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novembro 21, 2004

Voltaire e Micrómegas

Voltaire (François-Marie Arouet) nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694, há 310 anos precisamente. Estudou num colégio de jesuítas pretendendo seguir a magistratura. Entretanto publicou seus primeiros versos e escritos. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado na Bastilha, de onde saiu seis meses depois. Foi por essa ocasião que ele resolveu adoptar o nome de Voltaire e se começou a tornar conhecido pela sua actividade literária.

Em 1726, em consequência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente preso na Bastilha, de onde só pôde sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Datam da mesma época as suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se na Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até à morte desta, em 1749.

Em 1749, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, indo para Berlim no ano seguinte. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade não durou muito: eram duas personalidades muito fortes e as intrigas e invejas mútuas obrigaram Voltaire a deixar Berlim em 1753.

A partir de 1758, adquiriu o domínio de Ferney e aí passou a residir em companhia da sobrinha. Em 1778, efectuou uma viagem a Paris, onde foi entusiasticamente recebido. Era “Le Roi Voltaire”. Morreu no dia 30 de março desse ano, aos 84 anos de idade.

A sua divisa Ridendo Castigat Mores «rindo (satirizando), corrige-se os costumes», é uma das minhas preferidas.


Micrómegas, que transcrevo a seguir, foi escrito por influência de As aventuras de Gulliver, de Swift, que Voltaire lera em Londres, da Pluralidade dos mundos, de Fontenelle e da mecânica de Newton. O resultado é uma obra com humor e ironia, mas que obriga à meditação sobre o homem, as suas crenças, costumes e instituições.

MICRÓMEGAS - HISTÓRIA FILOSÓFICA
por Voltaire

CAPÍTULO I
Viagem de um habitante da estrela Sírio ao planeta Saturno

Num dos planetas que giram em volta da estrela Sírio havia um rapaz de muito espírito que tive a honra de conhecer na última viagem que fez ao nosso minúsculo formigueiro.

Chamava-se Micrómegas, nome que se adapta muito bem a todos os grandes. Tinha oito léguas de altura; calculo estas oito léguas em vinte e quatro mil passos geométricos, de cinco pés cada um.

Alguns matemáticos, categoria de pessoas sempre úteis ao público, de caneta em punho, calcularão que, tendo o senhor Micrómegas, habitante da estrela Sírio, desde a cabeça aos pés vinte e quatro mil passos, o que corresponde a cento e vinte mil pés e que nós, cidadãos da Terra, não vamos além de cinco pés e que esta mesma tem apenas nove mil léguas de circunferência, calcularão, repito, que é absolutamente necessário que o mundo que o produziu tenha, precisamente, vinte e um milhões e seiscentas mil vezes a circunferência da nossa pequena Terra.

Nada é mais simples e mais banal na natureza. Os estados de alguns soberanos da Alemanha ou da Itália, que levam uma escassa meia hora a percorrer, comparados com o império da Turquia, da Moscóvia ou da China, são, apenas, uma pálida imagem das diferenças prodigiosas que a natureza estabeleceu para todos os seres.

Sendo a estatura de Sua Excelência da altura que mencionei, todos os nossos escultores e pintores concordarão, sem dificuldade, que a cintura pode ter cinquenta mil pés: isto dá-lhe uma bela proporção.

O seu espírito é um dos mais cultos que temos. Sabe muitas coisas e inventou outras: ainda não tinha duzentos e cinquenta anos e estudava, segundo o costume, no colégio dos jesuítas da sua estrela, quando resolveu, com o auxílio da sua inteligência, mais de cinquenta teoremas de Euclides.

Isto é, mais dezoito do que Blaise Pascal que, depois de ter resolvido trinta e dois, brincando, como diz sua irmã, se tornou um medíocre geómetra e um péssimo metafísico.

Ao sair da infância, cerca dos quatrocentos e cinquenta anos, dissecou insectos tão pequenos que não chegam a alcançar cem pés de diâmetro e que fogem ao campo visual dos microscópios vulgares. Compôs sobre o assunto um livro muito curioso mas que lhe trouxe algumas complicações.

O mufti do seu país, grande coca-bichinhos e bastante ignorante, encontrou no livro proposições suspeitas, malsoantes, temerárias, heréticas, tresandando a heresia e perseguiu-o activamente: procurava saber se a substância das pulgas era igual à dos caracóis.

Micrómegas defendeu-se com brilho; arrastou as mulheres para a sua causa. O processo durou duzentos e vinte anos. Por fim, o mufti conseguiu que o livro fosse condenado por juizes que nunca o leram e o autor foi proibido de frequentar a corte durante oitocentos anos.

Afligiu-se muito pouco por ter sido banido de uma corte cheia de intrigas e frivolidades. Compôs uma canção muito graciosa contra o mufti, com que este nada se incomodou; e pôs-se a viajar de planeta para planeta, para acabar de formar o espírito e o coração, como se costuma dizer.

