outubro 16, 2005

Pobreza e Desigualdade

Ciclicamente organizações alegadamente preocupadas com o bem estar das classes mais desfavorecidas difundem estatísticas onde Portugal aparece como o país da União Europeia onde há mais desigualdade entre ricos e pobres. Incidentalmente também é o país mais pobre. O que o pensamento unidimensional daquelas organizações não descortina é que há uma correlação forte entre pobreza e desigualdade, e que a desigualdade deriva da pobreza da sociedade e não o contrário. Por isso quando clamam pelo combate à desigualdade para diminuir a pobreza, estão apenas a propor aumentar a pobreza geral da sociedade.

Quando comparamos 2 países com graus de riqueza diferentes, verificamos que quanto mais qualificadas são as pessoas, menor é a diferença remuneratória, entre esses países, para os mesmos níveis de qualificação. Percebe-se facilmente. As pessoas mais qualificadas (quer academicamente, quer profissionalmente, quer pela sua capacidade empresarial) estão num mercado mais aberto, mais global e mais transparente. Se não se sentem bem remuneradas no seu país, facilmente arranjam emprego noutro. E quanto mais facilidade tiverem em o fazer, mais próximo estará a sua remuneração, no país de origem, da remuneração no país mais rico, para uma qualificação equivalente.

Não é possível contrariar esta tendência. Num país pobre, tentar aproximar os rendimentos mais elevados da média nacional, baixando-os, é incentivar a “fuga dos cérebros”, desqualificar o país e concorrer para que ele empobreça mais. A menos que aquela medida seja tomada em conjugação com o fecho das fronteiras, transformando o país num campo de concentração. Mas as experiências que houve neste sentido só conduziram a péssimos resultados.

Portanto a desigualdade combate-se pelo enriquecimento geral do país. Quanto mais rico for o país, menor será a amplitude dos rendimentos, porquanto terá menor amplitude o fenómeno do alinhamento das remunerações dos quadros superiores, pelas remunerações dos países ricos e a tentação da “fuga dos cérebros”.

Um outro caso é o das desigualdades internas nos países mais ricos, que têm aumentado bastante nas últimas décadas. Esse facto tem a ver, principalmente, com o extraordinário desenvolvimento tecnológico nos últimos tempos, principalmente com a revolução informática, electrónica e nas comunicações. As novas tecnologias exigem muita competência, mas também uma mentalidade mais aberta, não aversão ao risco, requalificação contínua e aposta na mobilidade de trabalho como factor de melhoria da qualificação. Houve uma revolução no mercado de trabalho, principalmente nos países mais ricos. Hoje em dia, as empresas têm dificuldade em verem-se livres dos trabalhadores pouco qualificados e avessos ao risco e, em contrapartida, têm uma enorme dificuldade em conservarem, entre os seus efectivos, os quadros mais qualificados e activos, frequentemente assediados pelas empresas concorrentes.

Portanto, na nossa economia globalizada, mesmo entre os países mais ricos, os mais competentes e habilitados vêem os seus rendimentos alinharem-se pelos níveis idênticos de competência dos outros países ricos, enquanto as baixas qualificações se tendem a alinhar pelos níveis idênticos dos países que concorrem nessas gamas de produtos. Por conseguinte a tendência é o aumento da desigualdade. Essa tendência só poderá ser combatida pelo aumento geral da qualificação e pelo abandono dos sectores em que a concorrência se faz pela degradação dos preços.

Ou seja, em qualquer dos casos, apenas o aumento da qualificação da população activa e o aumento da riqueza do país permitem fazer diminuir as desigualdades de rendimentos. Diminuir as desigualdades pela redistribuição acarreta sempre uma perda de eficiência da economia (cf A. Okun, Equality and Efficiency: The Big Tradeoff), perda que aumenta, mais que proporcionalmente, com os montantes da redistribuição.
Lorenz.jpg
Adenda: Ao lado encontra-se a curva de Lorenz relativa à distribuição de rendimento nos fins da década de 90 (retirada do Samuelson). A bissectriz é o lugar geométrico da absoluta igualdade de todos os rendimentos.
De notar que a Suécia, cuja curva mais se aproxima da perfeita igualdade, era o país mais rico da Europa em 1970 e em 2004 era o 12º (atrás vinham a França -14º - a Espanha - 15º e Portugal 19º)


Sobre os efeitos perversos do excesso de impostos (para alimentar o peso do Estado) e das transferências sociais excessivas para combaterem, ilusoriamente, a desigualdade, ler neste blog:

Impostos e nível de Emprego
A Dimensão do Estado
Sísifo e o Estado 1
Sísifo e o Estado 2
Sísifo e o Estado 3
Estado e Desenvolvimento 1
Estado e Desenvolvimento 2

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agosto 29, 2005

Produtividade à beira-mar

Estamos na época estival. É a época de férias e é a época em que há mais ofertas de emprego sazonal (*) – empregados no sector de restauração em zonas balneares, nadadores salvadores, secretárias, processadoras de texto e outros para substituírem temporariamente algum pessoal que foi de férias, etc.. Enquanto observo as ondas, pequeninas, a espreguiçarem-se lentamente pela areia, imagino o que farão estudantes que precisam arranjar um emprego no Verão para ajudar a custear a sua actividade discente. Que hipóteses encararão? Provavelmente as escolhas mais óbvias: nadador-salvador ou lavar pratos e varrer e limpar a cozinha em algum restaurante nas zonas balneares.

Que factores influirão a oferta de trabalho desses estudantes?:
1) O tradeoff (escolha entre soluções onde a escolha de uma, implica a não escolha da outra) entre trabalho e lazer. Quanto mais baixo for o salário menos interesse eles terão em sacrificar o tempo de férias.

2) Nível geral de desemprego. Se a taxa de desemprego for elevada, haverá, provavelmente (em Portugal nada é certo, pois os mercados estão de tal modo distorcidos, que o seu comportamento é cheio de surpresas), maior oferta no mercado de trabalho. Os estudantes encontrarão a concorrência dos desempregados e o salário de equilíbrio descerá.

Estes factores afectam igualmente todos os estudantes que pretendam emprego estival, portanto não têm influência na escolha entre nadador-salvador ou lavador de pratos. Passemos adiante.

3) Oportunidades alternativas noutros mercados. Aqui chegamos à questão da escolha entre nadador-salvador ou lavador de pratos. Qual será a preferência: estar na praia a ver a evolução dos banhistas, metendo conversa com outros jovens e combinando farras nocturnas; ou estar entre as 11:30 e as 24:00 (com um descanso entre as 15:30 e as 18:00) ao calor dos equipamentos de cozinha, encerrado entre pratos, travessas e panelas?

É natural que estes estudantes aceitem com maior agrado um emprego de nadador-salvador que de lavador de pratos. Neste entendimento os concessionários das praias serão induzidos a proporem um salário mais baixo (porque têm mais facilidade em recrutarem candidatos) que os proprietários dos restaurantes. Há um diferencial compensatório – uma diferença salarial que resulta das características não monetárias dos diferentes empregos.

Não me parece que a qualificação aqui seja importante. No Sotavento algarvio, quando há Levante içam a bandeira vermelha e apitam, apitam imoderadamente; quando não há, ficam placidamente a contemplar o horizonte e os corpos a bronzear. Eu tenho o exemplo desta praia. Um dos nadadores-salvadores deve ter 1,60m, incluindo os 5 cm de cabelo eriçado com gel. Obviamente que se houver um sinistro ele usará de preferência o apito e só à força será arrastado para a água, preocupado sobre quanto lhe irá custar uma ida urgente ao cabeleireiro para repor o statu quo ante. O outro, alto e espadaúdo, oferecia-me segurança até ter observado um nadador-salvador veterano, que foi à praia por causa de um evento turístico, lhe estar a explicar, por palavras e gestos, como se tirava e metia o braço na água, os movimentos dos braços debaixo de água, qual o ângulo que cada mão deve fazer quando entra na água, etc., enfim … as técnicas elementares do crawl. A partir daí, ele passou a ser motivo de preocupação e não de conforto. Se ele cair da mota de água terão que ser os banhistas a ir resgatá-lo, enquanto o colega fica a assobiar aflitivamente junto à arrebentação,

Todavia estas explicações poderão deixar confusos aqueles que ouviram dizer que uma empresa maximizadora de lucro, num mercado concorrencial, contrata trabalhadores até ao ponto em que o valor do produto marginal do trabalho seja igual ao salário. Alguns estarão a interrogar-se sobre se não deveria ser o valor do produto marginal do trabalho do nadador-salvador ou do lavador de pratos que ditaria o salário respectivo.

Ora as duas condições (1– o salário ajusta-se para equilibrar a oferta e a procura de mão-de-obra; 2 – o salário é igual ao valor do produto marginal do trabalho) ocorrem simultaneamente. Qualquer factor que altere a oferta ou a procura de mão-de-obra deve alterar o salário de equilíbrio e o valor do produto marginal do trabalho no mesmo montante, porque eles devem ser iguais.

Por exemplo, quando há falta de mão-de-obra de um dado tipo (ou com uma determinada qualificação) o salário aumenta e também o valor do produto marginal do trabalho, sem qualquer aumento da produtividade medida em termos físicos. Quando foi a construção da Expo98, entre 1995 e 1998, os engenheiros civis, a partir de um certo nível de qualificação, eram pagos a “peso de ouro” e mesmo assim era difícil arranjá-los. Isso não significava que a produtividade desses engenheiros, medida em termos físicos, fosse 30% ou 40% superior à do ano anterior. Apenas o produto marginal do trabalho desses engenheiros, em termos monetários, se ajustara às novas condições do mercado.

Todavia isto só é válido para sectores que produzem bens ou serviços não transaccionáveis com o exterior. Nos sectores abertos ao exterior, a curva da procura é condicionada pelo preço de mercado do bem produzido, fixado pela concorrência em economia aberta e globalizada, e é por isso que salários acima de um certo valor liquidam a competitividade da empresa (refiro-me ao salário englobando todas as remunerações sociais, incluindo aquelas que são pagas directamente pelas empresas). É o que está a suceder nos sectores menos qualificados dos têxteis e do calçado, que fecham as portas, ou se deslocalizam.

Não é o que acontece nas escolhas que apresentei. O nadador-salvador, baixinho e de cabelo eriçado com gel, não está sedeado aqui, a salvar banhistas no Lido de Veneza ou no Hawai. Quanto ao lavador de pratos, também não está no restaurante da esquina a lavar pratos para um restaurante suíço. Os seus salários estão condicionados pelas curvas de oferta de trabalho locais que por sua vez estão condicionadas pelas curvas de oferta de trabalho dos sectores abertos ao exterior. Se eles estivessem no Lido de Veneza ou no Hawai ganhariam muito mais, embora neste último caso, se forem da Baywatch, precisassem de um salário robusto para cobrir os riscos das catástrofes diárias e os custos das cirurgias plásticas.

Ou seja, são os sectores abertos ao exterior que definem a produtividade do trabalho num dado país. Os restantes sectores alinham obrigatoriamente por estes. Portanto os nossos salários estão ligados à produtividade física dos trabalhadores dos sectores abertos ao exterior. Poderá haver flutuações, mas em termos globais é assim que sucede.

Jorge Sampaio e o nadador-salvador, baixinho e de cabelo eriçado com gel, têm coisas em comum: o seu salário está ligado à produtividade dos trabalhadores da Auto-Europa e assobiam porque não sabem agir ou quando agem, disparatam. Diferem numa coisa: se a Auto-Europa fechar, Jorge Sampaio receberá uma reforma elevada (a menos que os cofres do Estado se exaurirem) enquanto que o nadador-salvador baixinho terá que ir apanhar conquilha.


(*) O que levou a Ana Sousa Dias, que ignora estes fenómenos complexos, a advertir solenemente o Prof. Marcelo, quando ele ontem falava no desemprego, que este havia diminuído entre o 2º e o 3º trimestres.

Publicado por Joana às 05:23 PM | Comentários (59) | TrackBack

agosto 21, 2005

Conselhos Bolsistas

Sempre encarei a blogosfera como um serviço público. Como o país político está de férias, que é normalmente a época alta da classe política, por ser a época em que faz menos disparates, em vez de estar aqui a polemizar contra o governo e a maioria dos comentadores deste blog, vou utilizar este fim de tarde dominical para deixar aqui conselhos que considero úteis e pertinentes sobre a forma de aplicação das vossas poupanças na Bolsa.

Prever subidas ou descidas de valores das acções é uma tarefa teoricamente simples, mas complicada na prática. Em teoria, o valor actual de uma acção é a soma do valor actualizado dos dividendos expectáveis com o valor de venda esperado no fim do período de detenção da acção, igualmente actualizado. Matematicamente simples. O problema é prever estes valores.

