« Uma Homenagem | Entrada | John Milton »
dezembro 09, 2003
Claro que não está certo abusar da ingenuidade da juventude
O “Blogo existo” elogia a “invulgar seriedade” com que Semiramis “se debruça sobre os temas que aborda” e acrescenta amavelmente que, “O cuidado que põe na argumentação não pode deixar de seduzir um racionalista em part-time como eu”.
Escreve seguidamente que fica todavia surpreendido pela “credulidade da autora em relação à ciência que abraçou”, e refere em abono dessa alegação diversos autores e manuais de macro e microeconomia.
Sem pôr de parte que possa existir da minha parte credulidade, reparo que você vê, ou pelo menos cita, a ciência económica baseado na elegância matemática, mas estilizada, dos modelos macro e microeconómicos. Isso, deixe-me dizer-lhe, é redutor.
Tem razão num ponto. Frequentemente os professores dessas matérias esquecem-se de esclarecer os alunos que são modelos que se destinam a dar uma ideia do comportamento dos agentes económicos e que as relações analíticas exactas desenvolvidas matematicamente (ou geometricamente, como diz) não devem ser interpretados quantitativamente (excepto nos testes, para se avaliar se os alunos os perceberam) mas apenas qualitativamente.
Pior, frequentemente são modelos com domínios de validade, mesmo apenas no que respeita à descrição do comportamento dos agentes económicos, claramente insuficientes. Mas isso é sabido, faz parte da Teoria Económica e só por descuido dos professores e/ou distracção dos alunos, estes não reparam nisso.
A escola clássica inglesa, que procurou desde o início estabelecer relações lógicas entre padrões de comportamento e escassez de recursos, envolvendo um alto grau de abstracção e o recurso a ferramentas matemáticas, foi extraordinariamente enriquecida com as discussões teóricas e práticas emergentes da “Sherman Act” (1890), quando economistas (e os tribunais) se envolveram em disputas acérrimas sobre a forma como as estruturas de mercado influenciavam os comportamentos das firmas e em que medida determinadas situações de oligopólio (ou monopólio) violavam a concorrência. As investigações e os debates em tribunais forneceram aos economistas um grande acervo de informações sobre os comportamentos dos agentes económicos e as estruturas de mercado. Muito da teoria económica se tem desenvolvido a partir dessas disputas legais, que continuam a ocorrer, como foi o caso recente da Microsoft. A teoria dos Mercados Contestáveis nasceu, na década de 80, da controvérsia legal acerca de uma alegada situação de monopólio.
Quando digo enriquecida, refiro-me aos diversos modelos que foram sendo propostos para descrever esses comportamentos. Mas refiro-me igualmente ao aparecimento da “Industrial Organization” que parte do paradigma Estruturas-Comportamento-Resultados, que resumidamente refere que os resultados de uma dada indústria ou mercado dependem do comportamento dos agentes económicos (compradores e vendedores) que se confrontam nesse mercado em áreas como políticas de preços, práticas comerciais, investigação e desenvolvimento, investimento em instalações produtivas, etc.. Os comportamentos dependem, por sua vez da estrutura de um dado mercado, abarcando parâmetros tais como número e distribuição dimensional dos vendedores e compradores, grau da diferenciação (física ou subjectiva) do produto, presença ou ausência de barreiras à entrada de novos produtores, estrutura de custos, grau de integração vertical, etc..
Por sua vez, a estrutura de mercado e os comportamentos interagem com as condições de base. Por exemplo, do lado da oferta, a localização da matéria prima, a tecnologia disponível, durabilidade (ou perecibilidade) do produto, rácio valor/peso, condicionantes ambientais, regulamentos estatais e enquadramento legal, padrões produtivos (por exemplo, produzir por encomenda, ou produzir para armazém – no caso em apreço, para depósito), etc.. Do lado da procura, a elasticidade preço-procura, produtos substitutos (elasticidades cruzadas da procura), taxa de crescimento e flutuações da procura, procura sazonal ou cíclica, padrões de aquisição (por exemplo, transacções através de listas de preços ou por concursos com propostas lacradas).
