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março 26, 2004

Entre-os-Rios

Ou de como é da Natureza das Coisas a culpa morrer solteira em Portugal

A decisão do juiz de instrução Nuno Melo, de não pronunciar nenhum dos 29 arguidos no processo da queda da ponte de Hintze Ribeiro era previsível. Para haver culpados de um crime, tem que haver provas. Como em Portugal há uma negligência geral no exercício da administração da coisa pública e, na maioria dos casos, a inexistência de procedimentos adequados para fiscalizar a acção quer dos agentes económicos, quer dos agentes da administração pública, resulta quase sempre impossível provar a culpa.

A culpa em Portugal morre solteira não por ausência de leis, não por ausência de justiça, mas pelo mau desempenho da administração pública e pela inexistência de procedimentos adequados para que esse desempenho possa ser melhorado, se torne eficaz e as responsabilizações e esferas de competência sejam inequívocas.

O processo tinha 29 arguidos: cinco técnicos da antiga Junta Autónoma de Estradas, o responsável por uma empresa projectista, 22 areeiros e o antigo presidente do Instituto de Navegabilidade do Douro, Mário Fernandes.

Quando li que os areeiros tinham sido indiciados, pensei logo que este processo não iria a sítio nenhum. É certo que uma das razões da queda do pilar deveu-se à extracção excessiva de inertes do leito do rio. Mas os areeiros estavam licenciados para extraírem os inertes pelas entidades competentes. Os areeiros não têm obrigação de perceberem de Hidrologia ou de Ordenamento Fluvial. Quem tem essa obrigação foi quem os licenciou.

Poderão dizer que, provavelmente, os areeiros extraíram inertes em demasia relativamente ao que as licenças previam. É provável que sim, mas onde estão as provas? Onde estão os autos de notícia das irregularidades nas extracções? Onde estão as contra-ordenações? Era obrigação do Instituto de Navegabilidade do Douro fiscalizar. Fez essa fiscalização em condições?

Por muito delituoso que possa ter sido o comportamento dos areeiros no que respeita a um eventual excesso de extracção de inertes, eles nunca poderiam ser condenados porque têm as suas licenças em ordem e ninguém pode provar o excesso de extracção.

Aliás, não é líquido que tenha havido excesso de extracção de inertes. Um relatório indicava que a extracção de areia tendia a ser autorizada "sem conta, nem peso, nem medida". Se era assim, o conceito de excesso de extracção da parte dos areeiros perde validade.

Um outro factor concorreu igualmente: a redução da alimentação do caudal sólido provocada pela retenção de sedimentos nas albufeiras existentes a montante no Douro e afluentes. Mas isso competia ao INAG, que tutela o domínio hídrico em Portugal, e ao Instituto de Navegabilidade do Douro avaliarem. Há poucos anos fizeram-se estudos sobre os Planos de Bacias, para todos os rios portugueses. E há um estudo sobre o Plano da Bacia do Douro feito por um consórcio privado para o INAG. Esse estudo deveria obrigatoriamente conter elementos sobre o fluxo de inertes ao longo do rio e seus afluentes e a situação do leito do rio. O estudo será fiável? Os seus resultados tiveram aplicação na apreciação dos licenciamentos aos areeiros?

Ora estas indefinições não permitem esclarecer se houve excesso de extracção de inertes, se houve redução da alimentação do caudal sólido, ou se houve o cúmulo dos dois efeitos. Deveria haver um sistema de monitorização, que permitisse determinar o nível das areias e a localização dos fundões. Todavia, não há nenhum sistema desses no nosso país, ao que julgo.

A entidade com mais responsabilidades parece ser o Instituto de Navegabilidade do Douro. Simplesmente o IND é uma amalgama difusa dos municípios da bacia do Douro, com fronteiras de responsabilidades igualmente difusas no que respeita à sua delimitação perante a DRA do Norte, o INAG e a CCRN. Basta ver que enquanto se discutia a responsabilidade política dos governos no atraso da construção da nova ponte, o berreiro dos autarcas da região era ensurdecedor. Assim que começaram a aparecer relatórios técnicos alertando para a responsabilidade do IND, o coro dos autarcas no branqueamento do IND foi imediato.

