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abril 29, 2005

A Relatividade de Orwell

Ou um texto imprescindível de João Miranda no Blasfémias ... que transcrevo aqui, com a devida vénia:

Relativismo e a orwellização das palavras
Ou porque é que um gato é um cão

O relativismo prevalecente nas sociedades contemporâneas manifesta-se na progressiva degradação da qualidade da discussão pública. Os conceitos, que antigmente tinham um significado preciso, foram progressivamente orwellizadas.

Por exemplo, antigamente, uma pessoa tolerante era uma que, não concordando com o comportamento X, não perseguia nem defendia a perseguição ou a ilegalização do comportamento X, mas não se coibia de criticar abertamente e sem rodeios o comportamento X do ponto de vista moral. A tolerância era uma atitude que cada um tinha em relação a comportamentos de que declaradamente não gostava.

Hoje em dia, uma pessoa que expresse o seu desagrado com o comportamento X é imediatamene declarada intolerante, mesmo que não defenda nenhum tipo de perseguição legal ou social relativamente às pessoas que têm o comportamento X. Em alguns casos extremos, uma pessoa que se limita a mostrar desagrado com o comportamento X pode mesmo ser perseguida judicial e socialmente por intolerância por pessoas que se dizem tolerantes. Ou seja, as pessoas que se limitam a manifestar a sua discordância em relação ao comportamento X são consideradas intolerantes, enquanto as pessoas que se propõem perseguir quem se limita a expressar as suas opiniões em público são consideradas os guardiões da tolerância. A palavra «tolerância» foi de tal forma redefinida, que agora significa precisamente o contrário do que significava originalmente.

PS -Aqueles crimepensantes que se limitam a reprovar o comportamento X em pensamento também não se safam. Não é por isso que os guardiões da tolerância vão deixar de presumir os seus pensamentos a partir da sua forma de vestir ou das suas origens sociais.
Joao Miranda at 10:07

Publicado por Joana às abril 29, 2005 02:07 PM

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Comentários

Exprimir o seu desagrado perante um comportamento é, já por si, uma forma de perseguição social a quem adopta esse comportamento.

Se, por exemplo, uma pessoa estiver a fumar ao pé de mim num restaurante e eu me dirigir a ela e lhe pedir para não fumar, isso é, certamente, estar a incomodar essa pessoa, a "persegui-la".

Parece-me, assim, que este texto do João Miranda faz pouco sentido, para além do primeiro parágrafo, o qual é certamente correto.

Publicado por: Balio às abril 29, 2005 02:25 PM

Balio: não percebi - você "exprime o seu desagrado" por a outra pessoa estar a fumar, ou tenta fisicamente impedi-la de fumar?
Você condenar a primeira atitude é demitir-se da sua capacidade de intervenção cívica - protestar contra pessoas que passam à frente nas filas, contra as que levam os cães à rua para as deixar num esterco. contra os que cospem nas ruas, contra os que ... etc.

Publicado por: Joana às abril 29, 2005 02:37 PM

Joana: posso eventualmente tentar impedir fisicamente a pessoa de fumar: porque não, se ela me está a prejudicar?

A "capacidade de intervenção cívica" passa, imprescindivelmente, não só por condenar os comportamentos incorretos, mas por proibi-los. E qualquer tentativa nesse sentido pode ser condenada como relevando de uma "intolerância".

Na Suíça é proibido as pessoas tomarem duche depois das 9 da noite, porque o barulho da água a bater na banheira pode perturbar o descanso dos vizinhos. Cá em Portugal, se alguém tentasse proibir tal coisa, ou simplesmente criticar, seria imediatamente apodado (não interessa agora se com razão ou não) de intolerante.

É neste sentido que eu digo que o texto do João Miranda não faz qualquer sentido.

Publicado por: Balio às abril 29, 2005 02:48 PM

Em Portugal é proibido fumar nos elevadores, mas não é proibido fumar nos locais de trabalho.

Se eu disser "não fume" a uma pessoa que está a fumar no elevador, estou a ser intolerante, ou estou a intervir civicamente no sentido de fazer cumprir a lei?

E se eu disser isso mesmo ao indivíduo que está a fumar na secretária ao pé da minha, no meu local de trabalho?

