agosto 08, 2004

A Maldição de Santarém

Santarém foi o resultado de um erro e da sua correcção por parte do Criador. Depois de ter criado aquelas sete colinas magníficas sobranceiras a um rio largo e vagaroso, rodeadas por uma lezíria ubérrima que se estende por dezenas de quilómetros, mas sem se perder de vista, tal a proeminência da colina principal, amuralhada há milénios, concluiu que tinha sido extremamente injusto na distribuição das benesses divinas e resolveu remediar a injustiça e equilibrar o balanço, com o povoamento que fez brotar daquelas terras.

Santarém tem condições geográficas únicas. É por direito geográfico irrecusável a capital da mais fértil região do país. A própria ninfa Calipso, entediada por reter sete anos o adorado Ulisses na sua ilha, levou-o, numa escapadela turística, às plagas lusitanas, subiu Tejo acima, até àquelas amenas e formosas paragens, e aí desovou o fruto da sua paixão, o príncipe Ábidis.

Mas as forças vivas daquela terra sempre se julgaram demasiado importantes para aceitarem benesses de outros, a menos que essas benesses sejam consideradas um tributo rendido à sua importância. O rei da terra mandou que Ábidis fosse lançado numa cesta às águas do Tejo, para servir de alimentação da fauna piscícola e aparecer mais tarde, nas ementas regionais, sob a epígrafe de «açorda de sável».

Mas o que os homens fizeram, os animais desfizeram, e também nas margens do Tejo, à semelhança do Tibre, uma loba salvou, amamentou e criou um futuro rei. E assim, escapando à voracidade do sável, Ábidis passou a patrono de pastelarias e hotéis do burgo multi-milenar.

E todos foram rendendo tributo à sua importância: Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos, Visigodos, Muçulmanos, etc. Essa importância geo-estratégica e económica de Santarém tornou-a um dos locais preferidos das cortes portuguesas e um dos povoados em que mais tempo permaneceram os nossos monarcas até ao acidente equestre ocorrido nos arredores de Santarém que causou a morte do infante D. Afonso, filho do rei D. João II.

Mas foi ainda em Santarém que D. António Prior do Crato se aclamou rei de Portugal, em 1580, na tentativa falhada de impedir a perda da independência de Portugal. Foi em Santarém que, durante a Guerra Civil entre liberais e absolutistas, D. Miguel estabeleceu o seu último reduto de resistência aos liberais e foi de lá que D. Pedro IV dirigiu a liquidação final das forças miguelistas.

Massena escolheu Santarém para a sua posição militar chave, na tentativa frustrada de romper as Linhas de Torres, atrás das quais estava o último reduto da Europa Continental que se opunha às águias napoleónicas. Se, em vez do «filho querido da vitória», tivesse vindo o próprio Napoleão, este teria certamente proclamado aos seus soldados, para lhes avivar o entusiasmo: «Do alto daquelas muralhas trinta séculos vos contemplam». Felizmente tal não aconteceu. Não apenas por Napoleão ser um adversário mais temível que Massena, mas também porque se Napoleão tivesse reeditado a ordem do dia «burros e sábios ao centro», geraria longa e penosa controvérsia sobre quem seriam os sábios e quem seriam os burros.

Durante séculos todas as vilas e burgos do Ribatejo renderam tributo a Santarém. Era um tributo natural pela sua posição geográfica e por os serviços administrativos, o liceu, etc., estarem aí situados. Os proprietários das grandes casas agrícolas da região também procuraram essa colina sobranceira ao Tejo para olharem, sobranceiros, os íncolas que labutavam ao longe, sol a sol, pela lezíria.

