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outubro 06, 2003

Estou perturbada

Fiquei perturbada. Vi a sessão dos “Prós e Contras” sobre o Casino de Lisboa e nunca mais me reencontrei. O meu ego, que tanta exaltação tem provocado, ficou espalhado pela sala, os meus conceitos dispersos e subvertidos. Socorrendo-me de Marx, estou em plena umwältzung!

Vi o Presidente da CML, que quando Secretário de Estado da Cultura confundia violinos com pianos e o Chopin sabe-se lá com quem, ser incensado até às lágrimas pelos mais distintos actores e actrizes da nossa terra, agradecendo-lhe penhorados e comovidos o projecto para um casino no Parque Mayer, como alavanca para uma revitalização sustentável das salas de espectáculo naquele antigo espaço lúdico lisboeta.

Ao seu lado, Assis Ferreira que, a ter em conta alguns textos do Expresso, seria o futuro sinistro representante, no coração de Lisboa, das tríades macaenses, essa figura nefasta, atrás do qual se perfilaria a sombra ominosa de Stanley Ho, era idolatrado pelos mesmos artistas, de olhos humedecidos por lágrimas rebeldes, como um mecenas empenhado na manutenção da vida teatral, dos seus empregos, enfim ... a sua tábua de salvação no desespero de uma actividade sem segurança nem compensação financeira. Pior! Era certificado como uma figura ímpar no panorama cultural português! Um desespero!

Ah! Como então segui a torrente argumentativa do Miguel Portas, as variações que ele foi executando sobre o tema do pecado do jogo, variações que começaram em ré e que, à medida que aumentava a hostilidade dos artistas da plateia (ó como compreendo ser o lugar dos artistas no palco e nunca na plateia!!), foram andando de nota em nota até acabar num perfeito dó, menos que sustenido. E reconheçamos quanto os artistas foram injustos, porquanto os argumentos do M Portas eram intelectualmente elevados e só não colheram porque os artistas estavam demasiado preocupados com as pequenas misérias deste mundo: exercer a sua profissão, pagar a renda de casa, comer um bife de quando em vez, ... enfim ... coisas materiais mesquinhas.

Estava siderada! Pois quê? Os artistas a beatificarem um play-boy de direita e um intelectual de esquerda a exorcizar o pecado? Estaria eu no Universo Anti-matéria?

Mas perder uma batalha não é perder a guerra e eu esperava, fremente de ansiedade, pelo último e definitivo argumento: o do espectro da abertura da Caixa de Pandora; e quem melhor para o brandir esse instrumento escatológico-cultural do que o Eduardo Prado Coelho, o paradigma do intelectual português, o elefante branco da nossa cultura.

Assim, esperei tranquilamente que EPC pusesse cobro a tal destempero. Já antegozava EPC chamar em seu, em nosso, auxílio Wedekind, Alban Berg, Pabst ,... dar-nos a dramática e telúrica visão de Lisboa, no último acto, subindo lentamente a escada, um punhal alvejando na sombra, e Lisboa, cambaleando, esvaindo-se estripada pelo infame Stanley Ho, em travesti de Assis Ferreira, num cenário claro escuro do expressionismo alemão (sim, eu sei que Pabst não era nem exactamente alemão, nem exactamente expressionista, mas o meu pretensiosismo não resiste a este arroubo linguistico).

E a cena terminar apoteoticamente com a entrada do Exército de Salvação, Santana Lopes escapulindo-se silenciosamente numa viela escura, ainda não recuperada pela DMCRU, Graça Dias a rufar os tambores e a distribuir sopa aos artistas e o Miguel Portas a glosar estrofes sobre os pecados do jogo e da agiotagem nos parques de estacionamento dos casinos. Estrofes legendadas apenas em alemão, para tranquilidade do nosso espírito e sossego da nossa mente.