Depois temos as responsabilidades da ex-Junta Autónoma das Estradas (JAE) e dos institutos que lhe sucederam, como o Instituto de Estradas de Portugal (IEP) ou o Instituto de Conservação das Obras Rodoviárias (ICOR) ou o Instituto de Conservação e Exploração da Rede Rodoviária (ICERR), na qualidade de organismos responsáveis pela conservação de pontes. A JAE e o IEP teriam por diversas vezes sido aconselhados a proceder a obras de reparação da Ponte de Entre-os-Rios, com as primeiras recomendações nesse sentido a datarem de 1986, altura em que mergulhadores fizeram uma vistoria aos pilares da ponte. Mas quem responsabilizar na JAE? E no IEP? Quanto muito responsabilizar João Cravinho pela ideia irresponsável de destruir a JAE, reformar os seus técnicos de topo e criar institutos em que parte do acervo do know-how da ex-JAE se perdeu. Mas essa é uma responsabilidade política, não criminal. Aliás, ficou demonstrado que em 1998 e 1999, quando a JAE foi extinta, nem se sabia qual era o instituto que seria responsável pela manutenção das pontes. Isto diz do disparate da decisão do ministro Cravinho.

O atraso da construção da nova ponte também não configura qualquer responsabilidade criminal, mas apenas política, dos sucessivos governos desde 1986.

Finalmente temos as causas naturais: a sucessão de cinco cheias intensas nesse Inverno, o que constitui uma probabilidade baixíssima. Ora todos sabem que as obras são dimensionadas tendo em conta a periodicidade de catástrofes naturais. A existência dessas causas naturais também dificultaria o incriminar de alguém.

Conclusão: houve um cúmulo de causas, quer naturais, quer devido a negligência de diversos serviços. Em relação à responsabilidade civil ela foi assegurada: o Estado é o principal responsável e avocou a ele o ressarcimento dos prejuízos.

Em relação à responsabilidade criminal, não parece que haja possibilidades de incriminar, de uma forma consistente, seja quem for.

Ensinamentos: Definição clara das fronteiras de intervenção e de responsabilidade entre os diversos institutos e entidades públicas; estabelecimento de procedimentos de actuação que responsabilizem, individualmente, os agentes públicos pelas suas acções ou omissões nos seus domínios de actividade, nomeadamente, neste caso, as outorgas de licenças, a fiscalização dos trabalhos de extracção, a monitorização da situação dos leitos dos rios, a inspecção periódica do estado das obras públicas, a resolução atempada de deficiências, etc., etc..

Alguém, para ser punido criminalmente, teria de ter conhecimento concreto da situação da ponte, dos pilares e respectivas fundações e do leito do rio no local. É assim que funciona um Estado de Direito. Mas, um Estado de Direito, para que a culpa não morra solteira, tem que ter procedimentos adequados para que essas responsabilidades sejam apuradas sem margem para dúvidas. E isso não existe, por enquanto, em Portugal.

Publicado por Joana às março 26, 2004 07:49 PM

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Comentários

É lamentável. mas acho que tem razão. O que está agora a acontecer é chorar sobre o leite derramado.
O que se deve fazer é reformar as instituições, senão passaremos a vida a carpir e à procura de um culpado apenas por vingança.

Publicado por: J Ribeiro às março 26, 2004 09:56 PM

Eh uma historia triste. Compreende-se a revolta das pessoas, mas a justica não pode ultrapassar as suas proprias regras

Publicado por: Filipa Zeitzler às março 27, 2004 10:36 AM

Houve neste caso, um politico que teve coragem de assumir a responsabilidade, e demitiu-se.
Deveria... num inquérito apurar-se de outras responsabilidades.
Quanto às criminais, concordo com a Joana.

