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abril 02, 2004

As barbas de molho

As eleições francesas, como as eleições parciais que tem havido na Alemanha, deveriam constituir matéria de reflexão para a actual coligação no poder em Portugal. E igualmente as eleições espanholas, embora o seu enquadramento tenha sido diferente e houvesse factores exógenos que não terão sido despiciendos nas escolhas do eleitorado.

O modelo social europeu está em crise. Mesmo nos países em que a administração pública tem um nível apreciável de eficiência, esse sistema social está financeiramente em falência.

Há diversas razões para que tal aconteça e não me vou alongar sobre cada uma delas, visto constituírem matéria para uma debate bastante extenso. Sumariamente dir-se-á que o modelo foi criado numa época em que a pirâmide etária e a relação entre a população activa e a reformada permitia que as contribuições da primeira subsidiassem as reformas da segunda mais as prestações relativas à maternidade e à educação dos jovens, isto para além de outras transferências sociais vultuosas: saúde, defesa, justiça, etc..

Nas últimas décadas tem havido uma modificação progressiva das proporções entre os diversos segmentos etários e as previsões indicam que a situação se continuará a agravar: cada vez a percentagem dos contribuintes será menor no contexto da população total. Por outro lado, não é possível aumentar as contribuições de quem trabalha, e das empresas, mais que um certo limiar, pois o Estado-Providência já obriga a uma fiscalidade elevada.

Ora sucede que cada vez mais a Europa concorre com os «tigres» asiáticos, com encargos sociais muito reduzidos ou nulos e com baixo nível de fiscalidade. A própria juventude dessa população ajuda a baixar esses níveis de transferências sociais, já de si reduzidos. Concorrendo com empresas com custos muito menores, as empresas europeias perdem competitividade

Como é possível lutar contra essa situação? Uma das formas é aumentar a produtividade. E, neste caso, esse aumento terá que passar por produzir bens ou serviços com elevado valor acrescentado e cuja concorrência se faça mais pela qualidade do que pelo preço. A Europa tem que apostar na inovação tecnológica e na diferenciação dos bens e serviços.

Mas esse eixo de luta não é suficiente, pelo menos a curto prazo. Passa pela iniciativa privada, por incentivos do Estado para a motivar e pela melhoria do sistema educativo, nomeadamente o ensino profissional e a investigação. Os seus resultados, admitindo que essa política seja conduzida de forma eficiente, só se irá traduzir em resultados palpáveis a médio e a longo prazo.

O outro eixo de luta é a reforma do Estado-Providência. Em primeiro lugar torná-lo mais eficiente. Durante anos curou-se de debater a justiça da gratuitidade da prestação de serviços públicos, descuidando quer a eficiência desses serviços - a sua relação qualidade-preço – quer o facto de que eles são na realidade pagos através das nossas contribuições, quer ainda a sua insuficiência em matérias como a pobreza e exclusão social.

Tomemos o caso da Educação. As despesas públicas em educação em Portugal (5,7% do PIB) superam a média europeia (5%) e estão muito próximas, por exemplo, da Finlândia (6%), um dos países com melhores níveis de desempenho em todos os indicadores. Mas quando se fala na política de educação e da necessidade de melhorar os seus resultados, quer relativamente a este governo, quer a outro qualquer, é mais dinheiro que se exige. E, todavia, Portugal consegue ser o país que mais gasta com a educação e pior desempenho tem neste domínio.

E o mesmo sucede noutras áreas da administração pública, nomeadamente na saúde, talvez o maior sorvedouro do dinheiro que nós, contribuintes, entregamos ao Estado. Também aqui o dinheiro que se gasta não tem qualquer comparação com a qualidade do serviço que é retribuído aos utentes. E quando se propõe qualquer reforma no intuito de tornar o seu desempenho mais eficiente aparece, demagogicamente, o fantasma do «serviço público», como se serviço público fosse sinónimo de gastar sem peso, conta e medida.

