Em 15 de Dezembro de 1939, quando a URSS se engalanava para as comemorações, a 19-12, dos 60 anos de Estaline, o “Pai dos Povos”, o Estado Soviético era expulso da Sociedade das Nações.
A história mundial entre 1939 e 1941 teve diversas leituras referindo-se aos mesmos factos. As potências democráticas, a Alemanha nazi e a URSS fizeram deles leituras diferentes, consoante os seus pontos de vista. Mas o mais paradigmático foi as potências democráticas alteraram a sua leitura à medida da evolução da história. As verdades em 1939/40 foram complacentemente ignoradas quando a relpolitik impôs as suas exigências. Quando a realpolitik já não necessitava dessa ignorância, o “politicamente correcto” dos intelectuais bem-pensantes transformou aquelas verdades em mentiras. Mentiras cujo simples enunciado era indício seguro de um anti-sovietismo primário.
Foi preciso os próprios reconhecerem que as verdades em 1939/40 eram mesmo verdades, para estas adquirirem o estatuto de verdades.
O ucasse de 4 de Maio de 1939 nomeava Molotov Comissário do Povo para os Assuntos Estrangeiros da URSS, dando notícia da exoneração, no dia anterior, de Litvinov. Litvinov era o homem que defendia a política da segurança colectiva e do prestígio da Sociedade das Nações a que a URSS aderira em 1934. Era o homem que defendia as alianças com as potências ocidentais face ao avanço do nazismo e dos regimes totalitários na Europa de Leste.
A política de apaziguamento franco-britânica nos anos que precederam a guerra não facilitou a vida de Litvinov, face às pretensões do seu patrão. A Europa ocidental vivia um intenso clima de pacifismo e Estaline resolveu apostar na carta alemã, de forma ficar com as mãos livres nas suas ambições de restaurar as fronteiras do antigo império dos czares, onde tinham estado incluídos os estados bálticos, a Polónia oriental, a Bessarábia e a Finlândia.
Litvinov não era a pessoa indicada para essa política e foi exonerado “a seu pedido” e substituído por Molotov. Esta mudança foi igualmente um sinal importante para Hitler e von Ribbentrop. A URSS do Alexandre Nevsky (1938) de Eisenstein, mostrando a derrota dos cavaleiros teutónicos contra a Santa Rússia, iria dar lugar, anos mais tarde, ao Ivan o Terrível (1943 e 1946), também de Eisenstein, mas glorificando a tirania, o poder pessoal e a expansão face ao exterior.
Todavia, os líderes políticos da Europa Ocidental, em face da rotura dos acordos de Munique, da anexação da Boémia e Morávia e da transformação da Eslováquia em satélite, tinham estabelecido, apesar do seu pacifismo, acordos com garantias de assistência bilateral com a Polónia e a Roménia. Se é certo que as reticências polacas dificultavam um acordo de segurança mais consistente, a manutenção de Litvinov levaria provavelmente a um acordo colectivo satisfatório. Foi sintomática a sua exoneração quando os acordos de assistência bilateral franco-britânicos com a Polónia e a Roménia impediam, na prática, a agressão alemã à URSS, pois os alemães teriam que atravessar um destes países para invadir a URSS.
O que se passou na esfera diplomática entre o ucasse de 4 de Maio e a assinatura do Pacto de não-agressão Germano-Soviético em 23 de Agosto, com o protocolo secreto que deixava os os estados bálticos, a Polónia oriental e a Bessarábia na “esfera de influência” soviética, foi uma comédia de enganos, com a URSS a negociar com os 2 blocos, as potências democráticas mostrando uma grande fragilidade negocial e os nazis a licitarem com uma proposta “irrecusável”. Irrecusável para quem aceita traficar a independência dos outros povos. Os termos do acordo colocavam a URSS no mesmo plano que a barbárie nazi.
Em França, o PCF aprovou o Pacto Germano-Soviético, o que provocou a reprovação de todos os restantes partidos, nomeadamente as formações de esquerda, aliás dominantes na Câmara (Daladier, o 1º Ministro, era radical-socialista). Um decreto de 25 de Agosto suspendia o Humanité e os outros periódicos comunistas. Após a entrada das tropas soviéticas na Polónia e face á manutenção das posições do PCF, o Partido Comunista é dissolvido em 26 de Setembro. O grupo dos deputados comunistas na Câmara dos Deputados passou a designar-se por “Grupo Operário e Camponês”.
