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maio 06, 2004
«Teodisseia» Financeira
O desânimo grassava nas hostes governamentais. A Ministra das Finanças anda há dois anos numa pugna infrene para fazer diminuir a despesa pública. Ela congela os vencimentos dos funcionários; ela a corta na aquisição de consumíveis; ela emite despachos draconianos; ela despede Directores-Gerais de Impostos; ela faz declarações sinistras ad terrorem; e a despesa pública, em vez de diminuir, como mandariam as boas regras, aumenta.
Quanto mais a Manuela Ferreira Leite corta na despesa, mais esta aumenta. A questão deixou de ser política. Deixou mesmo de ser financeira. Passou a ser mística. A questão tornou-se no enredo de um thriller escatológico e a despesa pública numa espécie mutante trazida por algum meteorito vindo de uma nebulosa distante.
Em face de um argumento tão tenebrosamente sinistro, os crentes encomendam-se a Deus, os ateus ao determinismo histórico e os agnósticos desligam o televisor.
Manuela Ferreira Leite encomendou-se a Deus. Não lhe sobrava outra alternativa, nem Directores-Gerais de Impostos em quantidade suficiente. Ela já que não conseguia resolver a questão de outra maneira.
Mas Manuela Ferreira Leite desconfia que, mesmo para Deus, a tarefa ciclópica de reduzir a despesa pública portuguesa poderá não ser uma «pêra doce». Provavelmente levará bem mais que os 6 dias do Génesis, dado que depois disso, e exceptuando umas visitas fugidias para ralhar com o povo eleito, Ele não tem, ao que se sabe, praticado em tarefas tão espinhosas e desmedidas. Financistas respeitáveis têm mesmo afirmado que, no estado em que as nossas finanças se encontram e tendo em mente o empenho dos funcionários em gastar e a ligeireza dos contribuintes em evadirem-se, poderá ser tarefa para vários anos, mesmo tratando-se de Alguém omnisciente e omnipresente.
Perante esta perspectiva, Manuela Ferreira Leite vai, prudentemente, por etapas. Em primeiro lugar, e como providência cautelar, Manuela Ferreira Leite pediu a Deus que os socialistas não regressassem ao poder tão cedo. Na verdade, e dada a inabilidade do governo, só Ele poderá impedir isso. Se não o conseguisse, seria o Maelstrom orçamental: a descida de Portugal aos insondáveis e profundos abismos orçamentais. Se Ele, na sua potência e paciência infinitas, conseguir tal empenho junto do eleitorado, então talvez tenha tempo suficiente para realizar o milagre da desmultiplicação do défice orçamental.
Sousa Franco respondeu-lhe imediatamente, para dizer que ela estava a invocar o nome de Deus em vão porque está desesperada. Trata-se de uma evidente artimanha política. Com Deus nas Finanças Públicas, cada vez que Sousa Franco, nos seus almoços mundanos, alteasse a voz numa facécia jocosa sobre os insondáveis caminhos financeiros do Senhor, estaria a blasfemar. Ora mesmo um socialista laico evita blasfemar. E que seria de Sousa Franco sem as suas piadas sobre o governo que está, seja ele qual for, seja ele de que cor for?
E para justificar Portugal, e a si própria, com respeito ao problema da subsistência do défice público no país e do livre arbítrio do Homem (neste caso, contribuintes e funcionários públicos), a Ministra das Finanças está entretanto a preparar um Ensaio de Teodiceia sobre a Bondade do Contribuinte, a Liberdade da Função Pública e a Origem do Buraco Orçamental para concluir que a verdadeira teodiceia, a justificação do Défice Orçamental em Portugal, é o próprio Portugal, enquanto absoluta realização do défice público.
Em Portugal, quando não conseguimos resolver um problema, dissertamos sobre ele.
Publicado por Joana às maio 6, 2004 07:43 PM
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Comentários
Só por curiosidade: será que a ministra Manuela é incompetente?
# : - ))
Publicado por: (M)arca Amarela às maio 6, 2004 08:52 PM
Raio da mulher é sempre a mesma treta. Coitada é tao esperta e nao arranja emprego (= profissional liberal).
Publicado por: JB às maio 6, 2004 09:48 PM
(M)arca Amarela em maio 6, 2004 08:52 PM:
Acho-a muito competente.
Mas, infelizmente, não para aquele cargo.
Também não me pareceu, mesmo nada, com perfil para Ministra da Educação.
O lugar preferível teria sido uma secretaria de Estado do Orçamento ou do Tesouro.
Para Ministro deveria ser alguém mais político e com maior visão estratégica das incidências económicas das decisões orçamentais.
O problema é que cada vez mais o pessoal foge da política.
Publicado por: Joana às maio 6, 2004 10:43 PM
Estamos, por exemplo, reduzidos ao Ferro Rodrigues que, quando andou em Económicas (na altura acho que se chamava ISCEF)e era membro da direcção da Associação, foi o grande impulsionador das passagens administrativas. Deve ter feito parte do curso por essa via institucional.
