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agosto 05, 2004

As Derrocadas e a Mão Invisível

Ou a Vingança do Mercado

Adam Smith escreveu há quase dois séculos e meio que os agentes económicos, funcionando em mercado livre, “ao tentarem satisfazer o seu próprio interesse promovem, frequentemente, de uma maneira mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretendem fazer. Nunca vi nada de bom, feito por aqueles que se dedicaram ao comércio pelo bem público”. Esta frase é lapidar: aqueles que tentaram, julgando servir o bem público, constranger ou impedir, o livre funcionamento do mercado, criaram situações de muito maior injustiça social e muito mais ineficientes e dispendiosas para o bem público e para toda a comunidade em geral, do que se não o tivessem feito.

Foi o que aconteceu com o mercado do arrendamento urbano. A legislação que, durante o Estado Novo, regulamentou o congelamento de rendas em Lisboa e Porto foi feita com as melhores das intenções de justiça social e de protecção à habitação. Essa legislação e esse congelamento mantiveram-se, apesar do aumento da inflação iniciado no período marcelista e tornado galopante após o 25 de Abril, sempre com a melhor das intenções sociais. O congelamento das rendas era uma das muitas vacas sagradas do pensamento social português.

Em meados dos anos 80 acabou o congelamento e as rendas puderam subir, mas sempre abaixo da inflação, excepto para os contratos mais antigos, onde foram permitidos reajustamentos ligeiramente superiores. Em valores reais, as rendas continuaram a descer. Tudo isto com as melhores e mais sagradas intenções de benemerência social.

Mas não foram só as rendas habitacionais que escaparam às regras do mercado. As rendas comerciais foram tratadas da mesma forma. A nossa justiça social e a ânsia de dar esmolas aos mais pobrezinhos, que presidiu a esta legislação, encarregou os senhorios, contra vontade destes, de subsidiarem, ao longo de décadas, a actividade comercial: lojas, escritórios, etc.. Portanto, em Portugal, rendas comerciais não são um factor de produção: não passam de uma potencial fonte de extorsão praticada pelos senhorios a que o Estado deve pôr cobro, intervindo no mercado do arrendamento comercial.

Toda esta filantropia social de que o Estado encarregou os senhorios teve um efeito absolutamente perverso: a degradação do parque habitacional, a ruína dos centros históricos de Lisboa e Porto e, em menor grau, das restantes cidades do país, a inexistência de um mercado de arrendamento eficiente, a opção pela aquisição de casa própria e o endividamento exponencial das famílias para o conseguirem. No caso do comércio verificou-se o que já se sabia de outras actividades produtivas: uma política cega de subsídios retira incentivos à modernização. Assim sendo, o comércio dos centros históricos foi perdendo qualidade relativa, cristalizou, e perdeu mercado face ao comércio menos central e com maior mobilidade e aos grandes espaços. A degradação da qualidade da actividade comercial nos centros históricos tem igualmente concorrido para a ruína destes e para a sua desertificação.

Ora aqui está como a regulamentação do mercado, estabelecendo preços que não correspondem aos equilíbrios que se formariam pelo seu funcionamento normal, e a manutenção dessa situação ao longo de décadas, conduziu à ruína dos centros históricos das cidades, à derrocada dos prédios antigos, ao excessivo endividamento das famílias, à dificuldade prática de uma reforma fiscal moderna do património e à absoluta injustiça social, onde as gerações mais antigas têm casas de rendas irrisórias, enquanto os mais novos têm um ónus terrível em despesas de habitação; onde os senhorios dos prédios antigos estão descapitalizados, sem capacidade de intervirem na reabilitação dos seus prédios e à mercê de qualquer intempérie que lhes pode causar prejuízos que eles não têm capacidade de suportar, enquanto os senhorios de áreas mais recentes têm rendimentos incomparavelmente superiores, com custos muito menores e com uma punção fiscal proporcionalmente mais benévola.

