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janeiro 04, 2004

O Curioso Incidente da Carta Anónima

Ou onde Semiramis Holmes tenta decifrar um mistério

Há uma carta anónima anexada ao processo da pedofilia, onde estão mencionadas 12 pessoas, distribuídas sexualmente por 9 homens e 3 mulheres e politicamente por 7 PSD, 3 PS e 2 PP. Ao que parece há perto de uma centena de cartas anónimas anexadas ao processo. Todavia só aquela carta foi citada publicamente e tem merecida a atenção quotidiana de todos os meios de comunicação e, dos 12 nomes, só o PR e o comissário europeu, ambos do PS, foram publica e quotidianamente citados.

Vem-me à memória esta curiosa passagem de Conan Doyle:

– Queria chamar-lhe a atenção para o curioso incidente do cão durante a noite.
– Mas o cão não fez nada durante a noite!
Foi esse o curioso incidente – observou Sherlock Holmes.

Ou, numa versão mais actualizada

– Queria chamar-vos a atenção para o curioso incidente da carta anónima anexada ao processo.
– Mas o carta anónima não tem qualquer significado!
Foi esse o curioso incidente – observa Semiramis Holmes.

O que é relevante neste curioso incidente é justamente a carta não conter acusações fundamentadas, isto é, não ter qualquer significado;

O que é relevante neste curioso incidente é justamente esta carta sem relevância ter vindo a público, entre a centena de cartas anónimas anexadas ao processo;

O que é relevante neste curioso incidente é justamente o serem apenas citados publicamente dois políticos do PS, de entre os 12 políticos que constavam da carta;

O que é relevante neste curioso incidente é justamente essa citação ser usada para alegar que a anexação daquela carta, com aquelas 2 citações, poderá configurar uma violação de uma norma do Código de Processo Penal pelo procurador João Guerra;

O que é relevante neste curioso incidente é justamente o coro dos meios de comunicação, citando "diversos juristas", afirmar que a atitude do procurador, anexando aquela carta ao processo, com aquelas 2 citações, no meio da outra centena de cartas e de mais de uma dezena de nomes citados, pode sujeitá-lo a um processo disciplinar;

O que é relevante neste curioso incidente é o coro da tragédia casapiana, que cada vez declama mais alto e mais forte, não se sabe se para dar inteligibilidade ou ininteligibilidade aos espectadores sobre o drama que se desenrola no palco e, principalmente, nos bastidores, dar a entender que é pior uma carta anónima caluniosa, mas disponível para consulta, que destrui-la, criando as condições óptimas para fomentar boatos, incontestáveis face à destruição da carta;

O que é relevante neste curioso incidente é os iluminados exegetas do processo que escrevem nos meios de comunicação, sugerirem que “aquela” carta deveria ter sido destruída, por ser irrelevante, acto que a ocorrer, abriria caminho para que se instalasse a dúvida, face a cartas entretanto destruídas no âmbito de um dado processo, se seriam ou não realmente irrelevantes, ou se sendo-o irrelevantes naquele momento, não poderiam tornar-se relevantes mais tarde; ou pior, possibilitar a destruição selectiva de documentos, pois a sua destruição dependeria do entendimento do responsável pela investigação;

O que é relevante neste curioso incidente é o coro da tragédia casapiana não se mostrar minimamente preocupado com o conteúdo da carta, que é irrelevante, nem com os restantes nomes não citados, o que são inúteis, o que indicia que além de inúteis, serão porventura perniciosos para os objectivos do coro;

O que é relevante neste curioso incidente é o coro da tragédia casapiana ter decorado o papel que está a declamar de forma tão determinada, que o PGR foi obrigado a fazer declarações sucessivas, porquanto o coro interpretava cada declaração do PGR de acordo com o papel que desempenha tão devotadamente, e não de acordo com o sentido que o PGR pretendia dar;

Portanto o que é relevante nesta carta é ela não ter relevo, conter o nome de 2 políticos socialistas de nomeada (um deles o PR) e poder, por via disso, ser usada numa campanha contra a equipa do Ministério Público que conduziu as investigações.

Campanha que atingiu tal dimensão que o PGR teve que vir a terreiro sublinhar que "autores da campanha de intoxicação da opinião pública a que temos assistido" são avisados de que não é "descredibilizando artificiosamente o trabalho de investigação feito" e "pondo em causa a correcção de procedimentos levados a cabo pelo Ministério Público" que "atingirão os seus objectivos". E fazê-lo desta forma tão clara para evitar que os meios de comunicação o continuassem a interpretar ao invés.

Elementar, meu caro Watson, este curioso incidente interessa a quem pretende que estejamos a discutir questões processuais do processo da pedofilia e não a questão da pedofilia e da justiça para as suas vítimas.


Nota: o texto de Conan Doyle é o seguinte:
"Is there any point to which you would wish to draw my attention?"
"To the curious incident of the dog in the night-time."
"The dog did nothing in the night-time."
"That was the curious incident," remarked Sherlock Holmes.