Publicado por: Joana às maio 6, 2004 10:47 PM
JB em maio 6, 2004 09:48 PM:
A Manela não arranjou emprego? Por enquanto é ministra.
Quando abandonar o cargo é que vai ser o diabo!
Publicado por: Joana às maio 6, 2004 10:49 PM
o BCP podia fazer um favor ao PSD :
Nomeava MFLeite VP do Millennium , pagava o favor de termos um DG na DGCI vindo do BCP e em 2005 o Banco só pagaria 2,5% de IRC.
Publicado por: zippiz às maio 7, 2004 12:44 AM
Você atira em todas as direcções, Joana!
Publicado por: Nereu às maio 7, 2004 03:43 AM
nereu: chama-se pesca à linha.
andam a ficar desesperados(as).
Publicado por: dionisius às maio 7, 2004 10:26 AM
Tipos desesperados e que vão fazer pesca à linha, nunca vi.
Tenho visto ficarem desesperados no fim, porque nenhum mordeu o isco.
Publicado por: David às maio 7, 2004 10:58 AM
dissertemos então:
"a verdadeira teodiceia, a justificação do Défice Orçamental em Portugal, é o próprio Portugal, enquanto absoluta realização do défice público"-diz Joana.
é certo que o acusado tem a sua não pouca quota parte no problema embora possa também pedir atenuantes como seja ter quase sempre sido governado por elites incultas que nunca se cultivaram e que para melhor defesa dos seus interesses e privilégios mantiveram o resto da população numa ignorância atroz, beática e salvífica de que ainda hoje não nos conseguimos livrar com os resultados que se conhecem. dizem os mais cépticos(realistas?) que a tendência é para piorar mas isso são ressabiamentos daqueles que têm por carácter dizer mal de tudo "seja ele qual for, seja ele de que cor for".
de qualquer forma, o défice não baixa e sobe. pior era impossivel. não é preciso nomear nenhum grupo de trabalho ou de missão para o agravar ainda mais pois está precisamente aqui uma das chaves do problema.
por exemplo: para relançar o ensino do português no estrangeiro vai uma comissão par(a)lamentar ou u m grupo de parlamentares fazer um périplo pelo mundo onde se ensina Português. quanto vai isso custar? eu sei que é uma gota no oceano da despesa mas o mar não é feito de gotas? ora de gotas destas e de outras muito maiores é este nosso mar feito.
depois queixam-se do défice... e os pobres e remediados que o paguem. cortar benefícios e prebendas para os nossos(sejam de que cor forem!), tá quieto!
Publicado por: dionisius às maio 7, 2004 11:37 AM
A teodisseia joanina
Publicado por: Cisco Kid às maio 7, 2004 02:14 PM
Portanto sempre se confirma que a despesa pública é um problema astrofísico?
Publicado por: David às maio 7, 2004 05:09 PM
Parece mais a teologia da libertação do défice público.
Publicado por: J Ribeiro às maio 7, 2004 06:43 PM
Falem com o Santana. Para ele não há défice nem crise que resista.
Até adquiriu um Audi de 21000 contos para a Câmara isto para além dos carros de 11000 contos para os vereadores mais próximos!!!
É que o Sol quando nasce não é para todos... e a crise também não!
Publicado por: Luis António Viriato às maio 8, 2004 01:14 AM
VoCê tem é inveja, ó Viriato. Tomara você ter as miúdas que eu tenho atrás de mim
Publicado por: SL às maio 8, 2004 10:40 AM
O Santana Lopes substituiu o Paulo Portas no alvo dos obcecados pela má língua.
Não largam.
Publicado por: Rui Silva às maio 8, 2004 10:42 AM
E segundo a OCDE a economia portuguesa vai piorar para o fim do ano
Publicado por: Rave às maio 8, 2004 09:01 PM
Com o crude a aumentar da forma como está, não sei onde vamos parar
Publicado por: Rave às maio 8, 2004 09:02 PM
Dear Joana,
De facto, invocar o nome de Deus em vão acarreta sempre um monte de condicionantes dificilmente perceptíveis à primeira vista. De entre elas, mencionaria só o facto de nem sempre me encontrar disponível para que me invoquem o nome...
Antes de me abalançar a tentar analisar o seu texto, gostaria de adiantar um comentário à sua resposta a JB (JB em maio 6, 2004 09:48 PM) e em que afirma Quando abandonar o cargo é que vai ser o diabo!.
Ora, tanto a Joana como todos nós outros sabemos bem demais o destino de Manuela Ferreira Leite: o mesmo do dos outros magníficos ex-Ministros, isto é, correm para debaixo da asinha protectora de Jardim Gonçalves (o homem já lá tem 20 ou 30 governos-sombra com que nos assombra o dia-a-dia...)...
Por isso, quanto a empregos estamos falados (ou ...fadados)...
Sempre fui apologista de que só deveremos falar ou escrever sobre um assunto quando o que lemos ou ouvimos não nos agrada (ou não traduz como suficientemente claro o que pensamos).
Dito isto, bastaria remetê-la para a leitura da secção Prata da casa assinada por Carlos Ventura Martins na última edição da revista Focus.
