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outubro 02, 2003

Mongóis, iraquianos, marines e barbárie

Em Fevereiro de 1258 os Mongóis tomaram e saquearam Bagdade, massacraram centenas de milhares de habitantes e o último califa abássida e, mais grave do que isso, durante os anos em que Hulagu Khan dominou aquela região, todo o sistema de canais, açudes e redes de irrigação que haviam sido construídos e desenvolvidos ao longo de vários milénios foi vandalizado e destruído, eliminando a capacidade de sobrevivência da população existente e arrastando um enorme declínio populacional.

Em 2003, o Museu de Bagdade foi pilhado e vandalizado e a Biblioteca Nacional foi incendiada. Testemunhos de civilizações milenárias de uma região que foi o berço da nossa civilização foram liquidados em poucos minutos.

Bagdade tinha sido capturada pelo exército americano, mas foram elementos da população iraquiana que pilharam e vandalizaram museus, bibliotecas, hospitais, para além de ministérios, edifícios governamentais e casas particulares.

O exército americano, que havia tomado a cidade seria, em teoria, o responsável pela ordem e segurança dentro dela. Terá a desculpa da rapidez do descalabro iraquiano, dos seus reduzidos efectivos, da continuação de bolsas de resistência e da surpresa, do inesperado e da rapidez das pilhagens do Museu e da Biblioteca. Mas a sua incapacidade de assumir as responsabilidades que a sua vitória militar o obrigava será uma mancha que a história recordará muito para além de qualquer outra ocorrência desta guerra.

Mais revoltante é o comportamento dos vândalos de Bagdade. A inutilidade do saque e destruição é incompreensível. Quem destrói peças de museu e incendeia bibliotecas não terá qualificação para roubar peças de arte para seu desfrute pessoal ou para vender a coleccionadores endinheirados. Foi puro prazer destrutivo que levou à pilhagem e vandalismo.

Os iraquianos podem desculpar-se que não passou de uma minoria não significativa e que se tratava de uma sociedade vivendo sob uma ditadura opressiva e feroz cuja queda criou um vazio de poder e a quebra das cadeias de comando das estruturas administrativas. Mas muito mal vai um povo que não tem, dentro de si, forças sãs que imponham um mínimo de respeito cívico. Em 1910 e em 1974, o poder em Portugal caiu na rua, e não houve pilhagens ou latrocínios. Em 1910, populares guardavam os bancos e outros locais para evitar tentações. Diversos países da Europa foram ocupados e libertados durante o último conflito. Não me lembro de algum museu ou biblioteca assaltada durante a ausência dos poderes institucionais.
Os nazis destruíram livros, mas foi uma destruição organizada, perpetrada por um regime que odiava a cultura cosmopolita.

Em situações de grande instabilidade acontecem assaltos e pilhagens a estabelecimentos de artigos de consumo. Acontecem no Ruanda e acontecem nos USA. Assaltar, pilhar e vandalizar museus e incendiar bibliotecas é porém o sintoma do estado de degradação económica, social e civilizacional a que chegou um povo submetido décadas a uma tirania totalitária, omnipresente e atrofiante.

Nestas situações de grande calamidade, a sociedade civil tem, com grande frequência, capacidade de gerar consensos e de tomar nas suas mãos a condução do seu próprio destino. Espera-se que, passado o estupor pela queda de um regime que não deixava saída e se ameaçava eternizar, a sociedade civil iraquiana seja capaz de reconstruir um país mais justo e mais moderno.

13-Abril-2003

Publicado por Joana às outubro 2, 2003 06:18 PM

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