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dezembro 26, 2003
Semiramis e o Natal
O Público trazia há dias um artigo alegadamente científico, ligando a tradição do 25 de Dezembro à consagração da maior estátua ao Deus do Sol - o Colosso de Rodes. Como a provável data da consagração foi 283 AC e nesse ano o solstício ocorreu em Rodes por volta do nascer do Sol do dia 25 de Dezembro, esse seria o acontecimento-chave do início dessa tradição. Todas estas “descobertas” históricas eram o resultado de uma profunda investigação, para a qual os “potentes computadores do Nautical Almanac Office” teriam dado, segundo a notícia, um concurso decisivo.
Não podia ficar indiferente. Fiz imediatamente as malas, muni-me do meu portátil, em nada inferior aos “potentes computadores do Nautical Almanac Office” e iniciei a minha jornada de investigação.
Deve começar-se pelo princípio. Dirigi-me ao cume do Ararat, onde a tradição coloca a “aterragem” da arca de Noé e segui as pisadas daquele patriarca que, felizmente para nós, foi o primeiro eminente especialista em previsões meteorológicas.
Durante horas vagabundeei rumo ao sul, pelas montanhas da Assíria, seguindo a peugada de Cam, filho de Noé. Foi uma investigação arriscada, em vista da instabilidade que reina na região. Seguindo um vale profundo, cavado por um caudaloso afluente do Tigre, dei por mim diante das ruínas de um casebre de adobe ladeado por duas árvores seculares, mais tristes que plantas crescidas na fenda de um sepulcro, erguendo a sua rama rala e sem flor. E na sombra ténue do crepúsculo, emergiam duas velhas descalças, desgrenhadas, com rasgões de luto nas túnicas pobres, mais velhas que as árvores seculares, mais arruinadas que o casebre de adobe, hirtas, de cabelos desmanchados, alastrados até ao chão, numa neve inesperada. Um cão, que farejava entre as ruínas, uivava sinistramente. … Enfim, o cenário ideal para veicular tradições milenares.
Foi aí que uma das anciãs, cabeça mais lívida que o mármore, por entre os cabelos emaranhados que o suor empastara e os olhos esmoreciam, sumidos, apagados, me informou penosamente que, de acordo com as tradições daquela aldeia e de todo o Crescente Fértil, aliás coincidentes com as da Bíblia, Cam, filho de Noé, havia tido um filho chamado Cush que desposara Semiramis. Cush e Semiramis tiveram então um filho chamado Nimrod (também conhecido por Ninus). Depois da morte de seu pai, Nimrod casara com a mãe e tornara-se um rei poderoso. Nimrod fora o construtor de diversas cidades (como Nínive) e da Torre de Babel (a Semiramis também foi atribuída a construção dos jardins suspensos da Babilónia).
Continuando a sua narração, a anciã, por entre sons sibilados, inevitáveis face à sua idade avançada e à ausência de recursos odontológicos na região, foi acrescentando que quando Nimrod foi morto, Semiramis proclamara que Nimrod tinha subido ao céu. Mais tarde, a patrocinadora deste blog, após alguns desregramentos domésticos que a decência e os bons costumes me impedem de revelar, tivera um filho, ilegítimo, concebido “sem pecado” (como Jesus), a quem chamara Tamuz, também conhecido por Baal. Para evitar falatórios, Semiramis pôs a correr que ele era Nimrod reencarnado. Quando Tamuz morreu, num acidente de caça, Semiramis igualmente proclamou que aquele havia subido aos céus e se tornara Deus. A sinceridade que a anciã punha nas suas palavras era garante seguro da veracidade da história. Nem por um momento tive dúvidas.
A mãe, Semiramis, era figurada como A Rainha dos Céus com o filho, Tamuz, nos braços. Várias religiões antigas contam este facto. Os nomes podem variar mas a história é a mesma. Esta religião, começada com Semiramis, tornou-se mãe de todas as religiões do mundo oriental. Numerosos monumentos babilónicos mostram a deusa-mãe Semiramis com o filho nos braços. O culto desta figura (mãe e filho) disseminou-se, sob diversos nomes, por todo o mundo antigo. Semiramis e Tamuz, Isis e Hórus, Maria e Jesus.
