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abril 26, 2004

A Tia Artrítica e os Irredutíveis

Finalmente havia-se encontrado uma solução para a situação incómoda em que se encontrava a ilha de Chipre. Em 1974 o norte de Chipre foi invadido pelas tropas turcas, numa acção coordenada entre a Turquia, EUA e Grã-Bretanha (cf . Henri Kissinger - Years of Upheaval). Tudo gente amiga da União Europeia. As tropas turcas ocuparam cerca de 40% do território (3.355 km2 num total de 9.250 km2), apesar da população turca constituir menos de 18% da população. Muitos milhares de cipriotas gregos foram expulsos do norte da ilha. Uma centena de milhares de colonos turcos, provenientes da Anatólia, foram ocupando esse vazio. Os turcos proclamaram a RTNC (República Turca do Norte de Chipre), apenas reconhecida pela própria Turquia.

Passaram-se 30 anos. A parte sul de Chipre, tornou-se a pequena Suíça do Mediterrâneo. O Chipre que vai aderir à UE a 1 de Maio é uma pequena nação com um grande dinamismo económico, com um PIB e com um nível educacional superiores aos nossos. Chipre superou o seu passado de colónia britânica e as destruições e as vagas de refugiados provocadas pela invasão turca.

Se para a maioria dos países candidatos à UE a questão económica é que tem pesado, no caso de Chipre sempre se tratou de uma necessidade geoestratégica para a proteger da Turquia. Provavelmente o cidadão cipriota grego será mais um «contribuinte» que um «beneficiário» dos fundos europeus.

A UE e a ONU cozinharam um plano de união para resolver esse problema incómodo. Koffi Annan disse que o seu plano era complexo porque foi elaborado com o principal objectivo de garantir a segurança dos cipriotas de ambos os lados da ilha. Garantia a segurança de cristalizar e reconhecer a ocupação de quase todo o norte da ilha pelos turcos (apenas 7% era retirada); garantia a segurança de que «alguns colonos» turcos seriam repatriados, sabe-se lá quando e quantos; garantia a segurança de que a força ocupante de 30.000 soldados turcos se iria retirar num prazo longo, lentamente, lá para as calendas «cipriotas». E os cipriotas turcos e a maior parte dos colonos tornavam-se cidadãos europeus de direito.

A UE, os EUA, a Grécia, a Turquia e a ONU pediram aos cipriotas gregos para não deixarem escapar esta oportunidade de resolver um conflito de décadas. Bastava desistirem do que era deles por direito. Aos pedidos seguiram-se mais garantias. A estas seguiram-se ameaças de isolamento internacional e ostracização em Bruxelas. A tia, velha e artrítica, não gosta de problemas difíceis de resolver. Os cipriotas que fossem bons alunos!

Mas os cipriotas gregos não quiseram ser bons alunos. Quanto mais os ameaçavam, mais eles ficavam relutantes em aceitarem o plano. As pressões americanas, interessados que a Turquia, uma aliada imprescindível, angariasse um visto para a Europa, caíram muito mal em Chipre. Nem os EUA, nem a Grã-Bretanha, antiga potência colonial, conseguiram convencer os cipriotas gregos que aquelas pressões eram apenas uma prova de amizade e não tinham nada a ver com uma atitude pró-turca. Ninguém os conseguiu convencer porque razão representando os cipriotas turcos perto de 18% da população, tinham que ficar com mais de 30% da superfície da ilha. Ninguém os conseguiu convencer que as garantias que agora lhes davam eram mais firmes que as anteriores resoluções da ONU que ficaram todas no papel.

No sábado, os cipriotas gregos recusaram o plano apresentado pelo secretário-geral da ONU por cerca de 76% dos votos, uma votação maciça. Os cipriotas turcos, apesar da campanha de alguns dos seus dirigentes pelo não, aprovaram o plano com perto de 65% dos votos.

Estes resultados acabaram com as esperanças de que toda a ilha de Chipre pudesse entrar na União Europeia, a 1 de Maio. Estes resultado implicam a manutenção da divisão da ilha, e apenas legitima a adesão à União Europeia, no próximo dia 1 de Maio, da República de Chipre, a "parte grega" da ilha internacionalmente reconhecida.

A União Europeia, a tia velha e artrítica, ficou «consternada». Como é possível, numa pequena ilha do leste do Mediterrâneo, um povo, cercado por 30.000 soldados turcos, cujas únicas armas que tem é a sua férrea vontade de não ceder e a sua capacidade de subir na prosperidade a pulso, sem fundos alheios, fazer uma desfeita destas?

Como é que a tia velha e artrítica vai dirimir esta herança, um imbroglio territorial em que parte do seu território vai ficar ocupada por um exército invasor, ilegalmente? E receber no seu seio, no dia 1 de Maio, um país de irredutíveis, ainda por cima com direito de veto? Que aborrecimento! A União Europeia não merecia isto!

Já se fala em Bruxelas em retaliações. Com toda a razão. Uma a tia velha e artrítica tem mais facilidade em engrossar a voz com um pequeno povo de 600 mil habitantes que com uma potência regional de 70 milhões de habitantes de quem os EUA necessitam, principalmente agora, com a crise iraquiana.

O problema é que estes irredutíveis não precisam de dinheiro. Isso já mostraram que sabem fazer. O que eles querem é protecção e não ficar à mercê da gulodice turca. Ora a Europa apenas sabe dirimir os problemas dando ou retirando dinheiros. Uma a tia velha e artrítica apenas se impõe aos sobrinhos-netos pela chantagem das dádivas. Se há um sobrinho-neto imune ao vil metal lá se vai a força da tia. Ele quer protecção? Mas se a tia está cheia de achaques e mal se consegue mover no sofá! Uma tia que quando tem que se mostrar militarmente forte, precisa de bajular o parente americano.