Em 1 de Setembro a Alemanha invadia a Polónia e, após a rotura das defesas polacas pelos alemães, em 17 de Setembro, Molotov fazia uma comunicação radiofónica declarando que em vista da incapacidade interna do Estado Polaco, a URSS decidira avocar a si a protecção das “populações da Bielorússia e da Ucrânia ocidental”, ou seja, mais de metade da Polónia de então. Em 19 de Setembro um comunicado conjunto germano-soviético dava conta que a tarefa das tropas alemãs e soviéticas era “restaurar a paz e a ordem perturbadas pela desintegração do Estado Polaco e auxiliar a população a reorganizar as condições para a sua existência política”. Maior cinismo era impossível.
A entrada das tropas soviéticas, na retaguarda das tropas polacas, comprometeu definitivamente a resistência polaca, já à beira da rotura. Em 29 de Setembro Varsóvia capitulava finalmente e era ocupada pela Wehrmacht.
A fase seguinte foi o estabelecimento “forçado” de bases militares nos estados bálticos através da imposição de pactos de assistência mútua (Estónia em 28 de Setembro, Letónia em 5 de Outubro e Lituânia em 10 de Outubro). Após a queda da França, e tirando partido da provável vitória da Alemanha na guerra que, tudo indicava, iria conduzir à liquidação do direito internacional e à entrega do mundo ao império do gangsterismo político, a URSS criou governos fantoches na Lituânia, Estónia e Letónia que estabeleceram repúblicas soviéticas naqueles estados. Entretanto, em 12 de Outubro o governo soviético, a seu pedido, iniciou negociações com a Finlândia. Todavia, e tentando prevenir uma situação idêntica à ocorrida com os estados bálticos, quer os restantes países escandinavos, quer os EUA enviaram mensagens aos dirigentes soviéticos mostrando a sua inquietação.
Em 31 de Outubro, Molotov voltou a falar perante o Soviete Supremo: “… Os senhores da Polónia costumavam vangloriar-se da estabilidade do seu país e do poderio do seu exército. Bastou um pequeno golpe do exército alemão, seguido de outro semelhante do exército vermelho para reduzir a nada esse mostrengo gerado pelo Tratado de Versalhes”, acrescentando que os agressores eram agora a França e a Inglaterra e não mais a Alemanha. Já nem sequer havia diferenças de terminologia linguística entre os líderes nazis e soviéticos.
Mas neste discurso, Molotov revelou ainda que tendo o governo finlandês recusado um pacto de assistência mútua, a URSS iria passar ao exame de “questões concretas”. E essas questões concretas seriam “ajustamentos” fronteiriços: anexação pela URSS da região de Vyborg e do sector norte do Lago Ládoga, entre outras coisas. E, mostrando o seu completo desprezo pelo direito internacional, exprimiu a sua surpresa pela mensagem de Roosevelt em favor da Finlândia, declarando-a contrária à neutralidade americana. Intervir em favor dos que estão na iminência de serem devorados viola a “neutralidade”.
As negociações com a Finlândia decorriam quando, em face das reticências desta em aceitar o diktat soviético, houve um alegado incidente fronteiriço que, segundo os soviéticos, consistiu num bombardeamento efectuado pelos finlandeses às guarnições fronteiriças soviéticas, causando a morte de diversos soldados. Um “incidente” semelhante aos encenados pelos nazis nas vésperas das suas agressões. Em 26 de Novembro Molotov entregava ao ministro da Finlândia em Moscovo uma nota de protesto sobre este imaginário incidente, exigindo a retirada das tropas finlandesas para além de 25 kms da fronteira. A 27, o governo finlandês consentia, sob reserva de reciprocidade. A 28 Molotov invocava novos incidentes e denunciava o pacto de não-agressão russo-finlandês. Em 30 de Novembro de 1939, a URSS (170 milhões de habitantes) atacava a Finlândia (3,65 milhões de habitantes), sem prévia declaração de guerra.
Foi imediatamente constituído um governo da República Democrática Finlandesa, presidido por Kuusinen (um membro do Komintern) e sediado numa cidade fronteiriça ocupada pelos soviéticos nas primeiras horas da guerra e assinado um Pacto de Amizade e Assistência Mútua com aquele governo fantoche. Os alemães ocupavam primeiro os países e criavam um governo fantoche depois. Aos soviéticos bastava qualquer posto fronteiriço, ou provavelmente nem isso.
