novembro 23, 2004

O Estranho Caso da RTP

A audição de José Rodrigues dos Santos e Almerindo Marques, ontem, perante a subcomissão parlamentar de Direitos Fundamentais e Comunicação Social, deixou-me confusa.

Ao longo de toda a audição uma interrogação pairou em permanência: porquê este braço de ferro, quando anteriores desacordos sobre colocações se sanaram a contento? Porquê este braço de ferro numa altura em que saíam notícias no Expresso sobre uma alegada avaliação de Rodrigues dos Santos? Porquê este braço de ferro numa altura em que o governo era bombardeado diariamente com críticas sobre a sua relação com a comunicação social? Porquê este braço de ferro entre duas entidades que se elogiaram mutuamente e que garantiram, ambas, nunca ter havido interferência do CA na política informativa? Porquê este braço de ferro sobre uma questão aparentemente menor, embora Rodrigues dos Santos argumentasse que a decisão do CA significava que já não estava no uso pleno dos seus poderes, e que tal era grave? Porquê ter sido este o primeiro concurso em que o júri da parte editorial apresentou os resultados sob a forma de lista seriada?

Em primeiro lugar ambos os auditados gozam de boa reputação. Almerindo Marques é conhecido por ser um homem com uma “integridade à prova de bala”, que não privilegia o amigo e incapaz de despromover o inimigo. É extremamente trabalhador e exigente consigo próprio. Subiu a pulso na vida. Estava no Banco da Agricultura quando, em fins da década de 60, um novo administrador, para escolher um adjunto, convocou diversos quadros da empresa para reuniões onde expunha as suas ideias sobre o futuro do banco. Algumas pecavam, propositadamente, por falta de sensatez. Chegada a sua vez, Almerindo, que ainda não tinha 30 anos, ouve-o perplexo. No fim disse-lhe: "Com esses critérios não fico no banco." Esta resposta corajosa garantiu-lhe o lugar.

Sempre se pautou pela integridade, reconhecida por todos, numa vida profissional ligada à Banca até abandonar a CGD, nas vésperas de eleições de 2002, após denunciar várias operações financeiras pouco transparentes. Esteve sempre, pelo menos até 2002, ligado ao PS.

Sobre José Rodrigues dos Santos não tenho informações, mas sempre me pareceu um sujeito sensato, e a sua actuação como Director de Informação da RTP parece-me que tem sido excelente. Aliás, a RTP ganhou muita credibilidade com a actual equipa, que está lá desde meados de 2002.

Por isso mesmo este caso permanece muito misterioso. Como é possível que por causa do provimento de um lugar de correspondente em Madrid, se tenha chegado a este braço de ferro? A única discrepância, com substância, entre os dois depoimentos refere-se à forma como decorriam os concursos. Concursos que aliás só começaram a haver com esta equipa.

Rodrigues dos Santos deu a entender que sempre houvera uma seriação dos candidatos e que o CA sempre concordara com as propostas da Direcção de Informação. Ou quase sempre. Houve casos que, por razões de representação institucional, o candidato escolhido não teria sido o primeiro.

A CA tem uma tese completamente diferente. Houve 14 preenchimento de vagas para correspondentes, mas só alguns lugares haviam sido providos através dos resultados dos concursos, por diversas razões, mas sempre por acordo entre o CA e a Direcção de Informação. Não havia um regulamento escrito do processo de concurso, que o CA havia pedido há algum tempo à Direcção de Informação, mas cuja minuta esta só lhe entregara para apreciação em Outubro passado.

Por outro lado sempre havia sido o entendimento do CA, entendimento que fora comunicado à Direcção de Informação, que os resultados dos concursos seriam sempre fornecidos em termos de apto e não apto para o lugar. O CA não julgava conveniente, para o ambiente dentro da empresa, porquanto se tratava de um concurso interno, que os resultados das apreciações do júri conduzissem a uma seriação dos candidatos. Em face dos candidatos que a Direcção de Informação considerasse aptos, o CA complementaria a escolha tendo em conta a gestão dos recursos humanos e as características do lugar em termos da representação da empresa e das tarefas administrativas e financeiras. O CA insistiu muito neste ponto. Ainda segundo o CA, o concurso para Madrid foi o primeiro em que a Direcção de Informação apresentara a lista dos resultados do concurso sob a forma de uma classificação ordenada.

Segundo foi dito por Rodrigues dos Santos, em face de não ser possível escolher o 1º classificado (por razões que não expuseram, mas sobre as quais estavam ambos de acordo), ele propôs o segundo. Entretanto o CA havia escolhido a nº 4, pelas razões aduzidas no parágrafo anterior.

