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janeiro 14, 2004

Welteke, as Virtudes Teologais e o Livro de Job

Ou como os economistas acertam sempre, respondendo sim, não ou talvez, à mesma questão, consoante as circunstâncias e locais.

Welteke, presidente do Bundesbank e membro do Conselho de Governadores do BCE, declarou ontem que estava preocupado pela ameaça que a valorização da moeda única representa para a recuperação da economia alemã. «Tememos que a apreciação do euro possa colocar um travão na recuperação» da economia, afirmou Welteke, acrescentando que «estamos a acompanhar de muito perto o impacto directo e indirecto da apreciação do euro».

Todavia, em 19 de Dezembro último, Welteke, contradizendo Romano Prodi, presidente da Comissão Europeia, havia afirmado que o crescimento da economia europeia «está muito mais dependente do desenvolvimento da economia mundial como um todo, do que esta ou aquela taxa de câmbio», mostrando pouca preocupação pelos efeitos da subida do euro face ao dólar americano. Todavia, entre estas duas declarações contraditórias, o euro apenas se apreciou cerca de 2,4%, passando de 1,245 para 1,275.

Na altura escrevi que as declarações de Welteke de 19-12-03 eram mais uma matéria de fé que uma análise científica da situação. Todavia, em Economia, têm aplicação inexorável as 3 virtudes teologais na sua sequência doutrinal: quando abordamos uma questão com , ao fim de algum tempo buscamos apoio na esperança e acabamos recorrendo à caridade. Portanto, a fé de Welteke poderia ter uma continuação pouco satisfatória.

Há dias, Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central Europeu, havia produzido uma declaração contraditória, afirmando que a valorização do euro face ao dólar podia ameaçar a subida das exportações, à saída de uma reunião onde o BCE havia decidido manter as taxas de juro de referência, uma das causas daquela valorização. Como havia expectativas que o BCE diminuísse aquelas taxas, o euro, que tinha descido ligeiramente perante essas expectativas, voltou a subir em face das não decisões da reunião. Com a agravante que foi dado um sinal negativo aos empresários europeus – afirmou-se uma preocupação e, por omissão, gerou-se um movimento no mercado cambial, que agravava essa preocupação.

É estranho, e muito preocupante, figuras do topo das finanças europeias produzirem afirmações tão contraditórias, com poucos dias de intervalo, contradizendo-se entre si e intra si. O BCE reproduz, no fundo, as contradições da unidade europeia: é difícil conciliar o interesse colectivo com os interesses diferenciados dos diversos países; é difícil conciliar as decisões baseadas em critérios económicos com decisões baseadas em critérios políticos; é difícil conciliar a eficiência económica e financeira com os constrangimentos políticos e os lobbies dos Estados mais poderosos. Começou logo com a forma como o presidente do BCE foi escolhido: ele e o seu sucessor.

Mas para aligeirar esta questão, e em homenagem à fé e esperança do Welteke (esperemos que não chegue a recorrer à caridade), aqui lhe dedico um:

Livro de Horas

Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,

e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

Miguel Torga, «O Outro Livro de Job». Coimbra, Ed. Autor, 1936

Publicado por Joana às janeiro 14, 2004 07:48 PM

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Comentários

Afinal não é só em Portugal que ninguém se entende nas finanças públicas

Publicado por: c seixas às janeiro 15, 2004 12:46 AM

A Europa está a atravessar uma situação complicada. Fazem um PEC e os grandes rasgam-no. O BCE não se entende entre si. Uma vergonha.

Publicado por: Casimiro às janeiro 15, 2004 12:49 AM

Se a Europa não chega a um entendimento, estamos feitos. Já bem basta o desentendimento entre nós

Publicado por: casimiro às janeiro 15, 2004 12:51 AM

Não encontrei o endereço de e-mail deste blogue pelo que aproveito a secção dos comentários para sugerir um 'post' sobre a segurança social e a sua necessária e possível reforma.

Até quando poderemos aguentar o Estado Social?

No meu blogue (http://observador.weblog.com.pt) escrevi sobre a ilusão da Segurança Social.

Gostaria de saber a sua opinião.

Obrigado

Publicado por: André às janeiro 15, 2004 12:28 PM

Grande é a nau, grande é a tormenta

Publicado por: J Mendes às janeiro 15, 2004 03:28 PM

Foi graças ao Freire de Andrade e ao livro que ando a escrever sobre a terceira invasão francesa que cheguei aqui. Bom blog: vou ver se gasto umas horas a lê-lo. ;o)

Publicado por: Alexandre Monteiro às janeiro 15, 2004 03:41 PM

Essa mistura do Welteke com o Miguel Torga, só por piada.

Publicado por: Viegas às janeiro 15, 2004 10:08 PM

Alexandre Monteiro
Provavelmente já conhece, mas sugeria-lhe o seguinte:
História da Guerra Civil do Luz Soriano 2ª Época Tomo II e Tomo III (5º e 6º volumes da obra) (Lisboa Imprensa Nacional 1874) Encontra a descrição política e militar da 3ª Invasão na 2ª metade do 5º volume e em todo o 6º volume. São mais de mil páginas sobre o assunto.

Quanto à versão francesa, consulte Thiers Histoire du Consulat et de L’Empire Tome XII (Paris 1855). As Mémoires du général baron de Marbot e as do General Foy também contêm muitas referências.
Igualmente as Mémoires du maréchal Marmont duc de Raguse (são 9 volumes), têm interesse. Marmont sucedeu a Massena no comando do exército, já na retirada para Espanha. Marmont tem interesse porque como se indispôs mais tarde com Napoleão, dá uma versão um pouco diversa.
Repertorio das Ordens do Dia dadas ao Exercito Portuguez pelo Duque de Wellington têm igualmente interesse documental.
De momento, não me lembro de mais nada, para além dos manuais de história conhecidos.

Publicado por: Joana às janeiro 16, 2004 12:09 AM

Great site and great information.

Dallas Marie

Publicado por: Dallas Marie às julho 15, 2004 05:58 PM

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