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março 07, 2004

A Ocupação Militar da Renânia

Em 7 de Março de 1936, um sábado, as tropas alemãs penetraram na Renânia e procederam à sua ocupação militar. A Alemanha violava os Tratados de Versalhes (Artigos 42, 43 e 44) e de Locarno que interditavam a militarização da Renânia pela Alemanha (a margem esquerda do Reno e uma faixa de 50 km na margem direita). Foi considerada a primeira «agressão» de Hitler e o primeiro passo para a guerra de 1939-45. Enquanto Hitler anunciava no Reichstag, ao meio dia, a sua intenção da reocupação militar da Renânia, as colunas militares alemãs atravessavam a linha divisória e ocupavam as principais cidades alemãs.

As potências ocidentais não reagiram. A França estava em plena campanha eleitoral (eleições onde acabou por triunfar o Front Populaire) e o governo inglês era de opinião que não havia nada a fazer contra a decisão alemã e exprimiu essa posição ao governo francês durante os contactos telefónicos no domingo, exortando-o a contemporizar. O governo francês, depois de umas declarações contundentes do Presidente do Conselho, acabou por se ficar por um protesto diplomático.

E todavia o exército alemão estava na época ainda mal equipado, com poucos meios mecânicos e, segundo depoimentos de responsáveis militares alemães no julgamento de Nuremberga, como Jodl, os 3 batalhões alemães que haviam atravessado o Reno e as restantes forças que haviam ocupado a margem direita não estavam em condições de resistir ao exército francês. Se houvesse intervenção francesa a Reichswehr tinha ordem de recuar.

Foi o primeiro passo no mito da infalibilidade do Führer. Hitler havia prognosticado que as potências ocidentais não reagiriam, contrariamente à opinião das chefias militares, que temiam essa reacção. Hitler teve razão, como iria ter no Anschluss, nos Sudetas e na anexação da Boémia e Morávia.

A nossa leitura, depois da guerra de 1939-45, é muito influenciada pelos acontecimentos posteriores. Mas em 1936, quer na Alemanha, quer no resto do mundo, com excepção talvez da França e da Bélgica, poderia supor-se justa a reivindicação de soberania militar sobre uma parcela do seu território. E na Renânia as tropas alemãs foram recebidas com grande entusiasmo e o povo alemão apoiou maciçamente essa acção de Hitler.

E o mesmo se poderia dizer na questão dos Sudetas. Afinal a população alemã dos Sudetas apenas queria para si a mesma autodeterminação que os Tratados assinados no fim da guerra de 1914/18 haviam concedido a checos e eslovacos em face do extinto Império Austro-húngaro. Apenas no domínio das hipóteses se poderia admitir então que Hitler iria atravessar o Rubicão, e fê-lo com a anexação da Boémia e Morávia. Só a partir de então se tornou evidente algo que apenas alguns pressentiam como inexorável – Hitler haveria de levar as suas pretensões até que alguém lhe barrasse o caminho pela força.

Assim como a nossa leitura daqueles acontecimentos reflecte a influência do que ocorreu posteriormente, a leitura em 1936 estava circunscrita aos acontecimentos precedentes, em que avultava o Tratado de Versalhes e a humilhação que representara para a Alemanha as respectivas cláusulas.

Quando a Alemanha capitulou, o exército alemão ainda ocupava a Leste um território maior que a própria Alemanha e a Oeste ainda se mantinha na Bélgica e em França. Todavia as tentativas de perfuração das linhas aliadas tinham levado o exército alemão ao esgotamento e a contra-ofensiva aliada, apoiada pelos tanks, não parecia capaz de ser parada. Por sua vez a Austria-Hungria entrara em colapso. Mas não era apenas o exército alemão que estava esgotado, a situação alimentar e dos reabastecimentos na Alemanha era caótica e deplorável. Enquanto o governo imperial estava a tentar negociar um armistício deu-se a sublevação da frota, a recusa do exército em jugular a sublevação e o alastramento da insurreição à população civil. É proclamada a república e o Imperador abdica a 9 de Novembro.