Calcular o valor actual da empresa e determinar se as acções estão subavaliadas não colhe. Por exemplo, nos processos de privatização, o Estado português concedia benefícios fiscais. Qualquer analista diria que essas acções, compradas com esses benefícios, seriam uma pechincha. O problema é que, a seguir, o governo nomeava gestores desastrados que, em um ou dois anos, provocavam a queda do valor das acções de modo que os benefícios fiscais obtidos fossem absorvidos. Os economistas asseguram que as transacções trazem vantagens a todos, optimizando o bem-estar social. O Estado português conseguia que a transacção daquelas acções se fizesse com prejuízo de todos: o Estado, que não recebia o montante dos benefícios fiscais, e as famílias, que ficavam com um saldo negativo na operação.

Todavia há um conceito que resolve tudo: a hipótese dos mercados eficientes. As bolsas são seguidas por milhares de corretores, gestores de fundos de investimento, etc. A tarefa destes peritos bolsistas é comprarem acções quando o preço está abaixo do valor real, e venderem-nas quando o preço ultrapassa aquele valor. Ou seja, a assimetria da informação, um dos problemas que distorcem a concorrência numa economia de mercado, não existe aqui. As cotações nas bolsas devem reflectir, em cada instante, o valor de equilíbrio de mercado. Quando um comentador da área económica diz, na TV ou nos jornais, que uma dada acção está subavaliada, o que ele realmente está a dizer é que, na opinião dele (dele, ou que lhe pediram para ele transmitir), essas acções devem subir. O busílis é que o preço de mercado é formado a partir da opinião de todos os participantes na transacção e não apenas a partir da opinião dele. Aliás, se ele estivesse realmente convencido disso, não estaria a anunciá-lo publicamente, mas estaria cheio de afã a comprar essas acções, sigilosamente, antes que a procura aumentasse e o preço subisse. Portanto, não lhe liguem nenhuma!

Ora isto significa que qualquer acção, num dado instante, tem uma probabilidade de descer igual à de subir. Se, por exemplo, a probabilidade de subir fosse superior, haveria ordens de aquisição que levariam imediatamente o valor ao preço em que as probabilidades de variação em sentidos opostos fossem iguais. O valor de uma acção depende da percepção que o mercado tem do valor da empresa. Se amanhã se alterar, é porque surgiram entretanto notícias que modificam aquela percepção. Mas enquanto não surgem essas notícias, elas são imprevisíveis (a menos que haja inside trading), e quando o mercado sabe delas, ajusta-se imediatamente.

Portanto, os preços das acções, numa bolsa a funcionar em termos, reflectem todas as informações disponíveis, em cada instante. Mesmo que o valor de algumas acções reflicta um optimismo “irracional”, é assim que o mercado está a percepcionar o valor da empresa e a probabilidade de ocorrerem variações num ou noutro sentido é idêntica (a menos que um primeiro ministro ou o presidente de um banco central venha à TV dizer que as acções estão com um valor especulativo, pois nesse caso o melhor é venderem imediatamente as acções todas e aplicarem o produto da venda em obrigações e depósitos a prazo).

Portanto peguem na folha de cotações da bolsa, e numerem as empresas. Recortem quadradinhos de papel e escrevam, em cada um, um número sequencialmente. Dobrem em quatro e metam num receptáculo. Chocalhem. Agitem várias vezes. Metam a mão no receptáculo e retirem um dos papéis dobrados. Vejam o número. Cotejem esse número com a numeração que fizeram na página das cotações do jornal. Comprem acções dessa empresa.

Talvez seja preferível diversificar e distribuir as vossas poupanças por acções de mais empresas. Retirem mais 3 ou 4 papéis e comprem igualmente acções dessas empresas.

Uma última sugestão. Não façam transacções muito frequentes. Não é por desconfiança deste método, longe disso – apenas está provado estatisticamente que, quanto mais frequentes são as transacções, menor é o ganho a longo prazo.

Evidentemente que há uma diferença entre este método, e o de utilizarem os serviços de um corrector: poupam o valor da comissão.

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agosto 18, 2005

Impostos e Eficiência

Quais são os custos dos impostos para os contribuintes? Muitos julgam que são apenas os valores despendidos no seu pagamento. Outros, mais perspicazes, somam-lhe os custos administrativos decorrentes dessa tributação: custo dos impressos, tempo despendido a preencher os impressos e nas filas de espera para entrega das declarações e pagamento dos impostos, custo de um contabilista, ou de um serviço de contabilidade, para alguns contribuintes ou para as pessoas colectivas, etc.. Enganam-se! Os que se debruçaram, com alguma profundidade, nas questões microeconómicas, sabem que existe ainda um custo social, também chamado peso morto, pelo facto dos impostos distorcerem as decisões que as pessoas tomam. Esse custo não é sentido directamente: a economia funciona pior do que devia funcionar, apenas não se atina porquê. Mas ele existe e, muitas vezes, é superior ao próprio imposto! E não é individual: é um ónus que recai sobre toda a colectividade. Embora em Economia as experiências sejam raras e pouco recomendáveis, há a interessante experiência da Islândia:

A Islândia fez uma experiência de ausência de imposto sobre o rendimento. Até 1987 calculava IRS sobre o rendimento do ano anterior. A partir de 1988 passou a calcular sobre o ano em curso. Portanto o rendimento de 1987 não foi tributado. Verificou-se que o PIB em 1987 foi 7,1% superior ao PIB de 1986 (a preços constantes), caindo 2% em 1988 (ver nota final). E isto aconteceu apesar de não se tratar de um efeito permanente, ou seja, as decisões a prazo nunca seriam influenciadas por uma situação (ausência de IRS) que só afectaria os rendimentos de um ano. Todavia foi o suficiente para os islandeses produzirem mais. A ideia do governo da Islândia não foi fazer uma experiência de Teoria Económica, foi apenas mudar a forma de tributação. Mas os resultados tornaram-se um case-study.

Demonstrei em Impostos e nível de Emprego que o aumento do imposto sobre o factor trabalho se traduziria, para além da sua influência nas remunerações brutas e líquidas, numa diminuição do nível de emprego e, portanto, do nível da actividade económica. Concomitantemente havia um custo social que aumentava com a taxa do imposto e que fazia com que a própria receita fiscal começasse a diminuir a partir de uma determinada taxa. Pode custar a entender esse custo social, o peso morto, (representado no gráfico pelos sucessivos polígonos B-C-A, D-E-A e F-G-A) para quem não está familiarizado com a análise microeconómica, mas vou tentar explicar de uma forma mais descritiva e menos matemática.

Um dos princípios básicos da Economia é o de que as pessoas reagem a estímulos ou a incentivos. Esses estímulos podem ser os preços dos mercados propostos pelos vendedores, mas também podem ser os novos preços resultantes da intervenção estatal a nível fiscal. Se aumentar a fiscalidade relativamente à casa própria (IMT e/ou IMI) as pessoas reagem adquirindo uma casa mais pequena ou alugando um apartamento e aplicando o dinheiro remanescente na aquisição de outros bens.

Distorção semelhante se dá no mercado de trabalho, no caso do exemplo apresentado. À medida que a taxa de imposto cresce, diminuem os incentivos da empresa em manter o nível de emprego inicial e as pessoas trabalham menos, em troca do lazer e do subsídio de desemprego. Outra ineficiência causada pelo imposto é o facto de desencorajar a poupança.

Uma forma de eliminar aquelas distorções e a perda social correspondente, seria taxar apenas o consumo. Não taxar o trabalho, mas taxar o consumo. Isentar igualmente de impostos as aplicações capitalizáveis em fundos de pensões de reforma ou invalidez. Nesse caso não há distorção nas decisões no mercado de trabalho.

O tipo de imposto mais eficiente do ponto de vista económico é o imposto de montante único. Qualquer ganho adicional é taxado a 0%, portanto não afecta as decisões das pessoas, logo não causa perda de bem estar social. Todavia é um imposto injusto do ponto de vista da equidade social. Por outro lado, pode argumentar-se que os ricos beneficiam mais dos serviços do Estado que os pobres. Se é verdade que os serviços públicos de Saúde e Educação são iguais para todos, também é verdade que a protecção conferida pela justiça e os serviços de segurança pública e de defesa beneficiam mais os ricos, que têm mais a perder. Há ainda um outro argumento, baseado na “capacidade de pagamento”, que serve de suporte ao imposto progressivo. Todavia a experiência em diversos países tem demonstrado que taxas marginais bastante elevadas constituem um forte desincentivo ao trabalho altamente qualificado e ao investimento e causam uma elevada perda de bem estar social (aumento do chamado peso morto).

É nos impostos sobre as pessoas colectivas que as distorções económicas introduzidas são mais flagrantes e contraproducentes. É motivador para o eleitor individual ouvir falar em tributar mais as empresas. Então se forem Bancos e Seguradoras, o efeito é ainda mais empolgante. Resta saber quem vai, realmente, pagar esses impostos tão empolgantes, e que distorções irão introduzir na economia.

Em primeiro lugar, uma coisa é certa: a Empresa não paga impostos, é apenas uma intermediária entre o Estado e outros. É uma mediadora fiscal. Quem paga os impostos são os proprietários (accionistas), os clientes e os trabalhadores da empresa. Inicialmente, um aumento do imposto é distribuído entre os proprietários e os clientes. No caso dos accionistas, diminuição do rendimento das acções vai fazê-las cair e incentivar a sua venda. O valor da empresa baixa. No caso dos clientes, o aumento dos preços vai fazer diminuir a procura. Pouco a pouco, serão os trabalhadores a pagarem o aumento do imposto: menores aumentos salariais, menos admissões de pessoal ou mesmo diminuição de efectivos. Entretanto os proprietários (accionistas) tenderão a desviar os seus investimentos para outras áreas, ou outros países, o que se reflectirá no nível de emprego naquele sector. O resultado final é óbvio: serão os trabalhadores que, indirectamente, pagarão os aumentos dos impostos às empresas, ou a manutenção de um nível fiscal elevado, comparado com outros países.

Portanto os impostos sobre o rendimento introduzem distorções nas decisões dos agentes económicos, que conduzem a uma diminuição da eficiência económica e a uma perda de bem estar social (ou colectivo). Para taxas relativamente baixas, o que se perde é compensado em termos de equidade social – não se atinge o óptimo colectivo, mas consegue-se uma maior equidade social com um custo colectivo comportável. Aliás, numa economia real, a eficiência dos mercados é relativa, porquanto há distorções, algumas inevitáveis, do modelo concorrencial. Neste entendimento, o efeito de distorção introduzido por um nível razoável de fiscalidade é mais que compensado por uma maior equidade que se traduz num maior consenso social. A partir de um certo nível de fiscalidade (variável conforme a qualidade do sistema fiscal) a diminuição da eficiência económica leva ao empobrecimento colectivo em nome de uma alegada equidade social.

Em qualquer dos casos, o tradeoff entre equidade e eficiência não deve ser resolvido pela Economia. A Economia apenas calcula os resultados para os diferentes cenários. São os políticos que terão que decidir. Se o projecto dos políticos for favorecer a equidade a troco do empobrecimento do país (que normalmente só se torna visível a médio ou longo prazo), o máximo que a Economia pode conseguir é transformar essa opção num case-study para ensinar nas Universidades aquilo que não se deve fazer e o desastre a que essa política conduziu. O grave é que o case-study normalmente tem o mesmo papel da autópsia – não devolve a vida ao sinistrado.

No caso português nem isso acontece – o nosso nível de fiscalidade não visa qualquer equidade social, mas apenas manter um Estado ineficiente e autofágico, o Moloch estatal.


Nota:
PIB Islandês, a preços constantes, Base 100 = PIB de 1986

1986…….100
1987…….107,08
1988….…105,14
1989….…104,66
1990…….104,97
(Fonte: Cálculos feitos sobre estatísticas do FMI)

O PIB de 1988 ainda foi afectado pelo boom de 1987.
Calculando a diferença entre o PIB de cada ano e o PIB calculado em termos de crescimento médio entre 1986 e 1990, verifica-se que o PIB1987 foi superior em 5,86% e o PIB 1988 foi superior em 2,69%. Portanto a inexistência de tributação relativamente aos rendimentos auferidos no ano de 1987 induziu uma riqueza nacional adicional, pontual, superior a 8%, a preços constantes.

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agosto 14, 2005

Mercado e Ambiente

Um dos vectores de diabolização do mercado é a acusação que este prossegue uma exploração desenfreada da natureza e não cura dos prejuízos que as actividades produtivas provocam no ambiente – poluição, efeito estufa, destruição das paisagens, etc.. Há empresários que o fazem, assim como há empresários que degradam a qualidade dos seus produtos, que tentam vigarizar os consumidores, os fornecedores ou os concorrentes, que tentam defraudar o fisco, etc.. É a confusão premeditada entre liberalismo e o “vale-tudo”, comum no pensamento dos regimes totalitários e dos iliberais dos regimes democráticos. Todavia, desde o nascimento da escola da economia clássica, que os seus teóricos sustentam que cabe ao Estado aplicar a justiça e zelar para que não existam distorções e atropelos ao funcionamento do mercado. Entre esses atropelos estariam certamente os prejuízos ambientais, se eles fossem visíveis nos finais do século XVIII.