E a Turquia, que tão prestimosa tem sido em alguns lugares da cena internacional, a troco das potências ocidentais fecharem os olhos sobre a situação dos direitos humanos, da minoria curda, etc., que se vai encontrar, a partir de 1 de Maio próximo, na desconfortável posição de ocupar parte do território europeu, pela força das armas e ilegalmente? E ainda por cima uma Turquia que se apresenta como candidata à adesão?

Dava tanto jeito varrer este problema para debaixo do tapete … Bruxelas está mesmo muito aborrecida!

Publicado por Joana às abril 26, 2004 10:30 PM

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Comentários

gostei !

Publicado por: zippiz às abril 27, 2004 12:35 AM

Visto o problema na simplicidade meridiana que você expõe, você está cheia de razão.
Todavia a Turquia é a Turquia ... e não sei se seria preferível os cipriotas gregos terem aceite o plano. Mais vale um pássaro na mão ...
O futuro dirá.
E a Europa (como você outro dia escrevia, cheia de razão) não tem actualmente líderes capazes.

Publicado por: Vitapis às abril 27, 2004 01:21 AM

Uff, zippiz! Até que enfim!

Publicado por: Joana às abril 27, 2004 09:04 AM

Afinal desta vez não "bajulou" os américas. Teve uma crise?

Publicado por: Cisco Kid às abril 27, 2004 09:11 AM

Estão mesmo com desejos de vingança. Fala-se que vão dar 280 milhões de euros aos cipriotas turcos

Publicado por: David às abril 27, 2004 11:48 AM

Também gostei.

È melhor ir dando umas opiniões positivas de vez em quando, para não alimentar uma certa tendencia da Joana para se considerar perseguida (vulgo mania da perseguição).

Já agora, Joana, sabia que uma boa parte da prosperidade de Chipre vem do shipping, por ser um registo de navios bastante procurado ?

Publicado por: LA às abril 27, 2004 12:34 PM

Parece que este insert está a ter um certo consenso.
Até o Cisco!!

Publicado por: David às abril 27, 2004 12:46 PM

Tem piada e infelizmente é verdade.

Publicado por: VSousa às abril 27, 2004 06:37 PM

Está certo. Também concordo.

Publicado por: Mocho às abril 28, 2004 01:23 AM

A Joana está a perder qualidades.
Até já consegue consenso!

Publicado por: Marapião às abril 28, 2004 04:10 AM

Vitapis em abril 27, 2004 01:21 AM

“Mais vale um pássaro na mão ...”
A sério? Mesmo morto e atirado como esmola?

O outro é que tinha razão:
“Quando pobre come galinha, um dos dois está doente.”

Publicado por: Marapião às abril 28, 2004 04:16 AM

Marapião, você tem razão em teoria. Na prática, e com a força que a Turquia tem e com a Europa a querer ir pelo caminho menos chato, não sei se terá sido a melhor solução para os cipriotas gregos

Publicado por: vitapis às abril 28, 2004 09:57 AM

Acho que os cipriotas gregos fizeram o que deviam. Compete à UE agir de acordo com a legalidade internacional e não com interesses mesquinhos.

Publicado por: gros às abril 28, 2004 12:56 PM

Parece-me que os cipriotas gregos são quem mais bem sabe o que é melhor para os cipriotas gregos.
Por isso não alinho no alegado «consenso» em torno do escrito de Joana.
Registo, no entanto, a qualificação da União Europeia como «tia velha e artrítica» que está «cheia de achaques».
Vou aguardar o dia em que Joana apareça a defender a eutanásia.

Publicado por: (M)arca Amarela às abril 28, 2004 08:22 PM

desconheço totalmente os factos históricos que estão na base da invasão da parte norte da ilha de chipre pelos os turcos , mas se essa invasão vai contra o direito internacional e é uma situação parecida com a de Timor, fico muito surpreendido (ou talvez não) com o comportamento miseravel da união europeia.
Se a ilha foi ocupada ilegalmente com expulção dos residentes e subsequente colonização turca fico completamente estarrecido pela cobertura cobarde que a UE e ONU esta a dar á ocupação Turca. Lá se vai a superioridade moral dos estados livres.
Realmente cada vez mais a politica externa comum europeia me parece uma miragem

Publicado por: Luis às abril 29, 2004 03:45 AM

Luís
A alegação turca era que a comunidade turca era maltratada e os seus direitos espezinhados.

Chipre tinha tido uma guerrilha colonial contra o ocupante britânico. Os ingleses, hábeis como são, devem ter explorado as diferenças entre a comunidade grega e turca (que só representava 18%). Portanto deveria haver desinteligências entre as 2 comunidades.

Por outro lado os EUA e o UK teriam receio de uma eventual radicalização de Chipre. Estava-se na guerra fria. Um pouco à semelhança de Timor.

Publicado por: Joana às abril 29, 2004 08:59 AM

O Público hoje dá guarida às posições dos turcos.
É a «velha Europa» ...

Publicado por: riuse às abril 29, 2004 12:59 PM

É.É uma chatice. E depois os cipriotas tinham um forte partido comunista. Era preciso dar-lhes no toutiço. As boas consciências nunca se incomodam quando são os comunistas a levar no toutiço.

Publicado por: (M)arca Amarela às abril 29, 2004 11:38 PM

E continua o namoro da UE e dos EUA com os "nortistas"!

Publicado por: riuse às abril 30, 2004 02:38 PM

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