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agosto 01, 2005

Economia e Ética

Reina alguma confusão sobre a palavra Economia. Em inglês essa confusão não existe. A Economia, enquanto ciência, é designada por Economics; a economia em termos latos, que abrange abordagens positivas, normativas, descritivas ou apenas de semântica corrente, é designada por Economy. Uma ciência positiva é um conjunto de conhecimentos sistematizados que respeitam ao que é, enquanto uma ciência normativa é um conjunto de conhecimentos sistematizados discutindo critérios sobre o que deve ser.

No caso vertente, a Economia positiva deve entender e explicar os factos observados enquanto a Economia normativa deve, utilizando a Economia positiva, propor políticas para a solução de problemas identificados. O que não é cientificamente correcto são valorações morais e subjectivas inquinarem a Teoria Económica, a Economia positiva, e liquidarem a sua base científica para construírem uma doutrina normativa, alegadamente ética e prenhe de valores morais, mas que, sem uma base científica hipotética-dedutiva, pode levar aos maiores desastres na sua aplicação prática. A interacção entre as duas áreas não pode levar à manipulação dos factos.

Ou seja, o mensageiro deve trazer os factos; não deve trazer aquilo que o receptor da mensagem gostaria de ouvir. Doutrinas que prometiam a permanente reconciliação dos valores sociais com comportamentos individuais, pela sujeição destes àqueles, revelaram-se, na prática, um desastre e conduziram à miséria geral.

Ora o que se verifica é que a ordem social e a ordem do mercado estão firmemente ancoradas numa infra-estrutura ética. Em primeiro lugar os agentes económicos — consumidores, empresários, trabalhadores, etc. — têm valores éticos que modelam os seus comportamentos; por sua vez, as instituições e as políticas económicas têm impactes diferenciados sobre as pessoas, daí decorrendo importantes avaliações económicas e éticas.

É pois evidente que o comportamento dos agentes económicos e as suas preferências, que são a base da Teoria Económica, ocorrem num quadro social e institucional em que existem valores éticos. A própria racionalidade individual é um produto social. Por outro lado, para a sociedade funcionar tem que haver uma ordem legalmente protegida e, obviamente assente nos princípios éticos da sociedade. Como eu escrevi há dias, aqui e aqui, «Sem a existência de um governo suportado num aparelho estatal está instalada a anarquia e não é possível uma actividade económica sustentável, nem há condições para o progresso económico e civilizacional … A actividade económica reduz-se à subsistência». Neste caso não haveria ciência económica (nem provavelmente qualquer outra ciência).

Existe uma ordem institucional mínima para o funcionamento da economia de mercado que inclui, além do ordenamento legal básico, regras que estabelecem a fronteira entre o que é lícito e o que é ilícito na actividade económica. Esse mínimo legal da ordem do mercado —direitos de propriedade bem definidos, liberdade e garantia de execução de contratos e prevenção de práticas anti-concorrenciais — tem como objectivo barrar as tentativas dos agentes económicos de viver à custa dos outros, colhendo o que não semearam. Sabotar a produção de uma empresa rival, adquirir um concorrente para obter uma situação de monopólio, conluiar-se com outras empresas do mesmo ramo para constituir um cartel e agir sobre os preços ou sobre as características do produto, são violações das regras mínimas da concorrência. Mas manter para si (ou patentear) um segredo industrial ou atrair um técnico oferecendo um salário mais alto fazem parte das regras do jogo, embora as suas consequências para uma empresa rival possam ser piores do que no caso da sabotagem.

O sistema de preferências do consumidor, do homo œconomicus, e a maximização da sua utilidade, não significa necessariamente que esse sistema de preferências, embora correspondendo a um plano pessoal, seja necessariamente egoísta. Qualquer acção, mesmo a mais altruísta, pode ser vista em termos de utilidade própria. E esta utilidade própria não invalida que os indivíduos tenham possibilidade de serem diferentes, que sejam capazes de pensar por si próprios e que o seu sistema de valores se possa alterar. Esta é uma noção genérica que não impede que, às vezes, os indivíduos não sejam capazes de se comportarem como egoístas racionais: falta de vontade; incapacidade de reconhecer e defender o interesse próprio; fazer prevalecer o empenho pelo poder (cf. Nietzsche) perante outro interesse; actuações auto-destruidoras; idealismo com boas ou más consequências, etc.