Ora os modelos iniciais baseavam-se nos “7 axiomas” da concorrência:
Atomicidade do mercado (grande número de concorrentes)
Homegeneidade do produto – não havia diferenciação dentro do mesmo produto (ausência de marcas, modelos, etc.)
Ausência de barreiras à entrada - inteira liberdade (legal e económica) de entrar e sair.
Transparência do mercado (todos conhecem exactamente as qualidades e preço do produto)
Mobilidade perfeita dos factores de produção (capital e trabalho)
Independência dos agentes económicos (não há conluios)
Racionalidade económica absoluta (minimizar para cada produto o consumo dos factores e para cada combinação de factores escolher a técnica que maximiza a produção)
A empresa microeconómica pressupõe um único decisor e um único objectivo (em geral a maximização do lucro). A sua metodologia é simples e linear: dispondo de um informação exacta sobre os seus custos (a sua função de custo) e sabendo interpretar rigorosamente os sinais do mercado (a procura e oferta das restantes firmas), ela é conduzida à solução óptima produzindo uma quantidade tal que, relativamente à última unidade produzida, o seu custo iguale a sua receita (Cmg=Rmg).
Por sua vez o mercado onde aquela empresa está inserida é perfeitamente transparente e o seu funcionamento não oferece a mínima incerteza, dado que é possível serem estabelecidas relações analíticas rigorosas que ligam funcionalmente padrões de comportamento e escassez de recursos. As acções e reacções que a procura e as empresas concorrentes estabelecem mutuamente estão perfeitamente balizadas por aquelas relações funcionais.
Mesmo as eventuais alterações dos padrões de comportamento dos agentes económicos com que o empresário da microeconomia está confrontado são imediatamente absorvidas, dado se supor que este tem a possibilidade de ajustar imediatamente o seu nível produtivo ou o seu preço, maximizando automaticamente a sua variável objectivo.
Embora a concorrência pura e o monopólio apresentem aspectos muito distintos, os modelos de tais mercados, de grande importância do ponto de vista conceptual, tratam-se da mesma forma. O empresário da teoria neoclássica, que opera tanto em concorrência como em monopólio está confrontado com um meio ambiente definido mecanicamente pela curva da procura e a sua estratégia é linear: maximiza o lucro. As estratégias dos concorrentes não influenciam directamente o nosso empresário pois este, na realidade, só está confrontado com uma curva de procura (p = p(q) no caso do monopólio e p = constante no caso da concorrência perfeita).
No entanto, a verificação progressiva de que o que existe nos principais mercados industriais são oligopólios, levou à necessidade de conferir uma atenção cada vez mais vasta ao funcionamento do oligopólio. Esse interesse manifestou-se no estabelecimento de alguns modelos que tentavam explicar o comportamento dos oligopolistas e prever os pontos de equilíbrio daí decorrentes. A complexidade da questão levou a que se formulassem hipóteses determinísticas sobre o comportamento das empresas no intuito de se conseguirem obter relações funcionais que possibilitassem a determinação matemática de soluções de equilíbrio.
Essas hipóteses, embora permitindo obter soluções analiticamente elegantes, rebaixavam, pelo seu determinismo, o empresário da teoria neoclássica a um nível bastante modesto na hierarquia da actividade racional.
Na verdade, não é possível perceber como os duopolistas de Cournot continuam imperturbavelmente a formular estratégias sobre as quantidades a produzir baseados no pressuposto, que nunca se confirma, de que o concorrente mantém as suas quantidades constantes.
Os economistas desenvolveram igualmente modelos tentando explicar situações de violação – Cartel, Firma-líder, preço-limite, etc., mas estes modelos não forneceram à Teoria Geral do Oligopólio, até agora, uma explicação cabal e universal do processo de tomada de decisão dos oligopolistas.
Uma outra abordagem consistiu na utilização da Teoria dos Jogos para analisar os comportamentos dos oligopolistas. Mas esta abordagem é limitada. É possível utilizar a Teoria dos Jogos como modelo de tomada de decisões face a estratégias dos adversários ou concorrentes, níveis de procura ou quaisquer outros acontecimentos futuros que possam influir nas variáveis de mercado com que uma firma é confrontada e que, portanto, possam influir nas estratégias que se irão adoptar e condicionar os seus resultados e relativamente aos quais não é possível ligar uma probabilidade objectiva. Há apenas uma ideia, mais ou menos precisa da verosimilhança da sua ocorrência. Estamos portanto num futuro totalmente incerto. Uma outra hipótese de base é a de que a lista desses acontecimentos futuros é completamente conhecida.