Rodrigues dos Santos não abdicou da sua escolha, pois achava que ela dizia unicamente respeito à Direcção de Informação. O CA fazer escolha diversa era invadir a sua esfera de competências. Segundo ele afirmou, no caso do cargo de correspondente da RTP em Madrid, a esfera da administração era apenas a decisão sobre se aquele cargo podia existir ou não, tendo em conta as disponibilidades financeiras. O resto era da exclusiva competência da Direcção de Informação.

Para o CA a esfera de competências da Direcção de Informação acabava com a indicação dos jornalistas que considerava aptos a exercerem o cargo. A partir daí entrava-se na esfera de competência do CA. E o CA não abdicava da sua competência em gerir a empresa.

Portanto ambos concordaram que havia sido um conflito interno de competências. Quando foram inquiridos sobre as notícias que o Expresso publicou sobre uma alegada avaliação que estaria a ser feita a Rodrigues dos Santos, nenhum lhes deu importância para os factos em apreço. Ambos negaram ter havido, directa ou indirectamente, pressões políticas.

Resta acrescentar que o Conselho de Redacção da RTP não partilhou, no seu comunicado, do ponto de vista de Rodrigues dos Santos.

Os próprios deputados da oposição, embora o tivessem tentado, não viram como haviam de dar volta à questão. Almerindo Marques propôs-se explicar as razões porque entendia que não deveria haver seriação. Mas como essa explicação, pelo melindre de envolver referência a nomes de jornalistas da RTP, deveria ser feita à porta fechada, perguntou-se aos deputados se alguém requeria à mesa o prosseguimento da audição à porta fechada. Ninguém requereu.

A oposição tentou construir um cenário em que a escolha do CA seria uma tentativa para colocar Rodrigues dos Santos numa posição tal que seria forçado a pedir a demissão. Todavia este cenário não teve sustentabilidade. Em primeiro lugar a carreira de Almerindo Marques é incompatível com este tipo de jogos. Em segundo lugar, as razões aduzidas pelo CA para que o júri decidisse apenas sobre a aptidão dos jornalistas para exercerem a função parecem sólidas e consistentes. Quando Rodrigues dos Santos afirmou que "Se não consigo escolher as pessoas que acho adequadas para determinada função não posso ter responsabilidades sobre esses conteúdos", está a omitir que se considerou a nº 4 como apta, assume implicitamente que «pode ter responsabilidades sobre os seus conteúdos». Se não pudesse, tinha-a considerado não apta.

Aliás este cenário foi-se esvaziando no decorrer das audições. A alocução final de Alberto Martins do PS é a constatação da impotência para se chegar a uma base mínima que sustentasse aquele cenário. «Ambas as versões são consistentes e sólidas, embora contraditórias na questão de Madrid» reconheceu.

Por parte da coligação, Narana Coissoró tentou fazer passar a ideia que este braço de ferro por questão menor estaria integrado numa estratégia destinada a prejudicar a imagem do governo. De facto quem tomou as iniciativas quanto à ruptura foi sempre Rodrigues dos Santos: forneceu, pela primeira vez, uma lista seriada; considerou, pela 1ª vez, que as razões editoriais seriam as únicas que deveriam ser tomadas em conta; apresentou a demissão porque a sua opinião não prevaleceu; insistiu no seu pedido de demissão depois de lhe pedirem para reconsiderar.

Todavia este cenário parece-me demasiado «maquiavélico». Porque entraria Rodrigues dos Santos em choque com o CA? Que ganharia com isso? Pelos vistos foi um confronto pessoal, embora parte da Direcção de Informação se tivesse depois demitido por razões de solidariedade. Todavia o Conselho de Redacção da RTP não validou aquelas posições dos colegas e alinhou pelas teses da administração.

Na vida de uma empresa surgem frequentemente atritos que, por vezes, se vão avolumando com o tempo e levam a uma confrontação por razões menores. Rodrigues dos Santos pareceu-me um sujeito com uma forte auto-estima e muito cioso das suas opiniões. Sabe-se, pelos casos que se contam da sua vida, que Almerindo Marques é “à prova de bala”. São pois duas personalidades muito fortes. Terá sido isso? Mas porquê exactamente agora, com o governo sob o fogo da comunicação social? Será que Rodrigues dos Santos quis bater com a porta na altura em que esse bater fosse mais fragoroso por razões externas? A exemplo do que aconteceu com MRS?

Julgo que, quer no caso de Rodrigues dos Santos, como no anterior caso de Marcelo Rebelo de Sousa, só saberemos a verdade (se alguma vez a chegarmos a saber), pelos percursos futuros destes personagens. Até lá, estamos presos na caverna de Platão: só vemos as imagens reflectidas e filtradas.