Fora do alcance das câmaras, JA Lima esmolava junto dos transeuntes, para a meritória obra do Expresso, a de eliminar quem não está de acordo com as suas concepções político-culturais. As câmaras evitavam-no discretamente para que, nesse momento de suprema exaltação anti-pecaminosa, ninguém pudesse reparar que, com o azedume que o caracteriza,, quando algum transeunte recalcitrante não deixava cair o seu obulo no regaço do JAL, era objecto das mais tonitruantes sevícias verbais e escritas.

Mas quê, quando todos pensávamos sorver dos lábios do nosso elefante branco a salvação da nossa culturazinha, no momento supremo em que o nosso “intelectual way of life” estava à beira do abismo mais definitivo, sabe-se, por um descuido (seria?) lamentável de um daqueles artistas tresmalhados na plateia, que EPC também colaborava nos espectáculos de Assis Ferreira.

É verdade, EPC colocava todo o seu imenso talento, talento que todos nós lhe reconhecemos e ele o reconhece, mais que todos nós, ao serviço de Assis Ferreira, de Stanley Ho, do pecado, do jogo, da agiotagem, dos parques de estacionamento, dos arrumadores, das tríades de Macau em Lisboa. Pelo caminho um rasto de sangue: Lulu, Lisboa, os gatos vadios do Parque Mayer, as brisas transversais do Jardim Botânico, o nosso meio intelectual, tão pequenino, tão deliciosamente acanhado.

Fiquei desfeita e, como certamente se percebe, foi em estado de perfeita subversão conceptual que, com o único dedo que ainda me restou, teclei estas linhas.

J
Escrito em 23-12-2002

Publicado por Joana às outubro 6, 2003 09:53 AM

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Comentários

Joana, este texto, que me lembro de ter lido no Expresso online, é dos textos mais bem escritos que me lembro de ter lido. Parabéns

Publicado por: Filipe às outubro 10, 2003 08:30 PM

Joana, apesar de já lhe ter dado os parabéns por este texto quando o publicou no Expresso online, não queria deixar de lhe deixar aqui os meus maiores elogios pela qualidade dele.

Cumprimentos

Publicado por: L M às outubro 15, 2003 08:43 PM

Este naco de prosa foi a coisa mais bem escrita que alguma vez li no Expresso online.
Sempre que o leio, acho-o admirável.

Publicado por: Martelo de Sousa às outubro 16, 2003 08:34 PM

Tenho pena de este texto estar, aparentemente, esquecido no fim do blog.

É um naco de prosa extremamente bem escrito, extremamente bem observado e extremamente acutilante.

Publicado por: anonimo às outubro 29, 2003 11:38 PM

Li este seu artigo, vim cá parar pelo seu artigo de hoje, e está muitissimo bom. Está excelente.

Publicado por: Novais de Paula às fevereiro 20, 2004 11:59 PM

Não conhecia este seu escrito e vim aqui pela sua análise do PSL.
Está muito bom. Os meus parabéns. Do melhor que tenho lido

Publicado por: Arroyo às fevereiro 21, 2004 11:57 AM

Não conhecia este seu escrito e vim aqui pela sua análise do PSL.
Está muito bom. Os meus parabéns. Do melhor que tenho lido

Publicado por: Arroyo às fevereiro 21, 2004 11:57 AM

Esre artigo está excelente. Muito bom!

Publicado por: Valente às fevereiro 28, 2004 06:37 PM

(Censurado)

Publicado por: BOB ESCARRO às junho 22, 2004 12:22 AM

(Censurado)

Publicado por: BOB ESCARRO às junho 22, 2004 12:22 AM

Bom dia,
É tão fácil falar de quem não se conhece. Não ponho em causa a qualidade ou não da prosa, mas parece-me que não deverá conhecer o Dr Assis Ferreira nem o trabalho por ele desenvolvido nos últimos 15 anos. Liberte-se do trauma dos casinos, pq a mania da perseguição não lhe vai trazer felicidade...

Publicado por: Duarte Gonçalves às dezembro 2, 2004 12:12 PM

Estás perturbada e continuas a estar

Publicado por: anonimo às janeiro 11, 2005 01:22 PM

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