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outubro 04, 2003
Chile, 11 de Setembro 1973
O golpe de 11 de Setembro e a carnificina que se lhe seguiu foi acto criminoso que, julgo, recebeu a reprovação geral, mesmo nos USA, cujo governo e a CIA estiveram por detrás da intentona.
Não tive a vivência daqueles acontecimentos, mas lembro-me das cenas pungentes de “Missing” do Costa-Gravas que julgo reflectirem bem a atmosfera no Chile, naquela época, com milhares de pessoas dentro do estádio. Um horror.
O Presidente Allende tinha sido democraticamente eleito. É certo que com apenas 36% dos votos e a escassos milhares de votos do segundo candidato. As forças que o apoiavam eram igualmente muito minoritárias no Congresso. Mas aqueles que estavam contra deveriam ter deixado funcionar as instituições. E a maioria deve ter deixado, pois o golpe foi feito por uma clique, fundamentalmente militares, aproveitando a enorme tensão e clivagem social existentes, as manifestações de apoiantes e opositores, greves selvagens e a deterioração económica com uma inflação de 1.000% ao ano.
É uma situação que lembra, em alguns aspectos, a situação social e económica da Alemanha nos anos que precederam a subida ao poder de Hitler.
E lembra porque, também no Chile, as forças que preconizavam reformas profundas da economia e da sociedade não souberam construir consensos sobre as reformas a fazer de forma a construir uma ampla base social de apoio a elas. Em vez de consensos deixaram-se enredar em lutas quer com os adversários políticos, quer dentro da coligação presidencial e permitiram que o país resvalasse a anarquia e a desordem. Ora, no Chile como na Alemanha, a anarquia e a desordem, quando endémicas, só servem, normalmente, a extrema-direita.
Não souberam começar pelas reformas mais urgentes e consensuais, relativamente às quais haveria uma base de apoio mais dilatada. Espartilhado entre as forças mais radicais da coligação, que não abdicavam das reformas mais profundas, e o resto do país que estava a ser mobilizado contra essas reformas, o Presidente Allende não conseguiu arranjar espaço de manobra para promover um consenso nacional que lhe era vital, em face de ser minoritário no Congresso.
Um dos factores que se apontam para o caos económico no Chile em 1973, foi o papel das multinacionais quer a nível da procura externa, quer no apoio às forças hostis ao governo de Allende. Todavia, quando se pretendem nacionalizar empresas estrangeiras, que normalmente produzem para mercados no exterior, é da mais elementar prudência avaliar previamente os efeitos dessas nacionalizações.
Não o fazer é suicidário. É claro que depois podemos lamentarmo-nos do comportamento das multinacionais, mas é a lógica de funcionamento delas. Por exemplo, em Portugal, a seguir ao 11 de Março, o governo apenas nacionalizou capitais portugueses. Teve o cuidado de não mexer no capital estrangeiro provavelmente para evitar situações como a do Chile. É evidente que, na sua maioria, as nacionalizações acabaram por se revelar perniciosas para o funcionamento da nossa economia, mas isso é um assunto que não vem para aqui.
Há interpretações sobre os acontecimentos de 1973 no Chile que conferem à política externa americana um papel absoluto no que se passou. Todavia, por muita “movimentação norte americana para desestabilizar o governo” que houvesse, nada teria acontecido se não fosse o radicalismo estéril e estúpido de parte das forças que apoiavam Allende que não perceberam, ou não quiseram perceber, que com o reduzido apoio eleitoral que tinham dificilmente poderiam levar a cabo reformas que alterariam completamente a estrutura económica e social do Chile.
A menos que o fizessem à força … simplesmente a força estava do outro lado. Os Bolcheviques, com 24% do eleitorado, tomaram o poder e dissolveram a Assembleia Constituinte, mas tinham nas mãos a maioria do exército, revoltado contra uma guerra mal conduzida. No Chile, não. No Chile houve várias tentativas de golpe de Estado durante Allende que falharam. Isto deveria ter sido um aviso para os grupos mais radicais que o apoiavam. Mas essa gente não tem, nem nunca teve ou terá, qualquer discernimento político.
Depois da ascensão de Hitler ao poder, a III Internacional fez mea culpa e reconheceu os erros enormes do KPD que facilitaram a ascensão dos nazis. E isto aconteceu no tempo de Estaline. A esquerda actual, ainda hoje, passados 30 anos, tem dificuldade em fazer uma análise similar. Será que a esquerda actual precisa de um Dimitrov? Ou será que, nesta matéria, ainda tem muito que calcorrear, até atingir a capacidade de auto-crítica de Estaline?
Eu penso que se a situação fosse gerida de outra maneira pela coligação de Allende não teria havido base social que possibilitasse o golpe de Estado. Isto é, dificilmente os americanos teriam encontrado gente para organizar o golpe com o êxito que ele teve.
É um facto que os autores do golpe de 11 de Setembro cometeram horrores e os seus patrocinadores (CIA e governo dos USA) foram cúmplices dessa barbaridade. Quem viveu essa época quer fosse favorável ao governo de Unidade Popular, quer fosse apenas uma pessoa de bem, ficou certamente horrorizada pelo que leu ou assistiu durante esses dias fatídicos.
É compreensível que essas pessoas, que conseguem discorrer com objectividade e frieza sobre factos não vividos, não tenham o distanciamento suficiente para analisarem a história chilena de 1970-74 com frieza. Quando se fala em erros cometidos pelo governo de Unidade Popular essas pessoas olham para os membros desse governo e não vêem políticos. Vêem vítimas torturadas e assassinadas e sentem como um insulto o acusá-las de algo. E reagem com muita acrimónia, mesmo se depois acabam por concluir que houve um comportamento suicidário da parte do governo e de grupos radicais, como o MIR.
Uma coisa que sempre me chocou foi o relato de muitos que escaparam com vida contarem as denúncias de que foram alvo: vizinhos, colegas, etc.. Li, em diversas ocasiões, vários relatos desses. Havia um ódio enorme no Chile daquela época. A sociedade chilena tinha agravado, nas semanas que antecederam o golpe, a profunda clivagem em que já vivia, para limites insuportáveis, com os radicais de esquerda a pretenderem armar operários e camponeses (julgo que foram distribuídas muitas armas), os radicais de direita a pedirem a intervenção do exército e o governo convencido que com umas mudanças de comando (uma delas colocara Pinochet num lugar de confiança) tinha resolvido a situação e que o exército seria “apolítico”.
11 de Setembro de 2003
Publicado por Joana às outubro 4, 2003 12:23 AM
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Comentários
Pois é, Joana, eu vejo as vítimas torturadas e assassinadas e sinto como um insulto o acusá-las de algo
Publicado por: Admirador Condicional às outubro 18, 2003 04:14 PM
Embora reconheça que você tem razão quando fala dos erros do governo de Allende e da coligação que o apoiava
Publicado por: Admirador Condicional às outubro 18, 2003 04:15 PM
Parece-me uma análise equilibrada.
Publicado por: Cerejo às outubro 18, 2003 10:32 PM
Esse 11 de setembro os EUA esqueceram...
Publicado por: Marcelo AO às outubro 10, 2004 03:34 AM
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Publicado por: penis enlargement às janeiro 11, 2005 02:26 PM
Excelente análise, honesta.
Coisas muito similares se podem dizer da Espanha, nos anos que antecederam e se sucederam à guerra civil de 36-39. Vale mesmo a pena fazer o paralelo.
Publicado por: Luís Lavoura às abril 13, 2005 04:22 PM