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julho 30, 2005

Tocqueville

Tocqueville nasceu há 200 anos. Foi um dos principais teóricos da democracia, embora esse facto não lhe trouxesse grande notoriedade no nosso país, apesar da nossa herança cultural francesa. Provavelmente a herança do défice democrático da nossa vivência política e social prevaleceu. Provavelmente porque Tocqueville é um produto atípico do pensamento político e social francês.

A importância de Tocqueville foi a clarividência com que analisou as sociedades democráticas e se apercebeu dos perigos que encerram. Não teve por elas o fervor daqueles que as viam como a via da redenção da humanidade, nem o horror daqueles que as viam como a desregulação de toda a ordem social, onde “tudo o que é sólido se dissolve no ar”, nas palavras de Marx. O Estado democrático não só eliminou os vestígios das poderes fragmentados do feudalismo em extinção, da nobreza, dos municípios autónomos e das corporações, mas também se reclamou da soberania total sobre a comunidade nacional nos limites territoriais do Estado.

Para Alexis de Tocqueville a democracia tende, por via dessa ambição de universalidade, para a centralização, ou mesmo para a tirania da maioria: Como a democracia postula que a maioria tem razão, pode revelar-se difícil impedir uma maioria de usar essa situação para oprimir a minoria. A democracia substituiu o rei pelo povo, como soberano. É ao povo que os que ambicionam uma carreira política irão adular, fazer a corte. Nesse entendimento, a adulação ao monarca do Antigo Regime pode muito bem transfigurar-se em demagogia que perverte as relações sociais e políticas. Nas suas observações sobre a democracia americana, Tocqueville escreveu: «Os franceses sob a antiga monarquia tinham por máxima que o Rei não poderia agir mal, e se o fez, a culpa era atribuída aos seus conselheiros [...] os Americanos têm a mesma opinião acerca da maioria.»

Curiosamente a obra mais conhecida de Tocqueville, De la démocratie en Amérique, foi escrita na sequência de uma viagem à América, em 1831, feita a pretexto de realizar um estudo sobre o sistema penitenciário americano, mas que foi uma forma de Tocqueville abandonar a França, a seguir à queda da Restauração que o seu pai servira. Ou seja, uma obra importante do pensamento liberal foi escrita por alguém oriundo da aristocracia, na sequência de um pequeno exílio resultante da queda dessa mesma aristocracia. Talvez essa extracção social produzisse o distanciamento desapaixonado e objectivo necessário para produzir uma obra cuja clarividência continua a espantar. A primeira parte foi publicada em 1835 e a segunda em 1840. Em 1848, ano em que rebentou a revolução republicana, já tinham sido publicadas 12 edições desta obra.

Para Tocqueville a via que conduziu a América à democracia liberal era excepcional, pois a União começou a sua experiência nacional, enquanto sociedade nova, sem um passado feudal, sem uma tradição milenar forjada por uma monarquia e uma aristocracia e, portanto, os americanos não tiveram a necessidade nem de um governo central forte nem de uma revolução social violenta para derrubarem a velha ordem. A Revolução Americana foi a única das grandes revoluções em que os debates políticos e as tensões sociais não conduziram a que as facções se eliminassem entre si, uma após outra. Aliás, para James Madison (1781), por exemplo, o que era importante era encontrar os enquadramentos legais e institucionais para que as facções pudessem coexistir, limitando os danos da sua própria existência e a tentação totalitária de qualquer delas. Desse objectivo nasceu a importância do poder judicial na América, como constatou Tocqueville «Aos olhos do observador, o magistrado dá a impressão de jamais se imiscuir nos negócios públicos a não ser por acaso; só que esse acaso acontece todos os dias».

A especificidade americana não escapou portanto à clarividência de Tocqueville: «A grande vantagem dos americanos é que eles chegaram à democracia sem terem de fazer uma revolução democrática... eles nasceram iguais sem terem de tornar-se iguais» e, como anotou, logo que chegou à América, «toda a sociedade parece ter-se diluído numa classe média». Enquanto isso, na Europa os liberais temiam o poder do Estado, procuraram limitá-lo, mas também procuravam instrumentalizá-lo na luta pela reforma da sociedade. E a instrumentalização do poder do Estado pode conduzir a resultados perversos: «O Estado cobre a superfície da sociedade com uma rede de regras pequenas e complicadas, minuciosas e uniformes, através das quais as mentes mais originais e os caracteres mais enérgicos não conseguem penetrar, para se erguer sobre a multidão [...] Tal poder não destrói, mas limita a vida; não tiraniza, mas comprime, debilita, apaga e entorpece um povo, até cada nação ser reduzida a [...] um rebanho de animais acanhados e diligentes do qual o governo é o seu pastor».