A perversão do sistema é total. Muitos dos prédios em risco de derrocada nem sequer têm senhorios conhecidos. Quem consta do registo das Conservatórias já não existe e os herdeiros nunca reclamaram a herança porque provavelmente o Imposto Sucessório seria muito superior ao valor dos imóveis. Aliás, muitos dos prédios em ruína têm um valor real negativo. Há 3 ou 4 anos um grupo escocês quis adquirir o Palácio Rosa, na zona da Mouraria, para aí construir um hotel de «charme». O vereador António Abreu ficou indignado quando os escoceses lhe disseram que o imóvel tinha um valor real negativo. Como se lhe tentou explicar depois, os escoceses tinham, tecnicamente, razão, pois o que custaria a reabilitação daquele imóvel e espaços adjacentes nunca seria recuperado qualquer que fosse a posterior utilização dada ao Palácio.

O único mercado que funciona neste ambiente que o Estado perverteu, é o mercado paralelo. Inquilinos que pagam rendas ridículas, subalugam por «preços de mercado» e exigem obras aos senhorios (quando estes existem); estabelecimentos comerciais que fazem trespasses avultados a pretexto de usufruírem de rendas baixas ou, mais recentemente, em face de algumas restrições nos trespasses, fazem cessão de quotas (a firma mantém-se mas os donos são outros), operação que nem sequer têm que comunicar ao senhorio.

O Estado, ao intervir décadas a fio, no mercado de habitação, distorceu completamente o funcionamento dos mercados de arrendamento e de construção.

No mercado de arrendamento já se resumiram as calamidades sociais a que esta legislação iníqua, cheia de boas intenções filantrópicas, conduziu. Mas o mercado de construção em Portugal também foi enviesado. Contrariamente aos restantes países europeus, o investimento em reabilitação urbana em Portugal é baixíssimo. Há pouca experiência nessa matéria no nosso país e os construtores civis fogem de a fazer porquanto não têm qualificações adequadas e têm receio de concorrer à execução desse tipo de obras, pois como não têm domínio dessa área, podem estar a fazer orçamentos ruinosos.

E não há mercado de recuperação de imóveis, porque os investimentos na reabilitação urbana não têm viabilidade financeira visto as rendas praticadas não permitirem o retorno do investimento. É falso que o custo das obras possa ser incorporado nas rendas através de uma taxa de retorno de 8% ao ano. Apenas as obras para além das consideradas obrigatórias em termos de beneficiação e conservação se inscrevem naquela condição. Mas em qualquer dos caso os senhorios dos imóveis degradados, na sua quase totalidade, são idosos, estão descapitalizados e não têm possibilidades nem financeiras nem de qualificação para empreenderem quaisquer obras de vulto. Reabilitar um edifício em adiantado estado de degradação custa mais e é mais complicado que construir um edifício de raiz.

Por outro lado, reabilitar edifícios antigos e manter as tipologias existentes é insensato. As divisões não têm as áreas mínimas obrigatórias; as instalações sanitárias ou não existem ou são inadequadas; etc.. Não faz sentido reabilitar um edifício e manter tipologias impróprias para as necessidades actuais de habitação. Portanto toda a ocupação e organização do espaço teriam que ser revistas. Mas como compaginar isso com o realojamento futuro dos inquilinos existentes? Aumentar a área de construção? Mas isso implicaria aumentar as cérceas, o que pode não ser possível pelo RGEU e pelas disposições camarárias. E como é que o senhorio, ou a entidade que pretende reabilitar, consegue resolver estes problemas em face dos constrangimentos actuais?

Nesta situação absolutamente perversa, cada vez que há uma derrocada, procura-se encontrar bodes expiatórios: os senhorios (que às vezes nem existem); as Câmaras, que frequentemente não têm capacidade legal de intervirem ou, se têm, o que há a fazer é de tal monta, que não têm dinheiro suficiente; etc. Mas os culpados somos todos nós, na pessoa do Estado português. E às vezes quem tem ganho com a situação são aqueles que depois mais esbracejam e gritam frente às câmaras de TV.

Está prevista uma nova lei do arrendamento urbano. Não me posso pronunciar porque desconheço o seu conteúdo. Espero apenas que quer os lobbies das corporações comerciais, quer os ícones da filantropia social não conduzam os legisladores a situações dúbias, em que apenas mudem as vítimas e os beneficiários, mas o mercado continue sem funcionar.