Publicado por Joana em novembro 23, 2004 03:01 PM | TrackBack
Comentários

Este caso da RTP é mesmo estranho. Nunca se viu toda a comunicação social bater tanto no governo e gritar toda ela que há censura.

Afixado por: J Ribeiro em novembro 23, 2004 04:37 PM

Parecem aqueles miúdos que no recreio estão a bater nos outros e ao mesmo tempo a pedirem socorro aos vigilantes

Afixado por: J Ribeiro em novembro 23, 2004 04:38 PM

Joana,
a questão fulcral,em minha opinião, tem que ver com a definição de "gestão corrente" ;
ié : pode considerar-se um assunto de gestão corrente a escolha de um correspondente ?
se sim, cabe à direcção respectiva - neste caso a dir. de informação - decidir da escolha.
se não, o CA tem toda a razão em querer ser ele a decidir sobre o nomeação do correspondente.
Não conheço bem o tipo de organização da RTP mas, não é normal uma Administração ser tão "operacional" , como parece ser o caso.
Por outro lado parece faltar uma estrutura intermédia - tipo director geral - que se responsabilize, perante o CA, face a este tipo de decisão. A direcção de informação poderia dar a sua opinião editorial mas seria o director geral a "vender" a ideia ao CA.

Afixado por: zippiz em novembro 23, 2004 07:50 PM

Fazer televisão não é para todos, e é necessário ponderar bem a escolha de realizadores, assistentes, correspondentes e outros entes.

Nota de Culpa

Contra o Sr. José Eduardo Delgado Elyseu Ribeiro, realizador de RTP-EP, consta dos autos o que se segue:

O indiciado é realizador da RTP desde 1961e, nessa qualidade, bem domina as características de um meio de comunicação social como a televisão e a sua natureza de serviço público.

O indiciado apresentou e foi aprovada em 15/7/77 pelo então Director de Programas uma proposta para a realização de uma série inicialmente intitulada “O País e o Palácio de Belém” e depois designada “Os anos do século” que tinha por objecto a reconstituição, por episódios, da recente história portuguesa.
(…)
A forma usada, servindo-se de típicas técnicas de manipulação visou e alcançou a deformação da realidade histórica com evidente postergação dos princípios de rigor e de objectividade que ao trabalho deviam presidir.
No mesmo episódio, a sequência da inauguração do monumento a Cristo-Rei demonstra o uso de técnica manipuladora ao, através da montagem, transformar o contexto real para, sem que qualquer aviso seja feito ao telespectador, inserir acontecimentos desfasados cronologicamente e sem qualquer relação entre si …

Foi Instrutor o Dr. Tinoco de Faria.

Afixado por: carlos alberto em novembro 23, 2004 10:52 PM

Pode até ser que sejam duas pessoas “com’ó aço”,
Mas porque diabo preconiza então a Joana que houve da parte da dita oposição um aproveitamento político da situação “de faísca”?
Porque não, um sinal para tentar saber, se houve no caso mais uma ingerência inadmissível nas funções da dita direcção de informação, que pertence a uma empresa pública e que é paga por todos nós?
A oposição está lá pra isso!
Pessoalmente, considero que de facto até houve uma grosseira ingerência.
A razão não se sabe, e pelos vistos nem a “não oposição” sabe!
Isso de se dizer que são pessoas sérias, com posições acima de qualquer suspeita, blá...blá...
As cadeias estão cheias de gente “honesta”,... Salvaguardando as devidas distâncias não será a melhor forma de se descartar este caso, dizendo que foi por “feitio” que ambos de desconcertaram!

Afixado por: E.Oliveira em novembro 23, 2004 11:05 PM

zippiz em novembro 23, 2004 07:50 PM
Pelo que me apercebi a RTP não pode manter delegações numerosas em diversos locais do estrangeiro por questões financeiras. Portanto o correspondente, para além de jornalista, representa a estação e tem as tarefas administrativas e financeiras ligadas ao cargo.

Portanto, segundo o CA, o concurso destinava-se a ajuizar os candidatos aptos para o lugar – critério editorial – e o CA escolhia aquele que em face das outras características e da situação da empresa em termos de recursos humanos, seria o mais indicado.

Não vejo nada de mal nisto, como escrevi no texto. O JRS entendeu que se o 1º afinal não era possível, então teria que ser o 2º. Ora de acordo com o CA não deveria ter havido lugar à apresentação de uma lista seriada, que poderia causar algum mal estar interno. E você que trabalha numa empresa sabe dos melindres em classificar profissionais do mesmo nível . Normalmente classificam-se por grupos e não um a um. Se houver necessidade de escolher alguém para um lugar, é a administração, ou a chefia local, que o faz e se responsabiliza. Normalmente evita-se que sejam as chefias directas a assumir a responsabilidade para evitar situações de conflito. Quanto mais longínquo for o centro de decisão, menos conflitual, no interior de um dado grupo, é a decisão.