A clarividência de Tocqueville levou-o a antecipar um problema que ameaçava a existência da União – a questão dos escravos do Sul. Tocqueville pensava que quando a escravatura desaparecesse e se estabelecesse a igualdade jurídica entre os negros e os brancos, as barreiras que os costumes haviam erguido entre as duas raças cresceriam também: «bem mais intangíveis e tenazes do que a escravidão: o preconceito do senhor, o preconceito de raça e, por fim, o preconceito do branco. Assim, o negro é livre, mas não pode partilhar dos direitos, nem dos prazeres, nem das formas de trabalho, nem das dores e nem mesmo da sepultura daquele de quem foi declarado igual. Com este não poderá ombrear-se em parte alguma, nem na vida nem na morte». E foi o que aconteceu – a escravatura sulista acabou com a derrota da Confederação, mas a segregação racial substituiu-a e só um século depois a integração racial se desenvolveu, com as dificuldades e tensões que se conhecem.

Relativamente às relações entre os brancos e os índios, Tocqueville tem um texto exemplar que espelha a sua objectividade, comparando, com algum cinismo, os efeitos, nessas relações, de um regime despótico e de um Estado democrático:

«Os espanhóis lançam os seus cães sobre os índios como sobre animais ferozes. Pilham o Novo Mundo como uma cidade tomada de assalto, sem discernimento e sem piedade. Mas não se pode destruir tudo, o furor também tem um fim. O resto das populações índias escapadas ao massacre acaba por se misturar aos seus vencedores e por adoptar a sua religião e os seus costumes. O comportamento dos Estados Unidos para com os índios respira pelo contrário o mais puro amor das formas e da legalidade. Contanto que os índios fiquem no estado selvagem, os americanos não se imiscuem em nada nos seus assuntos e tratam-nos como um povo independente. Não se permitem ocupar-lhes as terras sem as adquirirem devidamente por meio de um contrato, e se por acaso uma nação índia deixar de poder viver no seu território, tomam-na fraternalmente pela mão e eles próprios a conduzem para morrer fora do país dos seus pais. Os espanhóis, com o auxílio de monstruosidades sem exemplo, cobrindo-se de uma vergonha indelével, não conseguiram exterminar a raça índia, nem sequer impedi-la de partilhar dos seus direitos. Os americanos dos Estados Unidos atingiram esse duplo resultado com uma maravilhosa facilidade, tranquilidade, legalmente, filantropicamente, sem efusão de sangue nem violação de um único dos grandes princípios da moral aos olhos do mundo. Seria impossível destruir os homens respeitando melhor as leis da humanidade.»

Publicado por Joana às julho 30, 2005 10:10 PM

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Comentários

A descrição do amor do americanos pelos índios é uma delícia... Terá de Tocqueville limitado a sua estadia na América a Hollywood?...

Publicado por: Albatroz às julho 30, 2005 10:13 PM

«Seria impossível destruir os homens respeitando melhor as leis da humanidade» é uma frase muito cínica.

Publicado por: gros às julho 30, 2005 11:14 PM

Impressionou-me a descrição que Toqueville faz no "De la democracie em Amérique" sobre as diferenças e virtudes da educação das jovens americanas face às francesas, a previsão de que o teatro (a televisão e o cinema dos nossos dias) seria o veículo cultural de eleição, a importância de proteger a maioria "silenciosa" das minorias "barulhentas" e militantes,...

Publicado por: diogenes às julho 30, 2005 11:24 PM

Por uma feliz coincidência, outro dos "gurus" do pensamento no caso João Carlos Espada aborda no Expresso a mesma efeméride.

Ambos grandes texto, embora o dele pareça mais acessível, pelo menos para mim.

Publicado por: carlos alberto às julho 30, 2005 11:44 PM

A Joana uma guru? Nada de exageros.

Publicado por: Rave às julho 31, 2005 01:30 AM

Isto sem desfazer do merecimento do texto

Publicado por: Rave às julho 31, 2005 01:31 AM

O albatroz não compreendeu a ironia?

