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janeiro 13, 2004

Onde se lê como a Despesa Pública não é um problema político mas Astrofísico

Ou o paradigma das «Conquistas Irreversíveis»

Um dos paradigmas mais enformadores da política portuguesa é o das «Conquistas Irreversíveis».

É certo que esta terminologia das «Conquistas Irreversíveis» só foi cunhada e posta a circular nos tempos do PREC, na sequência do 25 de Abril. Mas o seu conceito esteve sempre latente na sociedade portuguesa e há fundados receios que faça parte da mutação genética que produziu a raça portuguesa.

As «Conquistas Irreversíveis» têm uma característica importante e única: são conquistas de um dado segmento social contra toda a sociedade portuguesa. São conquistas internas. No que se refere ao exterior somos menos rígidos: quando a tropa portuguesa sob o comando dos ínclitos infantes conquistou Ceuta, ninguém falou em «Conquista Irreversível»; nem em Ceuta, nem nas que lhe sucederam. Apenas somos rígidos, irreversíveis e definitivos contra nós próprios.

As «Conquistas Irreversíveis» atravessam transversalmente toda a sociedade portuguesa. Por exemplo, é uma «Conquista Irreversível» o facto das universidades portuguesas estabelecerem os respectivos currículos de acordo com os lobbies internos, e os respectivos numerus clausus de acordo com tempo que têm disponível para conceder à docência. Outra «Conquista Irreversível» é a da Economia Paralela: o fisco tem como ponto de honra só se preocupar e esquadrinhar minuciosamente quem declare rendimentos; todos os outros estão imunes à avidez do fisco. Há outras «Conquistas Irreversíveis» que estão agora a ser contestadas, mas certamente com efeitos despiciendos: o posto de trabalho como direito ao asilo, por exemplo.

Porém, a «Conquista Irreversível» mais irreversível é a da Despesa Pública. Toda a Função Pública: Directores Gerais, Directores de Serviço, ... , contínuos, ... etc., uma vez habituados a um determinado nível de despesa pública, já não há forma de retrocesso. Aquela despesa está conquistada e é irreversível. Se o nível da despesa pública for 30% do PIB e se se pretender passar para 29% é impossível, pois o país deixa de funcionar. Se anos depois se elevou para 40% e se pretender passar para 39%, continua a ser impossível, porque paralisaria o país, e assim sucessivamente.

Alguns leitores, mais aferrados a raciocínios lógicos e a sistemas cartesianos perguntarão: mas então, quando era 30% o país funcionava e agora com 39% fica paralisado?

Pergunta estulta, apesar do aparente rigor lógico! A administração pública sempre esteve paralisada. Trata-se portanto de uma ameaça vã. Quer se diminua, quer se mantenha, quer se aumente percentualmente a despesa pública, a administração pública continuará paralisada.

Não há nada a fazer. A Ministra das Finanças pode emitir despachos draconianos, fazer declarações sinistras, congelar vencimentos dos funcionários, tudo o que entender: a despesa pública lá está, incólume, não apenas incompressível, mas sempre a crescer acima da inflação.

Quanto mais a Ministra corta, mais a despesa aumenta. Há nesta estratégia um equívoco evidente da Ministra: a despesa pública portuguesa não é uma categoria orçamental. Isso será noutros países. No nosso é um buraco negro, cuja força gravítica atrai tudo o que está no seu campo de acção e não deixa escapar nada. A despesa pública portuguesa não é um caso do âmbito económico ou político: é um problema astrofísico.

Basta ver como os políticos mostraram a sua incapacidade para resolver este caso. O Guterres foi acusado, justamente, de laxismo. Durante o seu consulado a massa e a densidade do buraco negro da despesa pública aumentaram desmedidamente. Mas o apregoado rigor do actual governo não tem impedido que esse aumento cataclísmico continue imparável.

É que a irreversibilidade está assegurada pela própria massa e densidade do buraco negro da despesa pública – quanto maiores aquelas são, mais intensa é a força de gravidade, mais distante é a acção do campo gravítico, maior é a velocidade com que os bens que produzimos com o nosso suor e/ou talento são atraídos para aquele vórtice infernal e definitivo.

Suspeita-se mesmo que a própria Ministra já esteja amalgamada naquela massa de átomos informes e comprimidos num plasma ultradenso, não passando actualmente de um elemento transuraniano de número atómico superior ao do défice público expresso em cêntimos. O que vemos na televisão podem muito bem ser cassetes gravadas que ela deixou para a posteridade.

