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outubro 03, 2003

Sacco, Dreyfus e as cruzadas

Nicolau Santos, no Expresso, compara o caso Paulo Pedroso ao caso que Sacco e Vanzetti.

Houve um caso que certamente mereceria mais ser chamado à colação do que Sacco e Vanzetti. É o caso Dreyfus.

Dreyfus foi acusado, baseado em provas circunstanciais inicialmente frágeis, mas que os inquiridores conseguiram fortalecer com depoimentos sólidos de peritos de grafologia (Dreyfus era acusado de ter escrito um documento que apareceu na Embaixada Alemã).

Dreyfus foi condenado. Tempos depois, o Coronel Picquart, um militar da velha escola, lendo os elementos processuais detectou uma série de incongruências. Isso levantou uma tempestade no serviço de informações militar e Picquart é afastado e enviado para uma missão perigosa no norte de África.

Para colmatar as fragilidades, o novo encarregado do caso, o Major Henry começa a falsificar documentos para “fortalecer” as provas processuais.

O assunto transita para o domínio público, Zola publica J'accuse no L'Aurore, é julgado e condenado por difamação. Mas o assunto começa a ganhar um grande empolamento e o novo Ministro da Defesa assegura no parlamento que as provas são categóricas. E estava convencido disso. Para calar a opinião pública, encarrega um oficial de confiança de analisar o processo.

Rapidamente as falsificações de Henry são descobertas. Este confrontado com as falsificações é preso e suicida-se na cadeia. E o processo esboroa-se. Quem havia escrito o bordereau era Esterhazy e Dreyfus é amnistiado e pouco depois reintegrado.

Este foi um caso típico em que a Justiça (neste caso a Justiça Militar) comete um erro pela forma ligeira com que aborda o processo e, depois, jogando à defesa, tenta tudo para que esse erro não seja descoberto, forjando inclusivamente provas, a coberto do segredo de justiça, naquele caso em virtude de ser considerada matéria confidencial que punha em risco a segurança nacional.

Lembrei-me deste caso quando, após uma carta aberta de Carlos Cruz, juizes e magistrados saíram à liça defendendo a sua dama. Na altura isso constituiu, para mim, motivo de preocupação.

Dizia Aristóteles que a Lei é a razão liberta da paixão. Espera-se que os juizes e magistrados encarregados deste caso tenham a cabeça fria, para evitar cair situações similares. Os jornalistas, os comentadores e afins ... haverá pouco a fazer: é a paixão liberta da razão.


Nota: O caso Sacco e Vanzetti não aconteceu no Massachusetts dos anos 50, como por gaffe escreveu Nicolau Santos, mas sim dos anos 20 e não se pode comparar a crise de valores nessa época, com as revoluções, a ascensão dos fascismos na Itália e noutros países da Europa, a hiperinflação, etc., com a época actual.

A gaffe de Nicolau Santos é monumental. Considero imprescindível, para um economista, saber o que ocorreu na década de 20. A crise económica e social, a hiperinflação na Alemanha, o pagamento de reparações da Alemanha à França (com a ocupação por esta da Renânia como caução) e que teve o efeito paradoxal, para as ideias económicas de então, de promover o arranque da indústria alemã e a estagnação da indústria francesa, os desequilíbrios económicos que concorreram para o crash de Outubro de 1929 e a crise subsequente e que, no conjunto, levaram à reformulação do pensamento económico que culminou na publicação da “General Theory of Employment, Interest and Money” de Keynes e na revolução keynesiana, devem ser do conhecimento obrigatório dos economistas.

Portanto, Nicolau Santos tinha a obrigação de não cometer semelhante gaffe.

Trazer à colação o caso Sacco-Vanzetti pelas razões que referi acima é absolutamente despropositado.

Teria, por exemplo, mais cabimento, como escrevi acima, citar o caso Dreyfus que é um caso paradigmático da justiça (neste caso a Justiça Militar) que, perante a fragilidade do processo e face à pressão de parte da opinião pública se perverte, forjando provas para se defender.

A Justiça Militar francesa teve então, dentro de si, gente honrada que soube distinguir o essencial do acessório e compatibilizar a honra da instituição com o imperativo da verdade. Todavia, se não tivesse havido a pressão da opinião pública exterior, não se sabe se os elementos sãos da instituição militar teriam força para fazerem emergir a verdade.

Infelizmente trata-se de uma gaffe menor no conjunto do artigo. A gaffe maior de Nicolau Santos é a de politizar a honestidade e a virtude definindo estas qualidades como atributos de uma determinada cor política. Foi essa perversão maniqueísta: a de que nós, os do nosso lado, somos, por definição, os bons, os virtuosos e os detentores da verdade, que deu sustentação teórica às carnificinas dos regimes totalitários, de esquerda e de direita, e à perversão da democracia americana, no início da década de 50, com a Comissão de Actividades Anti-Americanas do Senador McCarthy.

26-Maio-2003

Publicado por Joana às outubro 3, 2003 06:06 AM

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Comentários

Li num livro(Complô Contra a Igreja - Maurice Pinay)que várias testemunhas que depuseram ou que foram intimadas a depor contra Alfred Dreyfus foram misteriosamente assassinadas.

Publicado por: Luiz Pereira Muniz de Barros às agosto 13, 2004 12:55 PM

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