Conhecem-se alguns modelos sugestivos desta abordagem: o dilema do prisioneiro, o equilíbrio de Nash, etc. O facto destes modelos se terem desenvolvido principalmente pela necessidade de estudar o comportamento e as estratégias do “inimigo” durante a guerra fria, e só posteriormente começaram a ser usados na teoria económica, diz bem do carácter forçosamente limitado do âmbito da sua aplicabilidade.
Teve mais êxito a “Industrial Organization”. Para ela, a empresa real:
1- Não está centrada num único decisor – é uma organização administrativa complexa cuja estratégia de actuação depende das relações de força existentes dentro dela: accionistas, gestores, quadros superiores, trabalhadores, etc.
2 - Não reage automaticamente a estímulos – tem que planificar no espaço e no tempo o seu horizonte económico, nomeadamente as empresas cujos activos são bens cujo prazo de investimento é dilatado.
3 - Tem um algum poder sobre os preços e sobre a curva da procura.
Igualmente na caracterização das estruturas de mercado a linearidade da teoria fica longe das complexas relações que se estabelecem no mundo real. É um facto que o poder, a força e a coacção são conceitos congenitamente estranhos à teoria económica elaborada pelos clássicos ingleses. A luta destes era exactamente contra os privilégios e outras coacções extra-económicas. Introduzir em modelos explicativos situações de dominação e de coacção estava bem longe dos pais da ciência económica.
Nessa medida, embora reconhecendo a importância da microeconomia como abordagem qualitativa válida em muitos aspectos da análise económica, reconhece-se igualmente a sua inadequação em analisar as relações entre as modificações das variáveis das estruturas industriais e as consequentes modificações do comportamento das firmas.
Outra imperfeição resulta da inadequação do modelo de concorrência pura e perfeita na indústria, mesmo quando aparenta existir uma certa concorrência. Esse reconhecimento levou a formular a teoria da Concorrência Praticável (Workable Competition) que tenta caracterizar as actuais estruturas de mercado.
Essa Concorrência Praticável implica um alargamento das variáveis concorrenciais (como p. ex., admitir certos fenómenos rejeitados pelo modelo tradicional – concentração, não homogeneidade do produto, etc.), é essencialmente dinâmica (o carácter concorrencial de um comportamento só pode ser apreciado após se ter analisado as suas repercussões a longo prazo e o equilíbrio instantâneo é substituído por conceitos que tomem em conta o tempo, prazos de adaptação, o carácter instável e evolutivo do mercado, etc.) e é pragmática e relativista.
E um dos seus axiomas (2nd Best) é claro: se uma ou mais das condições necessárias para a realização do Óptimo de Pareto não estão realizadas, não é em geral, nem necessário, nem aconselhável, procurar satisfazer outras condições.
Portanto, quando se folheia um manual de microeconomia (ou macroeconomia) tem que se ter em atenção tudo isto. Modelos matemáticos que simulam comportamentos de agentes económicos têm as suas limitações e tomá-los como um “axioma” é errado . Tem que se ter a noção dessas limitações e fazer com que os alunos se apercebam disso. Se não se fizer tal acontece uma de duas coisas:
1 - Os alunos ficam, como o João, a “desconfiar de uma parte substancial da teoria económica pela simples razão de que está tão longe de qualquer método reconhecidamente científico como a escolástica medieval”, perdendo o interesse por ferramentas de análise que são extremamente úteis, desde que se conheçam as suas limitações e a sua aplicabilidade;
2 – Os alunos ficam com uma certeza inabalável naqueles modelos e, quando passam a docentes (infelizmente os docentes são muito mais crédulos que os economistas “práticos” pois lhes falta a experiência da vivência prática das situações) reproduzem as certezas dos modelos microeconomicos para a sua crédula e/ou desconfiada assistência.
Publicado por Joana às dezembro 9, 2003 07:48 PM
Trackback pings
TrackBack URL para esta entrada:
http://semiramis.weblog.com.pt/privado/trac.cgi/105020
Comentários
Parabéns! Pareceu-me a última lição !
