« A Rábula de Sócrates | Entrada | Politest »

maio 17, 2005

Poeira ou Descontrolo?

As notícias que têm vindo a público na sequência do fim do “Estado de Silêncio” do governo têm demasiada poeira para se conseguir triar o que é fantasia jornalística, descontrolo governativo ou rábula para “tomar” o pulso ao enfermo e deduzir que tipo de remédio este está mais disposto a aceitar. Como não estou nos meandros jornalísticos e/ou governativos vou cingir-me aos factos principais: SCUT, Bombardier e impostos.

1 – A questão das SCUT: Como eu escrevi aqui em 18-09-04, As SCUT’s foram talvez a herança mais pesada deixada pelo governo socialista. A partir de 2006, inclusive, o Estado português vai pagar uma anuidade superior a 600 milhões de euros relativa às SCUT’s da Beira Interior (152 m€), da Beira Alta/Litoral (160 m€), do Interior Norte (109 m€), da Costa da Prata (84 m€), do Litoral Norte (53 m€) e do Algarve (44 m€). A partir de 2011, inclusive e durante os dez anos seguintes, aqueles valores aumentam entre 10% e 20% descendo a partir de 2021 e extinguindo-se a partir de 2032. Estes montantes não incluem os custos relativos a expropriações, indemnizações diversas e compensações derivadas de exigências ambientais. Os valores efectivos serão, certamente, mais 15% a 20% do que os que indiquei, se não mais.

Todavia, como eu então escrevi, não era pacífica a introdução de portagens depois do negócio feito. E isto por várias razões:

a) Custos adicionais – a introdução de praças de portagem é muito onerosa (cerca de 15%, ou mais, do custo total da A/E). As portagens electrónicas são muito mais baratas, mas obrigam a que todos os carros tenham dispositivo adequado. E adicionalmente há os custos de exploração, facturação, etc.
b) Diminuição de receitas – a introdução de portagens faz diminuir o tráfego pois muitos utentes utilizarão percursos alternativos.
c) Custos da alteração contratual – o contrato inicial foi negociado em mercado concorrencial e escolhido, presumo, o concorrente que apresentou a melhor proposta. Todas as alterações contratuais posteriores são entre o Estado e uma entidade que passou a deter uma posição de monopólio. Essa entidade irá proceder a novos estudos de tráfego para reavaliar a situação com a introdução de portagens e adicionará certamente, para além das receitas perdidas pela diminuição da procura, uma margem de risco para cobrir as vicissitudes futuras. Será uma negociação onde o Estado é o parceiro mais frágil.

Na altura, o meu parecer era de que as SCUT do interior (que representam 70% do custo total) não tinham qualquer viabilidade de mudarem de estatuto contratual. Se fossem introduzidas portagens, provavelmente ainda custariam mais ao Estado do que actualmente.
Restam as SCUT do litoral. Todavia elas representam menos de um terço do custo total a suportar pelo erário público. E no caso da Via do Infante (7% do custo total!!) há uma situação injusta e caricata, pois a maior parte da via foi construída há 12 anos sem portagens. Após mais de 12 anos introduzir portagens é uma decisão que poderá ser considerada politicamente repugnante.

2 – A questão da Bombardier: esta questão ganhou uma dimensão nacional, e emocionou jornalistas e políticos, porque nós vivemos num país com um know-how industrial mais próximo do 3º mundo que da Europa, e a ex-Sorefame era uma das “jóias da Coroa” nesse domínio. Em França e na Alemanha tem havido deslocalizações de fábricas com know-how muito mais avançado e não se tem gerado a emoção que despertou em Portugal.

Sempre desconfiei da solução CP. Entregar uma empresa em dificuldades a outra empresa que vive da caridade (forçada) dos contribuintes, conduziria fatalmente a serem os contribuintes a pagarem a factura pretensamente “nacionalista”.

Soube-se hoje que as negociações entre a CP e a Bombardier se goraram e que a secretária de Estado dos Transportes retaliou, anunciando a expropriação de cerca de metade das instalações. Esta solução só tem uma virtude: a exaltação e o fervor nacionalistas – o que está em Portugal é dos portugueses ... entre as brumas da memória, ó Pátria sente-se a voz dos teus egrégios avós da Ana Paula Vitorino!