Em face da agressão soviética, o governo finlandês pediu em 3 de Dezembro a convocação urgente do Conselho e da Assembleia da Sociedade das Nações. O Conselho reuniu a 9 e fixou a procedimento a seguir na Assembleia que reuniu a 11. A Sociedade das Nações dirigiu um ultimato à URSS, exigindo a cessação imediata das hostilidades, oferecendo a sua mediação e dando um prazo de 24 horas para resposta. Molotov, em nome do governo soviético, declinou o “amável convite da SDN”. Em 14 de Dezembro, a Assembleia considerava inválidas as justificações apresentadas pelo governo soviético, reconhece que a URSS se colocou fora do pacto da SDN pela sua agressão à Finlândia. A resolução da SDN apelava a cada membro que fornecesse a assistência material e humanitária à Finlândia que pudesse. Votaram a favor 31 países e houve 9 abstenções – os 3 estados escandinavos (demasiado expostos face à Alemanha e à URSS), os 3 estados bálticos (já ocupados militarmente pela URSS), a Bulgária, a China e Suiça (Alemanha, Itália e o Japão já tinham entretanto abandonado a SDN). No mesmo dia, e na sequência desta resolução, o Conselho da SDN associou-se à condenação da Assembleia e excluiu a URSS da SDN com base no articulado do pacto.
A ofensiva soviética foi contida na Linha Mannerheim em 12 de Dezembro e em 19 de Dezembro, quando foram comemorados os 60 anos de Estaline, o “Pai dos Povos”, as tropas soviéticas sofriam revezes sucessivos e perdas significativas em meios humanos e materiais. Só em fins de Fevereiro e após pesadas baixas é que os soviéticos conseguiram romper as defesas finlandesas.
O tratado de paz assinou-se em 12 de Março. A Finlândia, com uma população 50 vezes menor do que a URSS, já não podia resistir, e a URSS, que via o enorme ressentimento e indignação que aquela agressão injusta a um pequeno país havia causado no ocidente, e face às enormes baixas que havia sofrido, preferiu uma paz rápida para minimizar os prejuízos políticos da agressão. Nunca mais se ouviu falar do governo da República Democrática Finlandesa, presidido por Kuusinen.
Vyborg foi a única cidade finlandesa importante conquistada. Todos os seus habitantes fugiram. A Finlândia é hoje um país próspero, com cidades bem construídas e com um ambiente urbano extremamente agradável. Estive em Vyborg (Vipurii) há poucos meses. É uma cidade arruinada, onde a maioria dos edifícios e infra-estruturas está completamente degradada.
A política pró-nazi da liderança soviética continuou, todavia. A ocupação alemã da Dinamarca e da Noruega foi, a princípio, atribuída pela imprensa soviética às provocações franco-britânicas. Os comunistas franceses e a classe operária francesa eram instruídos na “verdade” que a guerra contra a Alemanha era “imperialista” e “injusta”.
Quando a Alemanha atacou a Holanda e a Bélgica a Pravda escreveu em editorial “…até agora o bloco franco-britânico pode vangloriar-se de um único sucesso: jogou mais dois países numa guerra imperialista; duas outras nações foram condenadas ao sofrimento e à fome”.
A blitzkrieg alemã em França e a esmagadora vitória de Hitler, deixou estupefacta a URSS. Esperava que os exércitos alemão e francês se exaurissem na frente ocidental. Afinal, as baixas alemãs na França, contra as tropas franco-britânicas, tinham sido inferiores às baixas soviéticas na Finlândia. A URSS ficava com uma longa fronteira comum com a Alemanha de Hitler, que entretanto controlava a maioria da Europa industrializada. Parecia que o crime não compensava.
Mas afinal compensou. A agressão nazi à URSS, a necessidade para a Inglaterra (então ainda sozinha), e depois para as potências ocidentais, de apoio no conflito com as potências do Eixo levou a um branqueamento da política da URSS: o pacto com Hitler, a partilha da Polónia, a agressão à Finlândia, as anexações dos estados bálticos, o massacre de Katyn (imputado durante décadas aos nazis), etc., etc., tudo foi “esquecido”. A URSS saiu da guerra imaculada. Os partidos comunistas da velha Europa, que tinham pactuado com Hitler, emergiram da guerra apenas como heróis da resistência e da liberdade. Tudo o resto foi esquecido, primeiro em nome da realpolitik e depois em nome do “politicamente correcto”.
