O Sr. Silva e Herr Schulz são ambos motoristas de camião, um em Portugal e outro na Alemanha. Ambos são profissionais responsáveis, hábeis, trabalhadores, competentes. Não bebem, excepto em casa, às refeições, e só se a seguir não vão trabalhar (Mesmo neste caso o Sr. Silva fica-se por um copo de vinho tinto e Herr Schulz por uma lata de cerveja).
Ambos começam a trabalhar às 08:00. Mas o sr. Silva tem de se levantar uma hora mais cedo do que Herr Schulz, porque, com o estado caótico da cidade onde vive e com o facto de as suas condições financeiras não lhe permitirem melhor local de habitação do que um subúrbio remoto, demora muito mais tempo na deslocação.
Apesar disto, apresentam-se os dois no emprego com igual pontualidade. Hoje os camiões estão vazios, e é preciso levá-los até ao lugar onde se fará a carga. O Sr Silva fá-lo através de um emaranhado de vias, atravessando zonas que não se sabe bem se são industriais, residenciais, agrícolas ou outra coisa qualquer. Logo neste primeiro percurso Herr Schulz ganha-lhe quinze minutos; às 08:15 o camião de Herr Schulz está a ser carregado. O armazém está impecavelmente organizado, computadorizado, para cada função há a máquina adequada, e com a papelada não há problemas de última hora. Quando Herr Schulz parte para o seu destino, ainda o Sr. Silva anda à procura do funcionário que tem as guias de marcha, e a carga ainda nem começou.
Depois de muitas voltas pelo meio da povoação - o armazém onde o Sr. Silva carregou está mal localizado, mas nenhuma autoridade se atreve a tirá-lo dali com medo da reacção dos "populares" - o Sr. Silva lá chega finalmente, já cansado e nervoso, à estrada. Por esta altura já Herr Schulz percorreu 100 km e está a pensar em parar para tomar um café.
A certa altura do percurso, o Sr. Silva tem de enfrentar uma longa subida. O camião leva carga a mais - num esforço desesperado da empresa para rentabilizar o que não é rentabilizável - e tem potência a menos, porque um veículo com a potência adequada ao serviço teria ficado muito mais caro.
Lá vai o Sr. Silva a 30 km/h, perdendo tempo e fazendo perder tempo a mais noventa condutores que vão na fila atrás dele. Entretanto Herr Schulz lá vai a 100, mesmo nas subidas, com a sua carga legal e o seu potente motor.
Herr Schulz chega ao seu destino. Tudo está a postos para o receber. A descarga faz-se com rapidez e eficiência. Herr Schulz ainda tem tempo para se dirigir a outro lugar de carga de modo a não regressar com o camião vazio.
O Sr. Silva, entretanto, perdeu-se. Por qualquer razão misteriosa, a lei portuguesa não permite que a localização das empresas seja assinalada nas estradas e auto-estradas. Tem de continuar até à saída seguinte, dar mais uma volta por estradinhas, regressar à auto-estrada, e então, sim, dá com o caminho.
Quando chega ao lugar de descarga já lá estão vários colegas seus. Vai ter de esperar horas. Entretanto faz-se noite, o armazém onde pensava fazer outra carga já fechou, e o Sr. Silva vai regressar, tarde e a más horas, com o camião vazio.
Às 17:00, Herr Schulz, entregue o camião na empresa, dirige-se a casa, onde chega passado pouco tempo. A mulher chega uns minutos depois, porque entretanto foi buscar os miúdos à escola. Herr Schulz brinca com os filhos, ajuda-os a fazer os trabalhos de casa, janta, dedica-se um pouco à sua colecção de selos e vai para a cama, cedo.
O Sr. Silva chega a casa às 23:00, estafado. Os filhos já estão na cama, a mulher está cansada e nervosa, o jantar está frio. Come pouco e à pressa, vê uma porcaria qualquer na televisão e vai-se deitar.
As horas que o Sr. Silva trabalhou hoje a mais nunca lhe vão ser pagas. Nem o Sr. Silva as vai exigir: é um homem razoável, sabe as dificuldades com que se debate o patrão, e entende muito bem que as coisas são assim mesmo.
Passados uns anos, Herr Schulz despede-se e, aproveitando as suas poupanças, uma pequena herança que recebeu e um crédito bancário que obteve, forma a sua própria empresa. Leva consigo alguns dos seus colegas, entre eles um português, primo do Sr. Silva.
Este, farto de não sair da cepa torta, aceita a sugestão do primo e emigra para a Alemanha, onde vai trabalhar para Herr Schulz.