Publicado por Joana às janeiro 4, 2004 09:55 PM

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Comentários

no meio de tanta tontaria , incluindo autores de blogues , salva-se a posição do PR .

isso é que teria sido RELEVANTE referenciar , não acha cara Joana ?

Publicado por: zippiz às janeiro 5, 2004 12:20 AM

Um salto enorme, do Platão para Arthur C. Doyle, mas muito bem esgalhado!

Publicado por: Hector às janeiro 5, 2004 12:39 AM

Verifiquei que ao escrever o nome do meio de Arthur C. Doyle, fui insultado pelo seu filtro!
A protecção contra os ordinários tem deste efeitos colaterais!!
Não há problema. Compreendo perfeitamente!!!

Publicado por: Hector às janeiro 5, 2004 12:45 AM

Esta charge ao Sherlock Holmes tem piada e ‘tá bem vista. A brincar, vão-se dizendo as coisas.

Publicado por: Vitapis às janeiro 5, 2004 01:42 AM

Tendo estado afastado da Internet no gozo de umas merecidas férias, só agora posso agradecer-lhe e retribuir-lhe os votos de bom ano.
Season greetings, no texto original de Arthur C. Doyle.
# : - ))

Publicado por: (M)arca Amarela às janeiro 5, 2004 08:50 AM

OK zippiz
Zippiz Holmes:
– Queria chamar-lhe a atenção para a relevante posição do PR.
Joana Watson: – Mas o PR não tomou qualquer posição!
Foi isso que foi relevante – escreveuu Zippiz Holmes.

Publicado por: Joana às janeiro 5, 2004 09:07 AM

A campanha de intoxicação da opinião pública está a adquirir contornos vergonhosos.
Embora o “curioso incidente da carta” possa sugerir que seja a liderança do PS que está a orquestrar a campanha, tal não é pacífico.
Esta campanha interessa a todos os arguidos ou mesmo aos que não sendo arguidos, por as crianças não os terem conseguido identificar, têm receio de virem a cair nas malhas da justiça.
O facto de terem escolhido nomes do PS pode ser apenas uma táctica de campanha.

Publicado por: L M às janeiro 5, 2004 11:57 AM

Achei um piadão o “incidente” do cão e a forma como trabalhou a história à volta desse “incidente”.

Publicado por: aj ribeiro às janeiro 5, 2004 02:42 PM

Sobre esta história da pedofilia, os meios de comunicação só publicam caca, mas apenas conseguem atrair as moscas.

Publicado por: Rave às janeiro 5, 2004 04:03 PM

De facto o que se está a passar com este processo é nojento. Se a justiça não actua contra os poderosos, é ineficaz. Quando actua, aqui d’el rei que estão a violar os princípios do estado de direito.

Publicado por: Ricardo às janeiro 5, 2004 04:11 PM

Cara Joana,

Privado que continuo do acesso a outros dados porque continuo em "estágio" na Capital, gostaria de lhe recomendar a leitura do artigo > de Luís Salgado de Matos no "Público" de hoje (05.Jan.2004) e que termina deste modo:


(...)
O facto é: ninguém perguntou "o que bufava o bufo?". Era inveja pura (tipo 1) ou permitia averiguar (tipo 2)? Essa indiferença entre os opostos revela a falta de vértebras da opinião pública e a vitória da "bufaria" democrática.

Deus nosso Senhor livre Portugal de ter que escolher entre deixar impunes crimes repugnantes e ter que coroar a bufaria democrática.
(...)

[ http://jornal.publico.pt/2004/01/05/EspacoPublico/O02.html ]

Quanto ao Con_an Doyle, "I would wish to draw your attention" para o facto de que estas cartas terão a mesma importância que as transcrições das escutas telefónicas, isto é, remetem para o imaginário das tramas judiciárias do Perry Mason que nada trazem à realidade judiciária portuguesa.

Enfim, continua-se a julgar na praça pública o que é matéria de tribunal e, nos tribunais o que é da praça pública.

O "Big Brother" no seu apogeu... (ou será o "blog bigger" no seu apogeu?)

Publicado por: re-tombola às janeiro 5, 2004 04:22 PM

Reports that say that something hasn't happened are always interesting to me, because as we know, there are known knowns; there are things we know we know. We also know there are known unknowns; that is to say we know there are some things we do not know. But there are also unknown unknowns — the ones we don't know we don't know.

Donald Rumsfeld

Publicado por: Joao Miranda às janeiro 5, 2004 05:33 PM

Joao Miranda,

Já o Rato Mickey dizia: quando o Donald não usa calças, de que vale perorar sobre moralidades?

As known knowns são assim mesmo.

Did you know?


ps:

another unknown known: se escrever o apelido do meio do Athur Doyle arrisca-se a que o motor automático da Joana lhe diga: "Usou o seguinte termo proibido: CO_NA . Se é um humano, basta-lhe um sinónimo. Se é um spammer, vá-se enforcar seu porco".