Publicado por: Salvador às julho 31, 2005 01:42 AM

«(...) Tal poder não destrói, mas limita a vida; não tiraniza, mas comprime, debilita, apaga e entorpece um povo, até cada nação ser reduzida a [...] um rebanho de animais acanhados e diligentes do qual o governo é o seu pastor».

Imagine-se, o ar que respiramos no Século XXI ...

Publicado por: asdrubal às julho 31, 2005 03:54 AM

Se Tocqueville lesse a Constituição desta República, mesmo na diagonal, confundia o povo português com a expulsão da tribo dos Comanches das suas terras ...

Publicado por: asdrubal às julho 31, 2005 04:09 AM

Joana, você é terrível em férias. Ainda tenho eu o livro do Rawls ali a boiar, e só olho de esguelha, e já está no Tocqueville...

E quanto às contas históricas com a Inglaterra?

Deixe-me dizer que se não fosse eu engraçar consigo por causa dos nossos laços libertários, etc., noutro dia tinha ficado zangado. Atrás de um comentário fui parar a um blogue seu sobre o Ferro, mesmo mázinha... embora esperta como sempre.

Se eu estou certo e homem não teve práticas pedófilas (se eu estou enganado o karma é meu) aquilo vai-se voltar contra si, no seu próprio imaginário... Eu já pedi perdão por você, mas o resto não é comigo.

Publicado por: pyrenaica às julho 31, 2005 09:33 AM

Voltando aos Rawls e Tocquevilles o que eu acho mais engraçado é como a "selecção natural" spenceriana/darwiniana se voltou contra eles. A natureza faz por preservar o máximo de variabilidade genética, conservar as diferenças, e não reduzi-las. Por exemplo lá em África aquilo anda cheio de SIDA (mãe África está a precisar ser fertilizada) mas por causa dos efeitos estatísticos dos grandes números, descobriu-se um conjunto de mulheres resistentes porque tinham uma coisa antes considerada um "defeito genético", que dá origem a uma coisa com uma proteína que impede o vírus de fixar-se. Um defeito genético" converteu-se numa "vantagem adaptativa". Plim.

Publicado por: pyrenaica às julho 31, 2005 09:40 AM

Finalmente, eu não sei fazer as contas dos economistas, com aquelas parcelas todas detalhadas, nem sei se é preciso. Mas sei fazer contas políticas. E o filme que eu estou a ver é o seguinte.

Estamos cá na salsa da 1ª Republica, mas ainda com o escudo estável, e a Inglaterra convoca-nos para a guerra mediante a invocação da Velha Aliança e o pedido de apresamento da frota comercial alemã. A Alemanha declara-nos guerra, etc e tal, mandamos duas divisões de 55000 homens para França e ainda seguramos a barra nas ex-colónias, fazemos parte do clube dos vencedores.

Nos anos a seguir a taxa de desvalorização do escudo/libra é brutal, tudo junto mama a Ingalterra e os EUA, perdem os perdedores ainda França e Portugal! O que é isto senhores?

Vão-se-nos as reservas de prata e se calhar o maior diamante do mundo em 1924 e fizémos parte do clube dos vencedores?

Ná! Estão f. comigo.

Publicado por: pyrenaica às julho 31, 2005 10:04 AM

E para desabafar, Joana, graças a Deus que não tarda muito vou para fora. Vejo-me num Domingo às 10h30 de furador em punho a meter 2 ou 3 coisas num dossiê chamado Semiramis, amarelo, bem-vivo.

Publicado por: pyrenaica às julho 31, 2005 10:18 AM

Pessoal, prometo que vou calar-me, mas estou todo contente, queria partilhar convosco. Fui comprar o Público e está lá na 1ª página mais uma reserva de ouro para aumentar as nossas. Albatroz, sabe-se lá o que ali está. Quanto aos australianos tudo bem, estão em território português, sentem no ar o peso da História...

Publicado por: pyrenaica às julho 31, 2005 11:45 AM

pyrenaica às julho 31, 2005 10:04 AM:
Pelo que tenho lido, dá-me ideia que a nossa entrada na guerra foi mais iniciativa do nosso governo que da Inglaterra.
Uma das razões foi para evitar perder as colónias. Outra para encontrar uma união nacional numa altura em que a confusão era total

Publicado por: David às julho 31, 2005 11:55 AM

Aliás, as nossas divisões foram abandonadas à sua sorte, com reabastecimento precário, por falta de entendimento dos políticos.
Quando Sidónio subiu a presidente, este era contra a nossa intervenção e a coisa ficou feia.
O grave da nossa intervenção na guerra foi os políticos andarem a brincar com os nossos soldados

Publicado por: David às julho 31, 2005 11:59 AM

David, pelo que eu li no J Hermano Saraiva foi como eu escrevi. Nós éramos neutros, Lisboa era um porto neutro e os barcos alemães acolheram-se, a Inglaterra pediu o apresamento em nome de... e da Velha Aliança e nós acedemos e a Alemanha declarou-nos guerra.

