outubro 05, 2004

5 de Outubro de 1910

A propaganda republicana, principalmente a partir do início do descrédito do Estado Novo, transformou os seus líderes em ícones sacralizados, símbolos da pureza, probidade, desinteresse pelos bens materiais, etc.. Isto não é inteiramente verdade. Os líderes republicanos eram pessoas normais: uns probos e desinteressados, outros muito pouco virtuosos.

António José de Almeida ocupa um lugar proeminente. Em vão é possível reviver, pela leitura dos seus discursos, o efeito prodigioso das suas palavras segundo as crónicas da época; falta-nos ver o gesto e a voz, o brilho dos olhos, o orgulho agressivo da sua cabeleira; apenas subsiste a abundância retórica e a ferocidade das afirmações. Nas Cortes, em 3 de Junho de 1908 declarou: «Logo conversaremos e então lhes demonstrarei que a bomba de dinamite, em revolução, e em certos casos, pode ser tão legítima, pelo menos, como as granadas de artilharia, que não são mais do que bombas legais, explosivos ao serviço da ordem ... O meu propósito é atirar o fio do meu machado contra o tronco da árvore maldita [a Monarquia] até vê-la cair por terra».

Estas afirmações são detestáveis e hoje cairiam muito mal no eleitorado. Mas naquela época, a “canalha” (designação pela qual então eram conhecidas as massas urbanas menos favorecidas) era facilmente mobilizada pelo discurso radical, agressivo, pela contínua suspeição, pela denúncia de casos (mesmo que não passassem de boatos sem fundamentos) e pela intriga. E era mobilizada também para acções violentas que “prestigiavam” quem as fazia. A Ilustração Portuguesa (em 1911) apresenta uma reportagem em que carbonários ensinam e mostram como se fabricam bombas, acompanhada de fotografias. O PRP acabou, após ter tomado o poder, por cair na armadilha, que havia construído para os outros, da chicana política, boatos falsos, atentados e ser vítima dos demónios que havia solto.

Regressando a António José de Almeida, a sua isenção e coragem eram os alicerces do seu prestígio. Jamais alguém lhe conheceu ambição de lucro para si ou para a sua clientela e a fama da sua probidade nunca sofreu qualquer eclipse. Por outro lado, nunca declinou a sua quota parte quer na acção quer nas responsabilidades. Acreditava na grandeza da sua missão, e comportava-se, frequentemente, como um iluminado.

Raul Brandão escreveu:«Este António José de Almeida, com quem lido há meses, é uma força generosa e simpática... Irrita-se, barafusta: depois passa-lhe tudo com um riso excelente que aflora e ecoa. Há outra coisa que o honra: acredita, começa sempre por acreditar em toda a gente. Uma grande generosidade, um grande arcaboiço e uma voz poderosa e magnética. Não é decerto um homem de negócios, como os governos modernos necessitam, um político de oportunidades como para aí se requer. Falta-lhe talvez espírito crítico. É um orador: até os seus artigos são discursos. Adora as multidões, vive dos seus aplausos. Mas justiça, liberdade e povo, que para os outros não passam de palavras, são para ele realidades profundas»

Bem diferente é o carácter de Afonso Costa que foi frequentemente acusado de ambição do mando, de preocupação pela posse das realidades concretas. Um seu professor, Chaves e Castro, descreve-o como «ingrato e vaidoso, orgulhoso mas rastejador quando precisava; tumultuoso, insolente, mas tímido ante o perigo, sectarista odiento, amigo das grandezas e comodidades da vida».

Foi sempre aquele que maiores dotes organizadores manifestou, e o mais tenaz e sectário. A sua clientela política era um clã ávido de poder e de desfrutar dos bens terrenos. Foi de um nepotismo escandaloso. Quando ministro da Justiça, em 1911, os melhores lugares foram ocupados pelo seu irmão, pelos seus dois cunhados, pelo seu sócio do cartório, pelo seu procurador, por um amigo íntimo desde os tempos da juventude, etc., etc. Quando Machado Santos, o “herói da Rotunda”, irrompeu pelo seu gabinete aos gritos de «a Revolução não se fez para isto!», Afonso Costa respondeu-lhe fleumaticamente: «necessito nesses lugares de pessoas da minha confiança» ... Esta foi um característica permanente do seu comportamento.

