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novembro 17, 2004
Lei do Arrendamento Urbano
Ou ... quando não se domina a matéria não se acerta na solução
O arrendamento urbano no nosso país foi um exemplo de como pacotes legais feitos com as melhores das intenções de justiça social e de protecção à habitação, regulamentando o mercado, estabelecendo preços que não correspondiam aos equilíbrios que se formariam pelo seu funcionamento normal, e a manutenção dessa situação ao longo de décadas, conduziu à ruína dos centros históricos das cidades, à derrocada dos prédios antigos, ao excessivo endividamento das famílias, à dificuldade prática de uma reforma fiscal moderna do património e à total injustiça social, onde as gerações mais antigas têm casas de rendas irrisórias, enquanto os mais novos têm um ónus terrível em despesas de habitação; onde os senhorios dos prédios antigos estão descapitalizados, sem capacidade de intervirem na reabilitação dos seus prédios, enquanto os senhorios de áreas mais recentes têm rendimentos incomparavelmente superiores, com custos muito menores. Muitos dos prédios degradados nem sequer têm senhorios conhecidos. Quem consta do registo das Conservatórias já não existe e os herdeiros nunca reclamaram a herança porque provavelmente o Imposto Sucessório seria muito superior ao valor dos imóveis. A perversão do sistema é total.
Em Portugal apenas 70% dos fogos são utilizados como residência habitual. O que significa que cerca de 1,5 milhões de fogos estão vagos ou servem apenas para uso ocasional; 78% da população vive em casa própria e apenas 22% em casa arrendada; mais de meio milhão de fogos (544 mil) estão vagos, dos quais 105 mil para venda e 80 mil para arrendar (embora apenas o INE saiba onde estão estes últimos fogos); e há 29 mil famílias ou 82 mil pessoas a residir em barracas ou similares.
A situação é (e é desde há muitos anos) catastrófica. Tem que ser resolvida. Têm que se ser encontradas soluções. Para se resolver um problema é necessário fazer-se um diagnóstico muito exacto e rigoroso da situação, saber avaliar com muita clarividência os efeitos directos e colaterais das soluções possíveis e ter a coragem de resistir aos lobbies e aos interesses que obviamente se levantarão para desfigurar qualquer solução no sentido dos seus interesses.
Nada disto está a acontecer. Desde 1990 que o arrendamento é livre e a prazo (5 anos). Portanto os fogos actualmente devolutos estão em mercado livre. O primeiro estudo que o governo deveria ter feito seria o de investigar porque é que há 544 mil fogos devolutos (359 mil, se descontarmos os que alegadamente estão à espera de comprador ou arrendatário) num mercado livre. Enquanto o governo não perceber as razões porque tal acontece, não vale a pena dar o passo seguinte, pois irá certamente fazer asneira.
Eu não sei responder. Mas posso fazer conjecturas. Em primeiro lugar pergunto: todos aqueles fogos existirão realmente? Não se tratarão, em muitos casos, de construções antigas, entretanto demolidas, mas que continuam a constar nos registos matriciais? E se existirem, pergunta-se: Não estarão em tais condições de inabitabilidade que se poderão considerar em ruínas?
Em segundo lugar pergunto: que desmotivação leva um senhorio a manter devoluto um fogo habitável? Aqui a minha resposta é liminar: actualmente muitos dos novos inquilinos pagam o 1º mês e o mês de caução e ficam 2 ou 3 anos à espera que a acção de despejo e acção para execução da sentença os obriguem a sair, deixando o fogo num estado lastimável. O senhorio recebe 2 meses de renda (alguns, mais afortunados, 4 ou 5) e tem que pagar aos advogados e as obras de reabilitação do fogo quando o inquilino sair. E não se consegue ressarcir. O fiador, quando existe, é tão insolvente quanto o inquilino; no caso de arrendamento para a habitação, nenhum banco aceita prestar uma garantia. Quando o inquilino for despejado, o senhorio pensará duas vezes sobre o que irá fazer com o fogo.
Ora a resolução expedita dos contratos em caso de incumprimento por falta de pagamento não consta da presente lei. Poupa-se uma acção judicial, mas mantém-se o recurso aos tribunais e o ónus da lentidão da justiça portuguesa. Quanto ao ressarcimento dos estragos perpetrados pelo inquilino ... é melhor esquecer. Sabe-se que há um diferencial, estimado em mais de 40%, que é uma espécie de prémio de risco para o senhorio. O empolamento das rendas deve-se ao receio do senhorio face ao imprevisível comportamento do inquilino e não a outro motivo.
