O Elogio da democracia e o projecto imperial
Tucídides (II, 37) põe na boca de Péricles um dos mais notáveis elogios que alguma vez foi feito ao sistema democrático A nossa Constituição ... chama-se "democracia" porque o poder está nas mãos, não de uma minoria, mas do maior número de cidadãos – mas nesse elogio, Péricles (ou Tucídides ao citá-lo), embora sem ter provavelmente consciência do passo que estava a dar, enuncia um novo tipo de "patriotismo" ao serviço de um projecto imperial.
As palavras de Péricles, no elogio fúnebre a um soldado caído na guerra, dirigem-se tanto a atenienses como a estrangeiros, apresentando a democracia de Atenas como «um padrão de referência», como um modelo a imitar por todas as cidades gregas: porque «há igualdade perante a lei»; porque «dá aos homens a liberdade e a todos abre caminho das honras»; porque «mantém a ordem pública, assegura aos magistrados a autoridade, protege os fracos, e dá a todos espectáculos e festas que são educação da alma»; e, ao concluir, «Eis aqui porque os nossos guerreiros preferiam morrer heroicamente a deixar que lhes tirassem esta pátria; eis ainda porque quantos sobrevivem estão sempre prontos a sofrer por Atenas e a consagrarem-se-lhe.»
No elogio de Péricles, a pátria deixara de merecer ser amada apenas por ela ser o lar dos seus maiores, pela sua religião e pelos seus deuses. A pátria merecia ser também amada pelas suas leis, pelas suas instituições e pelos seus direitos. O cidadão tinha deveres e devia-se sacrificar pela sua cidade, mas porque nela usufruía de instituições que lhe davam vantagens.
Seguem-se os excertos mais importantes desta notável arenga política:
O regime político que nós seguimos não inveja as leis dos nossos vizinhos, pois temos mais de paradigmas para os outros do que de seus imitadores. O seu nome é democracia, pelo facto de a direcção do Estado não se limitar a poucos, mas se estender à maioria; em relação às questões particulares, há igualdade perante a lei; quanto à consideração social, à medida em que cada um é conceituado, não se lhe dá preferência nas honras públicas pela sua classe, mas pelo seu mérito; tão pouco o afastam pela sua pobreza, devido à obscuridade da sua categoria, se for capaz de fazer algum bem à cidade.
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Distinguimo-nos dos nossos adversários, no que respeita a assuntos bélicos, no seguinte: franqueamos a todos a nossa cidade, e não há ocasião alguma em que, numa proscrição de estrangeiros, cerceemos seja a quem for qualquer oportunidade de aprender ou de ver um espectáculo, cuja observação pudesse ser útil a algum inimigo, se não lho ocultássemos. Não confiamos mais nos preparativos e nas ciladas do que na coragem que brota de nós mesmos para a acção.
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Se, pois, com mais desprendimento do que esforço, e com uma energia mais derivada dos nossos hábitos do que prescrita pelas leis, quisermos expor-nos ao perigo, sucede-nos que não padecemos antecipadamente as dores que estão para vir, e, quando chega a ocasião, não nos mostramos menos corajosos do que os que vivem em contínuo estado de esforço. Por isto é a cidade digna de admiração, e por outras razões ainda.
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Diferentemente dos outros, temos ainda a norma de ousar o máximo, mas reflectir profundamente sobre a empresa a que nos votamos. Enquanto que aos outros a ignorância traz a coragem, e o cálculo acarreta a hesitação. Com razão se podem julgar mais corajosos os que conhecem com toda a clareza os riscos e prazeres e, por causa deles, não se alheiam do perigo. Também na generosidade de conduta somos o oposto da maioria. Não é por recebermos benefícios dos amigos, mas por lhes fazermos bem, que os conservamos.
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Em resumo, direi que esta cidade, no seu conjunto, é a escola da Grécia, e cada um de nós em particular, ao que me parece, se mostra mais apto, para as mais variadas formas de actividade e para, com a maior agilidade, unida à graça, dar provas da sua perfeita capacidade física. É a própria força da cidade que, em virtude destas qualidades, que possuímos, bem demonstra como o que acabo de dizer não é um discurso forjado para estas circunstâncias, mas a verdade dos factos. Sozinha dentre as que existem, é posta à prova e mostra-se superior à fama que possui, é a única que, quando invadida, não causa irritação ao inimigo pelo carácter dos que o derrotam, nem censura aos que ficam submetidos, por serem governados por homens indignos.
Foi por uma cidade assim que pereceram nobremente em combate os que julgaram não dever consentir que os privassem dela. E os que ficaram é natural que queiram também sofrer por uma causa.
Eis a razão por que me alonguei ao falar da nossa cidade, explicando que o nosso combate não é por motivos iguais para nós e para aqueles que não possuem idênticos privilégios, e fazendo publicamente, com provas, o elogio daqueles em cuja honra falo agora.
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Nenhum destes se deixou amolecer pela riqueza, preferindo continuar a gozá-la, nem recuou ante o perigo, na esperança de evitar a pobreza, se lhe escapasse, e de poder enriquecer ainda. Consideravam que a vingança sobre os seus adversários era mais desejável do que a opulência, e entenderam que isso se sobrepunha ao risco. Por isso deliberaram castigar assim os inimigos, e abandonar tudo o mais, confiando à esperança a incerteza da vitória, mas, na acção, perante a realidade já iminente, seguros de si mesmos. E, no próprio combate, entenderam que era mais belo lutar e sofrer do que salvarem-se, entregando-se. Assim evitaram a vergonha da fama que lhes adviria, aguentaram o seu posto com os seus corpos, e partiram desta vida no breve instante do transe decisivo, na culminância da expectativa, mais da glória do que do temor.
Este discurso atribuído a Péricles é um dos mais belos textos sobre a democracia. E tem 25 séculos!
Afixado por: Hector em dezembro 9, 2003 01:27 AMÉ um facto que a Grécia clássica constitui uma das nossas principais heranças. Este texto é um exemplo feliz disso.
Afixado por: Romeu em dezembro 10, 2003 12:03 PMJá há algum tempo que não passava por aqui.
Estes textos sobre a cultura clássica estão excelentes, Joana.