Os que apenas viajam em diligência ou em berlinda ficarão admirados, sem dúvida, com as carruagens lá de cima, porque nós, neste pequeno grão de areia, nada admitimos fora dos nossos costumes.

O nosso viajante conhecia, maravilhosamente, as leis da gravidade e todas as forças atractivas e repulsivas. Servia-se delas tão a propósito que, umas vezes com a ajuda de um raio de sol, outras utilizando um cometa, saltava de globo em globo, ele e os seus, tal como um pássaro saltita de ramo em ramo.
Percorreu a Via Láctea em pouco tempo e sou obrigado a confessar que nunca viu, através das estrelas que a compõem, esse maravilhoso céu empíreo que o vigário Derham se gaba de ter observado com a sua luneta. Não é que eu queira afirmar que o senhor Derham tenha visto mal. Deus me livre! Mas Micrómegas passou por lá e é um bom observador... E eu não quero contradizer ninguém.

Micrómegas, depois de muitas voltas, chegou ao planeta Saturno. Por mais acostumado que estivesse a ver coisas novas não pôde, a princípio, evitar, em face da pequenez do globo e dos seus habitantes, aquele sorriso de superioridade que escapa, por vezes, aos mais comedidos. Porque, enfim, Saturno é apenas novecentas vezes maior do que a Terra e os seus habitantes anões de cerca de mil toesas de altura.

Divertiu-se um pouco, de princípio, com esta gente, tal como um músico italiano se riu da música de Lulli, quando veio a França. Mas porque era muito inteligente depressa compreendeu que um ser pensante pode não ser ridículo por possuir, apenas, seis mil pés de altura. Familiarizou-se com os saturnianos depois de os ter espantado. Ligou-o estreita amizade com o secretário da Academia de Saturno, homem talentoso, que, na verdade, nunca inventou nada mas compreendia as invenções dos outros, fazia versozinhos sofríveis e grandes cálculos.

Vou contar agora, para satisfação dos leitores, uma conversa curiosa que Micrómegas teve, um dia, com o senhor secretário.

CAPÍTULO II
Conversação entre o habitante de Sírio e o de Saturno

Depois que Sua Excelência se foi deitar e que o secretário se aproximou, Micrómegas disse: - É preciso confessar que a Natureza é muito variada.
- Sim, respondeu o saturniano, a Natureza é como um jardim cujas flores...
- Oh!, exclama o outro, deixe lá o jardim.
- Ela é, torna o secretário, semelhante a um conjunto de loiras e morenas, cujos adornos...
- Que me interessam as vossas morenas?
- Então é como uma galeria de pintura cujos traços...
- Oh! não, diz o viajante. A Natureza é como a Natureza. Para que buscar comparações?
- Para vos divertir, responde o secretário.
- Eu não quero que me divirtam, volve Micrómegas, quero que me instruam. Comece, pois, por me dizer quantos sentidos têm os homens do vosso globo.
- Temos setenta e dois, diz o académico, e lamentamo-nos sempre por termos tão poucos! A nossa imaginação supera as necessidades. Achamos que, com os setenta e dois sentidos, o anel e as cinco luas, somos muito limitados e, apesar de toda a nossa curiosidade e do número excessivamente grande de paixões que resultam desses setenta e dois sentidos, temos muito tempo para nos aborrecer.
Acredito, diz Micrómegas, porque, no nosso globo, temos perto de mil sentidos e ainda nos fica um vago desejo, uma inquietação que nos faz pressentir, continuamente, quão pequenos somos e que há seres muito mais perfeitos. Tenho viajado um pouco, tenho visto seres muito inferiores mas também muitos superiores, nunca encontrei, porém, nenhuns que não tenham mais desejos do que verdadeiras necessidades e mais necessidades do que satisfação. Talvez um dia atinja o país onde nada falte mas, até agora, ninguém me deu notícias positivas acerca dele.
O saturniano e o siriano cansaram-se de conjecturas; mas, após variados raciocínios muito engenhosos e incertos, foi preciso voltar aos factos.
- Qual a duração da vossa vida? perguntou o siriano.
- Muito pequena, replica o pequeno Saturniano.
- É como nós, volve o siriano; lamentamos sempre ser tão curta. É necessário que obedeça a uma lei universal da Natureza.
- Valha-me Deus! desabafa o saturniano; não vivemos mais do que quinhentas grandes revoluções do sol (isto equivale a cerca de quinze mil anos, contados à nossa maneira). Bem vê que é morrer quase a nascença; a nossa existência é um ponto; a nossa duração um instante, o nosso globo um átomo. Mal nos começamos a instruir um pouco chega a morte, antes que tenhamos experiência! Quanto a mim não ouso fazer projectos; sou como uma gota de água num oceano imenso. Sinto-me envergonhado, sobretudo perante vós, da figura ridícula que faço no mundo.
Micrómegas torna a dizer: - Se não fôsseis filósofo temeria afligir-vos, dizendo que a nossa vida é setecentas vezes mais longa do que a vossa. Mas sabeis muito bem que, quando é necessário entregar o corpo aos elementos e fazer viver a Natureza, sob uma outra forma, que se chama morrer, quando este momento de metamorfose chega, é precisamente a mesma coisa o ter vivido uma eternidade ou um dia. Visitei países onde se vive mil vezes mais tempo do que no meu e notei que também se protestava. Mas há por toda a parte pessoas de bom-senso que sabem conformar-se e louvar o autor da Natureza, que espalhou no Universo uma profusão de variedades, com uma espécie de uniformidade admirável.
Por exemplo, todos o seres pensantes são diferentes e todos se parecem, no fundo, pelo dom do pensamento e dos desejos. A matéria é, por toda a parte, extensa mas tem, em cada globo, propriedades diversas. Quantas destas propriedades diversas apresenta a vossa matéria?
- Se vos referis aquelas propriedades, diz o saturniano, sem as quais supomos que este globo não poderia subsistir tal como é, podem indicar-se trezentas, como extensão, impenetrabilidade, mobilidade, gravitação, divisibilidade e o resto.
- Aparentemente, replica o viajante, este pequeno número está de acordo com a visão que o Criador teve do vosso pequeno mundo. Admiro-o em toda a sua sabedoria; vejo diferenças por toda a parte mas, igualmente, a proporção.
O globo é pequeno e os habitantes são-no também. Tendes poucas sensações; a matéria tem poucas propriedades; tudo isto é obra da Providência. De que cor é o vosso Sol?
- De um branco muito amarelado, diz o saturniano e, quando examinamos, separadamente, um dos raios, achamos que tem sete cores.
- O nosso Sol tende para vermelho, acrescenta o siriano e temos trinta e nove cores primitivas. Não há um Sol, de entre todos os que tenho visto de perto, que se assemelhe, como entre vós não há uma cara que não seja diferente de todas as outras.
Depois de várias perguntas desta natureza informou-se sobre a quantidade de substâncias essencialmente diferentes que Saturno continha. Esclareceram-no de que existiam aproximadamente umas trinta, tais como Deus, espaço, matéria, seres extensos que sentem, seres extensos que sentem e pensam, seres pensantes que não têm extensão, os que se penetram, os que não se penetram e o resto.
O siriano, em cuja terra se contavam trezentos e que tinha descoberto outros três mil nas suas viagens, espantou prodigiosamente, o filósofo de Saturno.
Enfim, depois de terem comunicado um ao outro um pouco do que sabiam e muito do que não sabiam, depois de terem discorrido durante uma revolução do Sol, resolveram fazer os dois uma pequena viagem filosófica.