Relativamente aos fogos actualmente devolutos, esta lei poderá ter efeitos nos imóveis degradados, parcialmente devolutos, e parcialmente ocupados com rendas irrisórias, que o senhorio poderá agora reabilitar, aumentando as rendas dos actuais inquilinos e alugando os actualmente devolutos. Mas será que isto vai funcionar? Resposta: só muito parcialmente.
E porquê? Não é por muitos senhorios estarem descapitalizados. Os que não tiverem dinheiro, nem know-how, poderão sempre vender o imóvel a um promotor capaz de o reabilitar e fazer o negócio. Há várias razões que irão dificultar o negócio: 1) muitos dos actuais arrendatários estão nas categorias sociais ou etárias que impedem a liberalização da respectiva renda, logo não há qualquer estímulo para o senhorio reabilitar o imóvel, nem encontrará qualquer promotor interessado na sua aquisição; 2) muitos dos fogos (provavelmente a maioria) têm dimensões tão reduzidas e os imóveis, de que fazem parte, uma área de implantação no solo (área de cobertura) tão pequena, que não faz sentido reabilitá-los tal como estão. As novas gerações não conseguirão viver em fogos com áreas de 15 e 20 m2. A reabilitação desses imóveis terá que passar por uma reformulação das tipologias, com muito menos fogos. Ora isso será muito complicado para o proprietário. Há casos que só poderão ser resolvidos em termos de quarteirão, remodelando este integralmente, o que envolve vários proprietários. Que destino se vai dar aos actuais inquilinos dos fogos minúsculos? Haverá dispositivos legais para resolver esta situação?
Talvez por se ter apercebido destes efeitos colaterais, apareceu hoje nos jornais uma notícia afirmando que «o Governo admite entregar casas em bairros sociais em alternativa ao pagamento do subsídio especial de renda (SER), previsto para apoiar os agregados familiares mais desfavorecidos e que os estudos do governo indicaram ser cerca de 102 mil famílias».
A questão que coloco agora é a seguinte: pretendendo o governo dinamizar o mercado do arrendamento, vai agora o próprio Estado adquirir imóveis para os alugar com rendas sociais? Então e os tão falados 544 mil fogos devolutos? Se presentemente os senhorios não alugam 544 mil fogos, como irão alugar os 646(544+102) mil fogos entretanto devolutos? Provavelmente aquela é a única solução para essas famílias ficarem com casas reabilitadas. Mas é também a certificação que a lei não satisfaz as razões que foram invocadas como primordiais para a sua feitura.
E não venham com a estafada proposta de agravamento do IMI sobre fogos devolutos. Estudem primeiro os assuntos, analisem bem as causas das coisas, antes de dizerem os primeiros disparates que vêm à mente. Ora todos estes ziguezagues decorrem justamente do governo não ter conseguido obter um diagnóstico exacto da situação, nem se ter apercebido de todos os efeitos da lei, por desconhecimento da situação.
Continuando no campo da habitação, há varias dezenas de milhares de famílias que estão no caso da negociação livre. O governo encontrou uma solução engenhosa para desmotivar os senhorios de avançarem com uma proposta inicial extremamente elevada, através do estabelecimento de indemnizações por inexistência de acordo. Em linguagem de Bridge, diria que o governo quer impedir as aberturas de barragem. O problema é que um inquilino que habite um fogo há 20 ou 30 anos, com a casa arranjada e a vida estabelecida, não terá o mesmo sangue frio que um jogador à mesa do Bridge. Neste, o jogador, se falhar na negociação do contrato, poderá apanhar com um cabide, naquele, o inquilino poderá ter que se mudar com mobílias, roupas e dezenas de cabides. Há varias dezenas de milhares de famílias ( ... classe média) naquelas circunstâncias. Este é um assunto que se pode tornar explosivo.
Passemos agora ao arrendamento comercial. O direito à habitação é uma questão social, mas a utilização de um espaço para efeitos comerciais ou industriais é um factor de produção. Não tem nada de social. Pergunto: porque é que o governo foi muito mais cuidadoso com o comércio que com a habitação? Porquê prazos muito mais dilatados para o ajustamento das rendas no comércio?
Fala-se no comércio tradicional e nas suas dificuldades. Rio-me dessa afirmação. Uma das certezas que há em Economia é que andar subsidiar empresas anos a fio apenas serve para desperdiçar dinheiro. As empresas subsidiadas têm a vertigem do abismo: não inovam, não mudam, não saem da cepa torta. Assim sendo, o comércio dos centros históricos foi desbaratando qualidade, cristalizou, e perdeu mercado face ao comércio menos central e com maior capacidade de inovação e aos grandes espaços. A degradação da qualidade da actividade comercial nos centros históricos tem igualmente concorrido para a ruína destes e para a sua desertificação.