Quanto ao ouro, afinal é só uma adrenalina para nos animar, parece que coisa pouca dizem os alentejanos, mas também é verdade que eles gostam mais de pensar e conversar à soleira do que ir pesquisar.

Quanto aos australianos rédea curta, que eu lembrei-me cá dumas coisas.

Publicado por: pyrenaica às julho 31, 2005 12:23 PM

Esse escrito do Tocqueville sobre a sorte dos índios americanos é notável, porque foi o que aconteceu. A capacidade da sociedade americana de liquidar, democraticamente, quem não aceita as regras do jogo é surpreendente.

Publicado por: Viegas às julho 31, 2005 04:04 PM

pyrenaica às julho 31, 2005 11:45 AM:
O ouro que eles obtiverem, é deles.. Pagam é a concessão ao Estado português.
A extracção do ouro é cara. Há os trabalhos de prospecção, que são caros e, se houver ouro que justifique, a sua extracção é um processo caro.

Publicado por: Viegas às julho 31, 2005 04:07 PM

"...O comportamento dos Estados Unidos para com os índios respira pelo contrário o mais puro amor das formas e da legalidade..."

Que carinhoso !

Publicado por: zippiz às julho 31, 2005 06:42 PM

O Viegas deve ser da empresa australiana.

Publicado por: Cisco Kid às julho 31, 2005 06:42 PM

O Comércio do Porto ainda vive.
Leiam-nos em
ocomerciodoporto.blogspot.com

Publicado por: sr às julho 31, 2005 07:26 PM

A Capital era um flop e o Luís Osório um tonto, mas tinha boa impressão do Comércio do Porto.
Ainda por cima o jornal mais antigo do Continente!

Publicado por: AJ Nunes às julho 31, 2005 11:29 PM

Insulto, um bom argumento; sim senhor !

Publicado por: zippiz às agosto 1, 2005 12:05 AM

Eu julguei que alguns comentaristas não compreendiam os posts da Joana, por má vontade.
Afinal também não percebem o cinismo de Tocqueville a descrever o extermínio dos índios na América

Publicado por: soromenho às agosto 1, 2005 12:58 AM

Lêem apenas uma ou duas frases e não conseguem ler mais. É um caso de iliteracia evidente

Publicado por: soromenho às agosto 1, 2005 12:59 AM

Desculpe lá ó zippiz, mas o Luís Osório não tinha nível nenhum. Com ele A Capital passou de 5.000 a menos de 3.000.
Os jornalistas da Capital têm muito que agradecer ao Osório e ao Rogério Rodrigues a situação que se criou.

Publicado por: AJ Nunes às agosto 1, 2005 01:02 AM

Falir não é a mesma coisa que morrer. Quando um tipo morre esquece-se os disparates que fez em vida.
Quando um tipo leva uma empresa à falência não pode ser visto da mesma maneira.

Publicado por: AJ Nunes às agosto 1, 2005 01:03 AM

Espanta-me que Zippiz e Albatroz tenham ambos "mal lido" a ironia de Alexis de Tocqueville, citado no texto de Joana.
Coisa espantosa !

Publicado por: asdrubal às agosto 1, 2005 02:38 AM

asdrubal às agosto 1, 2005 02:38 AM

Tem a certeza de que se tratava de ironia? Os autores clássicos não eram muito dados ao tipo de ironia que por vezes encontramos em textos do século XX... Seria interessante procurar nos comentadores científicos prova de que o texto de de Tocqueville tinha realmente um pendor irónico.

Publicado por: Albatroz às agosto 1, 2005 09:35 AM

"Seria interessante procurar nos comentadores científicos prova de que o texto de de Tocqueville tinha realmente um pendor irónico"
Este frase não faz lembrar a história dos monges e do leite?

