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novembro 18, 2004

Transsexualidade Política

Acabei de ouvir as declarações de Jaime Gama e estou confusa. Mesmo atónita. Defendeu uma política de rigor orçamental, alertou para uma expansão baseada num aumento indesejado do rendimento disponível induzido pela diminuição do IRS, e para a derrapagem nas importações induzida pela distensão que os portugueses sentiram relativamente ao clima de austeridade. E foi com profunda emoção que vi depois todos os deputados do PS levantarem-se, num voto unânime contra a falta de ambição deste Governo na consolidação orçamental e criticando a política de descontinuidade orçamental.

Todavia, não foram as declarações de Jaime Gama, e de outros líderes socialistas, que me perturbaram. O que me perturbou não foi o conteúdo das declarações, foi elas serem proferidas pelos mesmos que andaram dois anos e meio a protestar contra a “obsessão” pelo défice, a favor da necessidade de aumentar a despesa pública para dinamizar a economia, e que fizeram uma campanha para as eleições europeias baseada na luta contra a austeridade orçamental.

Fiquei perplexa porque vi um país às avessas. O PS preocupado com o ataque à classe média decorrente do fim dos benefícios fiscais e contra a diminuição das taxas do IRS dos escalões mais baixos, e a coligação de direita a protagonizar a defesa dos mais desfavorecidos, beneficiados por essa diminuição das taxas. O BE, por seu turno, a dizer-se preocupado com os direitos dos contribuintes face às formas de combate à evasão fiscal preconizadas por um Bagão Félix que, vindo do sector financeiro, desafiava a banca e afirmou repetidamente que era ela o alvo principal das suas medidas de justiça fiscal. Que estranho fenómeno terá ocorrido? Alguma mutação de origem alienígena?

O governador do Banco de Portugal afirmou há dias que sem um forte controlo do défice e dos níveis da dívida pública o país caminha para o abismo. E disse-o como forma de contestação da estratégia económica de Bagão Félix. Ora durante dois anos e meio a coligação andou a citar as sucessivas declarações de Vítor Constâncio como prova evidente da correcção da sua política. Agora Bagão Félix fala, com um sorriso depreciativo, da ortodoxia dos bancos centrais, enquanto o PS descobre inebriado a excelência da análise económica e financeira do governador do Banco de Portugal, depois de ter andado dois anos e meio a ignorar os seus apelos à austeridade das finanças públicas.

Há obviamente algo de errado em tudo isto. Os mais versados em matérias científicas alegarão alguma mutação provocada por qualquer vírus desconhecido, eventualmente alienígena. Os mais inspirados pelos reality show dirão que houve operações maciças de mudança de sexo político nos membros da AR e do governo. Que estamos perante um fenómeno inesperado de transsexualidade política. Erro profundo.

Estamos apenas perante uma elite política incapaz de ultrapassar as tricas partidárias, incapaz de conseguir consensos que possam promover as reformas urgentes de que o país precisa, e apenas capaz de se digladiar em jogos de poder.

Estamos perante uma elite política incapaz de debater objectivamente a essência das coisas, por estar mais preocupada com a sua existência enquanto fonte do poder.

Publicado por Joana às novembro 18, 2004 07:57 PM

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elo à análise política do semiramis [Ler...]

Recebido em novembro 22, 2004 09:12 AM

Comentários

Este texto - aliás como quase todos os outros - merecia um Editorial num OCS de grande expansão.
Fazia-lhe um "desafio", Joana :
Confronte este seu escrito com 30 anos de democracia ...

Publicado por: asdrubal às novembro 18, 2004 08:36 PM

Joana, os seus textos deixam-me deprimido.

Publicado por: Jarod às novembro 18, 2004 08:48 PM

A política portuguesa está pelas ruas da amargura. Isso é deprimente, ó Jarod

Publicado por: Novais de Paula às novembro 18, 2004 08:53 PM

Este blog tem uma característica: A quantidade de posts é muito pequena, mas a sua qualidade é muito elevada. Este post é um exemplo disso. Como aliás todos os que tenho lido, quer concorde quer não concorde.

Publicado por: R Coelho às novembro 18, 2004 09:05 PM

Errata : «....merecia ser um Editorial, etc»

Publicado por: asdrubal às novembro 18, 2004 09:51 PM

Também fico perplexo com tanta cambalhota da (falta de) classe política.
E ainda temos, noutro plano, a cambalhota de Guilherme da Silva relativamente à AACS.
Enfim, aquilo parece mesmo um circo.

Publicado por: Senaqueribe às novembro 18, 2004 10:00 PM

Nao posso estar mais de acordo. O problema da nossa elite politica é que vêm o poder como um direito adquirido. Actualmente, o papel de politico do PS e BE é um constante escarnio e mas dizer do Governo/PSD/PP com muita Agit-Prop (com a ajuda dos media) na esperança do maior desgaste possivel e esperar pacientemente pela "alternancia democratica" ( votos) para voltar ao poder . Como ja' referiste , so' com um pacto de regime é que o pais podera' sair do abismo, mas nao me parece que seja com estas pseudo-"elites".