Mas ajudem-me nesta angústia :
cinco anos para me licenciar em micro-economia (Organização e Gestão de Empresas), trabalho na área há vinte anos e nunca necessitei de calcular um Integral ou uma 2ªDerivada ! Porquê ? é uma agustia de 20 anos !
Publicado por: zippiz às dezembro 10, 2003 12:12 AM
zippiz:
Microeconomia é uma diciplina de Economia e não de Organização e Gestão de Empresas.
Os modelos microeconómicos destinam-se a simular os comportamentos das firmas numa dada economia em face de um mercado.
A forma como as funções de produção e de custo são estabelecidadas é dentro dessa óptica. Por isso não se devem extrapolar mecanicamente para a área da Organização e Gestão de Empresas.
Quanto aos integrais e às 2ª derivadas, isso acontece a quase toda a gente, excepto se se dedicar à investigação. E mesmo assim ...
Publicado por: Joana às dezembro 10, 2003 09:16 AM
Peço desculpa aos puristas !
Eu só queria dizer que trabalho há muitos anos e que fico embasbacado com os conhecimentos dos teóricos que só conhecem as fabricas/empresas pela chaminés ou pelos jogos do Expresso !
Publicado por: zippiz às dezembro 10, 2003 09:59 AM
Aconselho vivamente a leitura de "Colapsos e Reparações de Sentido nas Organizações" do Prof. Rogério de Andrade.
[Editora Minerva-Coimbra, na colecção Ciências da Comunicação ].
Trata-se de uma obra que pretende compreender e avaliar as condições em que se edificam, vulnerabilizam, colapsam e reparam estruturas de sentido, quer nas organizações actuais quer em muitas outras esferas da nossa vida social e mesmo pessoal.
Talvez seja mesmo a "questão de sentido" que tem faltado a toda a teoria económica. Quem sabe?
Publicado por: re-tombola às dezembro 10, 2003 12:44 PM
Engraçado, engraçado, é o Prémio Nobel da Economia acabar nas mãos de Robert F. Engle e de Clive W. J. Granger.
Robert F. Engle foi distinguido pelo seu trabalho sobre os "métodos de análise de séries temporais da economia associadas à volatilidade sazonal".
Clive W. J. Granger é premiado por ter desenvolvido "métodos de análise de séries temporais económicas com uma tendência comum".
Será que daqui se poderá inferir que, afinal, a Economia continua a depender da "mão invisível" e que não passa tudo de uma questãi de Fé?
É que, segundo o meu avôzinho que Deus terá em bom recato, a Fé não se discute.
Em todo o caso, há pelo menos uma coerência neste prémio: limitou-se a laurear... o estatisticamente correcto !
Publicado por: re-tombola às dezembro 10, 2003 06:24 PM
re-tombola:
1 - Relativamente ao "Colapsos e Reparações de Sentido nas Organizações" do Prof. Rogério de Andrade, não conhecia, mas quando tiver oportunidade irei folheá-ço e, eventualmente comprá-lo.
2 - As séries temporais são do domínio da Econometria, que é uma área da estatística. Aliás, muitas das matérias da Econometria são comuns às estatísticas das ciências tecnológicas. Portanto não têm nada a ver com a microeconomia, onde se vislumbra, à distância de mais de 2 séculos, a mão invisível.
Publicado por: Joana às dezembro 10, 2003 08:01 PM
Sou economista e digo-lhe, com toda a franqueza que ao ler o seu texto fiquei com uma ideia completamente distinta da microeconomia.
Pela primeira vez me apercebi que laborava num erro de que eu não tinha culpa mas que foi causado pelo estúpido ensino escolástico da faculdade.
Provavelmente a Joana tem toda a razão. O seu texto está magnífico e a próxima vez que deitar uma olhada sobre as curvas da microeconomia, vou tentar vê-las pela perspectiva que nos transmitiu no seu texto
Publicado por: Novais de Paula às dezembro 11, 2003 12:51 AM
Este texto está excelente do ponto de vista científico. Simples, mas nada suoerficial.
Publicado por: Arroyo às dezembro 14, 2003 02:02 PM