Todo este enquadramento geográfico e histórico criou uma camada social proeminente, extremamente fechada, auto-convencida da sua importância na cidade e na região. Todavia, as circunstâncias que permitiram ao longo dos séculos a sua criação modificaram-se nos últimos 30 anos. Houve descentralização dos equipamentos culturais e educacionais. As cidades e vilas ribatejanas conheceram um grande dinamismo e começaram a ficar mais próximas dos centros de decisão de Lisboa, sem passarem pela intermediação de Santarém. Quem conheça bem a região não deixará de notar que nas duas últimas décadas Santarém tem tido uma modernização menos significativa que a da maioria dos aglomerados ribatejanos que a rodeiam (Cartaxo, Almeirim, Rio Maior, etc.). Tudo se modificou, menos a mentalidade daquela camada social.

Há semanas o governo pôs a hipótese de transferir a Secretaria de Estado da Agricultura e da Alimentação para Santarém. Os dirigentes escalabitanos comportaram-se então com o elevado sentido da importância que a si próprios se atribuem. O presidente da autarquia da ínclita cidade estava tranquilamente em férias e o vice-presidente, do alto das suas sobranceiras muralhas, declarou ao CM (30-07-2004) que a «autarquia não tem imóveis preparados para receber uma estrutura deste género» e que aquela «deslocalização não tem significado nem vai ao encontro das legítimas aspirações dos agricultores».

Como escrevi acima, as forças vivas de Santarém sempre se julgaram demasiado importantes para aceitarem benesses de outros, a menos que essas benesses sejam consideradas um tributo rendido à sua importância. Portanto, desvalorizar essas alegadas benesses, seria um passo imprescindível e necessário para um autarca puro-sangue escalabitano, antes de as aceitar. Seria Santarém a fazer o favor de aceitar ... assim é que estava certo e mandava a tradição

Todavia aconteceu algo que seria inverosímil décadas atrás, e que continua a sê-lo para as mentalidades escalabitanas: O presidente da Golegã, perante o que ele qualificou de «inércia e inépcia de Santarém» disponibilizou junto do governo um magnífico palácio do século XVII, interiormente modernizado, apto para utilização imediata e mesmo no centro da terra.

O presidente da CMS ficou de tal forma siderado que interrompeu as férias. Criticando a CM Golegã por ter feito aquela proposta insidiosa (“mau tom” e “deselegante”) e que violava os direitos de vassalagem devidos pela Golegã, o presidente da CMS propôs, apressadamente, o que viu mais à mão, de relance: a EZN (que não é da CMS, mas do próprio Ministério da Agricultura) e o CNEMA (cujo accionista maioritário é a CAP, em cujo Conselho de Administração a CMS só tem 1 representante, entre 6, e que tem tido relações péssimas com a autarquia). Isto é, a CMS «disponibilizou» ao governo instalações de outrem e que, para cúmulo, se encontram ocupadas.

A Golegã não tem bons acessos na direcção de Lisboa. A estrada Santarém – Golegã é um caminho de cabras. A melhor solução é ir na direcção do Entroncamento e tomar a A1 no nó de Torres Novas. Mas as localizações que, tardiamente, a Santarém sugeriu, para além de serem de outrem e de estarem ocupadas, são muito periféricas relativamente à cidade: 2,5 kms (CNEMA) e 8 kms (EZN), bastante distanciadas do tecido urbano.

Neste processo, os autarcas de Santarém mostraram o lado mais negativo do carácter «puro-sangue» escalabitano e o porquê da estagnação relativa da cidade. Sobranceiros perante a «oferta», quando julgaram que não havia concorrência, coléricos perante o vassalo (Golegã) que renegou os seus deveres de fidelidade, arranjando apressadamente soluções de recurso insensatas quando se viram postergados.

Se a CMS achava que aquela «deslocalização não tem significado nem vai ao encontro das legítimas aspirações dos agricultores», deveria manter essa posição até ao fim. Teria sido mais digno e, sobretudo, coerente, que arranjar soluções de recurso insensatas e criticar Golegã por haver disponibilizado uma solução alternativa.

