidade, é o conjunto de vendedores e compradores de um dado bem ou serviço. ... Portanto, «o mercado não define estratégias», mas as empresas que funcionam numa Economia de mercado tomam decisões estratégicas» e decisões sobre o futuro ... acrescento agora. E acrescento igualmente que «os mercados, não sendo entidades cognitivas», as empresas que constituem o mercado são-no.
Queria abrir entretanto um parêntesis sobre o termo neoliberalismo. Apesar da aplicação progressiva, embora muito tímida, de algumas receitas neoliberais, ter permitido um novo fôlego às economias ocidentais (incluindo a portuguesa), tem havido um coro enorme de calúnias movidas contra o termo neoliberalismo, mesmo pela gente de esquerda que quando no governo se vê constrangida a que aplicar algumas das suas receitas. O neoliberalismo passou a ser o culpado de tudo o que de mau que acontecia no mundo, sobretudo em regiões onde jamais houve qualquer pensamento neoliberal, como na África, onde predominam regimes que se intitulavam ou intitulam marxistas ou socialistas. O termo "neoliberal" adquiriu uma conotação negativa, embora os que a apliquem não expliquem o porquê. Ora, pode concordar-se ou não das ideias neoliberais, desde que se procure conhecer o que são exactamente essas ideias, submetendo-as então a uma crítica fundamentada. É absurdo debater ideias pela imagem caricatural forjada pelos seus detractores. Mas é exactamente isso que ocorre. Por exemplo, Jorge Bateira apenas o usa como elemento pejorativo. Para facilitar, atribui-lhe intenções que não correspondem às doutrinas dos pensadores neoliberais.
Regressemos a Jorge Bateira: ... «importa reconhecer as limitações da intervenção do Estado na economia ... vários factores ... imprevisibilidade decorrente da mudança tecnológica; dificuldade em encontrar um nível de intervenção adequado para reduzir a incerteza do investimento; criação de efeitos perversos em algumas políticas.»
Estas limitações deixam-me perplexa. Não é o Estado, mas as empresas, fundamentalmente as empresas industriais, que estão confrontadas com a imprevisibilidade decorrente da mudança tecnológica, ou com a incerteza do investimento. São elas que estão permanentemente confrontadas com as incertezas dos mercados. O Estado não tem qualquer vocação para tal. As empresas correm riscos, mas são elas que pagam se cometem erros. Quando o Estado comete erros nas suas decisões sob risco (ou na incapacidade de tomar decisões), quem paga esses erros são os contribuintes. Foi isso que os contribuintes portugueses têm andado a fazer relativamente aos erros cometidos pelo Estado no seu sector público empresarial. Portanto não se vê que tal constitua problema para o Estado, a menos que este regresse às nacionalizações.
Quanto aos «efeitos perversos em algumas políticas» estou de acordo. O Estado português tem tomado medidas enviesando o funcionamento de alguns mercados que a longo prazo se têm virado contra os grupos sociais que pretendiam proteger. Muitas dessas medidas foram entretanto abolidas. Outras ainda se mantêm (mercado laboral, mercado do arrendamento urbano, etc.). A perversidade dos efeitos dessas políticas é de tal monta que a sua abolição, embora necessária, pode causar no imediato situações em extremo complicadas e ter custos sociais elevados, e os resultados positivos só serem sentidos a médio ou longo prazo.
Jorge Bateira termina de forma tranquilizadora: a sua tese «não é compatível com uma Administração Pública desqualificada porque grande parte deste processo só tem eficácia se os interlocutores por parte do Estado forem credíveis.» ... e ... «contudo, há uma condição essencial para que esta alternativa ao neoliberalismo possa fazer o seu caminho: é indispensável que a qualidade cívica, técnica e política dos protagonistas do PS seja consistente com esta visão do Estado».
Ou seja, duas condições que inviabilizam as suas proposições. Podemos ficar tranquilos.
Boa análise, Joana. Esta e as anteriores.
Afixado por: Novais de Paula em agosto 25, 2004 03:58 PMHoje apareceu um artigo no Público de um tal Nuno Ribeiro cujo começo o identifica logo. Deve sofrer de BSS.
Afixado por: Novais de Paula em agosto 25, 2004 04:00 PMLeigo nestas matérias (mas apreciando o excelente português escrito de Joana) arrisco, no âmbito destes «Mitos e Ideologias», uma pergunta que decorre do próprio Regime :
- Como há-de perdurar uma «economia saudável», se a essência do Regime é a alternância política de concepções económicas que se opõem parcial ou totalmente e, ainda por cima, num potencial curtissímo espaço de tempo de quatro ou oito anos ?
Tenho o pressentimento de que me escapa qualquer coisa ...
Esta segunda quinzena de Agosto tem sido muito fraca quanto aos debates nos jornais.
Afixado por: Coruja em agosto 25, 2004 07:31 PMNovais de Paula em agosto 25, 2004 04:00 PM:
É o gongorismo político-literário mais vazio e rico em palavras que li esta semana.
«Esta metamorfose sistémica» de Sócrates «uma máscara sem cérebro» a Alegre, «um cérebro à procura de nova máscara» !!!
asdrubal em agosto 25, 2004 05:08 PM:
Para isso é que se fala em «pactos de regime» para a educação, justiça, controlo orçamental, etc.
Por isso muita gente, além de alguns socialistas, prefere Sócrates, que lhes parece ser capaz de uma política mais consequente e de interesse nacional que os seus concorrentes.
Não sei se o Sócrates será capaz disso.
Aliás a Joana, noutro post, também duvida, pois acha que ele é capaz de ficar debaixo dos mafiosos do PS
Ai Janica,
Como eu tinha razão sobre tudo! A cadência, o conteúdo, as horinhas, etc.
Pagam bem?
Afixado por: Átila em agosto 26, 2004 01:47 AMÁtila em agosto 26, 2004 01:47 AM:
Estou em férias! Há 2 semanas!
Se você lesse os textos em vez de plhar apenas para as horas teria percebido isso!
Átila em Agosto 26, 2004 01:47 AM:
Vamos começar de novo com as histórias do cavalo?... Por amor de Deus...
Os seus argumentos estão bem vistos, mas eu julgo que a ideia da "sociedade de mercado, não" é a tentar obviar a exclusão social e as grandes assimetrias.
Também há muita demagogia e eleitoralismos nestas frases
Tanta graxa
Afixado por: Cisco Kid em agosto 27, 2004 12:20 AMEstão bem alinhavados, mas não concordo com as comclusões
Afixado por: c seixas em agosto 27, 2004 09:25 AMConclusões e não "comclusões", claro.
Afixado por: c seixas em agosto 27, 2004 09:27 AMvitapis em agosto 26, 2004 07:16 PM:
Como você disse, há muita demagogia e o chavão "economia de mercado sim, sociedade de mercado não" é apenas demagogia, para enganar uns, mostrando que acredita na economia de mercado, e outros, para mostrar o seu horror ao mercado.
Não me parece que a demagogia seja apenas para enganar os eleitores. Também tem a ver com a falta de consistência ideológica dos políticos
Afixado por: c seixas em setembro 1, 2004 02:38 PMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AMSe fosses meter o mercado num sítio que eu cá sei
Afixado por: Sicupira em setembro 12, 2004 01:44 AM