Mas que a incúria, deve ser apurada, deve. E deve também do posto de vista público, saber-se quem foram os culpados pela incúria ADMINISTRATIVA.

Que sirva para no mínimo se evitarem outras tragédias.

Publicado por: Templário às março 27, 2004 11:46 AM

Afinal foram apenas causas naturais:
As cheias sucessivas, em pequena parte
A natureza das coisas em Portugal, em grande parte.
O desleixo em Portugal tornou-se uma causa natural

Publicado por: vde às março 28, 2004 03:07 PM

Para as pessoas que perderam os seus ente-queridos deve estar a ser duro esta decisão da Justiça ( da que temos e não do juiz Nuno Melo ).

Mas Joana não podia dexar de dar a bicada do costume , faz parte da sus natureza. Até me admira porque não nomeou Guterres como culpado , em vez de Cravinho !

Publicado por: zippiz às março 28, 2004 07:21 PM

Apenas critiquei o Cravinho no que respeitou à extinção da JAE e criação de 3 institutos, com as consequências daí decorrentes. Repare que, no que respeita à responsabilidade governativa, eu falo de todos os governos desde 1986.
Uma coisa curiosa: na época, quando este assunto foi discutido publicamente, principalmente o ónus que resultou do aumento do dispêndio com os órgãos de gestão, o BE foi extraordiariamente crítico, agora você parece esquecido disso.
Mudam-se os tempos ...

Publicado por: Joana às março 28, 2004 10:51 PM

mas toda a gente que não concorda consigo é do BE ? O BE tem crecido muito...

Publicado por: zippiz às março 28, 2004 10:54 PM

mas toda a gente que não concorda consigo é do BE ? O BE tem crescido muito...

Publicado por: zippiz às março 28, 2004 10:54 PM

zippiz: Tinha a ideia que você era apoiante do BE.
Se me enganei, desculpar-me-á.

Publicado por: Joana às março 28, 2004 10:59 PM

está desculpada !
e a propósito , eu tenho ideia que Vc é apoiante do CDS.
Se me enganei, desculpar-me-á.

Publicado por: zippiz às março 28, 2004 11:12 PM


Zippiz

eh!eh!eh!eh!eh!

Publicado por: dionisius às março 29, 2004 03:12 PM

zippiz: disse-lhe várias vezes que o PP era o único partido com assento parlamentar que "ainda" não tinha votado! Você anda com falta de material para fazer humor?
Quanto a ser do BE, tinha ideia que, algures no online, você me tinha dito, ou dado a entender, que era do BE. Afinal fiquei co ideia errada.

Publicado por: Joana às março 29, 2004 09:24 PM

joana ,
nem toda a gente que vota PSD , "É DO" PSD ! Certo ?

mas pode registar que votarei em Miguel Portas nas Europeias !

Publicado por: zippiz às março 29, 2004 10:06 PM

Esta gaja está sempre ao contrário dos outros. Todos a protestarem por não se ter feito justiça e a Joana a achar que tinha que ser assim.

Publicado por: Cisco Kid às março 30, 2004 01:27 AM

A ponte de Entre-os-Rios caiu devido ao mau tempo desse ano, à falta de manutenção da ponte, ao excesso de extracção de areias, dai que a culpa esteja obviamente na extinta JAE, nos outros Institutos ligados à agua e à navegabilidade, e nos areeiros.

Agora o motivo pelo qual a justiça portuguesa não foi em cima dos areeiros... o porquê de os representantes das vitimas no inicio do processo terem referido várias vezes que o ministério não lhes ajudava na acusação aos areeiros e depois calaram-se ... é MESMO muito estranho.

È tão ESTRANHO que dois dos arguidos neste processo são projectistas de pontes que estudaram o alargamento da ponte e mais tarde o projecto de uma nova ponte, entregaram os projectos a quem de direito - ao "Estado" - e este DEIXOU os projectos na gaveta.

Publicado por: R às novembro 9, 2005 10:57 PM

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