Portanto este extremoso cuidado governativo com o arrendamento comercial é duplamente perverso: encara-o com uma perspectiva mais social que a habitação e não percebe que subsidiar (não o Estado, mas os senhorios) empresas é contraproducente do ponto de vista económico. Agita-se o espectro do desemprego. Mas porque não intervém o Estado nos valores locativos dos espaços nos Centros Comerciais, onde há uma enorme mortalidade? Porque o emprego renova-se. As empresas menos aptas dão lugar a outras e o emprego, que desapareceu, é gerado novamente. Pois a situação será a mesma no caso do comércio tradicional.
E o mais perverso é que os comerciantes que se constituíram em lobby para obterem situações mais vantajosas na nova lei, são os mesmos sobre os quais há o consenso generalizado de que fogem aos impostos. Os comerciantes são notoriamente insolventes: rendas, IRC, IVA, etc..
Por outro lado não concordo que os contratos celebrados a termo certo a partir de 1990 caiam sob a alçada da nova lei e que na data da sua renovação os senhorios os possam denunciar, com pré-aviso de 3 anos. Na lei actual o valor inicial do arrendamento é livre, mas pode escolher-se entre um prazo de 5 anos, no fim do qual pode haver denúncia do contrato, (com pré-aviso), ou ilimitado (termo certo renovável). Ora um comerciante cria um negócio, fideliza uma clientela, e, dependendo do tipo de negócio, não quer correr o risco de ser obrigado a abandonar o local ao fim de 3 ou 5 anos. Para obviar esse risco, ele pode ter feito um contrato em que aceitou pagar uma renda superior em troca do prazo ser ilimitado. Se o fez ... Todavia concordo que, numa lei do arrendamento, prazos ilimitados sejam obviamente inaceitáveis, porque ninguém domina o futuro. Assim sendo, aqueles contratos deveriam ter um tratamento próprio, embora não descaracterizando o princípio da lei.
Portanto temos uma lei que era absolutamente necessária, mas que incide sobre situações muito complexas, que se foram complicando cada vez mais por décadas de imobilismo, e cuja solução não é fácil. Julgo que o que escrevi mostra como a falta de rigor, no diagnóstico exacto da situação e na avaliação de todos os efeitos, está a criar uma lei ineficiente, que não resolve muitos problemas, nomeadamente aqueles que se propõe resolver. Julgo que o que escrevi mostra como uma lei ineficiente tem dificuldade em resistir aos ataques dos interesses instalados que acabam por a tornar não só mais ineficiente, como injusta, porque desigual.
E não é a primeira vez que digo exactamente o mesmo sobre esta matéria. Quem vai mudando, parágrafo aqui, linha acolá, é o governo. Eu apenas observo a realidade, mas o governo está há mais de dois anos a estudar esta matéria, sabe-se lá com quantos assessores, institutos, Direcções-Gerais, técnicos qualificados, etc., etc..
Publicado por Joana às novembro 17, 2004 11:43 PM
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Comentários
Há aqui qualquer coisa que não bate certo: é a segunda vez em três dias em que estamos 100 por cento de acordo!
Ainda por cima você também joga bridge...
# : - ))
Publicado por: (M)arca Amarela às novembro 18, 2004 12:22 AM
Por metade de um prédio de seis andares, incluindo a cave e uma loja de rés-do-chão, conheço um «ilustre autóctone» que recebe uma renda comercial correspondente ao dobro, de metade de um só andar de renda actualizada. E uma Companhia de Aviação, não é própriamente o «comércio tradicional» ...
Publicado por: asdrubal às novembro 18, 2004 12:34 AM
Odeio ler escritos destes. Depois de os ler fico com a sensação que a nossa classe politica é completamente incompetente. O que a Joana escreve parece simples e evidente. O assunto está mesmo muito bem equacionado.
Mas eu leio as declarações do governo e da oposição e não há qualquer rigor.
É triste.
Publicado por: Cerejo às novembro 18, 2004 10:53 AM
(M)arca Amarela em novembro 18, 2004 12:22 AM
Permita-me ser eu a achar estranho.
Em primeiro lugar sou favorável à liberalização do mercado de arrendamento (embora pense que o Estado deve intervir no apoio às rendas das classes mais desfavorecidas e na construção de habitações sociais)... uma neoliberal, portanto. Mas não a que o regime de transição para os contratos anteriores a 1990 seja feito desta forma inábil, que não resolve os problemas que deveria resolver e pode provocar um terramoto social ... e político. Porque em Portugal a opinião pública só funciona quando é atingida pela lei. Até lá pensa que tudo se há-de arranjar ou que aquilo é só para os outros.