A questão dos bens ambientais tem uma característica própria que não torna imediata a forma como essa questão possa ser resolvida em mercado. Na generalidade são bens onde não existem a priori direitos de propriedade: o ar, os rios, os oceanos e o domínio hídrico em geral, etc.. Enquanto a Natureza parecia ter uma capacidade de regeneração infinita, estes problemas não se puseram. Havia poluição (fumo das chaminés industriais, poluição de rios, descargas ao ar livre, etc.) mas eram actos pontuais, que apenas incomodavam a vizinhança imediata.

Ora cabe a economia neoclássica o ter, pela primeira vez, investigado esta situação numa perspectiva científica e não moralista. O fundador da teoria moderna do bem-estar, Pigou, em Economics Welfare (publicada em 1920), vai chamar a atenção para os casos em que existem externalidades num equilíbrio geral. Ele sugere que o interesse público e os interesses privados não coincidiam, quando, por exemplo, o custo marginal social — ou seja custo para o conjunto dos indivíduos — e custo marginal privado — ou seja custo para um indivíduo tomado isoladamente — não são iguais. Esta divergência entre custo social e custo privado foi considerada por Pigou como uma externalidade. Uma externalidade surge quando uma pessoa se dedica a uma acção que provoca um impacte no bem-estar de um terceiro que não participa nessa acção, sem pagar nem receber nenhuma compensação por esse impacte.

E deve sublinhar-se que Pigou foi o primeiro, (cf. Economics of Welfare), a fim de ilustrar uma análise do bem-estar, a apresentar exemplos claramente dependentes do meio ambiente, tal como o de uma chaminé fabril que fumega e suja a vizinhança. A modalidade de internalização proposta por Pigou foi a de colmatar o desvio custo social - custo privado fazendo pagar uma taxa ou uma renda ao emissor da nocividade, taxa cujo montante seria igual à diferença entre custo social e custo privado. O preço do bem produzido seria assim igual ao custo marginal social do bem (custo marginal privado + taxa).

Autores posteriores, no quadro da economia neoclássica, pouco inclinados a preconizar soluções fiscais, contestam a optimalidade da solução de Pigou e exigem, para se obter o Óptimo, uma condição suplementar: que o produto da taxa seja entregue à vítima do efeito externo, a fim de que esta última veja o prejuízo residual compensado.

Dentro desta óptica insere-se o teorema de Coase, um dos pioneiros da análise da Economia do Ambiente: a internalização não pode provir senão de uma negociação bilateral entre emissor e vítima, ou seja, de uma discussão de preços entre os agentes económicos em causa, desde que o custo da organização dessa negociação não seja proibitivo e nunca ultrapasse o ganho social que dele se pode esperar. Esta condição de nulidade dos custos de transacção (ou de organização da negociação) é essencial na demonstração de Coase, pois o que Coase critica é o carácter unilateral da solução fiscal de Pigou. Convém notar que o teorema de Coase já tem mais de meio século e foi elaborado numa situação em que a acção sobre o ambiente não se desenrolava à escala planetária, ou pelo menos ainda não havia consciência disso. Em qualquer dos casos, muitas das soluções adoptadas actualmente, têm a ver, directa ou indirectamente, com o teorema de Coase.

Portanto é a própria economia neoclássica que reintroduz a problemática da convergência entre interesses privados e interesse público, embora com outros meios e outras finalidades que os de Adam Smith. O conjunto desta problemática neoclássica baseada nas teorias da utilidade e do bem-estar fez nascer a teoria económica do meio ambiente. No seio da economia do meio ambiente, distinguir-se-ão, sucessivamente, as questões de internalização das externalidades, a definição dos direitos de propriedade e as soluções dadas aos problemas da avaliação dos bens e dos serviços do meio ambiente

É óbvio que abordagem neoclássica pressupõe a soberania da esfera económica através do papel regulador do mercado. O mercado, através das alterações de preços relativos, pode fornecer um método para a concessão óptima dos bens e serviços ambientais.
O receio do esgotamento de recursos naturais dotados de um preço de mercado (energias fósseis, minérios) desapareceria se se deixasse agir sem qualquer intervenção os mecanismos de mercado. À medida que os preços aumentassem, as estratégias de exploração e as investigações tecnológicas seriam simultaneamente estimuladas. Estas últimas permitiriam, não só a substituição entre recursos, como também o aumento da eficácia destes, ou seja, uma diminuição do seu desperdício. Este ponto de vista gerou uma teoria económica da exploração óptima dos recursos naturais, que calcula uma trajectória óptima do esgotamento dos recursos e permite a continuação do crescimento económico, não obstante o esgotamento de certos recursos naturais.

Quanto aos problemas de poluição, estes desapareceriam, à semelhança do desperdício de certos recursos naturais, se lhes fosse criado um duplo mercado, por um lado, para os serviços de absorção dos poluentes devolvidos pelo ambiente e, por outro, para os recursos naturais actualmente disponíveis. Considera-se aqui que os problemas do meio ambiente provêm do facto de muitos bens e serviços ambientais serem gratuitos.

Ora, o risco é que, se a procura cresce, esta ultrapassa a capacidade dos bens e serviços ambientais para a satisfazer. Por outras palavras, pode ocorrer uma sobreexploração dos recursos ou das capacidades de absorção da biosfera. Por exemplo, enquanto a concentração de dióxido de carbono e de dioxinas, a espessura da camada de ozono, etc. foram tratadas como recursos de preço nulo, não havia incentivos para tomar medidas contra a sua sobreexploração.

A solução é atribuir um preço a estes bens e serviços ambientais, o que pode ser feito por diferentes métodos, ou encontrar processos sociais tais como o princípio «poluidor-pagador», o qual permite avaliar monetariamente o custo da sobreexploração de certos recursos naturais ou o da poluição. Daí decorre a questão da avaliação dos bens e serviços ambientais, assim como da «internalização dos efeitos externos», que conduz à realização de um óptimo de poluição que iguala o custo social marginal do prejuízo e o custo marginal de redução da poluição.

Portanto, foi a economia neoclássica, conhecida entre os seus detractores como neoliberalismo, que construiu modelos para analisar as externalidades ambientais e resolvê-las de um ponto de vista económico eficiente. Enquanto uns se preocuparam, tardiamente, em debitar tiradas moralistas baseadas na ignorância e/ou na malevolência, a economia neoclássica propunha soluções para os problemas, que satisfizessem o equilíbrio ambiental e a eficiência económica.

Muitas das actuais taxas, tarifas, normas e regulamentos, sistemas de coimas e outras formas quer de conteúdo claramente económico, quer aparentadas com coacções administrativas, têm suporte, directo ou indirecto, em trabalhos da teoria económica.

Frequentemente contrapõe-se a ética à abordagem neoclássica, sob a alegação que aquela é menos utilitarista. Todavia a abordagem neoclássica tem, face aos problemas ambientais, uma forte componente antropocêntrica (é o indivíduo que decide o valor a dar aos não humanos) e «presentista» (é a presente geração que decide sobre o valor de legado). A abordagem neoclássica avalia os bens ambientais, cria modelos integrando esses valores sociais e propõe soluções para maximizar o bem-estar. Há vários modelos cuja adequação depende do tipo do problema em equação. Mas têm um carácter operacional e não moralista.

Voltarei a este tema em futuros posts, desenvolvendo alguns conceitos aqui esboçados.

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agosto 11, 2005

Impostos e nível de Emprego

… e o Bem-estar geral

Qual será o impacto do nível de tributação no mercado de trabalho e no bem-estar geral? Para avaliar esse impacto, consideremos o mercado do factor trabalho, tal como é exemplificado no gráfico abaixo e vejamos como o nível de tributação irá afectar o funcionamento desse mercado: remunerações líquidas, remunerações brutas pagas pela empresa, receitas tributárias, nível de emprego e desperdício social.

Se o imposto sobre o factor trabalho recai sobre as empresas, a curva da procura desloca-se para baixo, no montante do imposto; quando recai sobre os trabalhadores, a curva da oferta desloca-se para cima, no montante do imposto. Nos dois casos, quando o imposto entra em vigor, a remuneração paga pelos empresários aumenta e a recebida pelos trabalhadores diminui. Empresários e trabalhadores partilham o ónus do imposto, independentemente de como ele é cobrado.

Sem imposto, de acordo com o gráfico abaixo, o nível de emprego é de 400 efectivos com um salário mensal de 1800 euros (ponto A). Suponhamos que o imposto referido acima era de 37,5% sobre o total das remunerações, parte paga pela entidade patronal, parte paga pelo trabalhador. O nível de emprego passou para 300 efectivos (menos 100 que no 1º caso), a remuneração líquida que o trabalhador recebe é de 1500 €/mês, enquanto a empresa despende 2.400 €/mês por cada trabalhador (ponto B). O imposto arrecadado é de 270.000€ (900€/efectivo) e corresponde ao rectângulo com os lados a “laranja”. O desperdício social corresponde ao polígono B-C-A - 45.000€, que são os excedentes do consumidor (acima da linha amarela) e do vendedor (abaixo da linha amarela) que deixam entretanto de existir, com a diminuição das quantidades (efectivos) transaccionadas. Neste mercado, o consumidor (da força de trabalho) é a empresa, e o vendedor, o trabalhador ou o conjunto de trabalhadores habilitados a trabalhar naquela actividade.

EfeitoImposto.jpg

Não desenhei as novas curvas de procura e de oferta, porque a sua posição relativa depende de como é repartido o imposto entre a entidade patronal e o trabalhador. Mas o resultado é o que está indicado no parágrafo anterior, admitindo que o andamento das curvas da procura e da oferta mantêm os respectivos declives. No caso da curva da procura, é normal que ela se torne mais elástica à medida que aumenta a remuneração social visto que a subida dos custos laborais afecta cada vez mais a competitividade da empresa. Por isso desenhei uma curva quebrada, com um declive menor quando a remuneração social aumenta.

Consideremos que a taxa de imposto aumenta e se atinge o ponto C. Nesse ponto, o imposto total é de 52,3%, o nível de emprego passou para 220 efectivos (menos 180 que no 1º caso), a remuneração líquida que o trabalhador recebe agora é de 1.260€/mês, enquanto a empresa despende 2.640€/mês por cada trabalhador. O imposto arrecadado é de 303.600€ (1.380€/efectivo) e corresponde ao rectângulo com os lados a “verde”. O desperdício social corresponde ao polígono D-E-A - 124.200€.

A partir desta taxa de imposto, a receita fiscal cai. Por exemplo, se imposto total é de 55,5%, o nível de emprego passa para 200 efectivos (menos 200 que no 1º caso), a remuneração líquida que o trabalhador recebe é de 1.200€/mês, enquanto a empresa despende 2.700€/mês por cada trabalhador. O imposto arrecadado é de 300.000€ (1.500€/efectivo), menos 3.600€ que no caso anterior e corresponde ao rectângulo com os lados a “vermelho”. O desperdício social corresponde ao polígono F-G-A - 150.000€.

Graficamente basta comparar os rectângulos com lados a “vermelho” e a “verde” para se perceber que o que se ganhou pela maior tributação por efectivo, perdeu-se pela diminuição do número de efectivos.

Este é um exemplo de como o imposto afecta os compradores (neste caso, as empresas), os vendedores (neste caso, a mão-de-obra) e o governo. O benefício obtido pelos compradores num mercado é medido pelo excedente do consumidor - a quantia que os compradores estão dispostos a pagar por um bem menos o que efectivamente pagam (no gráfico, a área entre a curva da procura e a recta a amarelo AH). O benefício obtido pelos vendedores nesse mercado é medido pelo excedente do vendedor - a quantia que os vendedores recebem pelo bem (neste caso, o seu trabalho) menos os seus custos (neste caso, o valor que atribuem ao seu trabalho) - no gráfico, a área entre a curva da oferta e a recta a amarelo AH. Essas são as medidas de economia do bem-estar. À medida que o imposto aumenta, diminui o bem-estar global, isto é, parte é arrecadada pelo governo para pagar os serviços públicos que presta, e outra parte é desperdiçada. Quanto maior é a taxa de imposto, maior é o desperdício social e, a partir de certo nível dessa taxa, o próprio nível de tributação (a receita do Governo) baixa.

Este exemplo, para o mercado de trabalho, conduz a resultados próximos dos deduzidos num texto que publiquei atrás em "A Dimensão do Estado" (ver abaixo a curva de Laffer). É evidente que as curvas da procura e da oferta apresentadas correspondem a modelos explicativos e têm que ser avaliadas pela tendência que mostram e não pela exactidão dos números. Mas uma conclusão é óbvia: quando as taxas de imposto são baixas, a sua influência na diminuição do bem-estar geral é baixa e pode deduzir-se que as transferências sociais que as respectivas receitas tributárias promovem, compensam, pela equidade social, o desperdício do bem-estar geral. A partir de certo nível de tributação, a punção no bem-estar geral torna-se muito elevada, o reflexo no nível de emprego é forte, e a equidade social obtém-se pelo empobrecimento da sociedade. Neste caso a equidade social torna-se um factor de empobrecimento geral e de desperdício social.