Há um evidente paralelismo entre o campo gravítico criado pela massa física, e a «Conquista Irreversível» criada pela massa monetária orçamentada e pelo nosso fatalismo. Ambos são campos vectoriais que originam forças fatais que atraem irreversivelmente para o abismo.

Que fazer? Esperar que a densidade seja de tal forma incomensurável que expluda e o buraco negro se transforme numa estrela? Mas como se traduzirá esse impressionante fenómeno astrofísico na pacata vida política e económica portuguesa?

Como não percebo nada de astrofísica e cada vez menos de economia, faço daqui um apelo a algum cientista da NASA que nos tente elucidar, a mim e aos portugueses em geral, que continuam a ser sugados para alimentarem esse monstro, explicando-nos os efeitos a que podemos estar sujeitos e como havemos de sair deste buraco negro.

Com os políticos não vale a pena contar. Se atendermos ao âmbito em que se insere esta questão, como o acabei de demonstrar de forma inovadora e seminal, precisamos sim de físicos de renome, peritos em astrofísica.

Publicado por Joana às janeiro 13, 2004 07:54 PM

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Comentários

Minha cara Joana,

Eu também não percebo nada de Astrofísica, apesar de considerar o "assunto" de grande interesse.

Tanto quanto sei, as notícias não são entusiasmantes: os buracos negros sugam tudo à sua volta. É impossível resistir a tal fenómeno. Para "acabar" com um buraco negro, só mesmo um de maior dimensão e força gravítica.

Estamos metidos num belo "buraco"!!

:-)

Publicado por: Paulo Pedroso às janeiro 13, 2004 09:26 PM

Olha uma ideia; aproveitamos a estadia em Portugal de um dos maiores físicos da actualidade mundial, João Magueijo, português de Évora, anarquista militante confesso, que percebe que se farta de buracos negros e quazares ( que são aqueles pontinhos de luz que se vêm ao longe e não se conseguem teoricamente alcançar ). Que tal?

Publicado por: Zecatelhado às janeiro 13, 2004 09:30 PM

O que você descreve é uma espécie de big-bang ao contrário. Estaremos assim tão mal?

Publicado por: vde às janeiro 13, 2004 10:19 PM

Não se percebe, de facto, como é possível a Ferreira Leite não ter mão na despesa pública. Sem ir à sua teoria brincalhona do buraco negro, julgo que há um fenómeno incompreensível nesta questão que me escapa a mim, a si pelo que parece, e julgo que a todos ou quase todos.

Publicado por: Novais de Paula às janeiro 13, 2004 10:21 PM

Joana: você deve ter andado a coscuvilhar noutras faculdades, na de Ciências, por exemplo. Isso não é conversa de simples economista

Publicado por: Arroyo às janeiro 13, 2004 11:42 PM

“Simples economista” foi sem ofensa.

Publicado por: Arroyo às janeiro 13, 2004 11:43 PM

A situação portuguesa é incompreensível, e nisto estou de acordo com o Novais. A ministra só consegue atingir o patamar com receitas extraordinárias. A brincar, mas a Joana é capaz de ter alguma razão. Estamos num buraco negro.

Publicado por: Hector às janeiro 14, 2004 01:01 AM

"Quer se diminua, quer se mantenha, quer se aumente percentualmente a despesa pública, a administração pública continuará paralisada."

Acho esta afirmação um verdadeiro exagero.

"como havemos de sair deste buraco negro."

Que tal meter todos os funcionários públicos numa nave e enviá-los para um desses buracos escuros por fora? (ironia)

Publicado por: Filipe às janeiro 14, 2004 08:49 AM

É um exagero, mas certamente menor que dizer que Ministra já esteja amalgamada naquela massa de átomos informes e comprimidos num plasma ultradenso, não passando actualmente de um elemento transuraniano de número atómico superior ao do défice público expresso em cêntimos.

Publicado por: Joana às janeiro 14, 2004 09:06 AM

Caro Paulo Pedroso,

Confesso que agora fico mesmo preocupado...
Fundamentado pela sua adoração ao Paulo Portas, tinha uma ténue esperança que agora Portugal estava finalmente no bom caminho...
No entanto, a seu pessimismo deixa-me francamente aterrorizado...
Se estão perdidas as esperanças no PP e no CDS, quem nos vai salvar?...

