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maio 26, 2004

País Miserando

Manuela Ferreira Leite achava-se num impasse. A crise orçamental estava a exigir um desgaste tremendo à máquina governativa. Só em consumo de Directores-Gerais de Impostos o ritmo era impressionante. Era pois preciso, com carácter de urgência, um Director-Geral dos Impostos de alta performance, com elevado índice de octanas, ou a ministra corria o risco de esgotar os stocks, já bastante exaustos, daquele consumível.

Com a argúcia e o olhar de águia que a caracteriza, quando não está a preencher as declarações de IRS, a ministra decidiu ir aprovisionar-se de Directores-Gerais de Impostos fora de uma função pública exaurida de competências, incapaz de despertar de uma sonolência secular.

Confrontou-se então com um problema: o leque salarial no sector privado tem uma amplitude muito superior ao da função pública. O pessoal pouco qualificado é mais mal pago no sector privado, enquanto que, à medida que a qualificação sobe, o pessoal do sector privado é cada vez mais bem pago, em comparação com o da função pública. Isto é compreensível. A função pública não se rege por critérios de competitividade. Rege-se por critérios de antiguidade e de carreiras baseadas em habilitações académicas e tempo de serviço, independentes do desempenho profissional. Na função pública promove-se a antiguidade e não o mérito.

A ministra resolveu este problema com elegante simplicidade: colocou a fasquia salarial do novo Director-Geral dos Impostos ao nível dos salários do sector público. No caso vertente, o novo Director-Geral dos Impostos vai ganhar o mesmo que ganhava no Millenium-BCP (23.500 euros mensais).

O vencimento do novo director-geral de Impostos causou espanto. Nalguns casos, até indignação. E os sindicatos falaram mesmo de revolta. Afinal, é mais do que a remuneração da ministra...

O caso serviu para alimentar de sangue o vampirismo dos portugas, que exuma sempre que fareja o vil metal em mãos de outrem. Ferro Rodrigues considerou mesmo aquela contratação "um insulto aos quadros da Administração Pública ... qual a autoridade moral da ministra das Finanças para com os restantes funcionários públicos", questionou no debate mensal de hoje, no Parlamento. PC, alinhando pela teoria da conspiração capitalista clama contra «o superboy, SA». O sindicato considerou a contratação uma «afronta ideológica e política à função pública» e garantiu que existem, a preço de saldo, na dita função pública «15 a 20 pessoas» tão capazes como o Dr. Paulo Jorge. O dirigente sindical esqueceu-se que, actualmente, se preferem os artigos de marca, aos saldos. Um analista político sugeriu haver um risco para a «estabilidade da alta administração» e um ataque à noção de serviço público e da devoção pela coisa pública inerente a esse serviço.

O grave desta questão é que, talvez com a excepção do dirigente sindical, todos têm razão. E todos têm razão porque a função pública bateu no fundo. Mas todos têm razão porque cada um vê o problema segundo a sua óptica estreita.

A ministra tem razão em que é preciso uma lufada de ar fresco e uma visão empresarial para reorganizar os serviços. Mas a ministra já está no governo há dois anos. Já despediu vários Directores-Gerais. Não seria preferível ter começado por reformar a administração pública?

A ministra poderá contrapor que esta era uma medida urgente e que a reorganização da função pública demorará alguns anos a ser conseguida. É um facto, mas por isso mesmo já deveria ter começado há muito. E o que é que tem sido feito nesse sentido? Muito pouco, para a tarefa ciclópica que é a de modernizar uma administração pública com vícios seculares, com uma qualificação baixa e uma produtividade baixíssima. A reforma deveria ter sido desencadeada logo no início desta governação.

O PS tem formalmente razão. Mas que fazer? Reformar a função pública? Mas se o PS não o fez quando governo e, quando oposição, tem apoiado a contestação sindical a todas as medidas, por muito tímidas que sejam, que o governo pretende tomar relativamente àquele desiderato.

O PCP tem razão dentro da sua óptica de defesa dos interesses corporativos, independentemente do interesse geral do país. Foram estratégias desse tipo que levaram à implosão das economias “socialistas” da Europa do Leste. Como os preços eram administrativos e não regulados pelo mercado, as remunerações dos factores de produção regeram-se por critérios igualmente não-económicos, o que levou à completa ruína dessas economias. O PCP limita-se a seguir os seus instintos primitivos. Racionalidade é coisa a não esperar dos seus dirigentes.