Outra reforma que dificilmente deixará de ter que se fazer, a menos que o declínio demográfico se inverta e a imigração supra algumas das carências, é a do prolongamento do período de vida útil. Na Europa central este assunto está na ordem do dia e tem sido objecto de protestos maciços. Em Portugal, onde a situação demográfica não é tão grave (embora a maior ineficiência da máquina estatal a torne financeiramente quase tão grave) tem-se ensaiado timidamente alguns passos.

Portanto, a questão da reforma da administração pública é urgente e inadiável. Aqui, porém, entramos num domínio difícil, que os políticos e os sindicatos têm preferido ignorar, mesmo quando - ou até sobretudo quando – a discutem.

A deterioração da imagem do serviço público, ligada à lentidão e à ineficiência exige que a reforma do Estado se centre em três pontos fulcrais: a busca permanente do aumento de eficiência da máquina pública, por intermédio da racionalização e do incremento da produtividade; a melhoria continuada da qualidade na prestação dos serviços públicos, visando atender aos requisitos da sociedade no que diz respeito à satisfação das suas necessidades sociais básicas e o resgate do serviço público como instrumento de expressão da cidadania e fórum de aprendizado social.

Todavia tem que se ter em conta que a obrigação de obter resultados eficientes na modernização do sector público necessita que os responsáveis pelas diversas unidades deste sector se tornem protagonistas relevantes dessa mudança. Ora a burocracia estatal e autárquica estabelece uma relação de interdependência com os demais grupos da sociedade. Essa interdependência é frequentemente caracterizada como clientelismo. Mas o desenvolvimento dessas relações é contraditório e conflituoso, pois o poder não se exerce de forma monolítica, apresentando clivagens que consolidam diferentes interesses, embora sejam sempre apresentados como “interesse público’.

Portanto, a modernização do aparelho do Estado deve contemplar a mudança no entendimento do significado do “interesse público” que não pode ser confundido com o interesse do próprio Estado, ou dos interesses corporativos dos grupos no interior desse aparelho.

Torna-se então claramente perceptível o estreito vínculo que existe entre o processo de modernização do aparelho do Estado e uma gestão inovadora dos recursos humanos desse mesmo Estado. A mudança da cultura burocrática é o fulcro da transformação, e a questão da qualificação profissional ganha então um novo significado. A valorização do funcionário representa a base do processo de construção colectiva do novo paradigma orientado para o cidadão e realizado pelo conjunto do funcionalismo de forma participativa. Isto não significa, necessariamente, mudar sistemas, organizações e legislação, mas sim criar as condições objectivas de desenvolvimento das pessoas que conduzirão e realizarão as reformas.

Para tanto, necessita-se requalificar a força de trabalho. É preciso que a nova estrutura se apoie no conhecimento humano. Assim, os trabalhadores devem ser capazes de mudar o seu enfoque de uma tarefa para outra de acordo com as prioridades e com as mudanças impostas exogenamente. Precisam habituar-se à mobilidade laboral, quer ao nível das tarefas, quer ao nível do local. Por isso, um dos aspectos mais importantes para o alcance de um bom nível de eficiência, é a questão da qualificação dos membros da organização. Essa qualificação permite que as pessoas enfrentem, de forma menos traumática, os desafios profissionais.

Cabe ainda salientar que esse processo de mudança não deve ser visto como a busca por um modelo definitivo, mas a procura de uma forma de estrutura organizacional menos rígida, mais ágil, constantemente adaptável a modificações contínuas.

Portanto, a reforma do aparelho do Estado passa pela adesão dos funcionários a essa reforma e por eles sentirem a sua necessidade em face dos anseios da sociedade civil. Não pode ser posta como uma política contra eles, mas sim com eles.

É óbvio que numa reforma da administração pública haverá gente que terá que ser reafectada a outras tarefas e, eventualmente, dispensada. Mas este último caso será a excepção. Uma organização deve reestruturar-se e reorganizar-se com as pessoas que tem. Criar uma organização com seres ideais entra no domínio da ficção. Deve gerir-se o material humano que se dispõe e não seres ideais, perfeitos e inexistentes.