Publicado por: AJ Nunes às agosto 1, 2005 09:59 AM

A vida académica criou em mim o gosto pela pesquisa da verdade baseada não apenas no meu próprio raciocínio mas também na opinião alheia. A conclusão dessa pesquisa será sempre da minha exclusiva responsabilidade, mas os degraus para lá chegar são feitos por muitas mãos diferentes. Aqueles mais dados ao instinto ou mais senhores dos seus narizes podem achar isto esquisito, mas ainda não se encontrou melhor maneira para procurar a verdade ou para dela nos aproximarmos. Numa análise superficial parti do princípio de que de Tocqueville não podia estar a ironizar. Pensando melhor, e procurando aquilo que outros escreveram sobre o assunto, poderei chegar a uma opinião muito diferente. Coisa estranha para quem esteja habituado a ter certezas à partida, e a defendê-las com unhas e dentes, por mais fortes que sejam os argumentos contrários. Se isto é motivo de crítica, "so be it"...

Publicado por: Albatroz às agosto 1, 2005 10:22 AM

Seria interessante ver o que Tocqueville teria escrito sobre a América se o tivesse feito APÓS a guerra civil de 1861-1865. É que a guerra civil americana foi absolutamente brutal, literalmente fratricida. Ela foi a negação de muito do mito democrático da América.

Li no blogue de Vital Moreira que Tocqueville escreveu também a favor das brutalidades francesas na ocupação colonial da Argélia. O que é muito curioso, para um autor hoje em dia louvado como um grande liberal. Talvez a Joana possa dar detalhes sobre o assunto (que Vital Moreira não dá).

Publicado por: Luís Lavoura às agosto 1, 2005 10:59 AM

Não sei, Luis Lavoura. O que ele escreveu sobre a questão racial revelou-se verdade e foi uma questão que se arrastou mais de um século e que ainda não está curada.

Publicado por: David às agosto 1, 2005 11:17 AM

David, a guerra civil americana não foi uma guerra entre raças. Foi uma guerra civil na qual literalmente famílias se dissolveram, com irmãos a lutar contra irmãos, e pais a lutar contra filhos. Foi uma guerra de uma brutalidade sem precedentes, que deixou um milhão de mortos. Foi uma guerra ente brancos - os soldados negros foram arregimentados.

A América democrática dividiu-se em dois Estados democráticos que lutaram brutalmente entre si. A Confederação sulista tinha tanta legitimidade democrática como a federação do Norte. Não foi uma questão racial, porque os soldados do Sul eram tão brancos ou mais do que os do Norte.

Publicado por: Luís Lavoura às agosto 1, 2005 11:25 AM

Luís Lavoura às agosto 1, 2005 10:59 AM
A questão colonial não era vista, até meados do século XX, da mesma forma como depois o foi. Nem os partidos socialistas dos fins do século XIX e início do século XX puseram em causa as conquistas coloniais e as mortes que elas provocaram.

Publicado por: V Forte às agosto 1, 2005 11:29 AM

V Forte às agosto 1, 2005 11:29 AM

Pois. Aliás, parece que um outro autor muito louvado pelo seu "liberalismo", John Stuart Mill, também escreveu algumas barbaridades sobre ocupações coloniais. Salvo erro (a Joana poderá talvez esclarecer).

É muito curioso ver a forma como estes antepassados do liberalismo moderno dividiam, então, o mundo entre os seus países e as colónias. Como advogavam um Estado brando nos seus países, mas porrada sem dó sobre os povos colonizados. De certa forma, esta duplicidade volta a ser vista nos liberais direitistas de hoje em dia, quando louvam sem contemplações as merdas/guerras que os EUA (com a ocasial colaboração de países europeus, por exemplo da Alemanha no caso croata) levam a cabo pelo mundo.

Pouco Estado sobre nós, Estado enérgico e sem contemplações a dar porrada na garupa dos outros povos.

Publicado por: Luís Lavoura às agosto 1, 2005 11:36 AM

A questão central levantada por Tocqueville, que é, ainda hoje, a questão central do nosso sistema democrático (a questão da "ditadura" da maioria e do nivelamento pela mediania) passa ao lado dos distintos comentadores; talvez não o tenham lido, o que não é crime nenhum; mas não é isso que os impede de citar questões como a da Argélia. É a cultura da citação. É a cultura da blogosfera.

Os putos "resumem" o português nas mensagens sms; os bloguistas (autores e leitores) fazem o mesmo às ideias e à literatura.