CAPÍTULO III
Viagem dos dois habitantes de Sírio e de Saturno

Estavam os nossos dois filósofos quase a embarcar na atmosfera de Saturno, com uma belíssima provisão de instrumentos matemáticos, quando a amada do saturniano, sabendo a novidade vem, desfeita em lágrimas, recriminá-lo. Era uma bonita moreninha que não tinha mais do que seiscentas e sessenta toesas mas que compensava a pequenez do tamanho com muitos adornos.
- Ah! cruel! gritava ela, depois de ter resistido durante mil e quinhentos anos, agora, que começava enfim a render-me, que passei apenas cem anos nos teus braços, deixas-me para ir viajar com um gigante de outro mundo. Vai, não és mais do que um curioso; nunca sentiste amor: se fosses um verdadeiro saturniano serias fiel! Onde vais? Que buscas? As nossas cinco luas são menos errantes do que tu, o nosso anel menos inconstante. Nunca mais amarei ninguém!
O filósofo abraçou-a e chorou com ela, como filósofo que era; e a senhora, depois de ter desmaiado, foi consolar-se com um peralvilho do país.
Entretanto os dois curiosos partiram; primeiro saltaram para o anel, que acharam muito espalmado, como muito acertadamente o supôs um ilustre habitante da nossa Terrinha; de lá foram, de lua em lua. Um cometa passou muito perto da última; lançaram-se sobre ele com os criados e os instrumentos. Quando tinham percorrido cerca de cento e cinquenta milhões de léguas encontraram os satélites de Júpiter.
Passaram pelo próprio Júpiter, onde ficaram um ano, durante o qual aprenderam belíssimos segredos, que estariam actualmente publicados se os senhores inquisidores não tivessem encontrado algumas proposições um pouco violentas. Mas eu li o manuscrito na biblioteca do ilustre arcebispo de... que me deixou ver os seus livros, com uma generosidade e bondade que não saberei, devidamente, louvar.
Mas voltemos aos nossos viajantes.
Tendo saído de Júpiter atravessaram um espaço de cerca de cem milhões de léguas e costearam o planeta Marte o qual como se sabe, é cinco vezes mais pequeno do que o nosso globo. Viram as duas luas que servem este planeta e que escaparam aos olhos dos nossos astrónomos.
Sei bem o que o padre Castel escreverá, muito ridiculamente, contra a existência destas duas luas mas dirijo-me aos que raciocinam por analogia.
Estes bons filósofos sabem como seria difícil para Marte, tão longe do Sol, viver com menos de duas luas.
De qualquer forma os nossos personagens acharam-no tão pequeno que recearam não encontrar lugar para dormir e seguiram o seu caminho, como dois viajantes que desdenharam uma péssima estalagem de aldeia e avançam até a cidade vizinha.
Mas o siriano e o seu companheiro cedo se arrependeram, pois andaram muito tempo e nada encontraram.
Avistaram, finalmente, um pequeno clarão: era a Terra.
Causou-lhes impressão. No entanto, com receio de se arrependerem segunda vez, resolveram desembarcar. Passaram para a cauda do cometa e, encontrando uma aurora boreal muito perto, instalaram-se nela e chegaram à Terra, na margem setentrional do Mar Báltico, a cinco de Julho de mil setecentos e trinta e sete, segundo o novo calendário.