É evidente que, do meu ponto de vista, é imprescindível que não se fume nem nos elevadores, nem nos locais de trabalho. E é evidente que eu tenho o direito, não só de manifestar essa minha opinião como também de, em casos que manifestamente e prejudicam, a tentar impôr pela força.

É evidente que outras pessoas considerarão que eu sou intolerante. Umas dirão que só deve ser proibido fumar nos elevadores, tal como atualmente. Outras dirão que nem isso deveria ser, e que a lei atualmente existente é de uma intolerância intolerável.

Publicado por: Balio às abril 29, 2005 03:05 PM

Eu só sou intolerante se a minha atitude impedir fisicamente que outrem se comporte de um modo com o qual não concordo. Não se eu somente exprimir o meu desagrado, essa é boa!
Alem do mais a intolerância não tem só conotações negativas. Cada caso é um caso. Não generalisemos.

Publicado por: JMTeles da Silva às abril 29, 2005 03:11 PM

O texto de João Miranda faz todo o sentido, faz sim senhor!
Eu, por exemplo, não concordo com o comportamento dos Ciganos quando os vejo em certos locais a fazer venda ambulante rodeados de crianças que, àquelas horas, deveriam estar na escola como as demais crianças deste país.
Mas não posso expressar o meu desagrado porque sou logo apodado não apenas de intolerante mas de racista e coisas piores.
Esta é a verdade!

Publicado por: Senaqueribe às abril 29, 2005 03:16 PM

Aliás, não só apodado mas acusado, e a minha integridade física corre perigo.

Publicado por: Senaqueribe às abril 29, 2005 03:34 PM

Suponhamos o seguinte exemplo realista.

Eu vou a levar o meu filho bebé no seu carrinho e pretendo atravessar uma rua. Verifico que um carro estacionou sobre a passadeira, impedindo-me de passar e forçando-me a dar a volta a mais 4 carros estacionados juntinhos uns aos outros, para atavessar a rua nun local inseguro.

O condutor vai a sair do carro e diz-me: "Desculpe lá, amigo, é impossível mesmo encontrar aqui sítio para estacionar, e estou cheio de pressa."

Em qual dos seguintes casos é que eu sou intolerante?

A) Digo ao condutor: "É muito feio estacionar num sítio como esse, e além disso é proibido."

B) Digo ao condutor: "Vou já telefonar à esquadra mais próxima e pedir que lhe venham rebocar o carro", e pego no telemóvel.

C) Digo ao condutor: "Mal você se afastar daqui eu saco do meu canivete do bolso e furo-lhe um par de pneus ao carro."

Publicado por: Balio às abril 29, 2005 04:06 PM

Balio:
O texto de João Miranda faz sentido, sim senhor. É certo que ele não ressalvou os casos em que o «comportamento X» é ilegal ou me prejudica: presumo que deu essa ressalva por adquirida.
Vamos portanto dar por explícito o que João Miranda deixou implícito, e responder neste pressuposto à pergunta que você faz: em nenhuma das três hipóteses você é intolerante, já que no cenário que apresenta o «comportamento X» o prejudica e é ilegal.
Mesmo na hipótese C você não é intolerante, é simplesmente anti-social; e portanto se nesta hipótese o outro fulano lhe pespegar um par de estalos, também não estará a ser intolerante, estará simplesmente a ser violento.

Publicado por: Zé Luiz às abril 29, 2005 05:33 PM

Concordo com o Zé Luiz às abril 29, 2005 05:33 PM.
Relativamente ao que é ilegal, a tentativa de obrigar a cumprir uma lei não é intolerância, a menos que seja feita por métodos ilegais, mas neste caso não é, nem deixa de ser intolerante - é também ilegal.

Publicado por: David às abril 29, 2005 05:43 PM

Isso não invalida que quando eu apanhasse o fulano pelas costas, e ninguém estivesse a ver, lhe furasse os pneus!

Publicado por: David às abril 29, 2005 05:45 PM

Dito doutra maneira: chamemos «comportamento X» ao seu comportamento de levar a passear o seu filho bebé, e «comportamento Y» ao comportamento do fulano que estacionou o carro em cima da passadeira.
Há desde logo uma diferença entre os dois comportamentos: o comportamento X é legítimo e não prejudica ninguém enquanto o comportamento Y é ilegal e prejudica terceiros. Se alguém se mostrou intolerante nesta história foi quem, ao estacionar indevidamente, «proibiu» a sua passagem com o carrinho de bebé.
Sem prejuízo do direito que qualquer um tem de discordar do comportamento «ter filhos» ou do comportamento «passear bebés».