Publicado por: re-tombola às janeiro 5, 2004 05:41 PM

re-tombola, espero que se esteja a divertir na capital.
Não é "o motor automático da Joana". É o "o motor automático da Weblog", cuja introdução foi aliás foi acelerada em virtude do que aconteceu ao meu blog, e de que também eu já fui vítima, por razões semelhantes, mas com outro radical!!
Na minha opinião acho que a resposta deveria ser mais polida. Deveria dar o benefício da dúvida.

Publicado por: Joana às janeiro 5, 2004 06:09 PM


Cara Joana,

O meu benefício da dúvida está lá... ("o motor automático da Joana" ).

:-)

Quanto à Capital... ai Eça, Eça...

Fui ao "Faz Frio" e agrada-me que o "tempo do Eça" ainda exista. (recomendo!).

ps: quanto aos ataques aos blogs, há muito que aprendi a ler o que interessa ;-)

Publicado por: re-tombola às janeiro 5, 2004 07:25 PM

Adoro estas trocas de "piropos" eh! eh! eh!
Continuem que eu deleito-me verdadeiramente com estas "profundas" conversas diárias.


Um abração do
Zecatelhado

Publicado por: Zecatelhado às janeiro 5, 2004 10:44 PM

Joana ,
não quer actualizar o seu comentário, após a intervenção do PR ?

Publicado por: zippiz às janeiro 6, 2004 01:21 AM

O PR também só criticou o JN pela divulgação da carta, e as referências que fez ao ministério público foram muito ao de leve.
Só o estúpido do Luis Delgado e o PS jesuítico do António José Teixeira é que querem a cabeça do procurador. O António José Teixeira parece um padre jesuita a falar.

Publicado por: Vsousa às janeiro 6, 2004 01:38 AM

zippiz em janeiro 6, 2004 01:21 AM
De forma alguma. Fui jantar fora e não ouvi a comunicação. Mas pelo que li, parece-me que o PR está contra a publicação da carta no JN. Se ler o meu texto verá que eu fui muito crítica relativamente a essa publicação.
O PR nunca poderia estar a favor de destruição de documentos que foram carreados para o processo.
Muitas das investigações começam com denúncias anónimas. Se a investigação provar que uma denúncia não tem fundamento, não se deve destruir o documento. Destruir é possibilitar o boato.
Imagine que o Procurador tinha destruído a carta e depois vinha-se a saber que havia existido uma carta com uma denúncia anónima relativamente ao PR que tinha sido destruída. Não acha que era muito pior para o PR?
Não acha isto elementar, meu caro zippiz?

Publicado por: Joana às janeiro 6, 2004 08:44 AM

As cartas anónimas devem ser juntas ao processo a que respeitam. Depois ser-lhes-á dado o valor correspondente. Não percebo a razão para tanto histerismo à volta do tema.

Publicado por: André às janeiro 6, 2004 01:36 PM

Os jornalistas continuam indignados, não com eles próprios que violam o segredo de justiça, mas pedindo a cabeça do procurador. Não vale a pena dizer-lhes nada.
O que há de estúpido nestes jornalistas é que não percebem que o procurador não podia rasgar a carta. Ou por outra, podia, mas caía-lhe o Carmo e a Trindade em cima

Publicado por: Arroyo às janeiro 6, 2004 10:33 PM

Vi há bocado uma entrevista na SIC Notícias com o Delgado e o Teixeira e fiquei enojado. Os jornalistas, pelo menos alguns perderam toda a vergonha

Publicado por: Ricardo às janeiro 6, 2004 11:19 PM

Vi há bocado uma entrevista na SIC Notícias com o Delgado e o Teixeira e fiquei enojado. Os jornalistas, pelo menos alguns perderam toda a vergonha

Publicado por: Ricardo às janeiro 6, 2004 11:19 PM

Agora apareceu uma especialista americana perita em saber se as crianças foram realmente abusadas ou se são histórias que elas julgam que são verdade, mas não são.
As crianças ainda vão ser constituídas arguidas por calúnias!

Publicado por: Rui Silva às janeiro 7, 2004 12:31 AM

As crianças?! É tudo crianças, já se vê. Cadastrados e marginais, nem um. Demos tempo ao tempo.

Publicado por: (M)arca Amarela às janeiro 7, 2004 09:44 PM

E não se esqueçam que o que despoletou a investigação à Câmara de Felgueiras foi uma carta anónima enviada à PJ, cujos factos nela relatados eram verdadeiros, como a investigação veio a mostrar.

Publicado por: Romeu às janeiro 7, 2004 09:55 PM

Os jornalistas querem acabar com o segredo de justiça e estão a fazer por isso. Não se venha depois pedir a cabeça do Procurador, quando está à vista quem está a descredibilizar o processo.

Publicado por: fbmatos às janeiro 8, 2004 12:39 AM

Fbmatosnão acho que você tenha razão. . Isto é apenas uma reacção corporativa.

Publicado por: C Ventura às janeiro 8, 2004 09:33 PM

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