Ao contrário do que muitos pensam, o homo œconomicus de Adam Smith não se comporta respeitando apenas o seu interesse pessoal, ele comporta-se também de acordo com o prazer que sente pela felicidade dos outros. O próprio Adam Smith o reconhecia explicitamente, em The Theory of Moral Sentiments:

"How selfish so ever man may be supposed, there are evidently some principles in his nature which interest him in the fortune of others, and render their happiness necessary to him, though he derives nothing from it except the pleasure of seeing it"

Embora tal não signifique que a busca dos seus interesses individuais seja mitigada, e que afinal se preocupem menos com eles próprios do que com os outros.

Talvez por isso, para evitar conotações negativas por anexações semânticas, Alfred Marshall, que defendia que a economia não devia tomar partido em controvérsias sobre a ética, preferia a palavra "satisfação", em vez de "prazer", como fundamento do incentivo para as escolhas dos indivíduos.

Aliás, como a abordagem inicial de qualquer investigador não está isenta de valores, sejam eles quais forem, não é possível nem desejável ignorar o quadro de valores em que nos movemos. Ignorar esse quadro de valores poderia significar estarmos, sem o saber, a inquinar a nossa investigação com as nossas próprias concepções apriorísticas. As valorações partem dos factos e da análise científica desses factos. Mas interagem sobre eles.

Por exemplo, o estabelecimento de um salário mínimo não é, à partida, um facto da Teoria Económica. É um critério normativo. Todavia, ao ser estabelecido, a Teoria Económica deve-o introduzir no seu escopo de análise e verificar as consequências em termos do sistema de preços, mercado de factores, nível de emprego e equilíbrio geral. Como escreveu Gunnar Myrdal, "A mútua interdependência de factos e valores é precisamente o combustível que alimenta o trabalho científico, não menos nas ciências sociais do que nas ciências físicas. O progresso científico só chega quando nos esforçamos para maximizar o papel dos factos e por minimizar o papel dos valores"

Em determinadas situações é difícil avaliar o que foi preponderante na elaboração de uma teoria: se os factos se os valores dos proponentes dessa teoria. Por exemplo, a Escola de Chicago assegura que as divergências entre preços reais e concorrenciais provocadas por monopólio ou monopsónio são, em geral, irrelevantes. Os preços em um monopólio persistem no longo prazo somente quando o governo bloqueia a entrada a outros concorrentes. Mas até mesmo nesses casos, a concorrência geral da economia gerará novos produtos e tecnologias que enfraquecerão a posição do monopolista. É certo que isto já se verificou em alguns casos. Todavia uma teoria que só pode ser confirmada a longo prazo e que contraria, no curto prazo, a eficiência nos preços e na afectação de recursos, de acordo com a própria Teoria Económica, tem que ser vista com alguma prudência, para saber se estamos ainda no campo da Economia Positiva, ou se já resvalámos para a zona da Economia Normativa.

Publicado por Joana às agosto 1, 2005 05:47 PM

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Comentários

Do Insurgente:
O Jornal de Notícias noticia hoje que vendas das farmácias atingem valores astronómicos. Dá como exemplos uma em Coimbra (sete milhões de euros) e duas em Santarém (cinco milhões de euros). Dirão os mais apressados que, provavelmente, se trata da prova provada que num mercado desregulado se conseguem lucros "imorais". (para além da falácia da imoralidade do lucro) O caso é exactamente o oposto. As farmácias são extremamente reguladas pelo estado e os lucros astronómicos derivam da limitação administrativa da concorrência.

Num mercado desregulado lucros desta ordem seriam um convite à entrada de novos concorrentes no mercado. Ganhariam os consumidores com o aumento da oferta e com uma (quase certa) diminuição das margens de venda.