Esta “solução” pode revelar-se a longo prazo muito negativa. O Estado pode expropriar um bem, mas a seguir vem a parte litigiosa e são os tribunais que fixam o valor do bem expropriado. E podemos todos vir a pagar, como bom, um bem que terá um valor venal mais reduzido. Não consigo perceber a lógica desta solução. A única coisa que a Bombardier não pode deslocalizar é, justamente, o terreno e as construções. O Estado e a CM Amadora podem sempre arranjar instrumentos legais para impedirem uma operação imobiliária. Sem expropriação, aquele terreno seria um peso morto para a Bombardier; com a expropriação passa a ter o valor que os tribunais determinarem, imediatamente exigível pela Bombardier. É certo que o Estado fica imediatamente na posse de parte do imóvel. Mas é um imóvel vazio, visto a Bombardier poder levar todos os equipamentos.

Esta “solução” tem outro inconveniente que poderá revelar-se mais grave. Portugal precisa de investimentos estrangeiros e para tal terá que dar a imagem de um clima económico, político e social atractivo. Não me parece que esta medida seja positiva quanto a essa imagem.

Ou seja, uma “solução” inútil, do ponto de vista do emprego, prejudicial, do ponto de vista financeiro, e nociva, do ponto de vista da economia do país. Em resumo: precipitada.

3) A questão dos impostos: Como regra geral, combater um défice gerado pelo excesso de despesa com um aumento de impostos é injusto e perverso. E a perversidade é desincentivar o governo de proceder aos cortes orçamentais, para evitar confrontos com os sindicatos da função pública, e fazer recair o ónus da sua má gestão sobre os contribuintes. Infelizmente, não faz recair apenas sobre os contribuintes pois, indirectamente age como desincentivo à actividade económica, gera mais desemprego, menos receitas fiscais e a continuação da espiral de aumento dos impostos diminuição da actividade económica aumento do desemprego aumento do défice aumento dos impostos ...

Os impostos têm outro efeito perverso: o de abrandar a actividade económica. Na actual situação de recessão económica, um aumento dos impostos directos (IRS e IRC) teria um efeito muito nefasto. Elevadas taxas marginais do IRS desmotivam o interesse pelo aumento dos ganhos e travam o investimento; taxas elevadas do IRC fazem com que os recursos (neste caso o factor capital) se desloquem para outras paragens.

Numa situação como a que vivemos, a solução é aumentar os impostos indirectos, pois são mais fáceis de cobrar e produzem receitas imediatas. Têm todavia efeitos negativos na actividade económica e no nível de emprego, embora muito menores que no caso dos directos. O IVA, aumentando os preços, acarreta uma diminuição da procura, variável conforme a elasticidade da procura do bem, o que tem um efeito negativo do ponto de vista do volume de negócios. Como uma parte substancial do consumo é de bens importados e estes bens têm em média uma procura mais elástica, um aumento do IVA pode ter, em contrapartida, um efeito positivo na nossa balança de transacções com o exterior.

O imposto sobre o tabaco tem um efeito positivo do ponto de vista da saúde pública, mas terá que se ter em conta que um aumento do preço do tabaco provoca aumento do contrabando, pois torna esta “actividade” mais atractiva face aos “custos criminais”.

O imposto sobre os combustíveis tem efeitos indirectos nos preços dos produtos pelo aumento do custo dos transportes, mas como o combustível é todo importado, a diminuição do consumo terá um efeito favorável na balança de transacções com o exterior. Todavia um aumento significativo do preço levará mais portugueses a encherem os depósitos em Espanha e a “liquidarem” lá o imposto.

