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julho 25, 2004

A Importância da Igreja na Formação da Europa

Tem-se discutido, a propósito da Constituição Europeia, se se deve incluir ou não o papel do cristianismo na formação europeia. Esta discussão foi colocada, quer por ignorância, quer sobretudo por proselitismo, pró e contra, num contexto absolutamente errado.

O Direito e Jurisprudência romanas foram elementos fulcrais para a fundamentação do Estado de Direito e do governo limitado nos seus poderes. Todavia, se não fosse a existência da Igreja Romana todos esses conceitos seriam hoje apenas história e a Europa, politicamente, não se diferenciaria significativamente do mundo islâmico mais atrasado. Vejamos porquê:

No mundo romano da época da decadência, os conceitos relativos ao Estado de Direito e ao governo limitado tinham esvaziado a sua substância com a queda da república, transformando-se, pouco a pouco, em meros procedimentos ritualizados e acabaram desaparecendo face à “orientalização” do absolutismo monárquico.

Constantino, o primeiro Imperador cristão, mudou a capital de Roma para a vilória de Bizâncio, que ele engrandeceu e transformou na nova capital da România. Pretendeu criar uma capital sem os “vícios republicanos” e sem uma história plena de referências ao Estado de Direito. Levou para lá a sua corte e os dignitários mais relevantes. Uma personalidade não o acompanhou: o Bispo de Roma.

Ora esta decisão teve enorme importância histórica. No oriente, os patriarcas de Constantinopla, Antioquia, Alexandria, etc., tornaram-se reféns do poder do Estado. A Igreja Oriental ficou sob o controlo do Estado e deixou de ter papel dinâmico no processo social, tornou-se uma mera correia de transmissão do poder.

No ocidente, uma Igreja independente do Estado (ou dos Estados que se desenvolveram no ocidente), durante muitos séculos em permanente disputa com esses Estados, nomeadamente com o Sacro Império, permitiu que à sombra dessas disputas florescessem as repúblicas italianas, com burguesias locais poderosas e prósperas, movimento que se expandiu à Flandres, Alemanha e resto da Europa. Desde o Imperador romano Teodósio até à derrota definitiva dos imperadores germânicos pela posse da Itália, vários foram os monarcas que passaram pelas Forcas Caudinas do poder papal e lhe prometeram submissão absoluta.

Não quero com isto dizer que tal correspondesse a um intuito deliberado do Papa e da Cúria romana que assim pretendessem a liberdade das cidades italianas, o desenvolvimento das liberdades públicas e do capitalismo. O Papa e a Cúria romana apenas pretendiam aliados na sua luta contra o Sacro Império e os soberanos de que suspeitassem veleidades de extensão excessiva do poder temporal. O Papa e a Cúria romana ao pretenderem aliados para se afirmarem contra o excesso de poder temporal dos Estados cristãos serviram-se igualmente das nobrezas, apoiando as suas pretensões nas lutas contra os absolutismos reais.

A liberdade nasceu na Europa ocidental nesta luta pelo poder, nesta dialéctica de contrários, onde a Igreja foi um dos motores decisivos. A Magna Carta não passou, no início, de um documento que regulava e limitava os poderes do rei face aos seus vassalos directos: a nobreza. A Magna Carta, e outros protocolos celebrados na Idade Média, estabeleciam corpos representativos para dar expressão orgânica às exigências da nobreza - Parlamentos, Cortes, Estados Gerais, Dietas – que o próprio rei não podia violar. O tempo, e a continuação do avanço da liberdade, encarregou-se de dar à Magna Carta uma interpretação cada vez mais vasta e abrangente tornando-a no embrião das constituições modernas.

