novembro 15, 2004

O Eixo dos Nulos

É angustiante. É mesmo deprimente. Não será possível encontrar um painel de portugueses, minimamente cultos, que saibam dos assuntos sobre que falam, que tenham um humor acutilante, que não temam chamar as coisas pelos nomes, que sejam satíricos sem recorrer à maledicência ignóbil, que sejam provocadores sem resvalarem para o insulto, que sejam picantes sem caírem nos ditos soezes e que não se sintam ofendidos ou menosprezados uns pelos outros?

Julgo que não é fácil. A SIC tentou há uma década e falhou. Foi a Noite da Má Língua. O programa até começou bem, mas ao fim de um ou dois meses entrou numa fase de declínio e acabou num cabotinismo total. Os primeiros painéis eram formados por gente interessante, capaz de comentários mordazes, mas lúcidos. Depois foram-se despedindo, um após outro, provavelmente por acharem que o nível do programa estava a uma cota inferior à cota que a si próprios se atribuíam e àquela que estavam convictos que o público esperaria deles. Outros, ofendidos por minudências. Todos eles substituídos por gente cada vez menos capaz, degradando o nível do programa até ao limiar do insuportável.

Agora apareceu uma tentativa de remake, designada pretensiosamente pelo Eixo do Mal, que de mal apenas tem a qualidade da intervenção dos protagonistas. Foram todos uns meninos bem comportados, absolutamente banais e totalmente previsíveis.

Sempre considerei a Clara Ferreira Alves como uma articulista especializada em textos simples, banais e lineares. Quando foi convidada para Directora do DN, pensei: porque não? O Luís Delgado escreve textos ainda mais simples e lineares e tem subido na vida. Mas depois de duas actuações da Clara Ferreira Alves no Eixo do Mal, pergunto-me: Como é possível tê-la convidado para directora de um dos mais importantes jornais do país? É certo que, desta vez, foram mais lestos. Não agiram como no caso do director anterior, que só ao fim de alguns meses foi demitido por alegada incompetência. Neste caso foi demitida a priori, antes que fosse tarde demais!

Mas a Clara Ferreira Alves ainda tem traquejo de aparições televisivas – o seu incomensurável ego é-lhe de grande ajuda. Portanto consegue disfarçar as suas insuficiências. Os outros nem isso. Como é possível integrar um assessor de imprensa (e julgo que do grupo parlamentar) de um partido político num painel de comentaristas, de que se esperaria uma sátira acutilante e sem peias, sobre a vida política e social portuguesa? É certo que é assessor de um partido que se especializou em dizer mal de tudo e de todos – é o partido da má língua. Mas por muito folclórico e desbocado que seja o BE e que se julgue como um não partido, ou seja, como a encarnação do sentir dos portugueses (ou do que esses néscios deveriam sentir se não fossem ignaros), o ser-se dirigente partidário retira sempre margem de manobra ao próprio e credibilidade perante quem o escuta. Depois, o Daniel Oliveira está sempre a achar coisas – é um achista nato. O lugar dele deveria ser antes no “Acho do Mal”.

Os outros foram apenas desinteressantes, sem chama, sem opiniões que “aleijem”. Como os dois programas não passaram de um desfilar de banalidades, não havia nada para moderar. Assim sendo e dado o bom comportamento moral e civil dos colunistas (profissão que todos indicaram), o moderador remeteu-se a um mutismo quase completo. Quando era obrigado a dizer coisas, introduzir as rubricas seguintes, etc., titubeava com ar de quem estava a pedir desculpas urbi et orbi, ao painel e ao mundo.

E havia ali gente capaz de dizer coisas inconvenientes e desastradas. Por exemplo, o assessor do BE escreveu, há perto de um ano, no seu blogue (Barnabé): «A minha filha chegou-me a casa a saber o hino nacional de uma ponta à outra, sem falhas. Aprendeu na escola. Uma vergonha para mim e um orgulho para Paulo Portas. Tentei ensinar-lhe outras coisas, mais interessantes. Desisti. A música pimba sempre entrou mais facilmente no ouvido». Provavelmente foram os outros que lho imploraram, para não ficarem na contingência delicada de terem que defender Paulo Portas, o que é o cúmulo do politicamente incorrecto.