Provavelmente o que acontecerá será uma aumento dos impostos indirectos, o adiamento dos investimentos públicos e o adiamento, mais alguns anos, da reforma da administração pública, a besta negra dos governos. Farisaicamente, João Proença, o secretário-geral da UGT, admitiu ontem discutir um eventual aumento de impostos com o Governo (mas nunca a diminuição dos efectivos da função pública) ... e acrescentou: É fundamental que as preocupações e que os compromissos eleitorais do Partido Socialista e do Governo se mantenham, nomeadamente que a prioridade seja dada ao crescimento económico e ao emprego". Ora, como vimos, com aumento de impostos não se consegue “crescimento económico e do emprego". Aquelas afirmações são uma contradição nos termos.

O problema é que os únicos sindicatos que restam às centrais são os da função pública e dos transportes (alguns). No sector privado os sindicatos deixaram de ter expressão. Os dirigentes sindicais também vivem à custa do peso do sector público. E esse “peso” é-lhes precioso.

Publicado por Joana às maio 17, 2005 11:39 PM

Trackback pings

TrackBack URL para esta entrada:
http://semiramis.weblog.com.pt/privado/trac.cgi/88383

Comentários

Dona Joana,

Já falei com o Sócrates e o Sampaio que me afiançaram que não tomam nenhuma medida sem falar consigo.
Parece-me bem.
Também queriam falar com o Senhor Asdrúbal mas lá os convenci que não valia a pena porque ele é um iletrado, e se falarem consigo a coisa fica logo resolvida.
O pessoal do prémio Nobel da Economia, Física, Medicina, Química, Saúde, Pouca Saúde, Paz, Sem Paz, Paz Assim Assim e outras modalidades também a queria entrevistar mas lá os convenci que o melhor era atribuirem-lhes os prémios, mesmo de plástico.
Mas exigem que apresente um BI decente e não aquele da sua tia egípcia que trabalhava num clube nocturno do Cairo e nem sabia assinar.
Ãgora é consigo.

Muitos beijinhos desta sua admiradora incondicional (nunca vi tanta inteligência junta),

Pombinha

Publicado por: Pombinha às maio 18, 2005 12:19 AM

Joana, o aumento do IVA tem uma outra consequência. As empresas (micro, pequenas e medias) que operam no mercado nacional tem vindo a esmagar margens de modo a manterem-se competitivas. Não é facil encontrar uma que tenha lucros antes de impostos superiores a 5% da facturação. O aumento do IVA implicaria obrigatoriamente uma descida das margens, o que provoca menos capital disponivel, menos poupança, emprego, investimento, seja la o que for. 1% de aumento no IVA implica ou aumento de preços (poucos casos) ou descida de margens o que me parece perigoso.

Publicado por: HFerreira às maio 18, 2005 12:24 AM

O IVA é igual para todos, e afecta os produtos estrangeiros importados da mesma maneira. Um produto estrangeiro importado também será sujeito a um IVA de 20% ou 21%.
Onde poderá haver problemas é na concorrência nas zonas fronteiriças - por exemplo os restaurantes no Sotavento algarvio ou na fronteira do Minho perante os restaurantes do outro lado da fronteira (isto se mexerem no IVA dos restaurantes)

Publicado por: Joana às maio 18, 2005 12:55 AM

Percorri no domingo de manhã e segunda á tarde a Sicuta da Beira Interior até à Guarda.

No total passei por menos de quarenta carros.
Isto quer dizer (presumo) que estas pessoas cumpriam os limites de velocidade ou que se souber o verdadeiro tráfego, muitas bocas se vão abrir de espanto.

E, entretanto, nalguns sítios o piso está uma verdadeira calamidade.

Publicado por: carlos alberto às maio 18, 2005 08:22 AM

carlos alberto às maio 18, 2005 08:22 AM:
Como eu escrevi, essas "Sicutas" não são autosustentáveis. Aliás, o Mexia não queria mexer nisso, o PSL (e outros) é que o levaram a tal.
Quanto ao piso, os contratos de concessão impõem penalidades relativamente à manutenção, ao número de acidentes, etc.
Provavelmente não há fiscalização adequada.

Publicado por: Joana às maio 18, 2005 09:42 AM

Na verdade a expropriação da Bombardier não parece fazer sentido. Li algures que eles reclamam 20 milhões de euros pelo que foi expropriado (antes o terreno todo estava avaliado em 4 milhões).
Se ficasse o equipamente, ainda poderiam dizer que continuavam a exploração. Mas assim, não se compreende.