Publicado por: fbmatos às agosto 1, 2005 07:09 PM

As minhas divergências com a Joana são muitas. Começo por não concordar com a diferenciação entre economia positiva e economia normativa. Economia, para mim, é só positiva. As normas não fazem parte da economia, mas sim da política. Só que eu acho que a economia deve estar subordinada à política e não o contrário. Uma comunidade define objectivos - no campo produtivo e no campo social - e depois serve-se de vários mecanismos, entre os quais os económicos, para os alcançar. As reflexões da Joana só se compreendem a partir do seu pressuposto que o non plus ultra da economia é a maximização da eficiência produtiva, e que tudo o que afectar esse santo graal é necessariamente mau. Pode acontecer que os valores éticos de uma sociedade - que a Joana reconhece existirem - impeçam de alcançar esse supremo objectivo, mas se se for muito longe por essa via, a Joana protesta veementemente.

"Doutrinas que prometiam a permanente reconciliação dos valores sociais com comportamentos individuais, pela sujeição destes àqueles, revelaram-se, na prática, um desastre e conduziram à miséria geral", diz a Joana. Mas o que será a "miséria geral", na opinião da Joana? Será "miséria geral" garantir a todos o suficiente para viver, o livre acesso à educação, à cultura e aos cuidados de saúde? Se isso só for possível com sacrifício do consumo de muitos bens supérfluos, se só virmos na rua carros com muitos anos, se não virmos condomínios de luxo, isso já é "miséria geral" para a Joana? Mas se mais de metade da população de um país viver em bairros de lata, sem acesso à educação e aos cuidados de saúde, com muita gente subnutrida, mas houver muitas grandes empresas, com muitos capitalistas vivendo num ambiente de luxo, isso já não será "miséria geral" mas sim prosperidade económica?

"Ora o que se verifica é que a ordem social e a ordem do mercado estão firmemente ancoradas numa infra-estrutura ética".

A Joana está a brincar connosco. Deveria estar, e se estivesse eu já me sentiria muito melhor. Mas o que aconteceu foi que a ânsia de lucro e de consumo destruiram o corpo de valores éticos das nossas sociedades gerando sistemas cada vez mais iníquos.

A principal crítica que faço à Joana é que ela elaborou um quadro desejável (a seus olhos) para a nossa sociedade, em que a eficiência económica pesa muito e a justiça social pesa pouco. Tudo o que respeitar a sua visão subjectiva é bom, tudo o que for mais longe é mau. E depois tenta convencer-nos de que essa sua bondade é objectiva. Aqueles que fazem exigências sociais maiores, e estão dispostos a sacrificar algo mais da eficiência produtiva, são uns ignorantes, uns fautores de miséria, uns ideólogos alucinados. A Joana tenta convencer-nos da justeza da sua ideologia porque, com ela, há muito mais ricos. Eu defendo a minha ideologia baseado no facto de que, com ela, há muito menos pobres. A Joana diz que se deve primeiro produzir e só depois distribuir (esquece-se é de dizer a partir de que grau de produção é que se deve começar a distribuir). Eu digo que se deve começar a distribuir desde já a riqueza existente. Na ideologia da Joana produz-se mais. Na minha sofre-se menos.

Eu continuo a gostar muito mais da minha ideologia.

Publicado por: Albatroz às agosto 1, 2005 07:45 PM

Pois eu então agradeço a ambos. Joana, tocou num aspecto fulcral do Apocalipse. Enquanto que os anglófonos se permitem dizer uma coisa no Economis«cs e fazer o contrário na Economy, nós portugueses estamos obrigados a sintetizar as duas, e penso que estamos mais próximos de Xenofonte, não?

Dito por outra forma a dissociação anglófona da Economia é esquizofrénica. E daí ter o maior volume de estudos sobre o aquecimento global nos EUA, que não assinam o protocolo de Kyoto. Estamos a lidar com doentes mentais, que ainda por cima precisam que aconteça uma coisa absolutamente fora das estatísticas para reconhecerem a evidência. Enfin...