Publicado por: Jorge CL às novembro 18, 2004 10:04 PM

Joana,
espero que, em relação a este governo, tenha lido JPPereira no Público.
em relação ao PS parece haver uma colagem a MFLeite (!) e, por favor, explique ao auditório a que ELITE pertence o peixe de águas profundas que dá pelo nome de Jaime Gama.

Publicado por: zippiz às novembro 18, 2004 10:27 PM

Um tamboril, Zippiz ?

Publicado por: asdrubal às novembro 18, 2004 10:39 PM

Joana, um dia destes faça um "editorial" sobre esta Transsexualidade Fiscal, e veja se nos conforta sobre a honestidade profissional e intelectual do actual ministro das finanças e ex-colaborador da banca (bcp ?).

1.ª SITUAÇÃO: MILLENNIUM BCP

O grupo Millennium BCP que, através da passagem dos seus imóveis no Tagus Park para o respectivo fundo de pensões, viabilizou no início de 2004 um reembolso de IVA de 42 milhões de euros. A IGF considerou que o reembolso não verificava os requisitos legais e foi processado mais rapidamente do que o habitual.

«A administração fiscal poderia ter recusado o pedido de reembolso, mas não o fez. Para a IGF que chegou a elaborar um relatório sobre esse assunto, o movimento dos imóveis era artificial e visava apenas subtrair-se à tributação.»

(Fonte: Público de 2004:11:08 Link)


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2.ª SITUAÇÃO: JS GONÇALVES COMPONENTES

«Em Novembro de 2003, então com perto de meia centena de trabalhadores, pediu ao Estado a devolução de IVA referente a mercadorias transaccionadas no espaço intracomunitário. Em Dezembro, pediu novo reembolso e ainda outro em Janeiro (2004), num total de 1.311.000 euros. Só que os serviços das finanças não realizaram nenhum dos reembolsos, paralisando toda a actividade exportadora da empresa e criando, segundo os seus responsáveis, uma situação de ruptura financeira quase total.»

«José Gonçalves [sócio da empresa] faz críticas contundentes à máquina fiscal, responsabilizando-a pela situação criada e que se resume a uma total paralisação da área de "trading", ao despedimento de mais de metade dos trabalhadores e à existência de salários e contribuições para a segurança social em atraso. Neste momento, os cerca de 15 funcionários da empresa que resistem têm dois meses de salários em atraso e as dívidas à segurança social ascendem a 175 mil euros. A JS Gonçalves Componentes admite uma situação de ruptura noutros compromissos fiscais e bancários».
(JS Gonçalves Componentes Link)

(Fonte: Público de 2004:11:17 Link)
in blog jumento

Publicado por: zippiz às novembro 18, 2004 11:36 PM

Julgo que foi prudente da parte do PS pôr Jaime Gama a fazer a declaração final. Ele esteve sempre calado (devia andar a nadar algures nas profundezas da ZEE) durante o tempo de Ferro Rodrigues e não partilhou dos disparates que a então direcção do PS fez e disse.

Outro que teria autoridade moral para falar seria Pina Moura, que sempre defendeu uma política de austeridade.

Publicado por: Joana às novembro 19, 2004 12:02 AM

zippiz: eu não concordo, de forma alguma, com a derrogação dos direitos dos contribuintes como forma de combater a evasão fiscal. Isso presta-se às maiores arbitrariedades e atrás da arbitrariedade vem a corrupção. A corrupção medra nos despotismos. Estabelecer um regime despótico na relação fisco-contribuintes é meio caminho andado para a corrupção fiscal: chantagear os contribuintes, etc.

Publicado por: Joana às novembro 19, 2004 12:06 AM

O regime está podre, o sistema é perverso, a classe política é oligárquica. E nós somos todos uns capados (desculpem lá o plebeismo!) que não conseguimos congregar todos os descontentamentos para dar uma volta nesta cloaca. Nas próximas eleições ou ficamos todos em casa, ou criamos um movimento qualquer de protesto para concorrer às eleições e tirar estes cabrestos da manjedoura. Protestar já não serve para nada.

Publicado por: Albatroz às novembro 19, 2004 12:22 AM

Albatroz:
Totalmente de acordo. No fundo temos aquilo que merecemos.
E daí, talvez estejamos a ser muito castigados.

Publicado por: David às novembro 19, 2004 12:41 AM

Se alguns têm obcessão pelo défice, outros têm-na pela crítica reactiva.

Fica muito bem dizer que o sistema está podre e temos de colocar um fim a isto. Cada povo tem os políticos que merece. A brilhante crítica da Joana, que póe a nu as cambalhotas políticas, não tem qualquer expressão nas pessoas.

Apercebam-se do que comentam as pessoas à vossa volta e reparem em quantos têm uma visão despida e não tolhida por uma mesquinhez endémica. Ninguém quer saber da verdade, todos alinham pelo grande princípio ditado pelo ideólogo dos tempos modernos, Michael Moore: É tudo uma comédia. No humor não há certo ou errado.

Publicado por: Mario às novembro 19, 2004 10:38 AM

Pois é. Este post está muito bom. O que indica que o país está muito mal.