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Nota: As taxas consideradas não são muito elevadas face à situação existente. Ver, por exemplo, As Fauces de Moloch ou As Fauces de Moloch para os Remediados

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agosto 08, 2005

A Candonga

O Verão é época de temas fracturantes. Hoje vou propor um tema: Porque é que a candonga é ilegal? Qual é o mal de vender títulos de ingresso, acima do preço tabelado pelo produtor de um dado evento? Aparentemente nenhum. Analisemos a questão:

Suponhamos que, para um dado espectáculo, tendo em conta os seus custos e a análise do mercado que fizera, o produtor do espectáculo havia fixado o preço do ingresso em 20€, a que corresponderiam cerca de 250 espectadores, conforme se pode observar no gráfico abaixo. Para este exemplo, escolheu-se uma curva da procura de elasticidade constante (*), mas ele é válido para outra curva qualquer.

Imaginemos que alguém comprou alguns bilhetes para os vender por 30€. De acordo com a curva da procura existe um mercado para essa transacção: Há pessoas interessadas em adquirir Qb bilhetes àquele preço. E se os quiser vender a 40€, haverá uma procura de Qc bilhetes. Ninguém é “roubado”, visto que quem compra está na disposição de adquirir aqueles bilhetes àquele preço. Os rectângulos verde e azul correspondem ao excedente do consumidor que é apropriado pelos “candongueiros” que compraram os bilhetes. Os sectores a amarelo representam o excedente do consumidor remanescente.
Procura2a.jpg

Imaginemos que esta actividade era legalizada. Que serviço era prestado a troco de fornecer bilhetes a um preço mais elevado? Evitar que o consumidor estivesse em longas filas, tempos infindáveis. Certamente que muitos consumidores preferiam gastar mais 10€ ou 20€ em troca de utilizar o tempo despendido na fila de espera, numa outra actividade mais útil. Que custos adviriam para o “candongueiro legal”? Os custos dos bilhetes (20€), mais a manutenção do seu local de venda, mais o valor do tempo que despendeu. Além desses custos previsíveis, existe ainda o custo, definido probabilisticamente, relativo ao risco de não conseguir vender todos os bilhetes que adquiriu (Imaginemos que o espectáculo era ao ar livre e subitamente apareceram indicações de que as condições metereológicas seriam muito desfavoráveis no dia do evento).

Perguntam os desconfiados: imaginemos que ele açambarcava todos os bilhetes para os vender a 30€, que aconteceria? Bem, nesse caso, de acordo com a curva de procura, ele só venderia Qb bilhetes, ficando os restantes por vender. No caso deste exemplo (elasticidade constante) ele teria exactamente uma receita igual ao custo de aquisição dos bilhetes. Mas perderia tempo, os custos de manutenção da sua loja, etc. Portanto, o açambarcamento era-lhe prejudicial. O açambarcamento só é vantajoso quando os preços foram tabelados, administrativamente, abaixo do que deveriam ser, tendo em conta o equilíbrio da oferta e da procura. O açambarcamento é vantajoso quando o Estado desregula o mercado.

Portanto a candonga presta um serviço – evita o tempo desperdiçado nas filas de espera – a troco de um adicional ao valor do ingresso. É benéfico para o consumidor, admitindo que ele está disposto a trocar essa perda de tempo pelo adicional do bilhete.

Se essa actividade for legalizada, poupa-se o tempo desperdiçado pela polícia a perseguir estes “empresários”, passa a ser uma actividade colectada (por exemplo, uma percentagem sobre o valor do adicional) e é um benefício para a sociedade, nomeadamente se o Estado utilizar essa colecta adicional ou na melhoria dos serviços públicos, ou na diminuição de taxas fiscais. Nunca para continuar a alimentar a voracidade de um Estado que consome ao nível da Escandinávia e presta serviços ao nível da América Latina.

(*) A função é p.q = 5.000, a que corresponde uma elasticidade constante e igual a -1
Procura2e.jpg

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agosto 04, 2005

Sir Newton e M. Smith

Isaac Newton estava debaixo de uma macieira, quando uma maçã lhe caiu na cabeça. A partir desse facto vulgar e anódino, ele deduziu a mecânica clássica. Adam Smith observou que num mercado livre os indivíduos tomam as melhores decisões quando deixados a agir por conta própria, motivados pelos seus próprios interesses, e daí foi deduzida a economia clássica.

Que teria acontecido se Newton, em vez de estar à sombra de uma macieira, estivesse na praia, ao sol, a ver saltitar uma bola tipo Nívea? Haveria mecânica clássica? Newton tornar-se-ia Sir Isaac Newton? No entanto, apesar da fragilidade inicial dos acasos que deram lugar à observação de Newton, ninguém se atreve a negar que a Mecânica e a Física sejam ciências, embora ninguém veja ou consiga agarrar a força gravítica. Ela é invisível. É como uma mão invisível que obriga os corpos a percorrerem certas trajectórias que dependem das suas massas e velocidades iniciais e cujo equilíbrio depende também da relação entre aquelas variáveis.

O sistema de formação de preços numa economia de mercado livre conduz a uma afectação de recursos mais eficiente. É como se uma mão invisível conduzisse os interesses individuais de modo a maximizarem o bem estar geral.

Durante mais de um século a mão invisível gravítica teve alguns contratempos com as autoridades eclesiásticas e políticas. Afinal de contas ela contradizia os primeiros parágrafos do livro base dessa própria autoridade. A mão divina parecia um conceito muito mais sólido e natural que essa força misteriosa e invisível que ocorria desde que uma massa estivesse presente. Mas depois tornou-se numa verdade científica incontestável.

A mão invisível do mercado tem tido mais dificuldade. Têm sido feitas experiências com sistemas alternativos de formação de preços, teoricamente mais racionais, visto ser a própria inteligência humana a planificá-los nos organismos centrais de planeamento e todas se têm gorado. Mais perverso: foi o próprio sistema “inteligente” de preços o principal factor de liquidação dessas experiências. Mas apesar disso a mão invisível do mercado continua a ser ridicularizada (excepto por aqueles que viveram as experiências da manipulação do mercado pela “mão inteligente e visível”).

É certo que os economistas se enganam nas previsões e não estão de acordo sobre certas decisões. Por exemplo, num inquérito recente entre economistas americanos, apenas 83% achavam que um grande défice orçamental tinha efeitos adversos na economia. Ainda se continua a discutir sobre as causas da Grande Depressão. Reagan disse uma vez que se o Trivial Pursuit tivesse sido inventado por economistas, teria 100 perguntas e 3.000 respostas. Todavia os paleontologistas não conseguem atinar com as causas da desaparição dos dinossauros e com milhares de lacunas na evolução das espécies e, até agora, ninguém pôs em causa o estatuto científico das Ciências Naturais.

Por exemplo, alguns conhecidos economistas pronunciaram-se sobre a Ota, considerando que tudo indicava ser um investimento fantasista. Todavia há economistas no governo que estão, pelo menos em público, confortáveis com a ideia. E um deles, o próprio ministro da Economia, é o principal impulsionador.

Há todavia uma diferença enorme entre a Ciência Económica e as Ciências da Natureza: é a questão da experimentação. Há laboratórios de Física, Química, etc., onde se fazem experiências. Não há laboratórios na Economia. Ou melhor … não há laboratórios “intencionais” na Economia. Implementa-se uma política e descobre-se anos (ou décadas) volvidos que foi um desastre. É então rotulada de “má experiência”. O problema é que depois não há unanimidade sobre a razão dessa política ter conduzido ao desastre económico e financeiro. Normalmente os herdeiros ideológicos dos que implementaram essa política sugerem razões colaterais ou artificiosas.

Tomemos o caso da Ota. Parece um caso simples. O projecto vai durar várias legislaturas. O dinheiro vai ser gasto, pouco a pouco – estudos, mais estudos, projectos de execução, reformulação dos projectos de execução, lançamento de concursos, anulação dos concursos, começo da construção, paragem parcial das obras para reformular o projecto tendo em atenção as ideias inovadoras que iluminaram a mente de um novo executivo, continuação das obras, paragem das obras porque se descobriram erros de concepção, retoma das obras, arranque parcial das operações porque não é possível esperar mais, prolongamento indefinido de diversas obras perante o olhar intrigado da população que não percebe o que se está a passar, etc., etc.. Quando se avaliar a extensão do descalabro financeiro, apenas se poderá concluir que foi uma “má experiência”. Ninguém é responsável porque, no fundo foram todos responsáveis.

Temos conhecida "experiência" da “Modernização da Linha do Norte” que foi o maior desastre financeiro do último quarto de século. Era um projecto para ser implementado em 6 anos. Ao fim de 6 anos, o ministro Cravinho afirmou que ele estava atrasado 10 anos. Como se sabe, nunca foi concluído. Só existem remendos. Faz no ano que vem dez anos que Cravinho produziu aquela afirmação. Enganou-se … estava mais de 10 anos atrasado. Estará provavelmente atrasado uma eternidade. Alguém foi responsável? Foram pedidas responsabilidades a alguém? Obviamente que não. Todos os governos desde 1990 eram responsáveis. Não se iam inculpar mutuamente. A responsabilidade directa cabe às administrações da CP e aos quadros técnicos superiores que estiveram envolvidos mas, no nosso país, este pessoal é inimputável – quando há um falhanço, a comunicação social só se importa com as “responsabilidades políticas”.

No caso da Física é mais simples. Mesmo que acertem com uma carga nuclear num asteróide e se produza um cataclismo cósmico, ninguém questiona a Física. Questionam os políticos que decidiram, ou a equipa que fez os cálculos, ou as empresas que produziram os equipamentos. No caso dos desastres económicos e financeiros ou se questiona a Economia ou … não se questiona ninguém … foi o destino.

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agosto 01, 2005

Economia e Ética

Reina alguma confusão sobre a palavra Economia. Em inglês essa confusão não existe. A Economia, enquanto ciência, é designada por Economics; a economia em termos latos, que abrange abordagens positivas, normativas, descritivas ou apenas de semântica corrente, é designada por Economy. Uma ciência positiva é um conjunto de conhecimentos sistematizados que respeitam ao que é, enquanto uma ciência normativa é um conjunto de conhecimentos sistematizados discutindo critérios sobre o que deve ser.

No caso vertente, a Economia positiva deve entender e explicar os factos observados enquanto a Economia normativa deve, utilizando a Economia positiva, propor políticas para a solução de problemas identificados. O que não é cientificamente correcto são valorações morais e subjectivas inquinarem a Teoria Económica, a Economia positiva, e liquidarem a sua base científica para construírem uma doutrina normativa, alegadamente ética e prenhe de valores morais, mas que, sem uma base científica hipotética-dedutiva, pode levar aos maiores desastres na sua aplicação prática. A interacção entre as duas áreas não pode levar à manipulação dos factos.

Ou seja, o mensageiro deve trazer os factos; não deve trazer aquilo que o receptor da mensagem gostaria de ouvir. Doutrinas que prometiam a permanente reconciliação dos valores sociais com comportamentos individuais, pela sujeição destes àqueles, revelaram-se, na prática, um desastre e conduziram à miséria geral.

Ora o que se verifica é que a ordem social e a ordem do mercado estão firmemente ancoradas numa infra-estrutura ética. Em primeiro lugar os agentes económicos — consumidores, empresários, trabalhadores, etc. — têm valores éticos que modelam os seus comportamentos; por sua vez, as instituições e as políticas económicas têm impactes diferenciados sobre as pessoas, daí decorrendo importantes avaliações económicas e éticas.

É pois evidente que o comportamento dos agentes económicos e as suas preferências, que são a base da Teoria Económica, ocorrem num quadro social e institucional em que existem valores éticos. A própria racionalidade individual é um produto social. Por outro lado, para a sociedade funcionar tem que haver uma ordem legalmente protegida e, obviamente assente nos princípios éticos da sociedade. Como eu escrevi há dias, aqui e aqui, «Sem a existência de um governo suportado num aparelho estatal está instalada a anarquia e não é possível uma actividade económica sustentável, nem há condições para o progresso económico e civilizacional … A actividade económica reduz-se à subsistência». Neste caso não haveria ciência económica (nem provavelmente qualquer outra ciência).

Existe uma ordem institucional mínima para o funcionamento da economia de mercado que inclui, além do ordenamento legal básico, regras que estabelecem a fronteira entre o que é lícito e o que é ilícito na actividade económica. Esse mínimo legal da ordem do mercado —direitos de propriedade bem definidos, liberdade e garantia de execução de contratos e prevenção de práticas anti-concorrenciais — tem como objectivo barrar as tentativas dos agentes económicos de viver à custa dos outros, colhendo o que não semearam. Sabotar a produção de uma empresa rival, adquirir um concorrente para obter uma situação de monopólio, conluiar-se com outras empresas do mesmo ramo para constituir um cartel e agir sobre os preços ou sobre as características do produto, são violações das regras mínimas da concorrência. Mas manter para si (ou patentear) um segredo industrial ou atrair um técnico oferecendo um salário mais alto fazem parte das regras do jogo, embora as suas consequências para uma empresa rival possam ser piores do que no caso da sabotagem.