Só após a implosão da URSS foi possível falar do protocolo secreto do Pacto Germano-Soviético, dos verdadeiros autores do massacre de Katyn e de tantas outras coisas, sem se ser imediatamente acusado de anti-comunismo primário pelos intelectuais bem-pensantes.
O mais importante dessa efeméride é exactamente isso: o “politicamente correcto” ter mantido, durante mais de meio século, todas estas mentiras como verdades intocáveis. E isso deve ser matéria de reflexão para todos nós.
Cara Joana,
De facto, o pacto de não agressão assinado entre a Alemanha e a União Soviética foi uma peça horrorosa nos anais da História.
E pode ter-se como o facto próximo que levou à invasão da Finlândia
No entanto, tal invasão que tanto horrorizou a Sociedade das Nações foi prontamente desculpada e as nações vencedoras da II Guerra Mundial logo se prontificaram a dar o aval à União Sovietica para que a Finlândia ficasse na órbita da parte que caberia à U. Soviética.
Poderei estar errado, mas lendo o Tratado de Ialta (assinado por F. D. Roosevelt, Winston Churchill e Josef Stálin ) permanecem ainda misteriosas as razões pelas quais Stalin não incluiu de imediato a Finlândia na "esfera soviética", já que o tratado assim o aceitava.
Será, também, de relembrar que a Finlândia desenvolveu enormemente a sua indústria e tecnologia pelo motivo de ter que pagar indemnizações brutais à U. Soviética (já parecem os seus argumentos de que valeu a pena invadir o Iraque porque o resultado é que conta).
Independentemente disso, após a implosão da União Soviética (mais precisamente nos anos de 92 e 93) a perda desse mercado para as exportações finlandesas levou o PIB desse país a encolher 15% nesses 2 anos.
A chamada "finlandização" funcionou, afinal, como um deitar de àgua na fervura das relações tumultuosas entre o Este e o Leste.
Se calhar, com a mesma intenção com que Kissinger dizia que não era importante se Portugal viesse a ser um satélite da União Soviética.
Para ele, Portugal eram os Açores e a esses não punha a U. Soviética a mão em cima.
Em alguns países de Leste havia um PC forte que serviu de trampolim para se tornarem satélites de Moscovo.
Entre a população finlandesa havia um ódio muito forte. Por outro lado os países escandinavos têm uma grande autoridade moral e eram fortemente contra.
Os americanos também apoiram muito a Finlândia.
Tudo isso deve ter concorrido para o estatuto da Finlândia no após guerra
Afixado por: Joana em dezembro 23, 2003 08:36 AMEsta análise histórica, juntamente com a de hoje, estão excelentes.
Um Bom Natal para si, Joana
Afixado por: Adalberto em dezembro 23, 2003 11:28 PMComo q em 1939 Stalin tinha 60 anos sendo q ele nasceu em 1882?
Afixado por: .Helbert em março 2, 2004 11:44 AMStaline nasceu em 1879. Consulte qualquer biografia minimamente capaz.
Afixado por: Joana em março 2, 2004 11:41 PMSou brasileiro e feroz anti-stalinista. Quem não se lembra, além da colaboração com os nazistas, do brutal assassinato de toda a liderança do partido comunista, durante os expurgos dos anos 30? E o assassinato de Trotsky, por um agente stalinista em 1940??? Se não bastasse, a China maoista(herdeira do stalinismo), invadiu e anexou o Tibet em 1950, e desde então promove um genocidio cultural neste pobre país. E se não bastasse, Mao se calou diante do golpe de Pinochet contra Allende no Chile, assim como apoiou os fascistas da UNITA contra o governo popular de Angola, uma vez que havia se aliado ao imperialismo yankee em 1971/72. O stalinismo é irmão do nazi-fascismo, deve ser combatido com a mesma veêmencia. Quem é de esquerda e defende Stálin, é porque não presta, pois até mesmo o pior dos conservadores tem nojo dos crimes de Stálin, Mao, Pol Pot e cia, que nada deixam a desejar aos crimes de Hitler, Mussolini, Franco ou Pinochet.
Afixado por: Marcelo em janeiro 19, 2005 01:26 AM