Publicado por: David às maio 18, 2005 10:03 AM

Concordo, na generalidade, com o post.

Não me parece que o problema do contrabando de tabaco seja tão grave assim. Ou seja, é certamente um problema, mas não creio que se vá agravar substancialmente em caso de aumento do imposto.

Também não me parece que o problema do preço dos carburantes em Espanha seja assim tão grave. A maior parte da população vive muito longe de Espanha e não tem oportunidade de lá ir encher o depósito, a não ser muito ocasionalmente.

Além disso, o ISP abate-se sobre muitas coisas além dos carburantes: gás de botija, gasóleo para aquecimento, gasóleo para a pesca, etc. Seria socialmente útil que o governo, a aumentar o ISP, estabelecesse taxas cuidadosamente diferenciadas para os diversos produtos. Em particular, não se compreende que o gasóleo para automóveis continue a sofrer um ISP 25 cêntimos inferior ao da gasolina. Isso leva a que Portugal importe gandes quantidades de gasóleo, enquanto que exporta gasolina, uma situação que se agrava de ano para ano, à medida que as motorizações diesel se vão tornando mais baratas e populares.

Publicado por: Luís Lavoura às maio 18, 2005 10:48 AM

O caso Bombardier é um exemplo concreto de uma má decisão politica, irresponsável até, pelos custos indemnizatórios que vai decerto trazer para o erário publico. Se eu fosse accionista da Bombardier estava a esfregar as mãos de contente, e confesso que, como sou desconfiado, e muito escaldado, até acho que pode ter havido umas comissõezinhas para resolver o assunto desa maneira. Um dia se calhar vamos saber, espero.

Publicado por: Joao P às maio 18, 2005 10:49 AM

Nota: Eu escrevi que eram de ter em conta os efeitos das elasticidades de substituição entre tabaco "legal" e de "contrabando" e na aquisição de combustíveis nas zonas fronteiriças, não que teriam efeitos graves.
Em qualquer dos casos, a dimensão dos efeitos depende do aumento dos preços.

Publicado por: Joana às maio 18, 2005 01:16 PM

Fico com a sensação de que o aumento dos impostos indirectos penalisa mais quem recebe menos. Pressupondo que a propensão marginal a consumir é decrescente e só existe IVA vejamos o exemplo:
Y C IVA IVA / Y
Zé 10 9 1,44 0,14
Manel 30 20 3,19 0,11

14% do rendimento do Zé vai para impostos enquanto no caso do Manel são apenas 11%. Há uma redistribuição contrária aquela proposta pelo imposto directo. Daqui se conclui que um aumento de imposto indirecto é relativamente maior nas famílias mais pobres. Podem considerar que se está a premiar a poupança, só que quem tem rendimentos mais baixos não poupa mais porque grande parte das suas despesas dizem respeito à satisfação de necessidades básicas.

Publicado por: Daniel às maio 18, 2005 02:14 PM

Daniel em maio 18, 2005 02:14 PM:
Isso é um facto conhecido. Se duas pessoas consumirem na mesma proporção dos respectivos rendimentos, são igualmente afectadas. Mas quem tem rendimentos maiores tem mais facilidade em consumir proporcionalmente menos do que quem tem rendimentos menores.
Tome nota que os bens essenciais, como os produtos alimentares, têm uma taxa de 5%.

Publicado por: Hector às maio 18, 2005 02:50 PM

Excelente texto, parabéns

Publicado por: Diana às maio 18, 2005 03:26 PM

Quem vai beber as "Sicutas" somos nós

Publicado por: bsotto às maio 18, 2005 06:33 PM

A situação do País é tão grave que eu acho que o Estado devia desde já «reter» o 13º mês da Função Pública, em geral, e, uma e outra vez, o "subsídio de Natal" da Pombinha, em particular.

Publicado por: asdrubal às maio 18, 2005 07:19 PM

Publicado por: teen boot camp às junho 11, 2005 08:14 PM

Comente




Recordar-me?

(pode usar HTML tags)