Todos eles tiveram uma característica – revelaram sempre a mais profunda e confrangedora ignorância técnica sobre os assuntos que debatiam, isto se exceptuarmos algumas matérias de índole cultural, onde a base técnica é despicienda, e por isso qualquer português, com aspirações a intelectual, está convicto de ter aí conhecimentos sólidos e firmes.

Os portugueses têm um defeito. Receiam imenso o julgamento que os outros fazem deles e melindram-se facilmente com esses julgamentos. Têm uma absoluta falta de fair-play. Esse receio torna-os cinzentos, com opiniões demasiado previsíveis, embora dentro dos estereótipos político-partidários a que cada um aderiu. Em vez do humor acutilante ou da sátira ferina, apenas a maledicência contra os outros partidos políticos ou opiniões contrárias.

O português, quer o emissor, quer o receptor, tem dificuldade em distinguir onde acaba a sátira e começa a maledicência pura. Quem opina, resvala facilmente da primeira para a segunda, sem se dar conta de tal. Aquele sobre quem se opina, entende sempre a sátira (ou a maledicência) como óbvia maledicência.

Estas características tornam muito problemático haver programas satíricos com nível, sobre a política, a sociedade e o espectáculo, em Portugal. Por exemplo, em Portugal não é possível haver um Jay Leno. Temos que nos contentar com um Herman José cada vez mais pimba e ordinário.

E seria possível em Portugal um programa como o Daily Show do Jon Stewart? Obviamente não. É um programa muito bem feito, uma sátira acutilante à política e à sociedade americanas. Jon Stewart nunca escondeu o ser um tenaz anti-Bush, mas as suas provocações, às vezes muito contundentes, são sempre bem construídas e o talento mascara e dilui a acutilância. Ele constrói cenas satíricas, que seriam consideradas excessivas entre nós, num registo que as torna aceitáveis, pois que as desdramatiza com um talento enorme. E os momentos mais altos do programa, nos meses que precederam as eleições, foram justamente as entrevistas a alguns líderes republicanos. Era difícil ajuizar o que era mais notável: se a argúcia satírica de Stewart a entrevistar, se o fair-play e a habilidade para inverter a situação evidenciados pelos entrevistados. Entrevistados que, quando ali iam, sabiam que tinham que enfrentar um interlocutor acutilante e provocador e um público desfavorável. Entrevistas em que cada um soube lidar com o humor e a sátira com total fair-play.

Por essa época, Jon Stewart foi ao talk-show de Jay Leno. Falaram sobre a campanha e Jay Leno disse a certa altura que lhe parecia estar-se a falar demasiado na guerra do Vietname. Jon Stewart respondeu mais ou menos isto: Sim, Kerry está fortemente empenhado nisso. Estou convicto que se ele ganhar as eleições, vai conseguir um acordo de paz no Vietname e fazer regressar os nossos rapazes de lá.

Manusear o humor, sem excessos que o aviltem e sem banalidades que o castrem, é o que há de mais difícil. É preciso muito espírito de humor, uma cultura sólida e uma educação extrema.

Publicado por Joana em novembro 15, 2004 11:38 PM | TrackBack
Comentários

Do DD:
A direcção de informação demissionária da RTP continua sem explicar as razões por trás da decisão de abandonar, em bloco os cargos. Num comunicado enviado às redacções, a equipa confirma apenas a demissão, que terá acontecido na sequência de duas reuniões com o Conselho de Administração da estação de televisão pública, quinta-feira e já esta segunda-feira.


No texto, assinado por José Rodrigues do Santos, Judite de Sousa, Carlos Daniel, Maria José Nunes e Manuel da Costa, a equipa faz um balanço dos mais de dois anos em que esteve em funções.

O CA afirma que houve discordância sobre a nomeação de correspondentes.

Que terá acontecido?