CAPÍTULO IV
O que lhes aconteceu no globo terrestre

Depois de repousarem algum tempo, comeram ao almoço duas montanhas, muito bem preparadas pelos seus criados.
De seguida dispuseram-se a conhecer a região onde se encontravam. Foram, primeiro, de Norte a Sul.
Os passos normais do siriano e da sua gente, eram de cerca de trinta mil pés; o anão de Saturno seguia-o, de longe, ofegante; era-lhe necessário dar cerca de doze passos enquanto o outro dava uma passada: imaginai (se é permitido fazer tais comparações) um cãozinho de luxo, que seguisse um capitão da guarda do rei da Prússia.
Como iam muito depressa, deram a volta à Terra em trinta e seis horas; o Sol, na verdade, ou melhor, a Terra, faz a mesma viagem num dia. Mas é preciso notar que é mais fácil girar num eixo, do que caminhar a pé.
Ei-los, portanto, regressando ao ponto de partida depois de terem visto aquele mar chamado Mediterrâneo, quase imperceptível para eles, e aquele pequeno lago que, sob o nome de Grande Oceano, rodeia o montinho da Terra.
O anão molhou-se até metade da perna e o gigante apenas o calcanhar.
Fizeram o que lhes apeteceu, indo e vindo de baixo para cima, tentando descobrir se a Terra era ou não habitada.
Baixaram-se, deitaram-se, tactearam por toda a parte, mas, não tendo os olhos e as mãos proporcionados aos seres que rastejam por aqui, não receberam a menor sensação que pudesse fazer supor que nós e os nossos semelhantes, habitantes deste globo, temos a honra de existir.
O anão, por vezes precipitado nos juízos que formulava, decidiu, a princípio, que a Terra não era habitada, pelo facto de não ter visto ninguém.
Micrómegas, delicadamente, fez-lhe sentir que estava a raciocinar mal. Disse-lhe:
- Porque não vês, com os teus pequenos olhos, algumas estrelas de quinquagésima grandeza que eu distingo perfeitamente, concluis que não existem?
- Mas - respondeu o anão - apalpei bem.
- Porém - volveu o gigante - sentiste mal.
Insiste o anão. Esta terra é mal construída, irregular e de uma forma que se me afigura ridícula; parece que aqui reina o caos. Olha esses pequenos riachos; nenhum corre direito; e esses lagos que não são nem redondos, nem quadrados, nem ovais, nem de nenhuma forma regular; estes grãos pontiagudos de que toda a Terra está eriçada e que me dilaceram os pés (queria falar das montanhas).
Olha ainda a sua forma, como é achatada nos pólos, como gira desastradamente em volta do Sol, de maneira que o clima nos pólos é, necessariamente agreste.
Na verdade, o que me faz pensar que não existe vida, é a convicção de que ninguém de bom-senso aqui quereria viver.
- Pois bem, diz Micrómegas - não será, possivelmente, habitado por pessoas de bom-senso. No entanto, não parece que fosse criado sem qualquer fim. Tudo aqui se vos afigura irregular, porque em Saturno e Júpiter tudo é traçado à régua. É talvez também, por este motivo, que há um pouco de confusão. Não te contei já que nas minhas viagens sempre notei variedade?
O Saturniano retorquia a todas estas razões e a disputa eternizar-se-ia se, por felicidade, Micrómegas encolerizando-se, não tivesse partido o fio do colar de diamantes. Estes caíram. Eram lindos diamantezinhos, desiguais, pesando o maior quatrocentas libras e os mais pequenos cinquenta.
O anão apanhou alguns; apercebeu-se de que, da maneira como estavam talhados, constituíam excelentes microscópios.
Pegou então num de seiscentos e sessenta pés de diâmetro e aplicou-o à sua pupila; Micrómegas escolheu outro de dois mil e quinhentos pés. Eram óptimos, mas à primeira tentativa nada viram porque não estavam adaptados.
Por fim, o habitante de Saturno lobrigou qualquer coisa quase imperceptível que se movia no mar Báltico: era uma baleia.
Agilmente apanhou-a com o dedo mínimo e pondo-a sobre a unha do polegar mostrou-a ao Siriano que se pós a rir pela segunda vez, da pequenez excessiva dos habitantes do nosso planeta.
O Saturniano, convencido agora de que este mundo era habitado, concluiu imediatamente que o era, apenas, por baleias e, como era muito raciocinador, quis descobrir como se movimentava um átomo tão pequeno, se tinha ideias, vontade, liberdade.
Micrómegas ficou fortemente embaraçado; examinou pacientemente o animal e concluiu que era impossível que existisse nele alma.
Os dois viajantes inclinaram-se a pensar que não havia espíritos no nosso mundo, quando, com a ajuda do microscópio, perceberam qualquer coisa maior do que a baleia que flutuava no mesmo mar.
Sabe-se que, precisamente nessa data, um grupo de filósofos voltava do círculo polar, onde tinha feito observações, inteiramente desconhecidas até à data.
Os jornais disseram que o barco naufragou nas costas de Bótnia, e que eles, dificilmente, se conseguiram salvar, mas a verdade, neste mundo raramente se conhece bem.
Vou contar, com toda a simplicidade, como as coisas se passaram sem acrescentar nada por minha conta.
O que não representa pequeno esforço para um historiador.