Publicado por: J.A. às agosto 1, 2005 11:43 AM

Luís Lavoura às agosto 1, 2005 11:36 AM:
Julgo que há um equívoco. Foi a eleição do ultranacionalista Milosevic que precipitou a implosão da Jugoeslávia. Todas as regiões da Croácia que tinham uma minoria sérvia foram ocupadas pelas forças sérvias (a Jugoeslávia tinha então o 5º maior exército da Europa).
Cerca de 40% do território croata foi ocupado pela Sérivia, apesar dos sérvios serem cerca de 15% da população.

Publicado por: Hector às agosto 1, 2005 11:46 AM

Durante meses, Dubrovnick, património da humanidade, foi bombardeada pela artilharia sérvia, postada nas montanhas sobre a cidade.
A única coisa que a Alemanha fez foi reconhecer a Croácia como Estado independente, para pressionar o resto da UE e ver se os sérvios paravam a agressão.

Publicado por: Hector às agosto 1, 2005 11:49 AM

Só quando, 4 anos depois, a Croácia teve força militar suficiente e a Sérvia estava fragilizada pela guerra da Bósnia e sanções internacionais, é que a Croácia conseguiu reconquistar a maioria do território que tinha perdido.
A Eslavónia (Vukovar) só lhe foi entregue com os acordos de paz.

Publicado por: Hector às agosto 1, 2005 11:52 AM

Hector: o que escreve está, mais ou menos correcto. Ma há algumas precisões que queria fazer:
Antes de 1991, a minoria sérvia era cerca de 600 mil (entre 12% e 13% da população). A primeira guerra levou à expulsão de cerca de 500 mil croatas das zonas ocupadas pelos sérvios. Ao mesmo tempo, cerca de 150 mil sérvios que viviam em cidades não ocupadas, como Zagrebe, fugiram ou foram forçados a isso, para a parte sérvia.

Publicado por: Rui Sá às agosto 1, 2005 12:10 PM

Só na batalha de Vukovar, que ficou totalmente destruída, morreram 14 mil soldados sérvios (do lado croata não há estatísticas, porque eram "irregulares").
Na guerra de 1995, durante a ofensiva croata, 140 mil sérvios fugiram em 4 dias. Terá havido pressão das forças croatas, mas o medo do regresso dos croatas e da vingança pelos massacres de 1991, poderá ter motivado muitos sérvios a fugirem.
Actualmente a minoria sérvia é cerca de 200 mil habitantes (4,5% da população).
Segundo a UN 380 mil sérvios abandonaram a Croácia. Entretanto 220 mil croatas abandoram a Sérvia com destino à Croácia

Publicado por: Rui Sá às agosto 1, 2005 12:16 PM

Hector às agosto 1, 2005 11:46 AM

Não há equívoco nenhum, nem o que Você disse contradiz aquilo que eu disse (nem vice-versa). Os EUA e a Alemanha (e a NATO) apoiaram a Croácia a fazer a guerra contra a Sérvia, em 1995. Vem no PUBLICO de hoje, e aliás sempre foi mais ou menos sabido, embora não declarado.

Quem precipitou a guerra jugoslava foi tanto O nacionalismo sérvio (Milosevic) como o croata (Tujjman).

A NATO apoiou de forma decisiva os croatas na parte final da guerra.

Publicado por: Luís Lavoura às agosto 1, 2005 12:18 PM

J.A. às agosto 1, 2005 11:43 AM

O que é que Você quer que a gente diga sobre o nivelamento pela mediania? É óbvio. O movimento pela privatização das televisões levou a que, por toda a Europa - não foi só em Portugal, nem Portugal terá porventura sido um dos piores casos - a televisão de sinal aberto piorasse dramaticamente de qualidade. Não ficou ainda tao má como a televisão americana, mas isso é porque o povo europeu, apesar de tudo, é bastante melhor do que o americano. É óbvio. É indiscutível. O que é que se há-de fazer?

Publicado por: Luís Lavoura às agosto 1, 2005 12:22 PM

A partir do momento em que a maioria das pessoas apenas reconhece valores materiais, todo o sistema político, toda a vida das comunidades fica inevitavelmente inquinada. Deixam de ser os melhores ou os mais sensíveis à res publica a governarem, para serem os mais corruptos e os menos escrupulosos. Se não soubermos reinstilar os valores éticos na comunidade nunca mais teremos governos legítimos e eficazes. Para sermos bem governados teríamos então de nos sujeitar a governos autoritários, sem termos qualquer garantia de não sermos igualmente enganados. É pesado o preço da incúria, do facilitismo, da relativização do bem e do mal. Ao baixar sistematicamente a fasquia, chegámos a este ponto. Abandonámos a cultura de excelência e agora dominam os medíocres. Estamos todos de parabéns... Viva a liberdade dos "Fiéis e Infiéis", do Herman José, do "Levanta-te e Ri"...