Por sua vez, as lutas entre os reis e os seus vassalos directos facilitaram o florescimento das cidades e a obtenção por estas de cartas de alforria. Os reis ou a grande nobreza precisavam de as ter como aliados nas suas guerras contra os seus vassalos, quer o auxílio militar das respectivas milícias, quer o precioso auxílio financeiro. O papel do Papado, e da Igreja romana em geral, em manter o equilíbrio de poderes e um certo ascendente temporal sobre as casas reinantes, foi portanto um dos principais motores do desenvolvimento europeu

O zénite deste processo foi o aparecimento da Reforma e a luta entre as Igrejas reformadas e o Papado. Na sua formulação inicial, as Igrejas reformadas, Luteranismo e Calvinismo, eram de um enorme ascetismo e intolerância, porventura mais que os aspectos mais negros da Inquisição de então. Todavia estavam ao serviço, ou serviram de bandeira, à formação de Estados governados por uma classe mercantil e industrial que foram a alavanca do capitalismo moderno, enquanto a inquisição espanhola (e a portuguesa, embora a expressão desta fosse muito diminuta face à sua vizinha) descambou para a perseguição aos elementos mais dinâmicos da sociedade cristalizando-a em formas de existência retrógradas.

Nada deste processo ocorreu no Islão nem nos países sujeitos à Igreja Ortodoxa. Foi por isso que o feudalismo da Europa ocidental foi um processo dinâmico apesar de ter então centros urbanos de muito menor dimensão que no Islão e Bizâncio: Constantinopla, Bagdad, Córdova (na época dos Omíadas) eram incomparavelmente maiores (dezenas de vezes) que os mais importantes centros urbanos europeus da época. Simplesmente estes eram livres, governavam-se a si próprios e tinham um enorme dinamismo económico e social, enquanto Constantinopla, Bagdad, Córdova viviam do clientelismo da corte, de um clero remunerado pelas rendas de feudos distantes e de uma nobreza de funcionários que subsistia de rendas feudais inerentes às próprias funções na corte. Haver uma Igreja livre e independente dos Estados, capaz de se impor foi essencial para alavancar esse dinamismo económico e social das pequenas, mas prósperas, cidades da Europa ocidental. Ao despotismo centralizado do oriente, a Europa ocidental contrapôs a liberdade descentralizada em numerosas ilhotas, aparentemente pequenas, mas que progrediam mercê da “partilha instável” de um poder em permanente disputa entre Igreja, monarcas e nobrezas

Por isso, na Europa Oriental aconteceu a estagnação e o desenvolvimento é recente e correspondeu ao esforço de alguns monarcas (Pedro o Grande e Catarina II, na Rússia, por exemplo) no sentido de acertar o passo pelo Europa ocidental. A Turquia, o estado islâmico de longe mais avançado em termos de direitos, liberdades e garantias, deveu essa aproximação à Europa à ditadura férrea de Ataturk. Sem as instituições cristãs medievais da Europa ocidental, esses países, e os países do ocidente europeu, não teriam regimes sociais, políticos e económicos muito diferentes dos países islâmicos mais retrógrados, ou os menos ocidentalizados.

Não seria porventura essa a intenção do Papado e da Cúria romana, mas a transmissão da herança romana do Estado de Direito e do governo limitado nos seus poderes, que é a base da nossa liberdade e democracia, para além do direito relativo aos contratos, propriedade, transacções, sucessões, património, etc., que constitui a base do nosso desenvolvimento económico e social, só foi possível pela forma como o cristianismo se institucionalizou no ocidente a partir do fim do mundo antigo e até à idade moderna.

As instituições cristãs do ocidente medieval foram imprescindíveis nesse desiderato. A elas devemos a transmissão de todos aqueles legados e o desenvolvimento da liberdade e da democracia. E, indirectamente, também lhe são devedores os países da religião cristã ortodoxa e islâmicos, como a Turquia.

Neste entendimento não percebo como se pode falar de herança grega e romana e esquecer a cristã. Aliás, percebo ... não se quer ferir algumas susceptibilidades. Todavia, não me parece imprescindível, numa constituição, falar de heranças culturais. Aliás, uma constituição deve ser simples e não deve conter elementos ideológicos. Os elementos ideológicos, mesmo que se julgue que não passem de meras referências teóricas sem efeitos práticos, acabam frequentemente por ganhar autonomia própria e servirem de travão ao progresso, complicando o que poderia ser simples e linear. Basta ver a Constituição portuguesa. Seria então preferível, se não se quer ferir susceptibilidades, omitir referências a “heranças”.