CAPÍTULO V
Experiências e raciocínios dos dois viajantes

Micrómegas estendeu docemente a mão em direcção ao objecto e, avançando dois dedos retirou-os, com receio de se enganar, depois, abrindo-os e fechando-os, agarrou rapidamente o barco que trazia aqueles senhores, pô-lo na unha, sem o apertar, com receio de o esmagar.
- Eis um animal bem diferente do primeiro, diz o anão de Saturno. O siriano colocou o pretenso animal na cavidade da mão. Os passageiros e a tripulação que se julgaram arrebatados por um tufão e pensaram ter arribado a um rochedo, puseram-se todos em movimento. Os marinheiros arrastaram tonéis de vinho, lançaram-nos na mão de Micrómegas e precipitaram-se atrás deles. Os geómetras agarraram os quadrantes, os sectores e raparigas da Lapónia e desceram para os dedos do Siriano.
Tanto fizeram que este sentiu, por fim, algo que lhe fazia cócegas nos dedos: era um pau ferrado que lhe enterravam no índex e julgou, por causa desta picadela, que alguma coisa saíra do animalzinho que segurava; mas não se preocupou. O microscópio que apenas permitia distinguir uma baleia e um barco não tinha capacidade para tornar perceptíveis os homens.
Não pretendo chocar, aqui, a vaidade de ninguém, mas sou obrigado a pedir às pessoas importantes que façam comigo um pequeno reparo: atingindo a estatura dos homens cerca de cinco pés não fazemos, na Terra, muito melhor figura do que faria, sobre uma bola de dez pés de circunferência, um animal que medisse apenas, aproximadamente, uma seiscentésima milésima parte de uma polegada.
Imaginai um ser que pudesse segurar na mão a Terra e que tivesse os órgãos na proporção dos nossos; pode muito bem acontecer que haja grande número dessas substâncias; ora, concebei, peço-vos, o que pensariam elas desses combates que nos renderam duas aldeias que tivemos de entregar depois.
Não duvido de que, se esta obra um dia for lida por algum capitão de granadeiros, este ordene que os bonés dos seus soldados passem a ter, pelo menos, mais dois pés de altura. Mas advirto-o de que, faça o que fizer, tanto ele como os seus nunca passarão de infinitamente pequenos.
Que maravilhosa habilidade não foi necessária ao nosso filósofo de Sírio para distinguir os átomos de que acabo de falar!
Quando Leuwenhoek e Hartsoeker conseguiram ou julgaram ter conseguido ver as pequenas partículas de que somos formados, não fizeram, nem de longe, uma tão surpreendente descoberta. Que prazer sentiu Micrómegas, vendo mexer estas pequenas máquinas, observando as voltas que davam, seguindo-as em todas as evoluções. Como ele rejubilava! Com que alegria pôs um microscópio nas mãos do companheiro de viagem!
- Vejo-os, diziam ao mesmo tempo; não os vedes carregando fardos, baixando-se, levantando-se?
E falando deste modo, tremiam-lhes as mãos, pelo prazer de descobrir coisas ignoradas e com receio de as perder.
O saturniano, passando do excesso de desconfiança ao da credulidade julgou perceber que eles se entregavam a um trabalho de procriação.
- Ah!, disse, surpreendi a Natureza em flagrante; mas enganara-se com as aparências: o que acontece com frequência, quer nos sirvamos de microscópio ou não.