Publicado por: Albatroz às agosto 1, 2005 12:43 PM

Relativamente aos programas de televisão que referi, sem dúvida que a Joana diria que eles são o resultado desejável do jogo do mercado: é aquilo que o consumidor quer, é aquilo que a oferta lhe proporciona... Quem achar mal é um perigoso estatista, um inimigo da liberdade económica, um nostálgico do sovietismo...

Publicado por: Albatroz às agosto 1, 2005 12:47 PM

Sou só eu a achar que há qualquer coisa de fundamentalmente errado nisto tudo?...

Publicado por: Albatroz às agosto 1, 2005 12:47 PM

A questão dos perigos da democracia (centralização ou tirania da maioria - palavras da Joana) abordada por Tocqueville é curiosa.
Numa actualização de conceitos, poderemos concluir que, esses perigos são, afinal, a expressão de uma visão liberal da sociedade. É o primado do livre estabelecimento de relações oferta/procura, aplicado aos mercados políticos, económicos e culturais.

É chato ligar a televisão e não encontrar nenhum programa que nos estimule o intelecto? Paciência - o reality show é que vende.

Os políticos são eleitos com base em mentiras e tomam decisões que lesam os nossos interesses particulares?
Paciência - são estes que vendem que nem ginjas.

De qualquer forma, para os convictos do liberalismo, o mercado acabará por se ajustar.
Se não se ajustar: paciência - o liberalismo tem pouca saída e têm que procurar mercados, com democracias "à maneira".

Publicado por: Esquerdalhaço às agosto 1, 2005 12:54 PM

Albatroz em Agosto 1, 2005 09:35 AM,

De facto não posso jurar, mas quando o autor citado por Joana escreve que «seria impossível destruir os homens respeitando melhor as leis da humanidade» a contradição nos termos (destruir os homens com humanidade) só pode remeter para uma ironia, tal seja a de que a democracia americana - e porventura qualquer outra democracia - era afinal capaz do mesmo resultado despótico e brutal do que a monstruosidade assassina dos "conquistadores" espanhóis.
Eu interpretei assim ...

Publicado por: asdrubal às agosto 1, 2005 12:59 PM

Vá pessoal animem-se, até há pouco não se sabia que alguns físicos só conseguem unificar o muito pequeno e o muito grande num espaço com 10 ou 11 dimensões (Luís Lavoura, talvez possa esclarecer, é a teoria M das cordas, que eu saiba). Os budistas também dizem que o mundo tem 10 dimensões. Nós que somos um bocadinho parvos (parvum=pequeno) andamos demasiado sobre o imanente. Agora vou para Lisboa trabalhar e curtir, divirtam-se vocês.

Publicado por: pyrenaica às agosto 1, 2005 01:31 PM

A propósito de Equidade ...

«Ex-deputados recebem UM MILHÃO de EUROS
2005/07/31 | 12:24
Mais de 50 deputados que cessam funções este ano pediram um «subsídio de reintegração». E vão receber entre 3500 e 63 mil euros. A maioria dos parlamentares são do PSD. Mas também serão beneficiados políticos do PS, CDS e PCP».

(PD,1-08-2005)

Publicado por: asdrubal às agosto 1, 2005 01:57 PM

A luta da Croácia foi pela sua independência e a da Sérvia foi pelo seu domínio sobre a Croácia.
Não podemos pô-las no mesmo plano.
Nesse caso a luta de Portugal pela independência em 1640 e o apoio que inicialmente a França lhe deu também seriam condenáveis.

Publicado por: Rui Sá às agosto 1, 2005 02:08 PM

Não me parece que o "mercado dos políticos" seja liberal. Há monopólios, barreiras à entrada, não há transparência, etc.
Concorrência, já!

Publicado por: Coruja às agosto 1, 2005 03:05 PM

asdrubal às agosto 1, 2005 01:57 PM:
São os euromilhões ...