O sistema de preferências do consumidor, do homo œconomicus, e a maximização da sua utilidade, não significa necessariamente que esse sistema de preferências, embora correspondendo a um plano pessoal, seja necessariamente egoísta. Qualquer acção, mesmo a mais altruísta, pode ser vista em termos de utilidade própria. E esta utilidade própria não invalida que os indivíduos tenham possibilidade de serem diferentes, que sejam capazes de pensar por si próprios e que o seu sistema de valores se possa alterar. Esta é uma noção genérica que não impede que, às vezes, os indivíduos não sejam capazes de se comportarem como egoístas racionais: falta de vontade; incapacidade de reconhecer e defender o interesse próprio; fazer prevalecer o empenho pelo poder (cf. Nietzsche) perante outro interesse; actuações auto-destruidoras; idealismo com boas ou más consequências, etc.

Ao contrário do que muitos pensam, o homo œconomicus de Adam Smith não se comporta respeitando apenas o seu interesse pessoal, ele comporta-se também de acordo com o prazer que sente pela felicidade dos outros. O próprio Adam Smith o reconhecia explicitamente, em The Theory of Moral Sentiments:

"How selfish so ever man may be supposed, there are evidently some principles in his nature which interest him in the fortune of others, and render their happiness necessary to him, though he derives nothing from it except the pleasure of seeing it"

Embora tal não signifique que a busca dos seus interesses individuais seja mitigada, e que afinal se preocupem menos com eles próprios do que com os outros.

Talvez por isso, para evitar conotações negativas por anexações semânticas, Alfred Marshall, que defendia que a economia não devia tomar partido em controvérsias sobre a ética, preferia a palavra "satisfação", em vez de "prazer", como fundamento do incentivo para as escolhas dos indivíduos.

Aliás, como a abordagem inicial de qualquer investigador não está isenta de valores, sejam eles quais forem, não é possível nem desejável ignorar o quadro de valores em que nos movemos. Ignorar esse quadro de valores poderia significar estarmos, sem o saber, a inquinar a nossa investigação com as nossas próprias concepções apriorísticas. As valorações partem dos factos e da análise científica desses factos. Mas interagem sobre eles.

Por exemplo, o estabelecimento de um salário mínimo não é, à partida, um facto da Teoria Económica. É um critério normativo. Todavia, ao ser estabelecido, a Teoria Económica deve-o introduzir no seu escopo de análise e verificar as consequências em termos do sistema de preços, mercado de factores, nível de emprego e equilíbrio geral. Como escreveu Gunnar Myrdal, "A mútua interdependência de factos e valores é precisamente o combustível que alimenta o trabalho científico, não menos nas ciências sociais do que nas ciências físicas. O progresso científico só chega quando nos esforçamos para maximizar o papel dos factos e por minimizar o papel dos valores"

Em determinadas situações é difícil avaliar o que foi preponderante na elaboração de uma teoria: se os factos se os valores dos proponentes dessa teoria. Por exemplo, a Escola de Chicago assegura que as divergências entre preços reais e concorrenciais provocadas por monopólio ou monopsónio são, em geral, irrelevantes. Os preços em um monopólio persistem no longo prazo somente quando o governo bloqueia a entrada a outros concorrentes. Mas até mesmo nesses casos, a concorrência geral da economia gerará novos produtos e tecnologias que enfraquecerão a posição do monopolista. É certo que isto já se verificou em alguns casos. Todavia uma teoria que só pode ser confirmada a longo prazo e que contraria, no curto prazo, a eficiência nos preços e na afectação de recursos, de acordo com a própria Teoria Económica, tem que ser vista com alguma prudência, para saber se estamos ainda no campo da Economia Positiva, ou se já resvalámos para a zona da Economia Normativa.

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julho 27, 2005

A Teoria Clássica, a Realidade e o Bom Senso

A leitura do meu texto anterior despertou uma dúvida, na aparência pertinente, mas que não tem a mínima consistência. E essa dúvida baseia-se na ideia que os decisores económicos estão-se tão completamente nas tintas para o que dizem os pais da economia clássica, que provavelmente nunca leram (acrescento eu). Aliás, um estudo de dois britânicos (Hall e Hitch), «Price Theory and Business Behaviour»(*) sobre o comportamento das 38 maiores sociedades britânicas, mostrou que a quase totalidade dos gestores desconhecia o que era o custo marginal (que é um dos pilares da microeconomia e dos modelos microeconómicos). A essas dúvidas respondo assim:

Os condutores dos veículos desconhecem as equações do movimento e a mecânica de Newton, mas guiam os carros tendo em atenção um conjunto de regras que, directa ou indirectamente, resultam das equações do movimento e da mecânica de Newton. Metem as mudanças de acordo com a força e a aceleração que necessitam. E quando chegam à beira do abismo não aceleram para diante, pois mesmo sem terem estudado as leis do campo gravítico, sabem que vão cair no abismo. (Espera-se que Sócrates e Mário Lino não acelerem agora …).

Acreditar que, por não se conhecer a escola clássica e as funções de utilidade, de produção e de custo da microeconomia, os gestores agem de modo diverso, seria o mesmo que acreditar no caos absoluto do trânsito, pela ignorância das equações do movimento e do campo gravítico: carros enfeixados noutros carros, em postes, dentro de montras, capotados nas valetas, no fundo de ravinas, etc., tudo como regra geral. Há acidentes, mas não são a regra geral. Assim como na economia: há falências ou acidentes menos nefastos, mas não são a regra geral.


(*)Nota: Não estou bem certa da data do estudo, mas foi por alturas da 2ª Guerra Mundial. Como estou em férias não tenho nem livros, nem Google à minha disposição (pesquisas na net, com GPRS, só se fosse subsidiada pelo Plano Tecnológico!) limito-me à minha memória e alguns dados que tenho no PC.

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Equívocos Iliberais

A crítica mais vulgar que se faz ao liberalismo é a da existência de excesso de poder de mercado de diversos grupos económicos que agem como liberticidas. Ora esta crítica é hipócrita quando se refere ao caso português e ignorante quando se refere à economia global. No caso português, os agentes económicos que distorcem a concorrência são, em primeiro lugar, o próprio Estado com as barreiras institucionais que opõe à liberdade concorrencial, com o excesso de burocracia que só é contornada por compadrio, o que faz com que as empresas que obtêm vantagens não são necessariamente as que têm mais produtividade, etc.. Em segundo lugar as empresas majestáticas, semi-privatizadas pelo Estado, mas que continuam espojadas nas delícias de Cápua do proteccionismo estatal.

É estranho tentar desacreditar o liberalismo através de exemplos que decorrem, directa ou indirectamente, do comportamento do Estado. Os cambões dos construtores civis para concursos públicos, empresas menos competitivas terem prevalência burocrática, empresas majestáticas imporem preços não explicados pelo factor mercado, etc., resulta tudo do comportamento do Estado que vicia e degrada a concorrência, quando uma das suas principais missões, de acordo com os pais da economia clássica, seria justamente a da regulação da concorrência e a de providenciar a equidade do funcionamento da economia do mercado.

Analisemos agora a situação do poder de mercado dos grandes grupos económicos a nível da economia global. O poder de mercado existe quando alguns intervenientes no mercado têm a possibilidade de cercear a liberdade de outros intervenientes. Em contrapartida, quando todos têm que aceitar igualmente o preço determinado pelo mercado, todos dispõem de poder económico idêntico e todos são, perante o mercado, igualmente desprovidos de poder.

O liberalismo económico define a liberdade como a ausência de coacção. Isso significa que só pode existir uma ameaça para a liberdade quando alguém puder impor algo a outrem. Por essa razão, para o liberalismo económico, o Estado representa, em si, uma ameaça. Mas, contrariamente ao ultraliberalismo, que assegura que todo o económico é racional desde que na sua origem não haja coacção, não podemos ignorar as ameaças à liberdade provenientes do poder de mercado das grandes empresas apesar de estas não terem capacidade de impor comportamentos ao consumidor individual ou ao pequeno produtor.

Os equilíbrios do mercado só se podem considerar racionais e eficientes na medida em que resultem da actuação de indivíduos tanto quanto possível igualmente livres. Quanto maior for o poder existente num mercado, mais irracionais (ineficientes) são os resultados globais (i.e., para todos os indivíduos e empresas).

A escola clássica inglesa, que procurou desde o início estabelecer relações lógicas entre padrões de comportamento e escassez de recursos, envolvendo um alto grau de abstracção e o recurso a ferramentas matemáticas, foi extraordinariamente enriquecida com as discussões teóricas e práticas emergentes da Sherman Act (1890), quando economistas (e os tribunais) se envolveram em disputas acérrimas sobre a forma como as estruturas de mercado influenciavam os comportamentos das firmas e em que medida determinadas situações de oligopólio (ou monopólio) violavam a concorrência. As investigações e os debates em tribunais forneceram aos economistas um grande acervo de informações sobre os comportamentos dos agentes económicos e as estruturas de mercado. Muito da teoria económica se tem desenvolvido a partir dessas disputas legais, que continuam a ocorrer, como foi o caso recente da Microsoft. A teoria dos Mercados Contestáveis (cf. W. Baumol) nasceu, na década de 80, da controvérsia legal acerca de uma alegada situação de monopólio.

Quando digo enriquecida, refiro-me aos diversos modelos que foram sendo propostos para descrever esses comportamentos. Mas refiro-me igualmente ao aparecimento da Industrial Organization que parte do paradigma Estruturas-Comportamento-Resultados, que resumidamente refere que os resultados de uma dada indústria ou mercado dependem do comportamento dos agentes económicos (compradores e vendedores) que se confrontam nesse mercado em áreas como políticas de preços, práticas comerciais, investigação e desenvolvimento, investimento em instalações produtivas, etc.. Os comportamentos dependem, por sua vez da estrutura de um dado mercado, abarcando parâmetros tais como número e distribuição dimensional dos vendedores e compradores, grau da diferenciação (física ou subjectiva) do produto, presença ou ausência de barreiras à entrada de novos produtores, estrutura de custos, grau de integração vertical, etc..

Por sua vez, a estrutura de mercado e os comportamentos interagem com as condições de base. Por exemplo, do lado da oferta, a localização da matéria prima, a tecnologia disponível, durabilidade (ou perecibilidade) do produto, rácio valor/peso, condicionantes ambientais, regulamentos estatais e enquadramento legal, padrões produtivos (por exemplo, produzir por encomenda, ou produzir para armazém – no caso em apreço, para depósito), etc.. Do lado da procura, a elasticidade preço-procura, produtos substitutos (elasticidades cruzadas da procura), taxa de crescimento e flutuações da procura, procura sazonal ou cíclica, padrões de aquisição (por exemplo, transacções através de listas de preços ou por concursos com propostas lacradas).

Os modelos iniciais, resultantes da escola clássica, baseavam-se nos “7 axiomas” da concorrência:
1-Atomicidade do mercado (grande número de concorrentes)
2-Homogeneidade do produto – não havia diferenciação dentro do mesmo produto (ausência de marcas, modelos, etc.)
3-Ausência de barreiras à entrada - inteira liberdade (legal e económica) de entrar e sair.
4-Transparência do mercado (todos conhecem exactamente as qualidades e preço do produto)
5-Mobilidade perfeita dos factores de produção (capital e trabalho)
6-Independência dos agentes económicos (não há conluios)
7-Racionalidade económica absoluta (minimizar para cada produto o consumo dos factores e, para cada combinação de factores, escolher a técnica que maximiza a produção)

Os avanços tecnológicos e o próprio processo concorrencial conduziram ao aumento da dimensão das unidades e à importância crescente das economias de escala como factor de competitividade. As dimensões mínimas óptimas de diversas indústrias agem em sentido contrário ao axioma 1: levam ao oligopólio e não à atomicidade. Criam igualmente poderosas barreiras à entrada (axioma 3) porquanto exigem investimentos elevadíssimos, e de retorno arriscado, para a firma que pretender entrar no mercado.

O axioma 2 também não se verifica em muitos bens. As empresas diferenciam os produtos continuamente tentando pressionar o consumidor pela qualidade (real ou virtual) e não pelo preço. Mas tal é normalmente ultrapassado pelo maior discernimento que o consumidor vai adquirindo sobre o funcionamento (o mesmo é válido para o axioma 4). Faz com que a concorrência se faça pelo preço, mas também pela qualidade. Tem mais impacte sobre o “rigor matemático” dos modelos microeconómicos que sobre a concorrência.

Os axiomas 5 e 6 são do escopo do Estado. São as disposições jurídico-institucionais do Estado que dificultam a mobilidade dos factores de produção (do capital e, principalmente, do trabalho). O axioma 6 depende da existência de uma entidade reguladora da concorrência eficaz e de um Estado desburocratizado e capaz de aplicar a justiça com rapidez e equidade.