Camarada Albatroz, nunca me imaginei ser camarada de um anarco-miguelista e não prescindo do meu prazer de eleger presidentes. Não me importava nada de me encontrar com o Filipe de Bourbon no alto do Kilimanjaro, no entanto, e falar do estado do Mundo.

Publicado por: pyrenaica às agosto 1, 2005 09:00 PM

Caro Albatroz,

"...a ânsia de lucro e de consumo destruiram o corpo de valores éticos das nossas sociedades gerando sistemas cada vez mais iníquos."

"Eu defendo a minha ideologia baseado no facto de que, com ela, há muito menos pobres."

Isto não é verdade. É um sonho seu, mas não é a realidade.

Talvez por você ser um perfecionista (suponho eu), não admite a diferença, a diversidade. Logo, isso resulta aos seus olhos num mundo iníquo. Não é. É vivo, imprevísivel.

E a sua ideologia gerou milhões de pobres em todo o mundo que outros não conseguem absorver. E sofrimento. Infinito. Que está a ser dirimido paulatinamente por essa coisa obstrusa que chamam de globalização. Alguns desses pobres estão a fazer o seu caminho, duro e penoso, rumo ao desenvolvimento. Vão chegar lá. Esperemos é que não nos afundemos entretanto (nós, os "outros" nessa jangada de pedra que vagueia... Prefiro voar. E sonhar. Livre. Sem tiros de quem me quer pôr no chão.

Alface "Voadora"

Publicado por: Alface às agosto 1, 2005 09:10 PM

Ser-se pobre, num dado país, é ter um rendimento inferior a uma certa percentagem do rendimento nacional. Ou seja, a maioria dos pobres americanos, e mesmo da UE e Japão, são mais ricos que a quase totalidade dos habitantes do resto do mundo.

Publicado por: David às agosto 1, 2005 09:28 PM

"Mas se mais de metade da população de um país viver em bairros de lata, sem acesso à educação e aos cuidados de saúde, com muita gente subnutrida, mas houver muitas grandes empresas, com muitos capitalistas vivendo num ambiente de luxo" não é em nenhum país ocidental (EUA e UE).
O Albatroz deve estar-se a referir a algum país sul-americano ou africano, semi-ditatorial, ou ditatorial e semi.

Publicado por: David às agosto 1, 2005 09:31 PM

Bom mas uma coisa é inevitável. Se a Natureza procura maximizar a resiliência então procurará maximizar as oportunidades de encontros reproductivos e portanto tendencialmente a equidade social. Daí que sempre, por qualquer razão, tenha havido uma massa que se opôs à humilhação dos supostos mais fracos - em termos de sociobiologia a Moral e a Ética visam salvaguardar genes para o futuro, daqueles tais, que noutros tempos se revelarão importantes.

Publicado por: pyrenaica às agosto 1, 2005 09:39 PM

Não me parece adequada essa divisão da teoria económica ("economics") como sendo positiva, ficando os aspectos normativos para a "economy"; há "positive economics" e "normative economics", sendo ambos corpos teóricos, podendo ecentualmente a "positive economics" arrogar-se de cumprir o programa científico (embora muita gente o duvide) na esteira de Friedman e do seu "quanto menos realistas as hipóteses, melhor".

Mas enfim, isto deve ser discussão para outra freguesia; a distância que separa os conhecimentos (e, já agora, a coerência interna do texto) dos posts, por um lado, e dos comentários, por outro, é confrangedora.

Mas sempre se pode dizer, enfim, que háde haver algo de, digamos, "positive", no meio de tanta ideologia.

Publicado por: J.A. às agosto 1, 2005 10:06 PM

Excelente texto, Joana. Gostei.