Publicado por: Diana às agosto 1, 2005 07:01 PM

Luís Lavoura, agosto 1, 2005 11:36 AM:

J. S. Mill (que era empregado da Companhia da Índia) defendeu várias vezes o modelo colonial inglês, como é por exemplo o caso da famosa citação do On Liberty segundo a qual "...despotism is a legitimate mode of government in dealing with barbarians, provided the end be their improvement, and the means justified by actually effecting that end".

Quanto a Tocqueville, a sua defesa da ocupação colonial da Argélia está no Travail sur l'Algérie.

Publicado por: grim às agosto 1, 2005 07:59 PM

Todos os homens são da sua época uns mais outros menos. A democracia também começou na Grécia mas os Gregos tinham escravos. Ninguém consegue escapar a isso, o que se deve julgar é se acrescentaram alguma coisa positva á humanidade do seu tempo de modo á sociedade avançar e assim contribuíndo paradoxalmente para que Luis Lavoura os hoje possa criticar.

Bom só faltava o choradinho pela ex-Jugoslávia uma criação artificial baseada na força.
A guerra não é a pior das coisas também foi uma das frases de Mill.
Não deixa de ser interessante como para a esquerda
A independencia cultural , tradições de povos não-Ocidentais sejam uma coisa positiva enquanto semelhantes características em povos europeus sejam sinais neo-fascistas.

Publicado por: lucklucky às agosto 1, 2005 09:39 PM

Publicado por: AJ Nunes às agosto 1, 2005 01:02 AM

Mas não havia necessidade de insultar ninguem !

e a propósito: acha que seria justo eu chamar-lhe tonto pelo facto de dar como bom um jornal/direcção/administração que vende 5000 exemplares? Provavelmente o problema não terá sido passar de 5000 para 3000 , mas sim ter chegado a essa grande tiragem de 5000 !

Publicado por: zippiz às agosto 1, 2005 11:39 PM

"...despotism is a legitimate mode of government in dealing with barbarians, provided the end be their improvement, and the means justified by actually effecting that end".

Será que o Juhn Stuart Mill estaria a pensar e nós quando tal escreveu?...

Publicado por: Albatroz às agosto 2, 2005 10:38 AM

Talvez mereça a pena ler a citação completa do parágrafo relevante de John Stuart Mill:

"It is, perhaps, hardly necessary to say that this doctrine is meant to apply only to human beings in the maturity of their faculties. We are not speaking of children, or of young persons below the age which the law may fix as that of manhood or womanhood. Those who are still in a state to require being taken care of by others, must be protected against their own actions as well as against external injury. For the same reason, we may leave out of consideration those backward states of society in which the race itself may be considered as in its nonage. The early difficulties in the way of spontaneous progress are so great, that there is seldom any choice of means for overcoming them; and a ruler full of the spirit of improvement is warranted in the use of any expedients that will attain an end, perhaps otherwise unattainable. Despotism is a legitimate mode of government in dealing with barbarians, provided the end be their improvement, and the means justified by actually effecting that end. Liberty, as a principle, has no application to any state of things anterior to the time when mankind have become capable of being improved by free and equal discussion. Until then, there is nothing for them but implicit obedience to an Akbar or a Charlemagne, if they are so fortunate as to find one. But as soon as mankind have attained the capacity of being guided to their own improvement by conviction or persuasion (a period long since reached in all nations with whom we need here concern ourselves), compulsion, either in the direct form or in that of pains and penalties for non-compliance, is no longer admissible as a means to their own good, and justifiable only for the security of others."

Publicado por: Albatroz às agosto 2, 2005 10:47 AM

zippiz às agosto 1, 2005 11:39 PM:
Não foi o Osório que elevou a tiragem para 5 mil. foi quem a desceu de 5 mil para 3 mil

Publicado por: AJ Nunes às agosto 2, 2005 10:48 AM

Albatroz às agosto 2, 2005 10:47 AM

Obrigado pela extensa citação de J.S. Mill.

Chamar a este indivíduo um liberal, só pode ser uma brincadeira. Ele fornece ali a justificação para qualquer ditadura, qualquer despotismo. Povos atrasados, coitados... enfim, porrada neles. Salazar estaria plenamente de acordo. E Estaline.

Publicado por: Luís Lavoura às agosto 2, 2005 06:10 PM

Luís Lavoura às agosto 2, 2005 06:10 PM

Em nome da justiça, J.S. Mill tem textos bastante mais liberais, nomeadamente nos seus "Princípios de Economia Política".

Publicado por: Albatroz às agosto 2, 2005 06:59 PM

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