O filho era exibido apenas como uma criança nos braços da mãe, enquanto que os artistas se aplicavam em favorecer a imagem da mãe, tentando mostrar a beleza exótica atribuída a Semiramis durante a sua vida. Beleza, força, sabedoria, orgulho indomável, resolução inquebrantável e voluptuosidade eram os seus atributos principais. Por exemplo, Catarina II da Rússia, talvez menos pela sua energia política que pela sua vida íntima, turbulenta e lasciva, foi rotulada como a Semiramis do Norte.
Foi então que veio a revelação que eu esperava, tremendo de emoção e de frio, que esta época torna as montanhas da Assíria um local inóspito e gelado. O 25 de Dezembro era celebrado como nascimento de Tamuz! Na antiguidade caldaica, 25 de Dezembro era conhecido pelo dia da criança, o dia do nascimento de Tamuz, o deus do sol. A noite anterior era a “noite da mãe”, em honra de Semiramis, hoje “véspera de Natal”.
O nome Semiramis é a forma helenizada do nome sumério "Sammur-amat", ou "dádiva do mar." Também era conhecida por Ishtar que deu a palavra "Easter" (Páscoa) e Este (onde nasce o Sol). Os ritos da Primavera, 9 meses antes do nascimento do Sol do Inverno, foram os precursores da Páscoa cristã. Os Romanos chamavam-na Astarte e os Fenícios usavam Asher.
Em Israel era conhecida por Ashtaroth. A religião judaica, muito circunspecta e pouco dada a tratos de carnes, votava um ódio de morte à religião criada por Semiramis. Ao longo da sua história milenar centenas de vezes o povo de Israel caiu nas tentações idólatras atraído pelo suave e lascivo perfume da religião de Semiramis.
Deixei as anciãs no seu tugúrio, após lhes ter dado um óbulo modesto, mas que as comoveu de satisfação (alguns dólares fazem jeito naquela terra de escassez e miséria), pensando na linha contínua que une a nossa história às remotas tradições daquelas terras.
A gestação do cristianismo foi um fenómeno longo no tempo e no espaço. Se os seus ensinamentos morais eram a resposta que os deserdados pretendiam face à crise social e de valores do mundo antigo, o seu ritual e os aspectos lúdicos da sua liturgia entroncam nas religiões do médio oriente, transplantadas para Roma após as conquistas.
Os Romans tinham a "Festa da Saturnalia" em honra de Saturno. Este festival era celebrado entre 17 e 23 de Dezembro. Nos últimos dois dias trocavam-se presentes em honra de Saturno. Em 25 de Dezembro era a celebração do nascimento do sol invencível (Natalis Solis Invicti).
Posteriormente, à medida que as tradições romanas iam sendo suplantadas pelas tradições orientais importadas, os maiores festejos realizavam-se em honra do deus Mitra, cujo nascimento se comemorava a 25 de Dezembro. O culto de Mitra, o deus do sol, da luz e da rectidão, penetrou em Roma no 1º século AC. Mitra era o correspondente iraniano do babilónico Tamuz.
A data entrou no calendário civil romano em 274, quando o Imperador Aureliano declarou aquele dia o maior feriado em Roma. A data assinalava a festa mitraista do Natalis Solis Invicti.
Aureliano ao acabar com a insurreição de Palmira e do Oriente e trazer a sua rainha Zenóbia para Roma, enterrou, em contrapartida e definitivamente, as tradições romanas do culto da família e das virtudes que haviam feito a grandeza da república, mas que foram perdendo influência à medida que o poder de Roma se estendia ao mundo conhecido.
A escolha do dia 25 de Dezembro como data de comemoração do nascimento de Cristo nada teve, portanto, de arbitrária. Ao colocar, de uma vez por todas, o nascimento de Cristo a meio das antiquíssimas festividades pagãs do solstício do Inverno, a Igreja Cristã tinha a esperança de as absorver e de as converter, o que veio efectivamente a acontecer. Mas se a Igreja ganhou ao transformar aquela festividade na comemoração mais importante da liturgia cristã, teve que aceitar a aculturação resultante da importação de muitos símbolos das religiões antigas.