Afonso Costa era o campeão da anti clericalismo. Quando falou sobre as leis que projectava (Março de 1911), declarou peremptoriamente: «Em duas gerações Portugal terá eliminado completamente o catolicismo». Afonso Costa apenas revelava a mesma arrogância e desconhecimento do país que muitos políticos radicais da actualidade.

Sobre o terceiro político da ribalta republicana, Brito Camacho, amigos e adversários temiam sempre o azedume implacável da sua palavra e da sua caneta. Tudo sacrificava à agudeza de uma frase mordaz. «Mostrou-se sempre tão azedo, que há quem diga que nas suas veias gira vinagre puro, em vez de sangue». Raul Brandão escrevia: «Há nele algo de dissolvente. Direi melhor que ele tem qualquer coisa que afasta os homens. Nem um acto de fé... Em lugar de calor, ironia. Os amigos podem aplaudi-lo e rir-se das suas piadas (riem-se e desconfiam da sua língua), mas a grande massa que forma os partidos é como as mulheres: não compreende a ironia, pelo contrário, tem-lhe medo e chama-lhe veneno...»

A seguir à revolução do 5 de Outubro, quando se quebrou a unidade republicana, em 1912, foram estes políticos que chefiaram as formações emergentes: António José de Almeida formou o Partido Republicano Evolucionista (os evolucionistas); Brito Camacho o Partido da União Republicana (os unionistas) e a chefia do PRP (que passou também a ser conhecido por Partido Democrático) passou para Afonso Costa.

Quanto à monarquia, o alvo principal era o rei. O problema político da monarquia portuguesa era o facto do rei, sendo responsável pela nomeação do Governo, não o ser, como acontecia em Itália ou na Alemanha, responsável por nenhum pelouro da governação em especial (na Itália e na Alemanha, a política externa era conduzida pelo rei ou imperador). Ou, como em Inglaterra, estar fora do desgaste governativo e ser tão só uma figura de consenso nacional. Poder-se-ia pensar que a solução portuguesa poupava o rei ao desgaste político, mas a verdade é que ele se tinha convertido desde o reinado de D. Luís, num árbitro entre os partidos, que se habituaram a atacar ou a ameaçar o rei para acederem ao governo. A monarquia reduzira-se a uma espécie de ponto fraco do partido no Governo. Neste entendimento, o ataque pessoal ao rei tornou-se a forma mais corriqueira de quem estava na oposição lhe lembrar que era tempo de substituir o partido no Governo. Para fazer cair um governo atacava-se o rei, ou o governo através do rei. Como o rei era o responsável pela nomeação do Governo, mas não pela sua política, atacar o rei evitava o debate político e fragilizava a posição do rei e, indirectamente, do governo que ele tinha nomeado.

Quem saía do poder nunca admitia a perda de confiança do País - mas apenas a da confiança da coroa. O rei, como então disse João Franco, emergiu naturalmente como o «homem público mais discutido do seu país». Nos fins de 1907, devido ao seu aparentemente obstinado auxílio ao governo de João Franco, D. Carlos tinha sido declarado o inimigo principal por toda a oposição, incluindo os progressistas e regeneradores, que boicotaram a recepção do ano novo de 1908 no Paço.

Portanto, os partidos monárquicos, quer um quer o outro, foram perdendo energia ao se enquadrarem oficialmente no turno monárquico governamental. A rotação invariável fazia-os passar do poder à oposição e da oposição ao poder. Seria difícil delimitar as suas diferenças ideológicas; giravam em torno de determinadas pessoas e não à volta de ideias claras e distintas. A luta pelo poder não era guiada pelo desejo de desenvolver um bom programa de governo. Assim, a sua capacidade negativa de oposição era imensamente superior à sua capacidade governativa; avultava no ataque, diminuía no poder, e o desgaste do sistema era cada vez mais intenso e persistente.