Publicado por: Hector às agosto 1, 2005 10:07 PM

J.A. às agosto 1, 2005 10:06 PM:
Tem alguma razão no que escreve. Os manuais de Economia distinguem normalmente (p.ex. o Samuelson, porventura o mais conhecido), e logo no início, a Economia Positiva, da Normativa, reservando para esta última as questões relativas aos preceitos éticos e juízos de valor, para as quais não existem respostas certas ou erradas, porquanto para além dos factos envolvem princípios éticos e valores. São questões resolúveis no debate político.
Mas, a partir daí, quando aqueles manuais expõem a teoria económica, a “parte normativa” serve unicamente para levantarem questões e avaliarem em que medida a teoria responde a essas questões. Não constituem um corpo próprio, mas casos dispersos.
No caso dos manuais de Micro ou Macroeconomia, o tema da Economia Normativa nem sequer é abordado como tal, embora determinadas decisões de política económica (de base claramente normativa) sejam avaliadas face aos modelos criados nessas disciplinas, como referi no post. Já no caso da Economia do Bem Estar, as questões normativas têm algum cabimento como hipóteses de base. Todavia, o próprio “arsenal matemático” desta parte da microeconomia acaba por obscurecer, ou dificultar, essa possibilidade.
No post eu quis vincar, claramente, o carácter científico da Teoria Económica, que se baseia em factos, e que se constituiu num corpo de análise próprio, do conjunto de valores, diversos e contraditórios, que terão importância no debate político, que devem ser avaliados pela Teoria Económica, mas que não podem inquinar a própria base da Análise Económica, sob pena de a transformar numa versão dos Manuais de Economia Política da ex-Academia de Ciências da ex-URSS, livros que acumulavam o excesso de páginas com o vazio operacional.

Publicado por: Joana às agosto 1, 2005 10:53 PM

Estou de acordo com o que escreve, nomeadamente quanto à necessidade de retirar as análises subjectivas (ideológicas, humanistas, caritativas, etç.) da elaboração da teoria económica (seja ela ou não considerada ciência - afinal, uma mera questão de definição). Na linha do texto do aniversariante Milton Friedman, de 1953, "The Methodology of Positive Economics".

Publicado por: J.A. às agosto 1, 2005 11:05 PM

Concordo com a Joana que existe um quadro ético que regula o funcionamento da sociedade e do mercado. Não é preciso haver um polícia em cada esquina para haver ordem e as coisas funcionarem. A coacção é apenas para os desvios à norma.
E concordo que esse quadro ético vai avançando com o desenvolvimento social. O maior desenvolvimento está mais ou menos ligado ao maior civismo.

Publicado por: Rui Sá às agosto 2, 2005 12:23 AM

Boa noite. Estava eu já deitado próximo de um pequeno Nirvana, quando me lembrei que afinal fiquei sem perceber se a dívida externa de Portugal é 67% ou 125% do PIB. Ou seja fiquei sem perceber se devo ficar preocupado ou muito preocupado, com uma coisa para a qual devo ter contribuído muito pouco, que eu tenha consciência.

Em 2º lugar perdoem a ignorância de um estudante compulsado de economia mas "dívida externa" e "dívida pública" não são coisas que se somem, pois não? Assim a modos que para obter uma dívida total. Ad limite é o Estado de Portugal que responde por isso?

(PS: este estudante compulsado de economia é MSc e PhD noutras coisas...)

Publicado por: pyrenaica às agosto 2, 2005 01:12 AM

Ninguém duvida de que a medicina é uma ciência. Quem quiser ser médico tem de a estudar. Mas quem adquiriu a competência científica da medicina pode servir-se dela para curar pessoas ou para fazer experiências sobre seres humanos. A primeira é eticamente favorecida, a segunda é eticamente condenável. Com a economia passa-se algo de semelhante. O conhecimento económico pode ser utilizado para promover a justiça e a equidade, mas pode também ser utilizado para, em nome da eficiência produtiva, dar origem à exclusão social, à desigualdade e à injustiça. A ciência económica é a mesma, a forma como utilizamos essa ciência é que terá resultados diversos sobre as comunidades. Por isso não me venham contar histórias da carochinha sobre a boa economia e a má economia. O que há é objectivos justos e objectivos injustos. O que há é práticas éticas e práticas atentatórias dessa mesma ética. O que há é decisões correctas e decisões incorrectas. O que há é políticas económicas eficazes e políticas económicas ineficazes (relativamente aos objectivos anunciados). Por isso é que eu defendo que a prioridade deve ser dada à definição de objectivos - o que faz parte da esfera política. Depois é esperar que os técnicos (os economistas) saibam o que estão a fazer para alcançar esses objectivos. O que pressupõe, obviamente, que os objectivos são realistas.