Nada disto está a ser feito ou sequer planeado, ao que julgo saber, em Portugal. O Governo, em face da situação lamentável que encontrou, está apenas a atacar alguns sintomas. A administração é dispendiosa? Congelam-se os vencimentos e as admissões. E fazem-se declarações ad terrorem que servem para lançar o pânico no funcionalismo público, mas não têm qualquer efeito positivo. Pelo contrário, declarações desse tipo têm normalmente como consequência uma diminuição de produtividade.

E têm outra consequência: o governo não reforma a administração pública, não implementa medidas que, em alguns segmentos, seriam impopulares, mas fica com o ónus de algo que não fez, mas apenas ameaçou. O governo continua a não conseguir controlar a despesa pública, mas fica com o ónus do congelamento salarial. Este governo pode muito bem vir a ter uma punição idêntica ao governo de Raffarin, em França. E se a tiver terá que se culpar, em primeiro lugar, a si próprio.

Poderá alegar que a oposição tem sido demagógica. Mas essa é, frequentemente, a política da oposição. Por isso é que o governo deveria ter agido com competência e determinação, reformando e explicando a necessidade e o alcance das reformas.

É claro que as reformas terão que ser feitas e quanto mais tarde o forem, mais custosas serão e mais sacrifícios exigirão. E têm que ser feitas porque ao estarmos no sistema monetário europeu temos que cumprir, obrigatoriamente certas regras. Não podemos usar a política monetária e a desvalorização cambial para diminuir a despesa real, como acontecia antigamente.

Se não for este governo que as faça, o próximo será obrigado a fazê-las. Se o não conseguir, será o que lhe suceder. Entretanto o país estagnará economicamente e chegará a um limiar em que o eleitorado deixará de se iludir com promessas de vida fácil e resignar-se-á à inevitabilidade das reformas.

Publicado por Joana às abril 2, 2004 07:48 PM

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Comentários

Excelente a sua análise. Este governo diz que faz, mas não faz. Os sindicatos e a oposição atacam-no pelo que ele diz que faz, mas que não faz.
Você devia ter aceitado. Não me diga que foi pela sua recusa que o Durão decidiu não ir à TV fazer o anuncio da remodelação.

Publicado por: Ventura às abril 3, 2004 06:59 PM

E daí talvez não devesse. De fora criticam-se as coisas, mas depois, lá dentro, não se consegue fazer nada.

Publicado por: Ventura às abril 3, 2004 07:01 PM

A análise é lúcida. Infelizmente, na vida real, não se consegue levar nada à prática, quer por incompetência de uns, quer por sabotagem dos outros

Publicado por: Ricardo às abril 3, 2004 07:45 PM

Viva, vizinha.

Uma blogopédia nunca poderá ser uma obra de referência se não contar nas suas entradas com o Semiramis.
É por isso que venho pessoalmente convidá-lo a dar a conhecer à blogosfera a história deste blog.

Apareça em www.blogopedia.blogspot.com e preencha o guestbook para eu ter o prazer de linkar este incontornável blog na Enciclopédia dos Blogs.

Um abraço do
Vizinho

Publicado por: O Vizinho às abril 4, 2004 12:22 AM

Uma das causas da estagnação da Europa é a da falta de coragem política dos seus líderes.
O problema não é apenas português e não é apenas da esquerda.
A esquerda, devido à sua herança e ao seu eleitorado, na oposição é violentamente contra as reformas, mas quando está no governo e se decide a fazê-las, tem mais capacidade de as fazer que a direita, pois acaba por convencer parte do seu próprio eleitorado da necessidade das reformas.