O axioma 7 depende parcialmente do Estado. Uma empresa que não aja com racionalidade económica absoluta vai à falência ao fim de pouco tempo, a menos que viva sob o proteccionismo estatal. Muitas das empresas que agem com pouca racionalidade económica e muitos dos empresários que os pensadores estatizantes acusam de responsáveis pelo estado económico do país, subsistem porque têm vivido sob a protecção, directa ou indirecta, do Estado.

O reconhecimento destas imperfeições levou os teóricos anglo-saxónicos a formular a teoria da Concorrência Praticável (Workable Competition) que tenta caracterizar as actuais estruturas de mercado.

Essa Concorrência Praticável implica um alargamento das variáveis concorrenciais (como p. ex., admitir certos fenómenos rejeitados pelo modelo tradicional – concentração, não homogeneidade do produto, etc.), é essencialmente dinâmica (o carácter concorrencial de um comportamento só pode ser apreciado após se ter analisado as suas repercussões a longo prazo e o equilíbrio instantâneo é substituído por conceitos que tomem em conta o tempo, prazos de adaptação, o carácter instável e evolutivo do mercado, etc.) e é pragmática e relativista.

A Concorrência Praticável implica regulação e perseguição legal a quem infringe as suas normas e regulamentos (e nos EUA, como se tem visto, essa acção legal é a doer …). Embora não seja coincidente com o modelo da concorrência pura e perfeita, um dos seus axiomas (2nd Best) é claro: se uma ou mais das condições necessárias para a realização do Óptimo de Pareto não estão realizadas, não é em geral, nem necessário, nem aconselhável, procurar satisfazer outras condições, porquanto a solução encontrada estará nas imediações desse óptimo.

Como escrevi no intróito, apelidar o liberalismo económico de liberticida, só por hipocrisia ou ignorância.

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julho 26, 2005

O Penico Quadrado de Vital Moreira

Vital Moreira produziu-se hoje em espaventoso traje de OTÁrio, acusando os lisboetas de todas as condições e partidos …Companhias de aviação e agentes turísticos, hoteleiros e taxistas, jet set nacional … de consubstanciarem um interesse corporativo que só tem comparação na reacção dos numerosos regimes especiais da função pública beneficiários de privilégios em vias de extinção. É o Sindicato de Lisboa, acusa.

Vital Moreira está a confundir privilégios estabelecidos por via institucional, fora da regulação de um sistema de mercado, com as preferências dos consumidores que constituem o mercado do futuro aeroporto. Designar pejorativamente por Sindicato de Lisboa, o conjunto dos potenciais consumidores da OTA é completamente obtuso e demonstra que Vital Moreira ainda tem muito que se esforçar para abandonar os vícios mentais adquiridos anos atrás.

Imaginemos que Vital Moreira lançava no mercado um novo modelo de penico – um penico quadrado. Imaginemos, como hipótese mais provável, que, apesar de uma intensa publicidade, as mães passavam com displicência ao largo dos escaparates desse produto inovador, sem o comprarem. Será que Vital Moreira se produziria furibundo nos jornais acusando o Sindicato das Mães de interesses corporativos?

Vital Moreira: É a Economia, EstúpidoInteligente!

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julho 14, 2005

A Teoria dos Preços há 170 anos

Ou como tudo era simples e depois se complicou

Nas suas Instituiçoens de Economia Política, escritas no exílio, mas impressas já em Portugal, em 1834, Ferreira Borges desenvolve a certa altura uma teoria da formação dos preços no mercado, mais descritiva e menos matemática que a actual, mas sem ser diferente nos conceitos gerais. Vejamos o que ele escreve:

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Nota: as imagens não estão muito nítidas porque não quis pressionar demasiado o livro por ser uma edição com 171 anos. A citação de Malthus (cf. Pg 34) evidencia que Ferreira Borges tinha andado a ler os clássicos ingleses, o que infelizmente não sucede com a quase totalidade dos economistas actuais.

A expressão gráfica deste “arrazoado” está a seguir.

PrecosCPP.jpg


Na figura (i) a receita marginal (Rm) correspondente ao preço de equilíbrio do mercado (p) é superior ao preço , que é o preço correspondente ao mínimo do custo médio (CMT) que coincide, sempre, com a intersecção com o custo marginal (Cm). O empresário tem um lucro adicional correspondente ao rectângulo verde (no CMT considera-se incluída a remuneração do factor capital – o lucro normal). Na figura (ii) a empresa tem a função de custo igual à média do mercado. As curvas Cm, CMT e Rm (que em concorrência perfeita é uma recta paralela ao eixo dos X) intersectam-se no ponto de equilíbrio geral do mercado. O empresário não tem lucro adicional. Na figura (iii) a função de custo do empresário obriga-o a vender abaixo do custo [Nota: a quantidade q é a quantidade óptima, corresponde sempre à intersecção de Rm e Cm e demonstra-se que maximiza os resultados da firma em quaisquer circunstâncias]. Tem um prejuízo que é dado pelo rectângulo vermelho. Parte desse prejuízo é solvido pela sua própria remuneração do capital e o resto será solvido quer por atrasos no pagamento à SS, no pagamento dos salários, etc.. Se o empresário não melhorar a sua função de custo ou o preço de equilíbrio de mercado não subir, ele não se poderá manter muito tempo no mercado e irá à falência.
CustoLagrange.jpg

Os mais prevenidos, ou com outras possibilidades, deslocalizarão entretanto a produção quando perceberem que atingiram o ponto de não retorno.

Claro que os economistas, que precisam de fazer jus ao dinheiro que recebem, empenharam-se em complicar tudo. Ao lado, o intróito à determinação das funções de custo, tal como é apresentado nos manuais de Microeconomia.

Não apresento o resto para não ferir os espíritos mais sensíveis!

Publicado por Joana às 11:40 PM | Comentários (22) | TrackBack

julho 11, 2005

A Dimensão do Estado

Quando se fala do peso excessivo do Estado, imediatamente quem def(p)ende (d)a sua existência clama que se responda, sem ambiguidades, qual deve ser a dimensão do Estado. Vou hoje fazer algumas reflexões sobre essa matéria, sublinhando todavia que não é um problema de solução única. A solução depende da eficiência do próprio Estado, da «qualidade» do sistema fiscal e do projecto que se tem para o país: Qual o doseamento entre desenvolvimento e igualitarismo.

Como eu escrevi há dias «Sem a existência de um governo suportado num aparelho estatal está instalada a anarquia e não é possível uma actividade económica sustentável, nem há condições para o progresso económico e civilizacional.». Ou seja, se a despesa pública fosse 0% (ou não houvesse impostos), a receita fiscal seria 0 e o PIB seria nulo. Haveria produção, para subsistência, mas esta não teria expressão monetária, visto que «a ameaça de expropriação é real e permanente. A actividade económica reduz-se à subsistência». Esse seria o limite inferior.

À medida que as taxas de imposto vão aumentando, os bens e serviços públicos essenciais ao funcionamento normal do mercado vão sendo disponibilizados – justiça, defesa, infra-estruturas básicas, educação básica. Nesta zona os efeitos destes aumentos em eficiência produtiva vão contrabalançando os efeitos desincentivadores das taxas de imposto para a actividade económica.

Se se continuarem a aumentar as taxas de imposto, a partir de certo montante, as ineficiências e os desincentivos começam a fazer-se sentir de forma cada vez mais acentuada. Vai ocorrer o declínio dos rendimentos do trabalho, da poupança, do investimento e do próprio rendimento colectável. Os agentes económicos vêm-se forçados a abandonar as suas actividades «monetarizadas» para se dedicarem a outras actividades como o lazer, a evasão e a fraude fiscais, a trabalhos de rendimento não tributável, à improdutividade e ao absentismo. E isto porque as alterações nos preços relativos induzidas nas taxas dos impostos afectam as escolhas entre trabalho e lazer, entre consumo presente/futuro e poupança/investimento e entre economia legal e economia paralela.

Em teoria, se as taxas forem 100% não haverá interesse em desenvolver qualquer actividade tributável – o dinheiro que se recebe é totalmente entregue ao Estado. Nessa situação as receitas fiscais reduzem-se a zero e o PIB igualmente. Será o limite máximo. É óbvio que continuará a haver alguma produção, mas apenas para subsistência, sem expressão monetária, visto que «a ameaça de expropriação [pelo Estado] é certa. A actividade económica reduz-se à subsistência». Diversos autores sugerem que a partir dos 85% a 90% haveria uma oferta nula do sector tributável.
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Ou seja, a receita fiscal seria nula quando T = 0, aumentaria e depois diminuiria, porque se anularia quando T = 1 (100%). Grosso modo um seria uma curva do tipo R = A×(T – T²), quando T = 0 então R = 0 e quando T = 1 (100%) então R = 0. O máximo desta curva seria quando a primeira derivada se anulasse (2T = 1 ou seja, T = 50%). O máximo da receita fiscal seria 0,25×A (A é um factor de escala).

Ao lado está a curva respectiva. O mesmo nível de receitas fiscais é atingido por duas taxas dispostas simetricamente relativamente ao ponto T = 50%. Portanto, a partir de T = 50%, já não vale a pena aumentar o nível de impostos.

Esta é uma formulação muito grosseira. Haverá outros factores que condicionarão a forma da curva, o valor de T que maximiza R, e o valor máximo de T que anula R.
LafferArmey.jpg

Esta curva é conhecida em Economia com a designação de Curva de Laffer, pois foi Laffer que a desenhou pela primeira vez, num guardanapo de papel, num restaurante em Washington há 30 anos. Paralelamente com esta curva existe a Curva de Armey, que relaciona o PIB com a Despesa Pública. Tem um andamento semelhante. Quando G = 0, PIB = 0 (já vimos que o PIB seria nulo em termos contabilísticos, mas teria um valor estimado, não monetário, mas traduzível em termos monetários, pois haveria uma economia de subsistência). Do mesmo modo que na Curva de Laffer, à medida que G se aproximasse dos 100% do PIB, a actividade económica tributável tenderia para zero. O PIB real não seria nulo, mas não haveria actividade económica tributável. As pessoas trocariam serviços mas não usariam meios monetários que pudessem conduzir à taxação.

Ao lado encontram-se as duas curvas tal como foram desenhadas pelo estudo do WorkForAll citado anteriormente. Na opinião destes autores flamengos (daí alguns erros de francês!) o máximo do PIB aconteceria com G = 30% e o máximo das receitas seria obtido com uma taxa fiscal de 45%. A partir de 85% as receitas e o PIB seriam nulos. Milton Friedman, num estudo onde comparou os USA e Hong Kong, concluiu que, embora o governo tivesse um papel essencial numa sociedade livre e aberta, a partir de um certo valor da Despesa Pública, a contribuição marginal para o PIB anular-se-ia e passaria a ser negativa. Situou esse valor algures entre 15% e 50%.

Mas estes limiares dependem de vários factores, à cabeça dos quais vem a «qualidade» do sistema fiscal. Dois sistemas fiscais que arrecadem ambos 40% da riqueza nacional podem ter efeitos muito diversos. Um deles ter efeitos negativos mitigados e o outro ser completamente castrador da actividade produtiva, tendo efeitos devastadores sobre essa actividade. Nesse ponto de vista, o nosso sistema fiscal é duplamente mau – por ter taxas elevadas e por ser um agente anquilosante da actividade produtiva, pela sua “má qualidade”.

Há um estudo de 1998, Government Size and Economic Growth, de Richard Vedder e Lowell Gallaway, que calculou a Curva de Armey, para os EUA. Testou várias variáveis independentes. A seguir apresento aquela que me pareceu mais interessante, que relacionava o PIB com a Despesa Pública (G), o desemprego (U) e o Tempo (T). A variável Tempo (o período em estudo compreendia os anos entre 1947 e 1997) foi utilizada para capturar os efeitos não explicáveis pelas outras varáveis – produtividade, tecnologia, intensidade do Capital, etc.:

PIB = A + bG – cG² + dT - eU

Os resultados foram os seguintes:
Armey.jpg

Estes resultados, apesar de terem um R2 muito elevado, carecem de algum poder explicativo, embora os sinais dos coeficientes estejam de acordo com as hipóteses de base. Todavia os autores cometeram um erro que se deve, sempre que possível, evitar: introduzir o Tempo como variável independente numa regressão múltipla baseada em séries temporais. Invariavelmente o Tempo torna-se a variável com maior poder explicativo, pois “captura” todos os factores que evoluem com o tempo. Basta ver que é a variável que tem um coeficiente com a Estatística t mais elevada, de longe. Parte do poder explicativo das restantes variáveis foi capturado por T.

Outras análises econométricas, adicionando outras variáveis, conduziram a resultados semelhantes, embora com R2 menor, mas com menor preponderância explicativa de T. Por exemplo:
Armey1.jpg

Resumindo, as curvas apresentadas acima estão, grosso modo, certas. Saber se a Despesa Pública óptima é 30% (como afirma WfA) ou 35%, como sugere o exemplo irlandês, e se o máximo de receitas fiscais se atinge com uma taxa geral de 45% ou 50% é discutível. Igualmente é discutível se o máximo, a partir do qual a actividade económica «monetarizada» se anula, acontece com 85% ou 90%. Seguramente será antes dos 100%. Aquilo que é evidente é que o andamento das curvas de Laffer e Armey está correcto, dentro de uma faixa de imprecisão relativamente pequena.