Voltando às ideias da Joana, o que eu condeno não são tanto os objectivos que ela enuncia, mas o seu preço. Não tenho nada contra a eficiência produtiva desde que ela não gere exclusão social, desigualdade crescente, exploração dos que trabalham. Infelizmente estou convencido que a máxima eficiência económica não é compatível com a máxima eficiência social. Para promover uma tenho de sacrificar a outra. O truque está em encontrar um ponto de equilíbrio que respeite a ética do grupo e a dignidade de cada um.

Publicado por: Albatroz às agosto 2, 2005 01:15 AM

pyrenaica às agosto 2, 2005 01:12 AM

Por mim mantenho os números que referi, já que eles foram obtidos tanto no sítio do Banco de Portugal como no sítio estatístico da CIA. Logo, a dívida externa corresponde a 125% do PIB.

Quanto à dívida externa e dívida pública são coisas distintas, embora seja possível que parte da dívida pública também possa fazer parte da dívida externa (se o Estado contrair um empréstimo no exterior). Tanto quanto eu saiba a tendência actual é para o Estado se financiar internamente, mas admito que possa haver dívida pública externa, nomeadamente para grandes obras públicas.

Publicado por: Albatroz às agosto 2, 2005 01:23 AM

Obrigado Albatroz. Prefiro enfrentar a verdade do que fugir a ela. Ainda tenho esperança que outros possam corrigir esses valores, mas de facto o BP é quem responde nominalmente por isso. Vou voltar para a cama numa mais de samsara... Até amanhã.

Publicado por: pyrenaica às agosto 2, 2005 01:35 AM

Excelente post

Publicado por: Bernardo às agosto 2, 2005 08:43 AM

O post pode ser excelente, mas está claramente deslocado numa época de férias. A malta não tem paciência para digerir isto.

Publicado por: Rave às agosto 2, 2005 01:27 PM

Em tempo de férias ninguém se preocupa com a dívida externa portuguesa.
Se a malta não se preocupa com o seu próprio endividamento!

Publicado por: fbmatos às agosto 2, 2005 01:51 PM

Na minha opinião, a Economia Positiva corresponde é uma ciência. A Economia Normativa, como alguns autores chamam, não passa de um conjunto não sistematizado de opiniões, de intenções ditas sociais, de palpites sociológicos, etc., mas não tem nada a ver com uma ciência.

Publicado por: Novais de Paula às agosto 2, 2005 03:22 PM

O que é necessário para que uma disciplina seja uma ciência?

Não basta que a disciplina tenha postulados e que, a partir deles, extraia conclusões lógicas, e construa elaborações matematicamente mais ou menos complicadas.

Para que uma disciplina seja uma ciência é preciso que ela se aplique à realidade, que faça previsões corretas para essa realidade, e que permita manipulações corretas dela.

Por exemplo, a matemática tem modelos, com postulados e deduções. Mas esses modelos de nada valeriam, e a matemática não seria uma ciência, se não tivessem aplicações ao mundo concreto, nomeadamente a outras ciências. A geometria de Riemann, digamos, não seria uma ciência se não tivesse aplicações na teoria da gravitação.

Ora, eu não sou especialista em economia. Mas, segundo me é dado entender, a economia está um bocado longe de satisfazer estes critérios de aplicação ao mundo real, de previsão, de explicação, de manipulação.

A teoria económica é uma teoria circular, em que o "valor" circula sem cessar entre diversas entidades. Nela, dois factos fundamentais da economia real - a existência de fontes de matérias-primas e de energia e de sumidouros de desperdícios, e o crescimento económico - não encontram uma explicação imediata, e são assim como que apêndices ao modelo.