O Tratado de Versalhes foi considerado pelos alemães um Diktat. Na verdade eles não tinham alternativa à sua aceitação, dado o seu colapso político e militar. A Alemanha perdia importantes territórios na Europa, mas com fundamentos razoáveis do ponto de vista demográfico – a Alsácia-Lorena havia sido conquistada à França cerca de 50 anos antes e os restantes territórios eram habitados maioritariamente por não alemães – e entregava aos aliados todas as suas colónias. Todavia o pior, o que constituiu a maior humilhação para a Alemanha foi a questão das reparações: Le boche payera tout, era a tese de Clemenceau. Foi-lhe imposta uma contribuição de guerra pesadíssima e a Renânia seria ocupada como caução. O Sarre ficaria provisoriamente sob controlo da Sociedade das Nações, mas de facto sob ocupação francesa. Este tratado teve todos os contornos de um acordo de malfeitores que distribuem entre si os despojos da vítima. Todas as forças políticas alemãs se pronunciaram contra ele. Entre os aliados, ingleses e americanos acederam a contragosto.

Quando Napoleão foi derrotado, o governo inglês opusera-se a que a França fosse retalhada, como queriam a Prússia e a Austria. Na opinião do gabinete britânico, uma humilhação pesada da França poderia conduzir posteriormente à revanche. Esta tese venceu então, mas em 1919 os anglo-americanos não foram capazes de se oporem totalmente às pretensões da França relativamente à Alemanha.

Keynes havia previsto que as consequências económicas decorrentes do tratado seriam muito negativas Todavia, as consequências políticas foram muito piores e as consequências económicas, paradoxalmente, traduziram-se numa modernização e expansão da indústria pesada alemã. Como se produziu esse fenómeno?

A instabilidade provocada pela derrota militar, revolução spartakista, putchs de direita e deterioração da situação social levou a uma terrível crise económica na Alemanha. Durante 1923, mas com incidência especial entre Setembro e Novembro, houve uma inflação galopante e a queda do marco face ao dólar, em mais de um para mil. Os salários reais caíram imenso, para 40% a 25% do seu valor anterior. Em contrapartida houve um alongamento da jornada de trabalho. Portanto, todas as «conquistas revolucionárias» feitas durante o período 1918/19 foram liquidadas durante esse ano fatídico. As empresas aproveitaram para saldar as suas dívidas, contraídas em moeda forte e pagas em moeda desvalorizada. A crise de 1923 «limpou» a indústria alemã de alguns ónus e permitiu-lhe uma enorme modernização.

As consequências políticas foram piores. Em face do pedido de moratória de 5 anos no pagamento das prestações relativas às reparações, feito em Dezembro de 1922, pelo governo alemão, o exército francês ocupou, em Janeiro de 1923, a Renânia. Os franceses esperavam apropriar-se do carvão e de outros produtos do Ruhr. A resistência passiva dos alemães frustou-lhes os planos. E simultaneamente ajudaram ao aparecimento e desenvolvimento do partido nazi. Portanto, as circunstâncias em que a Alemanha capitulou e o Diktat de Versalhes criaram «a lenda da punhalada pelas costas» (die Dochstosslegende) que a direita e principalmente os nazis usariam com enormes dividendos políticos. Hitler foi o produto dos erros políticos cometidos pelos aliados, especialmente a França, na gestão da vitória militar sobre a Alemanha.

Portanto, os franceses ficaram com as custas políticas da crise de 1923 e o patronato alemão obteve grandes vantagens em termos de diminuição de custos salariais, aumento da jornada de trabalho e liquidação das dívidas. A estabilização económica da Alemanha a partir do início de 1924, e as condições favoráveis da indústria incentivam um importante afluxo de capitais estrangeiros que permite uma grande expansão no período 1924-29. Em termos reais o PIB alemão subiu 67% entre 1913 e 1929. A Alemanha prosperava, enquanto a França, tornada um país de rentiers, a viverem das contribuições de guerra, estagnava.

A crise de 1929-33 teve o impacte mais devastador nas economias mais desenvolvidas (EUA e Alemanha), mas quem ganhou politicamente com o aumento do desemprego foram os nazis que passaram de 2,6% (em 1928) para 18,3% (em 1930) e 37,3% (em Julho de 1932), havendo um pequeno recuo eleitoral em Novembro de 1932 (33,1%), mas que não favoreceu a esquerda, visto se ter dirigido para a direita clássica. Nos Estados Unidos os eleitores orientaram-se por critérios económicos e escolheram Roosevelt e o New Deal, apostando numa solução mais à esquerda. O que prevaleceu na Alemanha, perante a crise económica e o desemprego, foi o ressentimento face às potências vencedoras, especialmente a França, e um nacionalismo muito vivo que foi explorado pelos nazis que se propunham libertar a Alemanha da escravidão imposta pelo Diktat de Versalhes.