O patrão português do Sr. Silva fica triste de o ver partir, mas também ele é um homem razoável e compreende a situação. Despede-se dele cordialmente, diz-lhe "se precisares de qualquer coisa, pá..."
Nesta história, como em todas, houve quem ficasse a ganhar e quem ficasse a perder. A ganhar ficou o Sr. Silva, que passa a trabalhar menos e melhor por mais dinheiro; fica Herr Schulz, que na sua nova condição de empresário pode contar com mais um trabalhador competente; e fica a Alemanha, que fica com duas empresas produtivas onde antes só tinha uma.
A perder fica o antigo patrão do Sr. Silva, porque empregados como ele não aparecem todos os dias; ficam os antigos colegas do Sr. Silva, que passam a ter de fazer o trabalho dele para além do que já faziam, e que já era demais; e fica Portugal, que, onde já tinha uma empresa pouco produtiva, fica com uma que o é ainda menos.
As culpas? Ah, as culpas! Do Sr. Silva não são, com certeza. Do antigo patrão do Sr. Silva, algumas, mas não todas. As restantes temos que as distribuír pelo Estado que não ordena o território, pelas outras empresas envolvidas no processo e que tratam com igual desdém e pendor predatório os seus empregados, os seus clientes e os seus fornecedores... Mas nas culpas pensem vocês, os que me lerem, porque eu acho que já disse o que tinha a dizer.
Autor: Zé Luiz 12:58 6 Novembro 2003
Este interessante relato, da autoria de um amigo do Expresso online, o Zé Luiz, foi colocado neste blogue conforme combinação mútua.
Os meus agradecimentos ao Zé Luiz
Afixado por: Nota da Joana em novembro 7, 2003 07:45 PMZé Luiz:
Embora o seu texto seja um espelho razoavelmente correcto das diferenças entre a Alemanha e Portugal, queria dizer-lhe que a situação portuguesa, no que se refere aos nossos principais operadores não é a que pensa.
Os nossos principais operadores logísticos têm um sofisticado sistema informático, técnicos especializados em modelos estatísticos e de investigação operacional e gerem o tráfego e o transporte de mercadorias com uma eficiência superior à da maioria dos operadores estrangeiros.
Há perto de 3 anos quis admitir, para colaborar comigo um especialista em econometria e investigação operacional, entrevistei um jovem engenheiro (julgo que do ramo da Gestão Industrial) que me pareceu muitíssimo competente, mas que acabou por ir para o Luís Simões. Como ele me explicou depois, não foi por uma questão salarial, mas porque achava que naquele grupo teria mais possibilidades de fazer valer as suas aptidões, dado o tipo de especialização que tinha.
É claro que, no que diz respeito ao tráfego dentro do país, muito do que diz é um facto
O Sr. Silva e Herr Schulz (epílogo)
Os anos foram passando. Os filhos do Sr. Silva cresceram e frequentaram as mesmas escolas que os filhos de Herr Schulz, onde adquiriram sólidas formações profissionais.
O Sr. Silva tem algumas economias e pensa voltar ao seun país. Mas ainda se considera novo demais para deixar de trabalhar; e por outro lado está decidido a nunca mais trabalhar por conta de outrem em Portugal. "Trabalhar para os outros? Em Portugal? Nem pensar, nessa não voltam a apanhar-me."
Já pensou em montar ele próprio uma pequena empresa. Tem as suas economias, o crédito bancário parece que está barato, um dos filhos - o mais velho - gostava de voltar e poderia ser uma grande ajuda, e o antigo patrão, com quem se tem mantido em contacto, até já lhe ofereceu sociedade. Portanto não é nada de impossível.
Mas é precisamente por pensar no antigo patrão e saber das dores de cabeça que a firma lhe provoca que esta ideia lhe parece pouco atractiva.
Há dias estive com ele e aproveitei para o informar do que me disse a Joana: em Portugal já há operadores sofisticados, tão eficientes como os estrangeiros ou mais, e podia ser que um destes lhe desse emprego Mas a resposta não foi animadora:
"Ó Sr. Professor, se é meu amigo não insista! Então está-me a ver às ordens de uns miúdos engravatados e convencidos que sabem tudo? Patrão por patrão, mais vale um com as unhas sujas de óleo, como aqui o amigo Schulz" - o qual estava connosco a beber uma cerveja e seguia a nossa conversa sem perceber nada - "do que uma camioneta cheia de engenheiros a cheirar a leitinho".