Publicado por Joana às agosto 5, 2004 08:55 PM

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Comentários

(...) E às vezes quem tem ganho com a situação são aqueles que depois mais esbracejam e gritam frente às câmaras de TV. (...)

Joana , o que vale é que é só "às vezes" e isso não significa que seja Sempre, Quase Sempre ou Maioritáriamente.

ps: Vc gosta muito de Adam Smith mas o "riqueza das nações" nunca seria ministro deste goveno ilegítimo e de iniciativa presidencial.

Publicado por: zippiz às agosto 5, 2004 10:46 PM

Mercado, sempre o Mercado. O que precisamos é de justiça social

Publicado por: cisco Kid às agosto 6, 2004 01:26 AM

Foi a mania da justiça social que conduziu a esta calamidade pública e às injustiças que estamos assistindo.
Cisco: será que náo percebeu?

Publicado por: Sargão às agosto 6, 2004 01:35 AM

nem tudo está perdido
sempre temos os condomínios fechados.

Publicado por: zippiz às agosto 6, 2004 01:43 AM

Boa zippiz

Publicado por: z às agosto 6, 2004 10:47 AM

Chegou-se a uma situação tal que só com um grande choque se poderá sair dela. Se se conseguir.

Publicado por: Ricardo às agosto 6, 2004 10:51 AM

Uma das inquilinas do prédio que ruiu pagava 22 cêntimos de renda.
Como seria possível fazerem obras?

Publicado por: Adalberto às agosto 6, 2004 11:45 AM

Segundo ouvi dizer a renda mais alta naquele prédio er de 20€

Publicado por: Jota às agosto 6, 2004 11:51 AM

Depois vêm acusar os senhorios de não fazer obras ...

Publicado por: Coruja às agosto 6, 2004 01:07 PM

Muito se fala sobre o congelamento dos arrendamentos para habitação. E não hesito em subescrever inteiramente o comentário da Joana sobre este assunto. (Curiosamente, esta foi uma situação largamente criada nos idos anos 60 e que nenhum governo se atreveu a mudar de forma substancial).

No entanto a situação assume foros de verdaeiro escandalo no que diz respeito aos arrendamentos comerciais. Não só os proprietários são constrangidos a aceitar rendas sem qualquer relação com a realidade do mercado, como têm de assistir passivamente às transações milionárias de que são objecto os seus bens, por via dos trespasses, sem daí puderem retirar qualquer proveito. Pior se pretenderem reassumir a posse plena do bem imovel não têm outra alternativa senão comprarem ... o que supostamente lhes pertence.

Neste caso nem se pode invocar o fim social (embora alguns grupos de "pequenos comerciantes" gostem de assumir o papel de "calimeros"). Todavia é espantoso que este regime não tenha ainda sido alterado. Diz um pouco do espírito que anima um certo capitalismo nacional.

Publicado por: Carlos às agosto 6, 2004 09:47 PM

Ola Joana, ja ha muito tempo que nao vinha aqui.
Continua tudo bem, como vejo.
Tem razao quanto as leis do arrendamento em Portugal. Fazem pior do que se nao existissem

Publicado por: Filipa Zeitzler às agosto 7, 2004 06:04 PM

Querem é ganhar balúrdios com a especulação

Publicado por: rodes às agosto 7, 2004 07:52 PM

O Marcelo falou ontem que o Arrendamento Comercial ficaria de fora. Seria o cúmulo.
Nem quero acreditar

Publicado por: Sa Chico às agosto 9, 2004 01:40 PM

S Chico: também vi isso. Não posso acreditar. Isso seria a negação do que se pretende com a actualização das rendas.

Publicado por: Vitapis às agosto 9, 2004 05:24 PM

Actualizam as dos desgraçados, e aqueles que têm que ter dinheiro para pagar ficam-se a rir.

Publicado por: Vitapis às agosto 9, 2004 05:25 PM

AUTHOR: absin
EMAIL: absi@mail.ru
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DATE: 02/27/2005 10:14:26 AM

Publicado por: absin às fevereiro 27, 2005 10:14 AM

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