Chamar ciência a uma teoria nestas condições parece-me um bocado forçado.

Mas sei que a Joana negará furiosamente este meu parecer.

Publicado por: Luís Lavoura às agosto 2, 2005 04:21 PM

pyrenaica às agosto 2, 2005 01:35 AM:
pyrenaica, pá!, você confia em números da CIA? Esses tipos só querem deitar abaixo a nossa auto-estima.

Publicado por: Coruja às agosto 2, 2005 05:53 PM

Luís Lavoura às agosto 2, 2005 04:21 PM

Dado que a economia tem a haver primordialmente com decisões de pessoas, e que as pessoas não são máquinas, tudo o que a economia pode fazer é prever, com um certo grau de probabilidade, o que vai acontecer em determinadas circunstâncias. Eu posso dizer, com um certo grau de confiança, que o aumento do rendimento disponível das pessoas provocará um aumento da procura agregada. Mas se estivermos perante uma grave crise internacional, que pode conduzir a uma guerra, os consumidores poderão reduzir a procura agregada mesmo se o seu rendimento disponivel tiver aumentado. Para mim a economia é de facto uma ciência, mas com carácter probabilístico e não determinístico. E tem fortes ligações com a psicologia e com a sociologia, ciências que se ocupam do comportamento individual e colectivo. É claro que a economia sofre com o facto de que as regras de funcionamento económico podem ser alteradas pelo corpo político. Imagine-se que, em matemática, o governo tinha o poder de eliminar o uso de números pares. Como é que eu iria resolver a adição de dois números ímpares?

Não duvido do carácter científico da economia. Mas é uma ciência que se não dá bem com a rigidez de espírito. Se eu soubesse alguma coisa de física quântica talvez me atrevesse a dizer que a economia tem qualquer coisa de quântico, nomeadamente no que diz respeito ao princípio da incerteza de Heisenberg. Aqui está uma sugestão para um jovem doutorando, com conhecimentos na área da economia e da física quântica...

Publicado por: Albatroz às agosto 2, 2005 05:55 PM

Luís Lavoura às agosto 2, 2005 04:21 PM:
De forma alguma. Claro que estou de acordo consigo que você não é um «especialista em economia».
Nem precisava dizê-lo. O seu comentário não deixa quaisquer dúvidas.

Publicado por: Joana às agosto 2, 2005 06:04 PM

Uma voltinha pela net trouxe-me esta prenda:

http://econwpa.wustl.edu:8089/eps/get/papers/9904/9904004.html

Ou seja, já há quem tenha explorado esse casamento da economia com a física quântica.

Publicado por: Albatroz às agosto 2, 2005 06:41 PM

Oh Coruja eu na CIA não confio, mas confio que o Albatroz foi o mais correcto que pode. Mas talvez uma corujinha simpática consiga trazer melhores notícias...

Publicado por: pyrenaica às agosto 2, 2005 07:41 PM

Pessoal já comecei a conat quanto falta para partir. quando eu era puto, puto, contava os dias até ao Festival da Canção...

Agora vêm vocês com a epistemologia das ciências.

A História é uma ciência? Esta é a questão fulcral: não prevê nada, só reconstitui o passado. Mais logo darei outra deiza.

Publicado por: pyreanica às agosto 2, 2005 07:44 PM

Para aqueles que sintam curiosidade intelectual (e sem "rigidez de espírito"), estão disponíveis sobre o assunto:

a) "The Methodology of Positive Economics", de Milton Friedman:
http://forum.ccer.edu.cn/forum/upload/.248.41-2005-6-18-20-29-0.pdf

b) "Algumas Observações sobre a Metodologia da Economia", de João Sousa Andrade:
http://www4.fe.uc.pt/jasa/livro/metodo.pdf

c) eu bem gostaria de ter acesso ao texto que o Professor Jacinto Nunes leu na sua aula de jubilação, precisamente sobre este tema: "Introdução à Epistemologia e Metodologia Económicas Contemporâneas: O Post-Positivismo"; sei que foi publicado pela Faculdade de Direito de Coimbra e o ISEG também deve ter publicado. Eu tive a sorte de ouvir ao vivo, com o bónus adicional de ter visto o Professor Cavaco Silva (já desgovernamentalizado, foi em 1996) a dormitar sobre o assunto.