Arguir que esta nomeação é um ataque à noção de serviço público e à devoção pela coisa pública inerente a esse serviço é, formalmente, uma verdade. Mas será que ainda existe essa noção? Certamente que haverá funcionários públicos com a noção de serviço público, mas são seguramente uma minoria cada vez menos significativa. E mesmo os que têm essa noção, será que estarão a seguir os procedimentos mais adequados? Não estarão, com devoção, cristalizados em métodos antiquados e obsoletos?

É um facto que esta contratação pode ser tomada como uma «afronta ideológica e política à função pública». Mas não será igualmente uma «afronta ideológica e política» a recusa da função pública em se deixar reformar? Quando o governo encetou o processo do Código Laboral, que se destinava ao sector privado, quem fazia as greves de protesto era o sector público. Porquê? Obviamente como uma manobra de antecipação, para dissuadir o executivo de cair igualmente em tentações reformistas no que respeita à função pública.

Resumindo: ao fazer esta contratação a ministra reconhece um facto evidente – a administração pública está financeira e moralmente falida. Mas o papel de um ministro não é apenas o de diagnosticar situações. O diagnóstico é apenas uma primeira fase do tratamento de um problema. Falta resolvê-lo. E aqui a ministra e este governo têm tido uma acção insuficiente. Fazem diagnósticos, enunciam algumas medidas, mas só muito timidamente tentam implementar algumas.

Publicado por Joana às maio 26, 2004 10:22 PM

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Comentários

Mais uma vez, infelizmente, tem razão.
Esta contratação, e a celeuma que levantou, é o espelho da situação em que estamos

Publicado por: Hector às maio 26, 2004 11:41 PM

É um escândalo pagarem 8 ou 9 vezes mais que um director geral normalmente ganha.
Só este governo faria tal coisa

Publicado por: Cisco Kid às maio 26, 2004 11:44 PM

Só este governo?
Então o tipo da TAP não está com um ordenado julgo que superior a este?
E foi posto pelo PS!

Publicado por: Mocho às maio 27, 2004 12:03 AM

O PS quando vai para o governo, governa à direita. Por isso não é de admirar.

Publicado por: Cisco Kid às maio 27, 2004 12:10 AM

O PS quando vai para o governo, governa à direita. Por isso não é de admirar.

Publicado por: Cisco Kid às maio 27, 2004 12:10 AM

Pronto, então se é assim, não é de admirar que o PSD vá para o governo e governe à direita.
É o vício do governo.

Publicado por: Mocho às maio 27, 2004 12:14 AM

Joana,
em vez de 3 directores gerais por ano , porque é que não despedem a ministra ?
além de termos uma ministra que não cumpre as "regras fiscais" , temos um governo de "reformas" que não consegue reformar a administração pública .
então, os incompetentes não são os DG's mas o governo e a ministra .

Publicado por: zippiz às maio 27, 2004 12:39 AM

Despedir a ministra?
Por aquele ordenado não arranjam outra!

Publicado por: fbmatos às maio 27, 2004 01:00 AM

É que também no governo já não há devoção pelo serviço público

Publicado por: fbmatos às maio 27, 2004 01:01 AM

Cum uma Ministra com problemas genéticos de amnésia que se esqueceu de declarar 3 mil contos de mais valias e um Primeiro Maoísta Neo-Liberal saltinbanco, estão à espera de quê? Que a Senhora de Fátima nos valha! Amém...

Publicado por: Luis António Viriato às maio 27, 2004 04:47 PM

Lá está o nosso especialista de Manelas

Publicado por: David às maio 27, 2004 05:18 PM

Foi descoberto outro director do fisco com ordenado de privado.
É da informática

Publicado por: Rui Pereira às maio 28, 2004 02:21 PM

Bem, a informática compreende-se. Duvido que exista gente com competência suficiente nessa matéria na função pública

Publicado por: Gros às maio 28, 2004 09:31 PM

O país e tu - miseráveis

Publicado por: z às junho 17, 2004 11:47 PM

O país e tu - miseráveis

Publicado por: z às junho 17, 2004 11:48 PM

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Publicado por: z às junho 17, 2004 11:48 PM

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Publicado por: z às junho 17, 2004 11:48 PM

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Publicado por: z às junho 17, 2004 11:48 PM

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Publicado por: z às junho 17, 2004 11:48 PM

O país e tu - miseráveis

Publicado por: z às junho 17, 2004 11:49 PM

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