CAPÍTULO VI
O que lhes aconteceu com os Homens

Micrómegas, muito melhor observador do que o anão, viu claramente que os átomos falavam, e fê-lo notar ao seu companheiro que, envergonhado por se ter iludido na questão da procriação, não quis acreditar que semelhantes espécies pudessem trocar ideias.
Tinha o dom das línguas, assim como o siriano, não ouvia falar os átomos e supunha que o não fizessem. De resto, como poderiam estes seres imperceptíveis ter órgãos para a voz e o que teriam para dizer? Para falar é preciso pensar ou quase; mas se eles pensassem teriam que possuir o equivalente a uma alma. Ora, atribuir o equivalente a uma alma a esta espécie parecia-lhe absurdo.
- Mas, disse o siriano - há pouco julgaste que eles estavam a praticar o amor; podes crer que se possa praticar o amor sem pensar e sem proferir qualquer palavra, ou, pelo menos, sem se fazer compreender? Julgas que é mais difícil produzir um argumento do que um filho? Para mim um e outro me parecem grandes mistérios.
- Não ouso acreditar nem negar - replicou o anão - não tenho opinião. É preciso examinar estes insectos, depois raciocinaremos.
- Muito bem - concordou Micrómegas e imediatamente puxou de meia tesoura, com que cortava as unhas, e com uma apara da unha do polegar fez uma espécie de porta-voz, semelhante a enorme funil, cujo tubo meteu na orelha.
A circunferência do funil envolvia o barco e toda a tripulação.
A mais fraca voz entrava nas fibras circulares da unha; de maneira que, graças à sua habilidade, o filósofo, lá do alto, ouvia perfeitamente o zumbido dos insectos cá em baixo.
Dentro de poucas horas, começou a distinguir palavras, e, por fim, a compreender o francês. O anão fez a mesma coisa, ainda que com maior dificuldade.
O espanto dos viajantes redobrava de momento a momento. Ouviam os bichinhos falar com certo bom-senso; este jogo da natureza pareceu-lhes inexplicável.
Acreditai que ambos ardiam de impaciência para travar conversa com os átomos.
Temiam, porém, que as suas vozes de trovão, sobretudo a de Micrómegas, ensurdecesse os terrenos sem conseguirem fazer-se entender.
Era necessário diminuir-lhes a força e, para isso, colocaram na boca uma espécie de pequenos palitos cujas pontas, muito afiadas, chegavam junto do navio.
O Siriano tinha o anão nos joelhos e o barco com a tripulação numa unha, baixava a cabeça e falava mansamente.
Enfim, usando todas estas precauções e ainda muitas outras, começou assim o discurso:
- Insectos invisíveis, que a mão do Criador fez nascer do abismo do infinitamente pequeno, dou-Lhe graças por se dignar revelar-me segredos que pareciam impenetráveis. Talvez que, na minha corte nem sequer vos olhassem, mas eu não desprezo ninguém e ofereço-vos a minha protecção.
Não há notícia de espanto semelhante ao que sentiram os que ouviram tais palavras. Não podiam adivinhar donde elas vinham.
O capelão do barco recitou os exorcismos, os marinheiros praguejaram e os filósofos elaboraram um sistema; mas, nem com todos os sistemas, conseguiram adivinhar quem lhes falava. O anão de Saturno, cuja voz era mais doce do que a de Micrómegas, explicou-lhes então, em poucas palavras quem eram. Contou-lhes a viagem desde Saturno; pô-los ao facto de quem era o senhor Micrómegas e, depois de os lamentar pela sua pequenez, perguntou-lhes se tinham vivido sempre nesse estado miserável, tão próximo do nada; o que faziam num mundo que parecia pertencer às baleias; se eram felizes, se se multiplicavam, se tinham alma e muitas mais perguntas desta natureza.
Um pensador do grupo, mais ousado do que os restantes, indignado por duvidarem da existência da sua alma, assestou as pínulas do seu quadrante sobre o interlocutor, fez duas observações e, à terceira, falou assim:
- Lá porque tendes mil toesas de altura, julgais, senhor, que sois...
- Mil toesas! gritou o anão - Céus! como pôde ele saber a minha altura? Mil toesas! É geómetra, conhece o meu tamanho e eu, que o vejo com um microscópio, não consigo conhecer o dele!
- Sim, eu medi-vos - diz o físico - e medirei também o vosso grande companheiro.
A proposta foi aceite. Sua Excelência deitou-se ao comprido, porque, se continuasse de pé, a cabeça iria muito além das nuvens.
Os nossos filósofos espetaram-lhe uma grande árvore num lugar que o doutor Swift nomearia, mas que eu, de modo nenhum, chamarei pelo nome, por causa do grande respeito que tenho pelas senhoras.
Depois, por uma série de triangulações, concluíram estar perante um rapaz de cento e vinte mil pés.
Então Micrómegas pronunciou estas palavras:
- Vejo agora melhor do que nunca, que nada se deve julgar pela sua grandeza aparente.
Ó Deus, que haveis dado inteligência a substâncias que pareciam tão desprezíveis, o infinitamente pequeno custa-vos tão pouco como o infinitamente grande! se é possível existirem seres mais pequenos do que estes podem ter ainda um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé bastaria para cobrir o planeta a que desci.
Um dos filósofos respondeu-lhe que podia ter a certeza absoluta da existência de seres inteligentes mais pequenos do que o homem. E contou-lhe, não tudo o que Virgílio escreveu de fabuloso sobre as abelhas, Swammerdam descobriu e o que Réaumur dissecou.
Informou-o ainda de que certos animais são para as abelhas o que estas são para o Homem, aquilo que o próprio Siriano era para aqueles grandes animais de que falava, e o que estes, por sua vez, são para outras substâncias, perante as quais parecem apenas átomos.
Pouco a pouco a conversação tornou-se interessante e Micrómegas falou assim.