d) o livro do Mark Blaug, "Metodologia da Economia", talvez seja o melhor como introdução, já que situa este assunto historicamente, refere as várias correntes, etç.

e) a articulação das ideias de Popper com a Economia são apresentadas em "Karl Raimund Popper: um filósofo e três abordagens da metodologia da Economia":
http://www.abphe.org.br/congresso2003/Textos/Abphe_2003_12.pdf

Publicado por: J.A. às agosto 2, 2005 09:06 PM

J.A. às agosto 2, 2005 09:06 PM:
Obrigada. O texto "Algumas Observações sobre a Metodologia da Economia", de João Sousa Andrade, já conhecia, por acaso.

Publicado por: Joana às agosto 2, 2005 11:32 PM

Luís Lavoura às agosto 2, 2005 04:21 PM:
Essa da teoria circular ...
Então, porque os planetas circulam sem cessar em torno do Sol, o Sol e outras estrelas circulam em torno do centro da nossa galáxia, etc., a mecânica celeste deixa de ser ciência?

Publicado por: Novais de Paula às agosto 3, 2005 10:22 AM

Vá, Novais, circule ... circule ...

Publicado por: Coruja às agosto 3, 2005 01:02 PM

Novais de Paula às agosto 3, 2005 10:22 AM

Na economia real (não na disciplina) há um movimento circular de valores entre diversas entidades (consumidores, trabalhadores, empresas, etc), mas há também (pelo menos) dois movimentos unidirecionais:

1) O fluxo matérias-primas --> produtos --> resíduos e o fluxo energia útil --> trabalho e calor.

2) O progresso económico: povo pobre --> povo remediado --> povo rico.

Tanto quanto eu entendo da ciência económica, esta última debruça-se com bastante sucesso sobre o movimento circular de valores, mas é bastante deficiente a ter em conta ou a explicar os movimentos lineares. Não é capaz, por exemplo, de explicar porque é que certos países e economias progridem (crescem) e outros não. E está completamente a leste de problemas como o desperdício, a finitude das matérias-primas, o consumo crescente de energia, etc.

Publicado por: Luís Lavoura às agosto 3, 2005 01:02 PM

Luís Lavoura às agosto 3, 2005 01:02 PM

Não é a economia que está a leste desses problemas. São os políticos. Para exemplificar, se a economia tivesse de funcionar apenas com energias renováveis, fá-lo-ia. Teria era custos mais elevados, o que se repercutiria nos níveis de consumo e de prosperidade material das pessoas. A decisão de manter a dependência das energias não renováveis é da exclusiva responsabilidade dos políticos. Da memsma forma a reciclagem total dos resíduos não é um problema da economia e nem sequer já é um problema técnico. Mas, tal como acontece com a energia, essa reciclagem tem custos que os políticos não querem suportar.

Publicado por: Albatroz às agosto 3, 2005 01:50 PM

Quer este post quer os comentários são bastante interessantes, embora por motivos opostos.

Publicado por: rudy às agosto 3, 2005 05:13 PM

Quer este post quer os comentários são bastante interessantes, embora por motivos opostos.

Publicado por: rudy às agosto 3, 2005 05:15 PM

Para eu poder discutir com vocês a questão dos limites e da natureza da Ciência precisava de saber se vocês acham que a História é uma ciência, ou não.

Publicado por: pyrenaica às agosto 3, 2005 08:54 PM

Actualmente há bastante reciclagem. O problema hoje em dia é com o civismo das pessoas. Na situação actual avançar mais com a recolha selectiva esbarra no mau comportamento cívico das pessoas.

Publicado por: Sa Chico às agosto 3, 2005 11:06 PM

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