Mas, eu mesmo (Deus invocado a despropósito) me permito fazer umas quantas transcrições do que CVM colocou em letra de forma.
Com um abraço e desejando-lhe boas leituras,
re-tombola ...um Deus ao seu dispor por (in)vocação...
(...)
Quando vejo o Governo, pelas caras do seu chefe e dos seus membros, ao aparecerem muito satisfeitos em actos e cerimónias de propaganda que proliferam e a que os telejornais dão imerecido destaque, não posso deixar de experimentar aquela estranha e desagradável sensação que se tem quando somos confrontados com a inconsciência e a irresponsabilidade. De facto, o que pode levar os ministros (a começar pelo primeiro deles) a exibir um sorriso de contentamento, mesmo quando são vaiados? Será de nós que riem? Será para nós que riem? Será que riem do défice que não está contido, mas apenas maquilhado, qual velha socialite que esconde as rugas debaixo de quilos de base para se mostrar aos convivas (no caso, os convivas estão em Bruxelas)?
Será que o sorriso se deve a terem embarcado no último lugar da fila dos caudatários de Bush no desastre do Iraque? Será porque não fizeram nenhuma das reformas anunciadas nem cumpriram nenhuma das grandes promessas feitas? Será porque as gafes se multiplicam, desde o inaceitável ataque ao acabado de empossar Governo espanhol às declarações do Ministro Figueiredo Lopes com aquela cara de outros tempos e de outros lugares? Será porque o sorriso é provocado por não terem conseguido (depois de tentarem vários) arranjar outro cabeça de lista para as europeias senão o estafado João de Deus Pinheiro, ainda por cima arqui-inimigo estrutural (por mais aliado conjuntural que se apresente) de Durão Barroso? Será por não terem resolvido nenhum dos grandes problemas que foram aparecendo, desde as empresas que fecham até ao desemprego que não pára de aumentar?
Penso, penso e repito a pergunta: por que será que o Governo ri? Penso, penso e só posso concluir uma coisa: o Governo ri de si próprio. Ri da sua incapacidade, da sua impotência, do embuste das suas promessas, dos erros das suas políticas, da vacuidade da sua propaganda, da leviandade dos seus métodos, da fragilidade das suas estratégias, da mediocridade da sua composição. Nos últimos 30 anos, já houve governos de esquerda e governos de direita, governos estáveis e governos instáveis, governos melhores e governos piores. Entre todos eles, havia, contudo, uma racionalidade que permitia perceber a razão das suas forças e das suas fraquezas. É, por exemplo, inteiramente compreensível que um governo minoritário não tenha capacidade de manobra para fazer grandes reformas.
Havia nisso tudo uma racionalidade que tornava as copisas (mesmo quando as lamentávamos ou as condenávamos) entendíveis. Mas não é isso que se passa com este Governo. O Governo tem maioria, resulta de uma coligação com afinidades ideológicas e que tem sido sólida, pois até o facto de os dois partidos terem um peso eleitoral muito desigual contribui para isso, tem apoio institucional e quase não tem oposição. Então qual a razão de não fazer nada, de não ter ambição, nem projecto, nem metas? Sou obrigado a concluir, com desgosto, que a comezinha razão por que o Governo não faz o que deve nem tem projecto é apenas por que não é capaz. Ou seja, não é uma razão fundamentalmente política.
É, se se quiser, técnica e profissional. É porque os ministros e os secretários de Estado, no geral, não são capazes. É apenas um problema de incompetência. Essa é a grande tragédia do Governo não faz porque não tem competência. Além dos danos que causa à governação, esta situação constitui ainda um péssimo exemplo para o País. Como é possível um Governo dizer que o seu primeiro objectivo é o da qualificação dos portugueses, se ele próprio tem membros tão pouco qualificados? É que a caridade deve começar por casa...
(...)
Carlos ventura Martins, in Focus (05.Maio.2004 pg. 24)
Publicado por: re-tombola às maio 9, 2004 06:39 PM
re-tombola:
Seja bem aparecido!
Na generalidade concordo com o artigo da Focus. Resta-me apenas acrescentar que embora o governo tenha uma maioria, ficou desde o início sob fogo cerrado da comunicação social e de uma oposição de enorme truculência verbal.
Basta ver as cenas da "Aliança Povo-RTP", a maledicência contínua sobre o Portas, etc. Qualquer simulacro de reforma era contestado pelo vozeirão amplificado pela comunicação social.
O governo não soube, por fragilidades de competência e coragem políica, superar isso e chegou ao fim de 2 anos sem fazer reformas que se vejam e a pagar os custos disso mesmo: mal visto por uns por querer fazer reformas, mal visto por outros por não ser capaz de fazê-las, mal visto por todos devido à situação económica do país.
Publicado por: Joana às maio 11, 2004 10:05 AM
re-tombola: a minha resposta ao JB era uma brincadeira. Ele obviamente estava preocupado com a minha situação profissional, mas eu interpretei "mal" e "julguei" que ele se estava a referir à MFL.
Publicado por: Joana às maio 11, 2004 10:08 AM