PS. Por amor de Deus não me venha falar do Santana Lopes...

Publicado por: Anarca às janeiro 14, 2004 10:09 AM

Cara Joana,

Nos seus exemplos das «Conquistas Irreversíveis» devia também constar a liberdade de poder ter um blog e falar livremente sobre tudo o que lhe vem à cabeça...
Sem o referido PREC, na sequência do 25 de Abril, nenhum de nós estaria aqui...

Publicado por: Anarca às janeiro 14, 2004 10:16 AM

Já agora, e para reduzir drásticamente a despesa pública e deste modo fazer diminuir a força gravitacional desse "buraco negro" a que o apóstolo Cavaco chamou "o Monstro", que tal assumirem-se de vez os neo-liberais de pacotilha que por este país pululam e dizer muito simplesmente:

Despeçam-se em massa os funcionários públicos até ao mínimo indispensável para que os serviços públicos, também eles reduzidos ao minímo indispensável existam, e se possa continuar a admitir que em Portugal existe Adminuisrtração pública!

O que se faz com essas pessoa e com as suas famílias (crianças incluídas)?

Simples:

Compra-se os livros do Friedman, que vem lá tudo.

O povo que se lixe, porque como disse uma vez um conhecido "empresário", com a libertação de mão de obra da função pública, haveria mais massa humana para as fábricas e empresas particulares.

E com muita mão de obra, salários baixos é do melhor que há...

Brilhante !

Publicado por: Al_Mansour às janeiro 14, 2004 02:57 PM

Buraco Negro é onde este governo está a conduzir o país.

Publicado por: Cisco Kid às janeiro 14, 2004 06:49 PM

Anarca em janeiro 14, 2004 10:16 AM
A liberdade não é, infelizmente, uma conquista irreversível. Temos que lutar por ela quotidianamente. E as ameaças vêm de diversos lados, às vezes assumindo essa intenção de forma clara, outras vezes, de forma mais perversa, em nome das mais amplas liberdades.
O que se pretendem que sejam «Conquistas Irreversíveis» são interesses instalados que apenas servem, na maioria dos casos de forma ilusória, a alguns segmentos da sociedade portuguesa.

Publicado por: Joana às janeiro 14, 2004 07:44 PM

Al_Mansour em janeiro 14, 2004 02:57 PM
Concluo o seguinte do que escreveu:
Admite que mesmo após despedimento em massa dos os funcionários públicos pode continuar a funcionar a Administração pública, reduzida, embora, ao mínimo indispensável.
Você, ao reconhecer que há um mínimo indispensável e que, para além dele pode haver despedimento em massa, afirma que parte substancial da Administração pública é supérflua.
Sinceramente nunca esperaria que chegasse a essa conclusão. Vejo que fez um percurso vertiginoso nos últimos meses.
Todavia não é possível, por lei, esse despedimento em massa, nem sequer mobilidade laboral dos funcionários públicos. Você pretende pois ir anos luz mais longe do que os legisladores, obviamente esquerdistas, do actual governo.

Publicado por: Joana às janeiro 14, 2004 07:45 PM


Não há dúvida de que o espírito empresarial é muito mais produtivo do que o espírito burocrático.

Um exemplo: há tempos uma empresa pretendeu introduzir no mercado uma nova, eficaz e caríssima variedade de pensos para queimados. Propuseram a um dos novos hospitais «empresarializados» que durante um certo tempo lhes forneceriam gratuitamente os tais pensos, à experiência; e o referido hospital começou a aplicá-los a um doente que tinha extensa, e até então intratável,lesão num braço.

As melhoras foram rápidas e encorajadoras. A meio do tratamento, porém, acabou o período experimental: os ditos pensos, a partir desse momento, só seriam fornecidos contra pagamento.

Não podia ser. A administração do hospital, consciente de que a sua principal função é limitar a despesa pública, voltou ao tratamento anterior. Eventualmente o braço teve de ser amputado, e algum tempo depois o paciente teve alta - sem um braço, mas com o seu dossiê fechado como mandam as regras.

A meu ver, o hospital fez muito bem. Nos velhos tempos dos hospitais públicos, que imaginavam ter por função efectuar curas heróicas sem cuidar dos custos, é natural que uma história destas causasse escândalo. Mas hoje, em plena modernidade, sabe-se que um hospital digno desse nome não efectua curas, produz altas médicas - e naturalmente ao mais baixo custo, porque a produtividade é isso mesmo.