Publicado por: Vitapis às abril 4, 2004 04:00 PM

Adoro estas lapidares análises políticas.
# : - ))
É pena que a realidade não se altere para as acompanhar...
É como aquela sondagem no Iraque. Os experts concluiram que é tudo simpatia calorosa para com os americanos. Infelizmente, esqueceram-se de a dar a ler aos iraquianos e é o que se vê. É mais calor que simpatia...

Publicado por: (M)arca Amarela às abril 4, 2004 06:28 PM

Vitapis - Se a esquerda tem mais capacidade de as fazer que a direita, que se espere pelo governo de esquerda.
Foi pena o Guterres não ter continuado, para fazer as reformas.

Publicado por: Arroyo às abril 4, 2004 07:34 PM

O Estado Social não pode acabar porque é um dos maiores símbolos da Europa e da solidariedade social

Publicado por: Broteus às abril 4, 2004 10:10 PM

Claro que poderá haver reformas, mas nunca que o descaracterizem

Publicado por: Broteus às abril 4, 2004 10:11 PM

O fim do estado social é que os capitalistas queriam. Mas não vão ter sorte nenhuma.
O povo vencerá

Publicado por: Cisco Kid às abril 4, 2004 10:25 PM

A crise do Capitalismo Ocidental.

A sua análise só vem provar, que nem à direita, nem à esquerda se resolve o problema económico e pior ainda para um País como o nosso, que não consegue acertar de uma vez por todas, o caminho.
Umas vezes pensamos em Turismo, outras em Industria, outras até em agricultura.

EXISTEM 2 TIPOS DE pAÍSES , OS QUE PRODUZEM E OS QUE NÃO PRODUZEM.

Nós pertencemos aos que não produzem.

E se não fossem os emigrantes que temos a enviarem as suas poupanças para cá...seria um desastre mesmo.

Urge repensar as "industrias do Turismo e Lazer " bem como as da 3ª Idade. Ou seja existe um mercado mundial apetecível, que é cativarmos os Reformados dos Países ricos, com boas reformas, para se fixarem aqui. É verdade que já temos alguns, mais pelas iniciativa deles, do que pela nossa. Há que aproveitar muito bem o Euro2004 para publicitarmos eesa ideia, " Venha viver para Portugal, com a sua Reforma " !

Publicado por: Templario às abril 5, 2004 11:10 AM


A Indústria da 3ª Idade


Em Portugal ela já é a "Industria " que maior crescimento tem tido.
Muito se tem investido nesta indústria e as condições hoje oferecidas, melhoraram a olhos vistos.

Há no entanto ainda, muitos e muitos serviços adjacentes que podem crescer. Por exemplo : bons cuidados médicos, enfermagem, turismo/passeios, gabinetes de massagens, actividades desportivas etc.etc.
Em resumo a 3ª idade é capaz, e tem poder económico para movimentar variadíssimos serviços.

A retoma deste País tem que se dar, com o nosso mercado, se querem apelar, apelem aos reformados dos Países ricos, eles que venham, que nos pagarão o deficit num instante.

Ao Trabalho !

Publicado por: Templário às abril 5, 2004 11:34 AM

Pelo que tenho lido, parece não haver saída. Ou com a direita ou com a esquerda, teremos que pagar a factura

Publicado por: David às abril 6, 2004 02:29 PM

É de facto impossível de sustentar o sistema social tal como existe actualmente. A questão é saber como sair do buraco, istoe é, arranjar a saída melhor para todos e convencer as pessoas que tem que haver alguns cortes de regalias.

Publicado por: Hector às abril 6, 2004 11:36 PM

Quero eu dizer tem que se tem que convencer as pessoas que a alternativa a haver alguns cortes de regalias é a recessão económica.
É preferível uma actuação prévia que modere os custos da alteração, que deixar a situação degradar-se com custos muito maiores.

Publicado por: Hector às abril 6, 2004 11:39 PM

AUTHOR: absin
EMAIL: goch@does.it
IP: 194.63.235.139
URL:
DATE: 02/27/2005 08:31:16 AM

Publicado por: absin às fevereiro 27, 2005 08:31 AM

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