Publicado por: Justo às novembro 19, 2004 01:30 PM

O Sócrates está a suicidar-se a pedir que os impostos não baixem. Deve ser estúpido.
No fundo PS e PSD é tudo a mesma porcaria

Publicado por: Cisco Kid às novembro 19, 2004 05:08 PM

Estou completamente em desacordo com o post e com os comentários que provocou...

É normalíssimo a oposição criticar as decisões (todas as decisões) do Governo. Se com isso estiver por vezes a ser incoerente... bom é porque o Governo também o foi, não é?

A ortodoxia dos Bancos Centrais é muito comum por essa Europa fora e sempre provocou remoques, queixas e críticas por parte de todos os Governos.

O que era aberrante (e também prova provada que algo ia muito muito mal com as finanças públicas) era a sintonia total entre o Governo e o Banco Central! Aquela defesa em uníssono das politicas de austeridade só podia ser causada por uma situação orçamental gravíssima.

A dissintonia que notou entre Bagão Felix e Constâncio é um sinal optimista que as coisas estão a regressar ao normal: Conflitos entre Governos e Bancos Centrais dão indicações bem menos preocupantes acerca da situação das finanças públicas que a sinistra concordância anterior...

Publicado por: P Vieira às novembro 19, 2004 05:12 PM

P Vieira em novembro 19, 2004 05:12 PM:
O meu post pretendia mostrar a perplexidade, normal, num país normal, pela inversão completa das posições das principais forças políticas no curto espaço de 2 meses.
Mas já que levanta o assunto, parece-me que o clima económico não melhorou muito em Portugal. Conseguiu-se algum controlo na despesa pública, e inverter a situação desastrosa em que o país havia sido deixado, mas o crescimento, pequeno, que houve este ano, tem sido pelo lado da procura interna, o que significou um agravamento significativo do nosso défice com o exterior.
Não concordo com o poder discricionário que vai ser dado ao fisco, que pode ter consequências desastrosas. Não concordo com o regresso da tributação das mais-valias das SGPS, as sociedades holdings, pois poderá gerar um movimento de transferência das sedes destas companhias para países com regime fiscal mais vantajoso, como por exemplo a Espanha. Não concordo com a diminuição das taxas do IRS, embora aceite o fim dos PPR's e P. Habitação, etc. O Bagão está desesperado para encontrar dinheiro e o desespero não é bom conselheiro,
Em contrapartida, reformas fundamentais como a da administração pública continuam à espera. O que tem sido feito é praticamente nada.

Eu compreendo que o governo queira dar uma nova imagem da situação do país e aumentar o rendimento disponível, dado que se aproximam vários actos eleitorais. E confesso que, por enquanto, não vejo que o PS constitua alternativa ao actual governo. O PS faria certamente muito pior. E o Santana deita por contas que andar com uma política de austeridade, para entregar o poder de bandeja ao PS e depois este esbanjar tudo outravez seria péssimo.
... É a democracia ... à portuguesa.
Mas não me parece que em França seja diferente. O governo de direita foi fortemente penalizado nas europeias por tentar inverter uma situação herdada das loucuras que o Jospin andou a fazer.

Publicado por: Joana às novembro 19, 2004 07:15 PM

Joana:
Temo que venha a ter razão. Tanto em Portugal como em França quando o filme acabar é o bandido que mata o xerife, fica com a moça e com o ouro...

Tentei escrever uma coisa 'tongue in cheek', mas não me saiu muito bem, pelos vistos... Continuo é a achar que esse tipo de desacordos entre um Governador do Banco e um Ministro (desde que não seja completamente irresponsável) sugere que a situação melhorou (mesmo que pouco).

Publicado por: P Vieira às novembro 19, 2004 07:42 PM

Desafio à Joana:

Aprecio muito os textos da Joana. Mas gostava de a ver mais virada para as soluções e menos para os diagnósticos. Ao fim e ao cabo é crescente o número de pessoas capaz de identificar os nossos males - que, curiosamente, são os mesmos há quase 200 anos. Mas é cada vez mais importante procurar alternativas que, como todos sabemos, não podem ser encontradas dentro do sistema. Do CDS ao BE os pecados são os mesmos. Só a maneira de os praticar muda...

Publicado por: Albatroz às novembro 20, 2004 10:57 AM

Os políticos portugueses sempre tiveram a memória curta. Mas assim é demais.

Publicado por: Rui Sá às novembro 20, 2004 12:52 PM

Já uma vez tinha perguntado a Joana como é que - referindo-me exclusivamente às políticas económico-financeiras do Estado - podíamos suportar a "eterna alternância" de uma gestão séria e rigorosa, «para depois o PS (ou o PSD, digo eu) esbanjar tudo outra vez» (sic). A resposta de Joana, foi evocar a possibilidade de um "acordo de regime".
Mas se este fenómeno é a essência do próprio sistema alternante, como é que há-de haver um acordo acerca de um regime já acordado ?

Publicado por: asdrubal às novembro 20, 2004 01:25 PM

como (quase) sempre, excelente

Publicado por: jpt às novembro 22, 2004 09:09 AM

Pois, pois

Publicado por: Grey às março 1, 2005 07:18 AM

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