Quem continua a insistir na cura para a sua doença - ou, nos casos igualmente exemplares das escolas e dos tribunais, no esclarecimento para a sua ignorância ou na justiça para a opressão de que é vítima - está ainda a viver no mundo arcaico das «conquistas irreversíveis», e não percebe que o que estas instituições têm de produzir - sempre ao mais baixo custo - é cada vez mais altas médicas, cada vez mais classificações positivas e cada vez mais sentenças transitadas em julgado.

Publicado por: Zé Luiz às janeiro 14, 2004 09:21 PM

Zé Luiz:
Você está a contar uma história “educativa” que, eventualmente pode ter acontecido. Não há sistemas perfeitos.
Todavia, a questão do descontrolo das contas nos hospitais públicos não tem nada a ver com os “cuidados desvelados” que prestam aos doentes, mas sim com a ineficiência de afectação de recursos, com o absentismo e, pior, com compras de consumíveis e/ou equipamentos por preços exorbitantes, muito acima do mercado.
Os hospitais públicos, em Portugal, tornaram-se um sorvedouro de dinheiro completamente desproporcionado com os serviços que prestam.
É evidente que nem todos os hospitais públicos têm os mesmo problemas. Há uns a melhor geridos, outros pior geridos e muitos pessimamente geridos. Eu estou a referir-me à situação geral.

Publicado por: Joana às janeiro 14, 2004 10:24 PM

Cara Joana:
Como todas as parábolas, a minha tem a sua dose de injustiça.

Resta o essencial: a produtividade só se pode medir depois de saber o que é que se quer produzir - e essa decisão não é económica, é política - ou, se quiser, moral.

É claro que nem todas as conquistas são «irreversíveis».

Infelizmente, digo eu. Se o fossem, certas conquistas civilizacionais da República e do Império Romano - a noção do Estado de Direito, da Res Publica e do serviço público, das boas maneiras, da higiene e da graciosidade no viver, um sistema de gestão de ambições que não permitia a ninguém fazer a mais modesta das carreiras políticas sem falar, ler e escrever com elegância duas línguas e sem compreender a argumentação básica dos sistemas filosóficos existentes não se teriam perdido quase completamente nos séculos subsequentes.

Só lhe peço que não caia no erro, tão frequente nos jovens, de confundir mudança com progresso. Há, e sempre houve, mudanças para pior. E para as impedir a noção de «conquistas irreversíveis» é pelo menos útil. Uma dessas conquistas é a noção de que a economia determina os meios, mas não pode nem deve determinar os fins, sob pena de cairmos na barbárie.

Publicado por: Zé Luiz às janeiro 15, 2004 11:11 AM

P.S.:
Comparando os picos históricos da civilização com os seus pontos mais baixos, fico na dúvida sobre se a burocracia será a peste que se diz ou, pelo contrário, uma das invenções mais geniais do espírito humano...

Publicado por: Zé Luiz às janeiro 15, 2004 11:16 AM

O que diz sobre o descontrole nos hospitais públicos é verdadeiro e eu tenho tido provas disso.
Mas quando aparece um Hospital como o Amador-Sintra, que apanha com a zona mais problemática da Grande Lisboa, aí é que é dizer mal. Formou-se logo uma comissão de utentes!!

Publicado por: Sa Chico às janeiro 15, 2004 02:58 PM

É muito difícil por a Administração Pública a funcionar devidamente. É uma questão de mentalidade, que não existe apenas na função pública. Não acredito que com avaliação do desempenho se vá lá. O problema está em todos os escalões.
Há, é claro, funcionários cumpridores, mas a percentagem do incumprimento é de tal forma elevada que afecta o desempenho e a motivação dos cumpridores.

Publicado por: Rui Pereira às janeiro 15, 2004 03:11 PM

Concordo com o Rui Pereira quando ele afirma que é muito difícil pôr a Administração Pública a funcionar devidamente por questão de mentalidades e que o problema está em todos os escalões.
Vai ser complicado ultrapassar isto

Publicado por: Viegas às janeiro 15, 2004 10:07 PM

vai sev fuder

Publicado por: eu às março 26, 2004 12:43 AM

Pois não é

Publicado por: ermita às fevereiro 28, 2005 03:15 AM

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