Em segundo lugar, você a jogar Bridge? Um jogo elitista??
Eu jogo mal, porque tenho pouca prática. Quem joga bem é o meu pai. Fui parceira dele diversas vezes (para desespero dele), porque era a única da família que sabia jogar. Depois de abandonar o lar paterno, só joguei meia dúzia de vezes. Ajeito-me bem com as vozes, mas no cartear sou um desastre. Demoro demasiado tempo a pensar que carta hei-de jogar, erro sistematicamente na avaliação da distribuição dos naipes entre W e E, etc.. Mas faço um morto (ou dummy) excelente!
Publicado por: Joana às novembro 18, 2004 01:11 PM
Excelente e rigoroso.
Publicado por: Rui Sá às novembro 18, 2004 02:28 PM
Cerejo em novembro 18, 2004 10:53 AM:
Na verdade a leitura desta posta é deprimente. Mesmo quando os governantes têm ideias acertadas, não sabem como as aplicar.
Publicado por: Jarod às novembro 18, 2004 03:16 PM
O nível do debate político não permite saber se o governo tem o conhecimento mínimo da situação para aplicar a nova lei. Como diz a Joana, esse conhecimento é fundamental.
Mas mesmo que tenha esse conhecimento, não é certo que aja em conformidade, não se vão as "virgens" ofender.
Publicado por: Mário às novembro 18, 2004 04:21 PM
Mário, talvez tenha razão. O governo sabe, mas tem medo de agir. É assim?
Publicado por: J Correia às novembro 18, 2004 04:33 PM
Durante um tempo - e não sei se é ainda possível obter o texto em arquivo - o «Jornal de Negócios», na sua versão on-line, teve disponíveis para consulta os documentos desta reforma. Li-os "em oblíqua" e muito apressadamente. Mas a impressão genérica que me ficou, é que o estudo era exaustivo e bem fundamentado. Naturalmente, tenho as minhas limitações, e a linguagem era, frequentemente, demasiado técnica para eu lá chegar...
Publicado por: asdrubal às novembro 18, 2004 04:49 PM
Está aqui :
.
http://www.negocios.pt/default.asp?SqlPage=folder&CpFolderId=38&CpContentId=248817
Publicado por: asdrubal às novembro 18, 2004 04:55 PM
J Correia em novembro 18, 2004 04:33 PM
Não sei se o governo sabe, mas quase aposto que tem medo de agir, seja lá em que domínio for.
Mas também é preciso saber o que quer dizer "o governo sabe". A informação até pode existir algures, mas se não chegar aos níveis superiores, pelo menos de secretário de estado, de nada serve.
Por vezes as falhas mais graves advém dos "responsáveis" acharem que já sabem qual é a solução perfeita para os problemas e dispensarem informações "supérfluas".
Publicado por: Mário às novembro 18, 2004 05:09 PM
Acho que no estado em que se estava, era difícil fazer melhor. Porém os pontos assinalados pela Joana têm fundamento. Não sei é como se poderá reolver a situação.
Publicado por: AJ Nunes às novembro 18, 2004 05:41 PM
Penso que já não há Imposto Sucessório ou estou enganado?
Publicado por: lucklucky às novembro 19, 2004 05:40 PM
lucklucky:
Acabou no princípio deste ano e foi substituído por uma espécie de imposto de selo
Publicado por: c seixas às novembro 19, 2004 06:13 PM
E lá foi aprovada. Quero ver que terramoto isto irá provocar
Publicado por: arceu às novembro 19, 2004 10:06 PM
Óptimo
Publicado por: Azai às fevereiro 20, 2005 03:20 AM
É triste mas é verdade, o governo vai alterando a lei mas esta não é exactamente para cumprir. A tal história dos inquilinos pagarem a renda do primeiro mês e pouco mais, abandonando o imóvel em péssimas condições, vai fazendo com que as rendas sejam exorbitantes!
O que ninguém se lembra é que a vida económica do país vai sendo afectada!Toda a gente compra casa, fazendo com que mudar de emprego e conseguir casa deixa de ser opção quando mudar de cidade entra na equação....
Publicado por: sofia às fevereiro 24, 2005 01:39 PM
Pois ...
Publicado por: raios às fevereiro 25, 2005 02:49 PM
AUTHOR: casino
EMAIL: 2214@mail.com
IP: 213.56.68.29
URL:
DATE: 02/25/2005 02:50:28 PM
Publicado por: casino às fevereiro 25, 2005 02:50 PM