Duas das questões que mais chicana política levantaram foi a questão dos tabacos e a dos adiantamentos à Casa Real (com o fim do regime feudal a maioria dos bens da Coroa fora nacionalizada e a Casa Real subsistia, parcialmente, através de dotações orçamentais). E a chicana e a intriga veio de todos os lados: partidos monárquicos e partido republicano. Os adiantamentos dominaram a sessão de 20-11-1906 na Câmara dos Deputados, sendo Chefe do Governo João Franco. Com base no alegado escândalo, a minoria republicana preparou uma grande ofensiva. Encheram-se as galerias de público que os Centros republicanos recrutavam e em que se viam habitualmente marinheiros e soldados. Afonso Costa falou. Falou ininterruptamente. Caía a noite e já se tinham acendido as luzes, quando o Presidente o advertiu de que lhe restavam quinze minutos para falar. Então insistiu sobre a questão dos adiantamentos e pediu o cárcere ou o desterro para o Rei. A voz do Presidente que o mandava calar, confundiu-se com os aplausos da galeria. Num momento de silêncio, Afonso Costa gritou: «Por muito menos crimes do que os cometidos por D. Carlos, rolou no cadafalso, em França, a cabeça de Luís XVI».

Negou-se a desdizer-se, e, no meio de grande tumulto, o Presidente, fez entrar a força pública para expulsar Afonso Costa. António José de Almeida saltou por sobre a bancada e convidou a força pública à revolta: «Soldados! Com a minha voz e as vossas baionetas vamos proclamar a República e fazer uma pátria Nova!».

Foram estes os protagonistas do drama do regicídio e da revolução. Após o regicídio de Fevereiro de 1908 (os regicidas Alfredo Costa, um jovem caixeiro numa loja de Lisboa, e Manuel Buíça, professor numa aldeia e ex-sargento de Cavalaria, eram ambos carbonários e fanáticos entusiastas de António José de Almeida), os radicais do republicanismo estabeleceram aquilo a que se chamou «o culto dos regicidas» que provocou diversas manifestações, como a subscrição para a família de Buíça e a propaganda levada a cabo nas escolas. Mas o acto mais importante foi aquilo a que o Conde Arnoso chamou «a vergonhosa e vil peregrinação ao cemitério». Associações, grémios, delegados de diversos organismos, redactores de diários das esquerdas desfilaram, previamente convocados, diante dos túmulos dos regicidas, depositando ramos de flores, coroas, fitas com inscrições laudatórias.

A Marquesa de Rio Maior pediu a Ferreira do Amaral que pusesse termo aquela vergonha. «Agora - respondeu-lhe o Presidente - só penso em acalmar os ânimos». O que levou o Times, relatando os acontecimentos de Portugal, a escrever: «O mundo civilizado observará, provavelmente, que os senhores assassinos é que mandam».

Nota - sobre este assunto ler igualmente:

5 de Outubro – As Origens
5 de Outubro – O Ultimato
5 de Outubro – Monarquia sem monárquicos

Publicado por Joana em outubro 5, 2004 11:59 PM | TrackBack
Comentários

A República, com todos os seus defeitos, já vinha de 1834, embora então se tivessem esquecido de remover o Monarca e o substituir por um Presidente. O 5 de Outubro não foi mais do que a correcção desse esquecimento. E o Rei D. Carlos I, ao querer restaurar a Monarquia, assinou a sua sentença de morte. A República, tal como é praticada entre nós desde 1834, nada mais é do que o regime que promove a oligarquia, o facciosismo, o império dos interesses sectoriais sobre o interesse - ou bem - comum. Se não se conseguir regenerar a República - o que me parece quase impossível -, mais tarde ou mais cedo teremos de equacionar o regresso da Monarquia. Mas, para isso, teremos primeiro de resolver o equívoco que é o actual "Pretendente" ao Trono, verdadeiro obstáculo a que a Monarquia possa ser levada a sério pelas novas gerações.