Publicado por: Zé Luiz às abril 29, 2005 05:48 PM

O facto do post do JM não fazer sentido para alguns é a prova da sua relevância.

Publicado por: Mário às abril 29, 2005 06:03 PM

Aqui podem encontrar um texto sobre tolerância de onde retirei as passagens em inglês.

http://www.iep.utm.edu/t/tolerati.htm

Não há motivo para ser tolerante nessa situação:

"Of course, there are limits here. Autonomous action that violates the autonomy of another cannot be tolerated."
Ou seja, o mais correcto seria chamar a polícia e rebocar o carro, não podendo o indivíduo ser considerado intolerante.

Publicado por: Daniel às abril 29, 2005 07:00 PM

Eu cá passeio-me com o meu «carrinho de bébé» por todos os lados. E fumo que nem uma avestruz por tudo quanto é sítio. Vão pintar as unhas dos pés.

Publicado por: asdrubal às abril 30, 2005 02:16 AM

Na Holanda existe uma comunidade mulçulmana com algum significado. Esses habitantes ainda trazem consigo a sua cultura dominada pela religião e, como seria de esperar, não abdicam dela facilmente. Há no entanto situações em que a sua tradição leva a comportamentos claramente inaceitáveis num país europeu, como matar uma mulher por um qualquer crime de honra. Segundo a descrição que vi, as mulheres nesses casos são enviadas para o país de origem e lá são assasssinadas. Que posição deve ter um país tolerante face a esta situação em que crimes, apesar de conhecidos, são cometidos fora das suas fronteiras. Deve o país tomar todas as medidas possíveis para impedir que tal aconteça?
Aqui surge o relativismo, o que para nós é inaceitável para outros é normal. Assumindo que não é possível definir qual das culturas está correcta, há aqui um verdadeiro teste há tolerância. Parece-me que se a Holanda quiser ter a posição tolerante não poderá perseguir ninguém, desde que não existam violações há lei.

Publicado por: Daniel às abril 30, 2005 11:06 AM

A questão é que a autonomia do outro depende das leis em vigor e da cultura de uma sociedade.
Por exemplo, na legislação sobre fumar. Ou no caso de culturas diferentes, como o da mulher adúltera que o Daniel citou.

Publicado por: Viegas às abril 30, 2005 11:12 AM

É claro que a Holanda pode e deve tomar todas as medidas possíveis para evitar que os muçulmanos enviem as mulheres para serem assassinadas noutros países.
É um caso claro em que há terceiros prejudicados.

Publicado por: Zé Luiz às abril 30, 2005 03:30 PM

No meio de tantos exemplos, aqui vai mais um:

Vou no autocarro, cheio, e vejo um garoto de 13 anos sentado enquanto uma senhora idosa está de pé. Viro-me para o puto e digo-lhe: "Levanta-te e dá o teu lugar a esta senhora!" Estarei a ser intolerante quanto ao direito de qualquer pessoa, independentemente da idade, ir sentada num transporte público? Estarei a ser intolerante perante a falta de educação de um jovem? Estarei a ser intolerante perante a violação de comportamentos sociais? Numa sociedade individualista estou, certamente, a ser intolerante perante o exercício de um direito individual. Numa sociedade mais consciente do sentido de comunidade, estaria a ser intolerante perante um abuso do dever de solidariedade.
Como é?...

Publicado por: Albatroz às maio 1, 2005 10:38 AM

Se o Albatroz agarrasse pelo braço do garoto e o obrigasse a levantar, poderia ser acusado de intolerância, ou de violência.
Assi está apenas a ensinar ao garoto regras de comportamento cívico que andam muito esquecidas

Publicado por: soromenho às maio 1, 2005 11:59 AM

O Albatroz, que é suposto ir de pé como a senhora de idade, diz com a descrição possível ao garoto: Era uma atitude bonita ofereceres o teu lugar a esta senhora. E o puto, em voz bem alta responde: Ólh'ó parvo do cota! Vai à merda!
Julgo ser esta a moralidade da história que o João Miranda, muito bem, nos apresentou sobre a tolerância (como era entendida ontem e como o é hoje). A meu ver.

Publicado por: JM às maio 1, 2005 11:20 PM

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