outubro 04, 2003

Notas de viagem

Estive cerca de uma semana em Moscovo, por motivos profissionais, e aproveitei para fazer um fim de semana alargado em São Petersburgo.

Em São Petersburgo percorri alguns dos ícones da minha adolescência e da adolescência, maturidade e senectude de muitos de vocês: o cruzador Aurora, que a minha imaginação e as imagens do “A Revolução de Outubro” do Eisenstein me faziam supor muito maior;

... a Praça do Palácio, onde perpassam os intensos planos do “A Revolução de Outubro” com os “operários, soldados e marinheiros” a avançarem sobre a mole imensa do palácio;

...o imponente, mas elegante, portão de ferro, encimado pela águia bicéfala dourada, a ser derrubado pelos revolucionários ao assalto do Palácio de Inverno;

... o gabinete do Palácio de Inverno (Ermitage) onde Ovseenko aprisionou os membros do Governo Provisório;

...o Smolny (a Catedral e o convento), a belíssima sede do Soviete de Petrogrado durante os “dias que abalaram o mundo”, situado na “ainda” Praça da Ditadura do Proletariado (!!);

...o Palácio Kchessinskaya, quartel geral dos bolcheviques, depois de ter pertencido à célebre bailarina Kchessinskaya, favorita do czar, de cujas varandas Lenine arengava às massas no outono “quente” de 1917, situado na rua que começa no cais em frente da Fortaleza de S.Pedro e S.Paulo e acaba no ancoradouro do Aurora ( uma situação predestinada …);

... o Palácio Yussopov onde, dois anos antes, tinha sido assassinado Rasputine; a Perspectiva Nevski (4,5 kms de comprimento), elegante e estuante de vida, a austera Fortaleza de S. Pedro e S. Paulo e a sua catedral, onde repousam os restos mortais dos Romanov, incluindo os últimos, fuzilados pelos bolcheviques e recentemente transladados; etc., etc..

… e a Gare da Finlândia, onde, em 1917, chegou Lenine, depois de uma viagem que começou na Suiça e foi patrocinada pelo Estado Maior Alemão com o fito de lançar a Rússia no caos e liquidar a frente leste (as estratégias políticas de vistas curtas dão sempre mau resultado a longo prazo…) …

Lugares em que a espantosa beleza arquitectónica só cede às lembranças da história de que eles foram palco.

Acontecimentos de um extraordinário impacte, que excitaram a imaginação de tantos milhões de seres humanos e que conduziram ao maior embuste político, social e económico de que a história tem notícia.

Para além destas memórias da história política próxima, há inúmeros locais e monumentos de grande beleza. Entre eles avulta, claro, o Teatro Mariinsky, onde brilharam Chaliapine, Pavlovna, Kchessinskaya e, mais recentemente, a performance do Boris Godunov na espantosa encenação (póstuma…) do Tarkovsky.

Queria referir que em São Petersburgo me aconteceu uma coisa inesquecível. Inesquecível para mim, cidadã de um país de segunda …

Os nossos anfitriões convidaram o nosso grupo (éramos 3, dois alemães e eu) a assistir a um espectáculo folclórico no Palácio Nicolaievksi (o Truda, durante o período soviético).

Nos jardins do palácio ouviam-se os últimos acordes do Star Spangled Banner interpretado por 3 tocadores que estavam numa álea do jardim. Mais ao longe, um numeroso grupo de americanos desaparecia no interior do palácio. O nosso anfitrião, que ia à frente, deve ter segredado algo aos músicos e estes irrompem com o hino alemão. Os meus colegas pararam deliciados. Quando terminaram o hino alemão (em versão obviamente reduzida, pois o afluxo turístico não permitia perdas de tempo) os 3 ignotos tocadores dos jardins do Palácio Nicolaievksi, após um hiato de poucos segundos, para ganharem fôlego (eram instrumentos de sopro), arrancam com “A Portuguesa”! Fiquei speechless!

Pois quê? Eu, uma cidadã de um país invisível, ignorado das raias de Espanha até aos confins da Alemanha, precisava vir ao extremo norte da Europa, às margens do Neva, para encontrar gente que sabia de nós, conhecia o nosso hino e era capaz de o tocar!

Pode alegar-se que há bastantes portugueses que, actualmente, visitam São Petersburgo: no Ermitage cruzei-me com um numeroso grupo de portugueses ao qual uma jovem guia russa explicava, num português perfeitíssimo, sem qualquer sotaque, as técnicas e conceitos da pintura flamenga. Mas haverá certamente muitíssimos mais turistas portugueses em Madrid, Paris, Londres, Roma, Berlim, etc., e não me consta que, nesses países, alguém se desse ao incómodo de aprender a tocar “A Portuguesa”.

O facto é que na Europa da UE somos ignorados. Não por maldade ou acrimónia … simplesmente não sabem que existimos. E é gratificante, tão longe de Portugal, saber que nos conhecem.

1 de Setembro de 2003

Publicado por Joana às 12:12 AM | Comentários (8) | TrackBack