E o mais curioso é que ambas as autarquias são socialistas e que a Golegã nem sequer tem qualquer vereador do PSD, de tal maneira o PSD é uma força minoritária no concelho. Até 1997 Golegã foi uma Câmara CDU. O PS ganhou em 1997 e esmagou literalmente a CDU em 2001.

Publicado por Joana em agosto 8, 2004 11:48 PM | TrackBack
Comentários

Pois é este tipo de 'complexos de superioridade', este tipo de caixinhas que faz ser perigosa para Portugal uma Regionalização feita 'à séria'...
Mais uma boa posta! Parabéns!

Um abraço,
Francisco Nunes

Afixado por: Planície Heróica em agosto 9, 2004 01:27 AM

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Afixado por: Onliner raivoso em agosto 9, 2004 09:36 AM

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Afixado por: Onliner raivoso em agosto 9, 2004 09:37 AM

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Afixado por: Onliner raivoso em agosto 9, 2004 09:39 AM

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Afixado por: Onliner raivoso em agosto 9, 2004 09:40 AM

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Afixado por: Onliner raivoso em agosto 9, 2004 09:40 AM

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Afixado por: Onliner raivoso em agosto 9, 2004 09:40 AM

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Afixado por: Onliner raivoso em agosto 9, 2004 09:42 AM

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Afixado por: Onliner raivoso em agosto 9, 2004 09:42 AM

eh eh eh eh. O pessoal das terras à volta devem estar-se a rir desta trapalhada toda.

Afixado por: Grotius em agosto 9, 2004 01:39 PM

Não me parece que esta deslocalização traga quaisquer benefícios, agora a CMS se achou isso ao princípio, não deveria depois andar a pedir batatinhas e a choramingar.
Aí a Joana tem razão.

Afixado por: c seixas em agosto 9, 2004 03:03 PM

Quem deve estar a gozar com isto é o governo. Tanta guerrilhazinha entre PS's

Afixado por: c seixas em agosto 9, 2004 03:05 PM

A Açorda de Sável é óptima. E sabe ao Abidis

Afixado por: Rui Silva em agosto 9, 2004 06:20 PM

Mesmo para patuscar, as terras à volta são muito melhores

Afixado por: Tony em agosto 10, 2004 01:07 PM

Na Adiafa (no recinto da antiga feira) e na Grelha, defronte do Mestre Maco, não se come mal.

Afixado por: Joana em agosto 10, 2004 01:37 PM

Vejo que a Joana conhece bem Santarém

Afixado por: Abidis em agosto 10, 2004 04:40 PM

Mas olhem que em Almeirim e no Cartaxo se come melhor.
E no Pão e Vinho do Vale de Santarém?

Afixado por: venancio em agosto 10, 2004 04:43 PM

Quando lá vou tambem gosto de almoçar no Quinzena!!!

Afixado por: daniel tecelão em agosto 10, 2004 10:34 PM

Quando lá vou tambem gosto de almoçar no Quinzena!!!

Afixado por: daniel tecelão em agosto 10, 2004 10:35 PM

Quando lá vou tambem gosto de almoçar no Quinzena!!!

Afixado por: daniel tecelão em agosto 10, 2004 10:36 PM

Claro que isto acabou num clube gastronómico.

Afixado por: Coruja em agosto 10, 2004 10:45 PM

Eu sou daquela zona e a Joana acertou no vinte. O pessoal de Santarém (refiro-me à fina-flor da terra)é mesmo assim.

Afixado por: Justo em agosto 12, 2004 10:44 AM

A Joana é de lá, confesse!

Afixado por: Justo em agosto 12, 2004 10:45 AM

Eu não, mas os meus avós (paternos e maternos) são da zona.

Afixado por: Joana em agosto 12, 2004 03:02 PM

Santarém, do ponto de vista monumental, é muito interessante. Quanto à questão do comportamentos da autarquia não me parece uma mera questão partidária. Faz parte do que há de pior no comportamento do escol escalabitano.

Afixado por: Joana em agosto 12, 2004 03:06 PM
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