Afixado por: Sa Chico em novembro 16, 2004 12:29 AM

proponho um "Eixo do Bem" ( tudo gente com grande sentido crítico, grande capacidade de humor e com fortes possibilidades de gerir a RTP...)
- AJJardim
- Luís Delgado
- Telmo Correia
- Arq.Saraiva
- Gomes da Silva

Afixado por: zippiz em novembro 16, 2004 12:29 AM

Ná, o Gomes da Silva não tem humor. Está deslocado nesse painel.

Afixado por: bsotto em novembro 16, 2004 12:36 AM

Hoje é dia de festa: o grupinho de abécolas que tutelava a informação da RTP foi à vida. Vamos ver se aquilo melhora ou se os lugares vão ser ocupados por outra troupe igual.

E há outro motivo para a festa: pela primeira vez subscrevo, sem tirar uma vírgula, um texto de Joana.

# : - ))

Afixado por: (M)arca Amarela em novembro 16, 2004 12:43 AM

zippiz em novembro 16, 2004 12:29 AM

Eu colocava o Luís del Gado a tomar conta da manada...

Afixado por: Senaqueribe em novembro 16, 2004 09:46 AM


E eu aqui à espera de um comentário sobre o Galo de Barcelos...

Cumprimentos.
P.

Afixado por: Pseudoeter em novembro 16, 2004 09:52 AM

finalemente encontro alguem que pensa a mesma coisa que eu... obrigado Joana por dar-me a esperança que neste país haja pessoas com nível crítico igual ao seu quanto à questão do humor...

Penso que o problema não são os que fazem humor em Portugal. O problema são os consumidores televisivos portugueses que só entendem humor "pimba" quando se sai disto e se tenta chegar ao patamar superior e à satira, o zapping destroi todas as esperanças... :-(

quanto tempo teremos de esperar, quanto tempo terei de ver programas estrangeiros, do tipo guignols de l'info, para satisfazer o meu desejo de humor irónico e mordaz (que faz avançar os espiritos e a sociedade - dixit: por exemplo Montaigne ou Lafontaine)

Afixado por: Ch'ti em novembro 16, 2004 09:53 AM

Ch'ti em novembro 16, 2004 09:53 AM:
Parece-me que a culpa é dos produtores e não dos consumidores.

Afixado por: Fred em novembro 16, 2004 11:19 AM

Plenamente de acordo. Esse programa é um flop total

Afixado por: Penalva em novembro 16, 2004 01:39 PM

O menos mau ainda é aquela Mexia, da direita envergonhada.
Porque é que o pessoal de direita, quando falam para a comunicação, têm vergonha de se afirmarem de direita?

Afixado por: Penalva em novembro 16, 2004 01:41 PM

Sou um grande apreciador do Daily Show. Parece-me é que desapareceu com a nova grelha de programas.

Afixado por: vitapis em novembro 16, 2004 05:08 PM

vitapis: continua. Deixou foi de ser diário

Afixado por: cepedes em novembro 16, 2004 06:23 PM

O meu eleito será sempre o «Yes, Minister». Infelizmente, a tentativa autóctone de o querer imitar foi um desastre uma e outra vez, por querer imitar, e imitar sem talento. Paciência.

Afixado por: asdrubal em novembro 16, 2004 07:34 PM

O tal painel de portugueses com as qualificaçoes que a Joana procura, está aqui !!!
São os comentaristas deste blogue !!! :-)))

Afixado por: Senaqueribe em novembro 16, 2004 09:08 PM

Já noutro texto da Joana tinha comentado o que pensava do Painel.
Claro que isto visto pela Joana é outra loiça.

Mas devemos considerar o difícil que é estar no lugar daquelas pessoas.
Quando falam, antes de pensar, estão sempre a pensar – o que diria o Prado Coelho, será que o Sousa Tavares aprovaria esta frase, a Judite Sousa como é que poria esta questão.

Acham que é fácil?
Então tentem.

Afixado por: carlos alberto em novembro 16, 2004 10:16 PM

Esse programa é um desastre. Duvido que continue durante muito mais tempo, a menos que mudem muita coisa

Afixado por: Valente em novembro 20, 2004 01:30 AM
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