Publicado por Joana às julho 25, 2004 08:55 PM

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Comentários

Como estou fora e longe ... longe do país, não vou responder hoje a comentários ... dificuldades de comunicação.
Amanhã ou depois

Publicado por: Joana às julho 25, 2004 08:59 PM

Embora concorde com a ideia geral do texto (a herança cristã deve fazer parte da Cosntituição Europeia), acho que o texto nas partes onde existem referências aos estados islâmicos acaba por ser demasiado etnocêntrico.

De acordo com os nossos conceitos eles são de facto retrógados, mas não nos podemos esquecer que nesses países o que tem de predominar é a ideologia desse povo e não a ocidental.

Publicado por: Bruno Ribeiro às julho 25, 2004 11:37 PM

A importância é ter mais meninos puros para serem abençoados por um falo divinal. ui ca bom... O Padre Frederico é um referência.

Publicado por: Papista às julho 26, 2004 11:52 AM

Há de facto muita ignorância à volta desta questão, resultado, antes do mais, da confusão reinante acerca do verdadeiro significado de IGREJA.
Quem sabe, hoje, o que é IGREJA? Um edifício? Uma associação? Uma seita? Um bando?
Eu penso que a IGREJA não necessita que, no peâmbulo da constituição europeia, seja feita qualquer referência ao contributo que prestou na constituição da europa. Tenho é serias dúvidas se a europa pode prescindir definitivamente da IGREJA.

Publicado por: Luis Filipe às julho 26, 2004 12:35 PM

É enternecedor o fervor católico de Joana.
O que não entendo é que alguém que puxa constantemente dos galões da economia omita passos essenciais da história económica da Europa que explicam o desenvolvimento do continente, muito mais do que os episódios citados da história religiosa.
O tema não me atrai por aí além. Mas parece-me que a vertente económica das cruzadas e as práticas temporais das ordens religiosas contribuiram mais para o desenvolvimento da Europa medieval que todos os bispos de Roma juntos.
A título de exemplo (um dos muitos que podem ser apontados), lembro apenas a cumplicidade do papado no desmantelamento da Ordem dos Templários. Uma das principais consequências foi a destruição da principal rede bancária e comercial da Europa de então, o que está longe de se poder considerar um contributo para o desenvolvimento.
Espero que Joana não ponha a cabeça de fora durante esta vaga de calor. Sabe-se lá o que uma insolação poderia fazer a este blog...
# : - ))

Publicado por: (M)arca Amarela às julho 26, 2004 08:20 PM

(M)arca Amarela em julho 26, 2004 08:20 PM:
1 - Você não percebeu a minha tese: O Papado, pelas relações de poder que se construiram na Europa Ocidental, tornou o feudalismo ocidental dinâmico, face aos restantes.
2 - Não percebo aonde você quer chegar com os templários. O Papa foi "obrigado" a aceitar as exigências do Rei de França, no processo dos Templários. Todavia em Portugal, por exemplo, o Rei D. Diniz limitou-se a mudar o nome da ordem (Ordem de Cristo) e a transferir os bens de uma para a outra.
Não me alongo mais pois estou nos estrangeiro e o meu tempo de "satélite" é escasso.

Publicado por: Joana às julho 26, 2004 09:41 PM

Está bem visto, Joana. Concordo

Publicado por: Irineu às agosto 1, 2004 01:36 AM

A Igreja tem a ronha de milénios de actuação. Vai ultrapassar este pequeno acidente de percurso

Publicado por: Coruja às agosto 3, 2004 11:58 AM

Coruja: você acertou no alvo!

Publicado por: riuse às agosto 3, 2004 02:50 PM

Também acho que a Igreja se vai rir disto. Afinal de contas todos acabam por ir ao beija-mão ao Vaticano.

Publicado por: Sa Chico às agosto 13, 2004 02:48 PM

Talvez se fique a rir ou talvez não. Vai é manobrar na sombra

Publicado por: Gros às agosto 14, 2004 08:50 PM

AUTHOR: Party
EMAIL: huy@mail.nu
IP: 64.136.164.50
URL:
DATE: 03/02/2005 09:03:36 AM

Publicado por: Party às março 2, 2005 09:03 AM

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