Afixado por: Albatroz em outubro 6, 2004 10:27 AM

Excelentes posts, Joana

Afixado por: Rui Sá em outubro 6, 2004 10:50 AM

Tristinho mesmo é ver na televisão o repórter a perguntar às pessoas por que carga de água o 5 de Outubro era feriado e ninguém saber. E não saberem quem foi o último rei de Portugal ou o 1º Presidente da dita.
Páis doentinho pra chuchu...

Afixado por: Átila em outubro 6, 2004 04:02 PM

Gostei de ler este post. Muito bom.
Um senão: como alentejano sou suspeito, -e como conterrâneo ainda mais- mas penso que não desenvolveste os traços de carácter dp Brito Camacho como ele merecia.
É verdade que era azedo. É verdade que a sua ironia, o sei chiste assustava os seus inimigos e, inclusivamente, os seus aliados.
Era um homem muito inteligente.
Não foi um santo mas, e passe algum cinismo- era humanamente honesto.
Joana, a este homem morreu-lhe a jovem mulher de parto e a filha desse parto pouco depois.
Como anti-clerical foi ignorado no Estado Novo.
No período pós Revolução do 25/A a rapaziada de esquerda evocou a sua memória e deu o seu nome a escolas, ruas... até descobrir o óbvio: o Brito Camacho dirigia um partido de intelectuais e de elites. O seu era o partido mais à direita no espectro republicano e, em Lisboa, defendeu sempre os interesses dos latifundiários do Alentejo.

Outra coisa: Foi neste político que o Norton de Matos se baseou para a sua proposta de gestão do Império Ultramarino...

Um abraço,
Francisco Nunes

P.S.: Enlevado no meu bairrismo, esqueci-me de te dizer que, para além de ter gostado teu post entendo-o como 'um aviso à navegação' para os políticos que hoje temos por aí...

Afixado por: Planície Heróica em outubro 6, 2004 11:25 PM

O «tiro ao Pretendente» de Albatroz, inscreve-se (porventura exclusivamente) numa concepção política que não é a que hoje vigora na res-pública, nem muito menos nas Monarquias Europeias. A Causa Monárquica, de resto, parece não ver por que razões o espaço do «Bem Comum» e do «Partido de Serviço» - a Instituição Real, em suma - não poderia funcionar como factor fundamental de equilíbrio e contra-peso, em relação às teorias conflituais da democracia ideológico-partidária que a República fez ascender ao topo do Estado, emprestando-lhe mesmo a dignidade de representação de «todos os portugueses».
Bem ao contrário de Vilfredo Pareto, que era italiano, Robert Michels que também percebeu a degenerescência oligárquica da democracia, apoiou o fascismo de Mussolini. Há erros que não se cometem segunda vez.

Afixado por: asdrubal em outubro 8, 2004 08:09 PM

Realmente os Posts são de elevadíssima qualidadade.
Não deixo no entanto de dar a minha opinião. A Monarquia é tida como em declínio e que portugal era uma República com um Rei.
Mas não é um pouco isso que é a Monarquia constitucional?
portanto não vejo a demissão do rei de alguns poderes como declinio mas como evolução da sociedade. No entanto não considero que a república seja a evolução natural deste facto.
Quanto aos repúblicanos referidos, nada mais do que criminosos sequiosos de poder. O poder é a questão básica, o que de certa forma não condeno, condeno sim aqueles que caem nas armadilhas da argumentação.
A grande revolução repúblicana nada mais é do que um grupo de interesses que através da violência e da difamação conseguiu convencer alguma da elite burguesa urbana (Hoje perfeitamente representada no BE) e supostamente iluminada, que o Rei era o obstáculo às sua sede de poder.`
A esquerda radical e a um pouco menos radical acabam por ser a representação suprema da hipocrisia, quando se passam por defesa do povo, mas quando o seu real perfil é de elitismo e suposta supremacia moral e intelectual, logo infinitamente melhores que o povo.
Continuando
Esta elite urbana através do terror acabou por cercar todo o país em amarras inquebrantáveis de medo, provocando o afastamento das bases da evolução do país.
Então se Lisboa era longe, muito mais longe se tornou na realidade.

Afixado por: Braveman em novembro 5, 2004 02:26 PM
Comente esta entrada









Lembrar-me da sua informação pessoal?