Ler ainda:
Sísifo e o Estado 1
Sísifo e o Estado 2
Sísifo e o Estado 3
Estado e Desenvolvimento 1
Estado e Desenvolvimento 2


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julho 10, 2005

O Último Liberal?

Ferreira Borges foi um dos principais membros do Sinédrio, organização clandestina que promoveu a Revolução de 1820. Emigrado por 2 vezes (a seguir à Vilafrancada e a seguir à restauração do absolutismo), foi durante a 2ª emigração que escreveu as suas principais obras nas áreas da Economia e do Direito Comercial e Fiscal. Escreveu em 1831 os Princípios de Sintelologia (ver fac-símile abaixo) onde desenvolveu a sua Teoria do Imposto na perspectiva do Princípio do Benefício, ou seja, na equivalência do Imposto ao preço dos serviços que o Estado presta aos cidadãos, isto é, cada contribuinte deve ser tributado de harmonia com o benefício que retira dos bens e serviços que o Estado, por ele financiado, lhe proporciona, o que ele designa “contribuição em avaria grossa” (cf. Pg 3, abaixo).

Um princípio contrário é o da Capacidade Contributiva que propugna que a repartição dos impostos pelos cidadãos se deve efectuar em função da sua capacidade económica, independentemente do grau de satisfação que cada contribuinte possa retirar dos “benefícios” dos bens e serviços que o Estado entenda disponibilizar. Este princípio conduz ao imposto progressivo, dependendo as taxas marginais da vontade política de igualização social. O problema é que esta política é economicamente ineficiente. Taxas marginais elevadas diminuem o incentivo pelo trabalho ou pelo investimento. Esta tentativa de redistribuição de rendimentos conduz ao “nivelamento por baixo” e desincentiva a produtividade e a qualificação técnica, constituindo um prémio ao lazer e ao absentismo. Se o Estado se apropriar de 50 minutos da última hora de um trabalhador altamente qualificado, este poderá não ter interesse em trabalhá-la – afinal só fica com 10 minutos.

Este efeito é conhecido de longa data. J-B Say escrevia, há 200 anos, que, em matéria de impostos, «dois mais dois não são quatro». Ou seja, duplicando as taxas, há um conjunto de efeitos na esfera económica, que agem em sentido oposto ao do aumento da carga fiscal. Os países europeus onde as taxas marginais eram mais elevadas, foram aqueles que menos cresceram nos últimos 30 anos. Nos últimos anos têm-se feito reformas fiscais no sentido de diminuir a progressividade dos impostos directos, justamente pela sua não racionalidade económica. Toda a tralha socializante acumulada durante o último século está a ser, gradualmente, embora a contra gosto, atirada borda fora. E o que há de caricato é que muitos dos que se afadigam agora nessa tarefa, tinham anteriormente carregado o navio com ela. Só que se aperceberam entretanto que o navio se estava a afundar e não havia outra solução.

Abaixo estão o frontispício e as páginas 1 a 3 dos Princípios de Sintelologia de Ferreira Borges. Como se pode ler no frontispício, o livro foi editado em Londres, em 1831, durante o seu segundo exílio.

Sintetologia1.jpg

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julho 03, 2005

Novamente a Irlanda

Ou o regresso de Sísifo

A fé no Estado e nas suas virtudes tem a mesma génese conceptual que a fé teológica. Se a razão se opõe, é a razão que está errada; se os factos a contrariam, é porque estão a ser mal interpretados ... pior ... tenta-se-lhes dar uma volta para os afeitar a uma interpretação que não comprometa as bases teologais. São os nossos genes, moldados pela omnipresença do Estado, pelo poder absoluto da Inquisição e por uma revolução dita liberal, mas que se limitou a transpor um Estado absoluto para um Estado de matriz jacobina em 2ª mão. Foi o que aconteceu com os meus textos sobre a diferença de políticas entre a Irlanda e a Bélgica e os resultados a que isso conduziu. Que aliás reeditavam conclusões idênticas de estudos apresentados aqui anteriormente.

A revolução económica irlandesa é muito interessante para nós, porque a sua génese foi uma situação com muitas semelhanças com a que nós vivemos há alguns anos. Como nós, a Irlanda era um país pobre, fundamentalmente agrícola e, pior que nós, com uma pesada herança colonial britânica. A partir da adesão à UE (1973) até meados da década de 80 a economia irlandesa caracterizou-se por um contínuo aumento da despesa pública, aplicando as chamadas “receitas keynesianas” para estimular a economia. O emprego no sector público cresceu bastante, os salários subiram significativamente, e apostou-se nas infra-estruturas públicas. Todavia, até 1986, a economia cresceu muito pouco. Entre 1980 e 86, o PIB cresceu 1,68% ao ano. A dívida externa atingiu 125% do PIB. Por sua vez, o desemprego, apesar das “receitas keynesianas” continuou a crescer, atingindo 17,3% em 1985 (ver quadro abaixo).

Para sustentar esta enorme despesa pública, os impostos foram aumentando progressivamente. Os últimos escalões dos impostos sobre o rendimento das pessoas singulares atingiram os 80% e a taxa de IRC situou-se nos 50%. Todo este descalabro era mascarado internamente pela desvalorização da libra irlandesa. A partir da 2ª metade da década de 80, com a vitória do Fianna Fail, houve medidas drásticas: eliminação de 10 mil postos de trabalho no sector público, cortes maciços na despesa pública (6% na saúde, 7% na educação, 18% na agricultura, 11% nas obras públicas e 7% na defesa). A despesa pública passou de 55% do PIB para 41% do PIB entre 1985 e 1990.

Em simultâneo foram incentivadas parcerias sociais entre empregadores e trabalhadores, por períodos de 3 anos, onde em contrapartida da moderação salarial, o governo oferecia uma baixa drástica de IRS e melhorias das prestações sociais. Todos os impostos (pessoas singulares, pessoas colectivas, capitais, etc.) tiveram cortes drásticos. O PIB começou a crescer a um ritmo superior (entre 1987 e 1993 cresceu a uma média de 3,7% ao ano) e o desemprego diminuiu ligeiramente, apesar da diminuição do emprego público (em 1993 a taxa de desemprego era de 15,7%). A conjugação das parcerias, diminuição de impostos e melhoria de algumas prestações sociais fez com que, apesar das medidas drásticas relativas à despesa e emprego público, a situação laboral irlandesa melhorasse, diminuindo as horas perdidas por paralisações laborais.

Estas medidas, conjugadas com a adesão ao euro e a estabilidade dos principais parâmetros macroeconómicos induzidos por essa adesão, tornaram a Irlanda um país extraordinariamente atractivo para os investidores internacionais, nomeadamente os americanos. Entre 1994 e 2000 a economia irlandesa cresceu a um ritmo de 8,2% ao ano e a taxa de desemprego caiu para 4,3% (ver quadro abaixo). A partir de 1989, o ritmo de criação de emprego situou-se em cerca de 25 mil por ano (para uma população equivalente a 40% da população portuguesa). Como as taxas que oneravam o factor trabalho desceram significativamente, os custos laborais irlandeses mantiveram-se baixos e atractivos, apesar do aumento da riqueza pública. Mesmo em 2003, um ano mau para a UE, a taxa de crescimento do PIB irlandês foi de 3,7%, subindo em 2004 para 5,1%, enquanto Portugal estagnava dramaticamente.

O rápido crescimento da economia irlandesa e o facto de se ter tornado o 2º país mais rico da UE (depois do Luxemburgo), possibilitou uma melhoria das condições sociais. A taxa de natalidade irlandesa é das mais elevadas da Europa (1,45%, contra 1,08% em Portugal) o que conjugada com uma baixa taxa de mortalidade (0,79%, contra 1,04% em Portugal) e uma elevada taxa de imigração líquida (0,49%, contra 0,35% em Portugal), possibilita à Irlanda um alto crescimento demográfico (1,16%, contra 0,39% em Portugal). Em Portugal é a imigração que sustenta o crescimento demográfico, enquanto na Irlanda ele é sustentado essencialmente pelo crescimento próprio.

O papel do Estado Irlandês neste milagre económico foi decidir emagrecer e assumir um papel essencialmente regulador quando, até 1985, havia sido um Estado investidor e com pretensões a criador de riqueza. Falhou totalmente nessas intenções. O Estado não tem vocação para se substituir aos empresários. A vocação do Estado é criar um clima favorável à actuação desses mesmos empresários. Não houve remédios mágicos: apenas uma economia de mercado concorrencial e sem barreira à entrada artificiais; um sistema fiscal economicamente eficiente; estabilidade política, social e fiscal; aposta na procura de investimento estrangeiro em indústrias de maior valor acrescentado; redução dos ónus fiscais que pesavam sobre o factor trabalho e aposta na melhoria da sua qualificação, produtividade e estabilidade das relações sociais.

Foi assim que a Irlanda passou de uma situação de bancarrota para a prosperidade que ostenta hoje.

Irlanda.jpg

O quadro que se segue é um gráfico representando a evolução do PIB e da Despesa Pública (DP) na Irlanda entre 1985 e 2002. Os valores estão a preços constantes. O DPb tem como fonte a OCDE e o DPa foi fornecido por um comentarista deste blogue.

IrlandaPIBDP.jpg

Publicado por Joana às 06:55 PM | Comentários (57) | TrackBack

junho 30, 2005

Produtividades

No DN de hoje, Sarsfield Cabral escreve que “no conjunto da economia, a produtividade horária em França é superior à que se regista nos Estados Unidos. Apenas acontece que os franceses trabalham menos horas do que os americanos”. Ora esta afirmação é simultaneamente verdadeira e falsa. Mas no que toca à avaliação mais objectiva da riqueza económica de cada um daqueles países, ela é falsa. Vejamos porquê e quais são os fenómenos que enviesam aquela medida:

Em primeiro lugar há o fenómeno do desemprego. O desemprego nos EUA é muito menor, não apenas pela flexibilidade do mercado, como pelo facto do regime de subsídios de desemprego incentivar a procura de novo emprego. Na Europa, o facto de os trabalhadores menos produtivos não estarem empregados melhora os valores da produtividade média do trabalho. Na Europa, é cada vez maior a percentagem de pobres no desemprego, enquanto EUA os pobres trabalham. Neste entendimento, os escalões salariais mais baixos da economia norte-americana fazem baixar a produtividade média do trabalho, mas aumentam a prosperidade da economia americana, porque são pessoas que produzem e não desempregados. Na Europa os menos qualificados estão, em elevada percentagem, no desemprego e não entram para o cálculo da produtividade do trabalho.

Todavia, o aumento do desemprego na Europa torna necessária uma redistribuição cada vez mais elevada através dos impostos e transferências sociais, por forma a manter níveis mínimos de rendimento. Esse ónus fiscal faz com que as famílias fiquem, comparativamente com os EUA, com menos rendimento disponível. Ou seja, o diferencial positivo de produtividade é retirado para redistribuir aos excluídos. A produtividade dos “insiders” é maior, mas o que lhes sobra, após impostos, é menor.

O segundo fenómeno é o do peso do sector público. Os EUA têm menos funcionários públicos, muitos dos quais auferem salários baixos. Em França a proporção dos funcionários públicos na economia é muito superior e auferem, em média, salários mais elevados. Como a produtividade é medida em termos de capitação do VAB (Valor Acrescentado Bruto) e este é medido pelos rendimentos distribuídos, qualquer aumento salarial do sector público aumenta a sua produtividade medida em termos macroeconómicos. Todavia este aumento seria artificial pois não corresponderia a um aumento da “produtividade física” da prestação de serviços. Na verdade, a produtividade do sector público, o seu efeito positivo ou negativo, deveria medir-se, de forma indirecta, pelo ónus que isso representa para o sector produtivo. Quanto mais ele custar, para o mesmo serviço que presta, mais dinheiro é cobrado, para o sustentar, às famílias e às empresas, o que faz aumentar os custos no sector produtivo, diminuir a sua competitividade perante o exterior e deteriorar a situação económica.

Portanto, a inclusão do sector público na medida da produtividade enviesa o resultado, pois os serviços que produz, exceptuando casos muito particulares, não são transaccionáveis no mercado internacional, ou seja, a sua produtividade não pode ser validada pela regulação do mercado.

A produtividade do trabalho é uma grandeza macroeconómica agregada que tem que ser vista com cautela. Por exemplo, Portugal tem conseguido manter alguma competitividade externa apesar de uma maior inflação e de outros factores negativos decorrentes do excesso de despesa pública. Se a produtividade do sector exportador tivesse aumentado ao ritmo da produtividade da economia portuguesa, já não tínhamos sector exportador. As empresas deste sector tinham falido e estávamos na ruína total. Isto significa que a produtividade do sector exportador aumentou muito mais que a média nacional.