Foi assim que no século IV, o 25 de Dezembro passou a ser a festa do "Dies Natalis Domini", por decreto papal. A partir daí não há dúvidas e a história está tranquila.
E assim terminei a minha investigação e regressei a penates. E enquanto crepitava a lareira no conchego do lar, fui pensando no fio oculto que nos liga ao início da história da humanidade. Quando se fala da tradição judaico-cristã da nossa cultura eu penso menos nessa tradição como fé religiosa do que como matriz cultural. A gestação do cristianismo durou vários séculos num meio político que o hostilizava. A religião cristã acabou por incorporar na sua liturgia imensos símbolos das religiões que a precederam – a Virgem e o menino, o Natal, a Páscoa, o halo que se perfila por detrás da cabeça de Cristo (posteriormente alargado às representações dos santos), que representa uma reminiscência simbólica do sol invencível, etc..
Contrariamente às pretensões dos cientistas britânicos, o Natal, assim como outras ocorrências da liturgia cristã, não começou com a consagração do colosso de Rodes, há 2300 anos. Começou há muitos milénios, no seio das primeiras religiões do médio oriente, ligado ao culto solar sob diversas formas e sentimentos. Continuou, adaptando-se ao sabor das alterações políticas e religiosas, incorporando ou rejeitando símbolos e conceitos, mas comemorando sempre o 25 de Dezembro e a sua véspera.
Publicado por Joana às dezembro 26, 2003 08:06 PM
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Comentários
Só para lembrar que os judeus também celebram a Festa da Dedicação (Chanukah) por esta altura.
É celebrada em Novembro ou Dezembro por um período de oito dias. Durante os oito dias em que a festa decorre, acendem-se velas no castiçal de oito braços próprio da chanukah. Nesta festa, comemora-se a vitória dos judeus ao reerguer do Templo de Jerusalém, que havia sido destruído pelos sírios. Os judeus trocam presentes entre si e as crianças recebem grande atenção.
Publicado por: re-tombola às dezembro 27, 2003 03:33 AM
Vejo que aproveitou bem as ferias de Natal!
Foi sorte nao ter apanhado com um rocket da guerrilha ou com um dano colateral da coligacao.
Gostei da historia!
Publicado por: Filipa Zeitzler às dezembro 27, 2003 06:06 PM
É o eterno renascer. As coisas mudam, mas algo continua na mesma
Publicado por: Arroyo às dezembro 27, 2003 08:40 PM
re-tombola:
Há, não haja dúvida, muito de comum entre o cristianismo e as religiões do antigo médio oriente.
Publicado por: Joana às dezembro 29, 2003 09:05 AM
Fazer mini-férias nessas montanhas geladas?! Brrr!
Não teria sido preferível aqui no Sotavento?
Cumprimentos
Publicado por: Viegas às dezembro 29, 2003 03:14 PM
Se o Saddam não fosse um ditador laico essa viagem e essas entrevistas não teriam sido possíveis.
Louvemos a laicidade de Saddam!
Publicado por: Joaquim Pereira às dezembro 30, 2003 12:12 PM
Acho que a ausência de referências à civilização judaico-cristã na constituição europeia é um disparate. Esta história de Natal, embora escrita a brincar, é mais uma achega para mostrar que tenho razão
Publicado por: Ricardo às dezembro 30, 2003 12:30 PM
YULE - 21 de Dezembro
Solstício de Inverno
«Yule é o Solstício de Inverno, o dia mais curto e a noite mais longa do ano.(...) É um Sabbat próprio para a reflexão sobre a forma como todas as coisas se inter-relacionam, para fundir memórias e para celebrar o regresso da luz, que em breve irá de novo fertilizar a terra. É o dia em que se festeja o Sol, o trovão e as deidades do fogo.