As eleições no Lippe, em Janeiro de 1933, mostraram uma nova subida importante dos nazis e serviram de argumento para a indigitação de Hitler, em 30 de Janeiro, como Chanceler (afinal ele era o chefe do maior partido do Reichstag) à frente de um governo onde os nazis ainda eram muito minoritários (para além de Hitler, Frick no Interior e Goering na Aeronáutica). Sabe-se da forma simultaneamente manhosa e brutal como os nazis liquidaram a democracia e se apropriaram do poder (die Machterschleichung) – o incêndio do Reichstag (27-2-1933), as eleições de 5 de Março (43,8%), a dissolução do Partido Comunista (KPD), dias depois, o que permitiu maioria absoluta no Reichstag. Com essa maioria absoluta o Partido Nazi tornou-se rapidamente o partido único – o SPD foi dissolvido em 22 de Junho, o Zentrum em 4 de Julho e os diversos pequenos partidos de direita, cujos líderes partilhavam o governo com o NSDAP, acordaram em que «o sistema de partidos era obsoleto» e desapareceram como partidos.

Publicado por Joana às março 7, 2004 10:51 PM

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Comentários

semiramis = cassandra ?

Publicado por: distraído às março 8, 2004 11:37 AM

Hitler estava entre os radicais (Goebbels, Himler, Heydrich e outros) e os mais moderados (Goering, Hesse, von Schirach etc.).
Os êxitos demasiado rápidos deram mais força aos radicais e levaram Hitler longe demais.
Ele próprio também foi vítima da sua megalomania, criada pelas suas vitórias.

Publicado por: Mocho às março 8, 2004 09:30 PM

Esta sua resenha histórica é não só interessante, como pôe as questões de uma forma diferente da que se está habituado. Já nas outras vezes você fez as coisas desse jeito equilibrado e distanciado

Publicado por: Daniel às março 8, 2004 11:55 PM


Sem dúvida, deveras interesssante mais esta efeméride (e a respectiva "mise en scène") que a Joana nos traz para a tentativa de compreensão de um fenómeno minoritário que acabou por amarrar a Europa ao que hoje é.

Sinceramente, fiz figas para que a Joana não evocasse o 5 de Março da morte de Stalin como uma "libertação". Ainda bem que o não fez e que preferiu guardar-se para este 7 de Março.

Ficou-me a faltar, como "antepasto", o 29/30 de Junho de 34 (a célebre "noite das facas longas", demasiadamente romanceada mas que se serve imediatamente antes dos acontecimentos a que a Joana faz alusão).

"Servir" à mesa o 7 de Março de 36 sem o "antepasto" do 29/30 de Junho de 34 torna-se indigesto : deixa-se de compreender quando Hitler passou da demagogia aparentemente inócua das gritarias populistas contra o Tratado de Versailles de 1919 para o "nihil obstat" por parte das forças militares alemãs (e, até, para o "nihil obstat" da Trilateral - coisa que eu gostaria de ver realmente escalpelizada pelos historiadores - que o via como um bom cliente do que teriam para vender).

"Servir" a História assim, "cozinhando de ouvido", também costuma acabar noutros horizontes: limitar as situações a elas mesmas e acabar por não as compreender.

A ocupação da Renânia não é um começo de algo mas, sim, uma consequência lógica da opção prática e inevitável que Hitler tomou em 29 de Junho de 34.

Tal como a descolonização portuguesa não será uma consequência lógica do 25 de Abril de 74, mas, sim, uma consequência inevitável do atraso de quase 40 anos de isolamento português das "coisas do mundo".

Nada disto, porém, osbta a que continuemos a achar maravilhoso o nascer diário de demagogos como se o passado não tivesse existido.

No que respeita à teimosia da França em relação às exigências do Tratado de Versailles, já estou como o outro : Ad mala facta malus socius socium trahit

Publicado por: re-tombola às março 9, 2004 01:52 AM

re-tombola: a Noite das Facas Longas foi uma necessidade interna (dentro do NSDAP)de liquidar os elementos mais radicais (no sentido anti-capitalista). Hitler estava numa situação difícil, tinha que aquietar a Reichswehr que odiava as SA e precisava do apoio do exército naquela fase de transição em que o seu poder efectivo ainda não estava seguro, nomeadamente quanto ao perigo de um pronunciamento militar.
Mostra a forma brutal como Hitler "resolvia" os seus problemas, mas não me parece que tenha um significado idêntico ao das suas acções a nível de política externa.

Publicado por: Joana às março 9, 2004 08:07 AM

A Joana conhece bem a historia da Alemanha, nao apenas os factos, como o sentir dos alemaes que levou a tantos horrores contrarios ah indole do proprio povo

Publicado por: Filipa Zeitzler às março 11, 2004 09:41 PM

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