Afixado por: Joana em novembro 23, 2004 11:12 PM

E.Oliveira em novembro 23, 2004 11:05 PM:
Eu não preconizei nada. Indique onde fiz isso, s.f.f..
Apenas relatei a intervenção de Narana Coissoró que deu a entender um "plano" a que eu própria não dei muito crédito, como escrevi.
Eu contei factos. Que faz presunções é você.

Afixado por: Joana em novembro 23, 2004 11:18 PM

Já agora, quem era o nº 2 da lista? E quem é o quadro superior que ameaçou demitir-se? É evidente que toda esta novela é insignificante e apenas pretende desviar a nossa atenção de questões fundamentais para a sobrevivência do nosso país.

Afixado por: Albatroz em novembro 23, 2004 11:43 PM

Vem no Público de hoje:
"A alusão do presidente da televisão terá tido em conta o facto de Pedro Bicudo, que ontem não foi possível ouvir, ter sido o jornalista que teve a melhor nota no critério "qualidade". Mas a avaliação nos restantes itens foi inferior, o que o relegou para o quinto lugar, atrás de Isabel Silva Costa, Duarte Valente, Paulo Dentinho e da escolhida pela administração, Rosa Veloso. Nenhum destes jornalistas exerce actualmente funções de correspondente."

Afixado por: nemo em novembro 24, 2004 12:12 AM

Até o Osório na Capital:
«Em nome de algum pudor, e sem qualquer preocupação corporativa - coisa que por regra não tenho -, acho que José Rodrigues dos Santos é muito mais culpado do que inocente em todo este processo. Porque alimentou uma guerra surda com a administração em que sobrevalorizou o seu poder e o papel que deve ter um director de informação; porque não conseguiu criar, ao que se sabe, laços de fidelidade com a sua redacção, o que não deixa de ser paradoxal; porque tentou tirar partido político, à semelhança de Marcelo na TVI, lucrando com o aparente desnorte governamental e posicionando-se perante os poderes futuros. »

Afixado por: fbmatos em novembro 24, 2004 12:18 PM

Nunca simpatizei com o José Rodrigues dos Santos, acho-o muito pretensioso.

Afixado por: Diana em novembro 24, 2004 12:20 PM

Deve haver muita roupa suja, muitas guerras internas na RTP. Não partilho da opinião da Joana sobre o José Rodrigues dos Santos. Não deve ser um tipo recomendável.
Se o Conselho de Redacção não o defende, antes pelo contrário, é porque não é boa peça.

Afixado por: AJ Nunes em novembro 24, 2004 08:17 PM

Joana

1 - Não houve nenhuma classificação. A lista está ordenada aleatoriamente. É evidente que, tratando-se de cinco nomes, um nome teria que aparecer em primeiro lugar NA LISTA, outro em segundo e assim sucessivamente.

2 - O JRS que, de facto, não é «boa peça», percebeu que esta coligação não tem futuro, percebeu que não tinha futuro com esta coligação e resolveu tomar uma atitude que, julga ele, o posiciona no lugar de primeiro candidato a director de Informação na anunciada era PS.

Será assim tão difícil perceber isto?

Afixado por: (M)arca Amarela em novembro 24, 2004 11:37 PM

O CR está feito com a administração e o governo

Afixado por: Cisco Kid em novembro 25, 2004 01:57 PM

(M)arca Amarela em novembro 24, 2004 11:37 PM:
Provavelmente tem razão. O facto da redacção não o apoiar é sintomático. Mas parece-me que as razões do JRS deverão ter mais a ver com guerras internas. Ainda estamos a 2 anos das eleições.
No caso do MRS não tenho dúvidas que foi um caso de ânsia de protagonismo político. A "coluna" dele estava a arrastar-se em demasia. Eu própria já só a via para estar a par de "alguma boca" dele, mas achava que era, quase sempre, tempo perdido. Com a Quinta das Celeb o MRS ia ver reduzido o seu espaço e deve ter feito uma fuga para a frente, com o bónus de deixar o Santana e o RGS em maus lençóis.

Afixado por: Joana em novembro 25, 2004 02:08 PM

Outros futurologistas vêm na ida de Cândida Pinto para o Expresso, a vacatura de um lugar para José Rodrigo dos Santos na SIC, o que não deixava de ser curioso.

Quero crer que este nunca se deve ter sentido confortável com a presença ombro a ombro de José Alberto Carvalho.

Quem viver, verá.

Afixado por: carlos alberto em novembro 25, 2004 09:39 PM
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