(...) O Natal é uma cristianização do Yule. (...) Uma tradição oriental conta que Maria deu à luz no vigésimo quinto dia, mas não refere em que mês. O Novo Testamento conta que os pastores tinham levado os rebanhos para as altas pastagens e que dormiam com as ovelhas durante aquela noite, o que nunca podia acontecer no Inverno. Além disso, os pastores só vigiavam o rebanho durante a noite quando era a época do nascimento dos cordeiros, para poderem ajudar as ovelhas a parir, e essa época é a Primavera. No entanto, no ano 320, os sacerdotes romanos escolheram o mês de Dezembro, de forma a fazer coincidir a festa cristã com a dos celtas e saxões. Até essa data, não tinha aindo havido grandes preocupações em determinar o dia do nascimento de Jesus. No entanto, implantou-se de tal maneira que, em 529, o imperador Justiniano o impôs como feriado obrigatório. Em 567, o Concílio de Tour alargou o Natal aos doze dias que vão de 25 de Dezembro a 6 de Janeiro, a Epifania, pelo que, na Idade Média, Natal não designava um só dia, como actualmente, mas todo esse período de doze dias.»
Baptista, García - «Wicca, a velha religião do ocidente». Lisboa:Pergaminho, 1999
Hoje encontramos as raízes do Natal, como o conhecemos hoje, em muitas tradições que, se calhar, também se inter-relacionam.
Daqui a muito tempo, vão descobrir que no Natal do entrar do século XXI se festejava o nascimento de uma pessoa que serviu de pretexto a muitas guerras.
Publicado por: Diana às janeiro 2, 2004 04:05 PM
Eu achei muito interessante este artigo e dou a sugestão de falar sobre a adoração do "dies solis"
Publicado por: Fernando Campos às janeiro 24, 2004 09:12 PM
O que me causa espanto , é que conhecidos com são estes fatos históricos,ninguem fala em modificar esta aberração que chamamos de "cristandade" e que nada tem a ver com o verdadeiro cristianismo ensinado por Jesus e seus apóstolos! Se Deus o Criador e seu Filho Jesus existem, como será que eles se sentem ao observar este sincretismo profano que tem imensas culpas e sangue em suas vestes?
Publicado por: Dimitri Giókaris às março 3, 2004 01:12 AM
Na verdade essa tese é bastante explorada. Apenas uma proposição está incorreto, ou seja, a idéia central do projeto de Deus não é o cristianismo, cristão, igreja ou qualquer outro adjetivo nominal. O núcleo do projeto de Deus, através de Jesus Cristo é a salvação dos homens através da verdade e, os vlores fundamentais do homem, excetuando-se os que ele julgue conveniente, sempre serão os mesmos: primeiro a vida,esta vida terena que deve ser preservada através do amor ao próximo,principal fundamento do evangelho de Jesus Cristo. Esta vida é, inegavelmente ao que o homem se agarra com mais força, principalmente os céticos que não acreditam no segundo fundamento da existencia, a vida eterna. De forma que essas figuras do paganismo, de fato, entraram no cristianismo, mas isso a profecia bíblica do Apocalípse já previa e também mostra que a igreja, o cristianismo e o cristão nominal que aderiu a esses cultos está enquadrado na previsão bíblica de Tiatira A igreja apóstata, portanto, fujam dessas liturgias.
Publicado por: Hiran R. Alencar às outubro 24, 2004 12:15 AM
Na verdade essa tese é bastante explorada. Apenas uma proposição está incorreto, a de que o cristianismo absorveu estes costumes. Ou seja, a idéia central do projeto de Deus não é o cristianismo, cristão, igreja ou qualquer outro adjetivo nominal. O núcleo do projeto de Deus, através de Jesus Cristo é a salvação dos homens através da verdade e, os valores fundamentais do homem, excetuando-se os que ele julgue conveniente, sempre serão os mesmos: primeiro a vida, esta vida terrena que deve ser preservada através do amor ao próximo, principal fundamento do evangelho de Jesus Cristo. Esta vida é, inegavelmente ao que o homem se agarra com mais força, principalmente os céticos que não acreditam no segundo fundamento da existência, a vida eterna. De forma que essas figuras do paganismo, de fato, entraram no cristianismo, mas isso a profecia bíblica do Apocalipse já previa e também mostra que a igreja, o cristianismo e o cristão nominal, que aderiu a esses cultos estão enquadrado na previsão bíblica de Tiatira A igreja apóstata, portanto, fujam dessas liturgias.
Publicado por: Hiran R. Alencar às outubro 24, 2004 12:20 AM