CAPÍTULO VII
Conversa com os Homens

- Ó Átomos inteligentes, em quem o Ser eterno quis manifestar a sua habilidade e poder, deves gozar, sem dúvida, alegrias muito puras no vosso globo; porque sendo feitos de tão pouca matéria e de tanto espírito deveis passar a vida a amar e a pensar; é a verdadeira vida dos espíritos. Não vi em parte alguma, a verdadeira felicidade, mas aqui existe, com certeza.
Ouvindo estas palavras todos os filósofos abanaram a cabeça; e um deles, mais franco do que os outros, confessou, com simplicidade que, exceptuando um pequeno número de habitantes, pouco considerável, o resto é constituído por uma mistura de doidos, maus e desgraçados.
- Temos mais matéria do que a necessária para fazermos muito mal, se este vem da matéria, e demasiado espírito se ele vem do espírito.
Sabeis, por exemplo, que neste momento, cem mil doidos da minha espécie, que usam chapéu, matam cem mil outros animais que usam turbante ou são massacrados por eles. Por toda a Terra é assim que se procede desde tempos imemoriais.
O Siriano estremeceu e perguntou qual a causa destas querelas entre animais tão mesquinhos.
- Trata-se, informou o filósofo, de um pouco de lama do tamanho do vosso calcanhar. Não é que qualquer dos Homens que se deixam degolar pretenda alguma migalha dessa lama. Trata-se apenas de saber se ela é pertença de um certo homem chamado «Sultão» ou de outro a quem denominavam, não sei porquê, «César».
Nem um nem outro viram ou chegarão a ver o pequeno torrão em litígio; e quase nenhum destes animais, que mutuamente se degolam, viu o animal por quem se deixa matar.
- Ah! desgraçados, gritou, indignado o Siriano - não se pode conceber este excesso de furor raivoso! Dá-me vontade de dar três passos e esmagar a pontapé todo este formigueiro de assassinos ridículos.
- Não vale a pena, disseram-lhe, eles trabalham suficientemente para a sua ruína. Ficai certo de que, daqui a dez anos, não resta a centésima parte desses miseráveis. Mesmo sem combaterem, a fome, a fadiga e a intemperança destrui-los-ão quase todos. De resto, não são eles que devem ser punidos, mas sim aqueles bárbaros sedentários que, do seu gabinete de trabalho, ordenam, durante a digestão, o massacre de milhões de homens e que, depois, vão agradecer a Deus, solenemente.
O viajante sentiu-se cheio de piedade, pela pequena raça humana, na qual descobria tão impressionantes contrastes.
- Já que pertenceis ao pequeno mundo dos sábios, disse ele a esses senhores, e que, aparentemente, não matais ninguém por dinheiro, dizei-me, peço-vos, em que vos ocupais?
- Dissecamos moscas, responde o filósofo, medimos linhas, juntamos números, concordamos sobre dois ou três pontos que compreendemos e disputamos sobre dois ou três mil que não entendemos.
Lembrou então ao Siriano e ao Saturniano interrogar estes átomos pensantes sobre as coisas em que concordavam.
- Que distância vai da estrela da Canícula à Grande Estrela dos Gémeos?
- Trinta e dois graus e meio, responderam todos ao mesmo tempo.
- E quantos graus distam daqui à Lua?
- Sessenta semi diâmetros da Terra, em números redondos.
- Quanto pesa o vosso ar?
Pensava atrapalhá-los, mas todos lhe responderam que o ar pesa cerca de novecentas vezes menos que o mesmo volume de água mais leve e dezanove vezes menos que o ouro de um ducado.
O anãozinho de Saturno, espantado com estas respostas, quase tomava por feiticeiros estes mesmos seres a quem, um quarto de hora antes, negava a possibilidade de terem alma.
Por fim Micrómegas disse-lhes:
- Já que conheceis tão bem o que vos é exterior, deveis, sem dúvida, conhecer ainda melhor o que está dentro de vós.
Dizei-me o que é a vossa alma e como formais as ideias.
Os filósofos falaram todos ao mesmo tempo, como das outras vezes, mas as suas opiniões divergiram totalmente.
O mais velho citou Aristóteles, o outro pronunciou o nome de Descartes, este o de Malebranche, aquele o de Leibniz; aqueloutro o de Locke.
Um velho peripatético declarou, alto, com toda a confiança:
- A alma é uma enteléquia e uma razão, pela qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, pág. 633 da edição do Louvre.
- Não compreendo muito bem o grego, observou o gigante.
- Eu também não, respondeu o bichinho filosófico.