E não houve nada a fazer. Eu ainda lhe disse que esses tais jovens engenheiros costumam saber o que fazem, são gente competente e capaz, mas ele não se deixou convencer:
"Sabe, Sr. Professor? Foi aqui que aprendi a lidar com um computador, e tão bem que até o tenho ensinado a si, não é verdade? Aqui o amigo Schulz também, e dos filhos dele e dos meus nem se fala. Olhe que o meu Fábio não é engenheiro, mas com os cursos que faz todos os anos pouco lhe falta. E o Walti Schulz, que é o mais novo aqui do Heinz, anda sempre a falar dessas matemáticas de que a sua amiga lhe escreveu."
Aqui Herr Schulz deve ter entendido porque acenou com a cabeça.
"Na nossa firma não circulam camiões vazios, garanto-lhe, e parados para manutenção nunca estão mais de um ou dois.
E assim ficámos. Muito provavelmente o Sr. Silva vai ficar na Alemanha até se reformar. O filho mais velho é que talvez se decida um dia a ir para Portugal, que praticamente só conhece das férias. E nessa altura talvez eu meta uma cunha à Joana para o empregar - ou fá-lo-ia se não se tratasse duma personagem de ficção.
Afixado por: Zè Luiz em novembro 13, 2003 09:55 AMZé Luiz:
Segundo me disseram, o Luís Simões começou há umas décadas, com um camião, a transportar legumes e frutas para a praça. Hoje (os seus descendentes) é um dos maiores operadores logísticos da Europa e o maior da península.
Os modelos de investigação operacional trabalhando em conjunto com programas SIG (Sistema de Informação Geográfico) permitem, face aos dados conhecidos: posição dos camiões em toda a Europa, cargas que transportam e respectivos destinos, locais onde existem cargas a embarcar e respectivos destinos, tipo de percurso (dificuldades, velocidades máximas, etc.) etc. , além das variáveis relativas ao motorista (horas já trabalhadas, pausas necessárias, etc.) e ao camião (manutenções, etc.) definir os percursos, descargas e cargas óptimos, optimizando a carga transportada por cada camião e o tempo de percurso.
Não é andar a mando de tipos de gravata. É ter a vida facilitada.
Todavia, os pequenos operadores do país continuam a ter os problemas que você descreve no Sr. Silva.
Li outro dia no Diario Económico um relat´rio sobre a situação do Grupo Luís Simões e parece que vai de vento em popa. O volume de vendas aumentou cerca de 7%
Afixado por: Vitapis em novembro 23, 2003 02:54 PMNão sabia que távamos tão avançados nos camiões!
Afixado por: anonimo em dezembro 6, 2003 01:50 PMNão terá a ver com o cumprimento dos horários de trabalho?
Afixado por: anonimo em dezembro 6, 2003 01:50 PMCom a nossa permissividade laboral?
Afixado por: anonimo em dezembro 6, 2003 01:50 PMCom os nossos salários baixos.
Afixado por: anonimo em dezembro 6, 2003 01:50 PMNa verdade vejo cada vez mais camiões do Luís Simões
Afixado por: anonimo em dezembro 6, 2003 01:50 PMNão sabia que távamos tão avançados nos camiões!
Afixado por: anonimo em dezembro 6, 2003 01:50 PMEm qualquer dos casos é interessante para um país periférico como o nosso, termos empresas com sucesso
Afixado por: anonimo em dezembro 6, 2003 01:50 PMTenho pena que haja quem ainda fale do que não sabe, sou camionista, a maior parte dos camiões do luis simões que se vêm na estrada pertencem aos pequenos transportadores e propietários dos mesmos que prestam serviço na Luis Simões têm que pintqr os carros da côr da empresa para terem direito ás cargas, e fazem as cargas que não são rentáveis para o Luis Simões mas que até quer "segurar" o cliente dá ao serviço ao encostado que chega ao fim e mal tem dinheiro para pagar o combustivel quanto mais aquela reparação inesperada e mais uma vez tem que recorrer aos prestimos do "patrão" que até ja lhe tinha pintado o camião de branco e posto as letras, ao fim de algum tempo já deve tanto dinheiro ao Luis Simões, porque a facturação não chega nem para pagar a letra do camião, que quando a Luis Simões se oferece para ajudar aceita sem pestanejar. Resultado, fica sem o camião e passa a ser empregado da Luis Simões e cheio de dívidas. A maior parte das empresas de transportes em Portugal vive a "balões de soro" e mal conseguem chegar a cobrir as despesas correntes sem recorrer a artimanhas, perguntem às pequenas oficinas quanto é que demoram a receber as facturas, isto quando recebem. Ainda bem que temos empresas de transporte do melhor da Europa à custa de excesso de horas de trabalho dos motoristas
Afixado por: anónimo em novembro 6, 2004 10:56 PM