- Então para que citais um certo Aristóteles, em grego? - volveu o Siriano.
- É porque, concluiu o sábio, é conveniente citar aquilo que se não compreende bem, na língua que menos se entende.
O cartesiano tomou a palavra, dizendo desta maneira:
- A alma é um espírito puro que recebeu no ventre materno todas as ideias metafísicas e que, saindo de lá, é obrigada a ir à escola aprender de novo o que já soube muito bem e que não saberá mais.
- Então não vale a pena, comenta o animal de oito léguas, que a vossa alma seja tão sábia no ventre da mãe, para ser tão ignorante na altura em que tendes barba no queixo.
- E o que entendeis por espírito?
- Que me pergunta? - interroga o pensador. Não faço ideia nenhuma do que seja. Têm-me dito que é aquilo que não é matéria.
- Mas ao menos sabeis o que é matéria?
- Muito bem, respondeu o homem. Por exemplo, esta pedra é cinzenta, tem determinada forma, tem três dimensões, é pesada e divisível.
- Está certo, retorquiu-lhe o Siriano - mas o que vem a ser essa coisa que vos parece divisível, pesada e cinzenta? Vedes alguns dos seus atributos, ou conheceis a coisa em si?
- Não.
- Então não sabeis o que é matéria.
Dirigiu-se, depois Micrómegas a outro sábio que tinha no polegar, perguntando-lhe o que era a alma e o que fazia.
- Nada, respondeu o filósofo malebranchista, Deus é que faz tudo; em Deus e por Deus faço e vejo tudo. Ele tudo obra, sem necessidade do meu auxílio.
- Valeria mais não existir, exclamou o sábio de Sírio.
- E tu, meu amigo, pergunta a um leibnitziano - O que me dizes acerca da tua alma?
- É o ponteiro que indica as horas que o corpo bate; ou melhor, se quiserdes, é ela quem bate as horas que o corpo indica; melhor ainda, a alma é o espelho do Universo e o corpo, a sua moldura. Isto é evidente.
Um minúsculo partidário de Locke estava muito perto e, quando lhe foi dirigida a palavra, respondeu:
- Não sei como penso, mas sei que penso sempre por meio dos meus sentidos. Acredito na existência de substâncias imateriais e inteligentes; do que duvido, porém, é que é impossível a Deus comunicar o pensamento à matéria. Venero o poder eterno e não me compete limitá-lo; nada afirmo. Contento-me em crer que há mais coisas possíveis, para além do meu pensamento.
O animal de Sírio sorriu; não achou que este fosse o menos sábio. O anão de Saturno teria abraçado o discípulo de Locke se não fosse a extrema desproporção dos seus tamanhos.
Por desgraça estava lá um animalzito, de boné quadrado, que cortou a palavra a todos os animaizinhos filósofos.
Declarou conhecer tudo, porque todo o segredo estava esclarecido na Summa de S. Tomás; mirou, de alto a baixo, os dois habitantes celestes e afiançou-lhes que eles, seus mundos, sóis e estrelas, foram criados com o fim único de servir o Homem.
Ouvindo este discurso os dois viajantes desataram a rir, ruidosamente, com aquele riso inextinguível que, segundo Homero, é apanágio dos deuses. Os ombros e as barrigas estremeciam-lhes e, nas suas convulsões, o barco, que o Siriano segurava sobre a unha, caiu numa algibeira das calças do Saturniano. Procuraram-no durante muito tempo, encontraram a tripulação, repondo tudo nos seus lugares.
O Siriano voltou a apanhar os bichinhos, falou-lhes com muita paciência, ainda que um pouco ferido, no fundo do coração, por verificar que entes tão infinitamente pequenos tinham um orgulho quase infinitamente grande.
Prometeu oferecer-lhes um bom livro de filosofia onde tudo fosse, minuciosamente, explicado, para nele aprenderem a verdadeira essência das coisas.
Efectivamente, deu-lho antes de partir. Apresentaram-no em Paris, na Academia das Ciências; mas, quando o Secretário o abriu, apenas viu um livro completamente em branco.
- Ah! exclamou, já esperava que isto acontecesse!

FIM

Publicado por Joana às novembro 21, 2004 09:37 PM

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Comentários

Esperem só pelo "bósão de Genève" ...

Publicado por: asdrubal às novembro 22, 2004 12:11 AM

Joana

é por este e o resto dos seus escritos que continuo a ler regularmente os seus textos. Thanks

e se me é permitido, gostava de saber qual é sua opinião relativamente à entrada/ou não da Turquia na Europa

cumprimentos

Publicado por: Ch'ti às novembro 22, 2004 04:49 PM

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