Um país é rico, e com elevada produtividade, quando concorre no mercado internacional com competitividade nas áreas de elevada tecnologia e valor acrescentado. O que condiciona o valor da produtividade de um país é a produtividade dos sectores abertos ao exterior. Se em vez de sermos fortes em produtos de elevada tecnologia, formos fortes nos têxteis e calçado, a nossa produtividade alinhar-se-á pela produtividade comparada desses sectores. O resto da economia (os sectores mais ou menos abrigados) alinha sempre e necessariamente pela produtividade «macroeconómica» dos sectores abertos.

Este alinhamento sucede no sector público, mas também em restaurantes, cabeleireiros, etc. Os custos destes últimos serviços estão relacionados com o nível de rendimentos de um dado país, quer no preço da prestação, quer no custo do factor trabalho. O trabalho executado naqueles sectores é mais bem pago em Paris do que em Lisboa, porque tem a ver com o preço cobrado aos clientes. Sendo assim, a produtividade (macroeconómica) daqueles sectores será muito superior em França (o VAB é muito maior, pois os salários e as vendas per capita são muito mais elevados), apesar da produtividade, em termos físicos, ser, mais ou menos, semelhante à existente em Portugal.

Portanto, as afirmações de Sarsfield Cabral têm que ser lidas com muita cautela.

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junho 28, 2005

Sísifo e o Estado 2

Os Dois Paradigmas … ou o pedregulho diário encosta acima

Os dois paradigmas em presença na UE são: 1) a manutenção do peso do Estado na economia ou 2) a sua redução progressiva até que o seu papel seja, fundamentalmente, o de regulador. O paradigma 1), baseado no keynesianismo, foi dominante durante as 3 “gloriosas décadas” e mantém-se pela inércia de hábitos e mentalidades. O paradigma 2) baseia-se nas raízes da economia clássica (Adam Smith) e foi revitalizado pela Escola Austríaca de Hayek e Mises, os neoclássicos de Chicago e pelo liberalismo “mitigado” de Rawls.

O paradigma 1) baseia-se numa visão distorcida do keynesianismo. Ou melhor, está a aplicar a mesma receita para uma doença que é totalmente oposta. Na grande depressão houve uma crise do lado da procura e uma deflação. Estimular a procura pelo aumento do rendimento disponível nas famílias, através de obras públicas, como estradas, caminhos de ferro, ou mesmo “pirâmides”, aumentava o consumo e criava escoamento para a oferta excedentária das fábricas, o que provocaria uma dinamização do sector produtivo e a retoma do emprego privado. A guerra de 1939-45 não permitiu chegar a perceber se as prescrições de Keynes teriam ou não resultados sustentáveis. Economistas neoliberais garantem que não. Alguns afirmam mesmo que a retoma americana do tempo da New Deal não foi causada por aquela receita. Na sequência da guerra, as 3 “gloriosas décadas” impediram igualmente que se percebesse a validade ou não do modelo keynesiano. Ele manteve-se como uma verdade indiscutível, ensinada em todas as universidades. Keynes havia morrido em 1946 e nunca se saberá se ele manteria as suas teses numa conjuntura económica completamente diferente.

É preciso fazer justiça a Keynes. Ele foi um economista extraordinariamente lúcido. Em 1919 publicou um estudo sobre as consequências económicas da guerra (e dos tratados de paz) que se revelaram proféticas. As receitas que preconizou na década de 30 surtiram efeito na época. Ninguém sabe o que ele preconizaria na década de 80. Sabemos apenas que as receitas dos seus epígonos, que cristalizaram o seu pensamento, foram um desastre. Contestar o keynesianismo não é o mesmo que contestar Keynes.

O estudo a que fiz referência no texto anterior comparou a evolução da Bélgica (país dos autores do estudo) e da Irlanda. São dois países relativamente próximos em dimensão, ética laboral e níveis de qualificação e desenvolvimento. Mas são países que, a partir de certa altura, divergiram completamente nas suas políticas económicas e financeiras. A Irlanda tornou-se um dos exemplos do paradigma 2), enquanto a Bélgica se manteve como um dos muitos exemplos do paradigma 1).
SizeWealth.jpg
Até 1985 os dois países tinham trilhado caminhos idênticos em matéria de política económica e financeira e obtido um fraco crescimento económico, embora a Irlanda, que havia partido de uma situação mais desfavorável, tivesse um PIB cerca de 65% do PIB Belga e uma taxa de desemprego de 17% (10% na Bélgica). A partir de 1985 a Irlanda mudou completamente a política financeira. Em 3 anos a despesa pública foi diminuída de 20% e a carga fiscal aliviada radicalmente. A partir daí o crescimento irlandês situou-se, em média, nos 5,6% ao ano (entre 1985 e 2002), enquanto o crescimento belga se manteve nos 1,9% ao ano. Em 2003 a despesa pública constituía 51,4 do PIB Belga, enquanto na Irlanda tinha recuado para 35,2%.

A Bélgica tentou estimular a economia sem alterar o peso do Estado, com o método dos “pequenos passos”, agora reeditados por Sócrates e aclamados pela nossa comunicação social como medida de “elevada clarividência”. O resultado viu-se – um crescimento muito fraco e uma economia sem perspectivas.

O gráfico que se apresenta comparando a variação do peso do Estado e o crescimento entre os dois países ao longo do período 1980-2002 é muito sugestivo, pela diferença de ritmo de crescimento, a partir do ano em que houve inflexão da política irlandesa. A partir de 1985 o ritmo de crescimento da economia irlandesa foi impressionante, quando comparado com o crescimento belga (ou da UE em geral). Em 1985 a Irlanda era o 3º país mais pobre da UE15 e tornou-se o 2º mais rico (depois do Luxemburgo!).

Os gráficos em questão partem da base 100 em 1970. Nessa época a Bélgica era muito mais rica que a Irlanda. Nos dois gráficos seguintes apresento a evolução do PIB a preços correntes e do PIB a “paridade do poder de compra” (ppp) entre 1980 e 2004 para os dois países. De notar que o crescimento muito rápido do PIB a preços correntes, entre 2002 e 2004, deveu-se à desvalorização do dólar face ao euro. Foi um incremento nominal e não real. Os valores que apresento foram retirados das bases de dados do FMI.
PIB_Be_Ir.jpg
E no gráfico seguinte o PIB, em US$, em termos de paridade de poder de compra (ppp):
PIBppp_Be_Ir.jpg

Alguns dirão que houve influência dos investidores americanos, nomeadamente da comunidade irlandesa. Certamente que houve alguma influência. Mas o capitalismo não tem pátria. Se o proletariado se proclama internacionalista, só por hipocrisia se exigiria o inverso aos capitalistas. Muitos empresários portugueses têm transferido as sedes sociais de algumas das suas empresas para países com um sistema fiscal menos penalizador. E tudo indica, se a política actual prosseguir, que esse processo irá continuar. Portanto, a maioria dos investimentos americanos na Irlanda foi fruto da atractividade que esta oferecia e não aconteceu por motivos sentimentais ou patrióticos.
JobsTaxes.jpg
Ainda mais esclarecedora é a diferença de performance das duas economias em matéria de criação de emprego, comparando essa criação com os encargos fiscais sobre o factor trabalho. Entre 1985 e 2001 a Irlanda diminuiu esses encargos fiscais sobre os salários de 37% para 19,3%, enquanto a Bélgica manteve aqueles encargos praticamente constantes (passou de 46% em 1985 para 47,9% em 2001). Os encargos fiscais sobre o factor trabalho desmotivam todos os agentes económicos envolvidos. Desmotivam os empresários que se retraem na oferta de emprego e desmotivam os trabalhadores a fazerem qualquer trabalho suplementar.

A disparidade foi abissal. A partir de 1985 a Irlanda criou 31,2% de novos empregos, enquanto que a “política de pequenos passos” belga e de subsídios à criação de empregos, apenas produziu mais 7,6% de empregos, muitos dos quais no sector público! Seria um excelente aviso para Sócrates e Campos e Cunha se estes estivessem capazes de raciocinar, atarefados como estão, a contar pelos dedos os números do OR, que nunca mais batem certo.

Em 1985 a taxa de desemprego na Irlanda era de 17% (10% na Bélgica); em 2003 era de 4,6% (8% na Bélgica). Uma taxa de 4% representa o chamado desemprego friccional, o desemprego associado à rotação do factor trabalho. Ou seja, a Irlanda atingiu o pleno emprego.

O mais paradoxal em todo este percurso, é que, actualmente, o Estado irlandês dispõe de mais recursos que o Estado belga e consegue distribuir, em valor absoluto, mais recursos pela sua população, visto que a Irlanda é 31% mais rica que a Bélgica!

Ou seja, ao reduzir o peso do Estado na economia, a Irlanda encetou um percurso que, em 20 anos, a levou a ser o 2º país mais rico da UE (ou 1º, se não entrarmos em conta com o Luxemburgo, que é demasiado pequeno para constituir termo significativo de comparação), com pleno emprego, e com uma capitação da despesa pública semelhante à belga, conseguida pelo aumento da sua riqueza e não pelo aumento do peso do Estado, que se mantém nos 35%.

Publicado por Joana às 07:31 PM | Comentários (50) | TrackBack

Sísifo e o Estado

Ou o Peso Insustentável do Estado

A questão do peso do Estado na economia tornou-se o tipo de querela circular, em que regressam sempre ao local de partida, o que faz de mim uma émula de Sísifo. Sísifo era um herói grego que empurrava sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha. Enquanto repousava, a pedra rolava de novo pela encosta abaixo, até ao sopé da montanha. Não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.

Porque, ao que parece, tratou-se de um castigo de Zeus. Mas não, eu não acredito que, Zeus, lá dos Campos Elísios de onde pontifica, teria razão alguma para me punir assim (e daí …). Foi no Hades que essa punição ocorreu. Mas se no Hades era a gravidade que fazia rolar o pedregulho, neste blogue são alguns comentaristas cuja iliteracia não lhes permite captar os conceitos ou, pior, que sofismam as questões para responderem ad latere. No dia seguinte, quando abro o Semiramis, encontro o pedregulho no sopé do blogue …

No início de Maio, apresentei, em «Estado e Desenvolvimento 1 e 2», um estudo que mostrava que o peso do Estado num dado momento, medido em percentagem do PIB, influencia negativamente o crescimento subsequente e que quanto maior é o ritmo do crescimento do peso do Estado, maior é a desaceleração do crescimento económico. Ou seja, o crescimento económico é entravado pelo peso do Estado e pela rapidez com que esse peso aumenta. E estes resultados eram confirmados por um outro resultado que mostrava que o investimento reage negativamente ao peso do Estado.

Aliás, todos os estudos que têm sido realizados mostram uma forte correlação negativa entre o crescimento e a carga fiscal. Esses estudos foram ganhando maior precisão a partir do início da década de 90, quando se começaram a dispor de séries temporais mais longas e foram possíveis estabelecer comparações entre um maior número de países, expurgadas de efeitos marginais. Hoje vou apresentar alguns resultados de um estudo apresentado pela WorkForAll, em Março de 2005.
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Esses resultados indicam que os dois factores principais que causam uma baixa taxa de crescimento são o excesso de despesa pública e uma estrutura fiscal excessiva sobre o trabalho – impostos e encargos sociais líquidos. Em 25 causas possíveis que o estudo referido examinou, aqueles dois factores foram os que tinham maior impacte. Muito mais importante que o nível de educação e que a estrutura etária da população. Outra das constatações foi que um aumento do défice público ou uma baixa das taxas de juro não tinham qualquer efeito sobre o crescimento. Este resultado é importante numa altura em que alguns políticos, embora cada vez menos, insistem nas virtudes do défice como motor do crescimento da economia.
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Estes dois gráficos que relacionam o crescimento com a despesa pública e o ónus fiscal sobre o trabalho são extraordinariamente elucidativos. A despesa pública explica, ceteris paribus, 53% do crescimento económico e o ónus fiscal sobre o trabalho explica, ceteris paribus, 72% do crescimento económico. Ambos pela negativa. Estes resultados são significativos e são similares a um estudo que o FMI havia realizado para a Áustria, em Julho de 2004, embora os sacerdotes do Moloch, que normalmente vivem à custa das vítimas deste, prefiram refugiar-se na sua fé, que lhes serve de álibi, os transporta ao Nirvana divino e os tranquiliza sobre as suas responsabilidades para com a comunidade e para com as vítimas espoliadas.

Amanhã, enquanto espero que o Campos e Cunha acerte as contas do OR monstruoso, que nos vai afundar mais na recessão económica, analisarei mais alguns aspectos que considero relevantes sobre esta questão.

Por falar em Campos e Cunha, se este orçamento tivesse sido apresentado pelo governo de Santana Lopes, quantas dezenas de economistas (com a Teodora à cabeça) e fazedores de opinião já teriam sido chamados a Belém? Quantas horas de emissão, de jornalistas estarrecidos com tanta trapalhada, teriam decorrido? Quantas centenas de milhares de caracteres insultuosos e trocistas se teriam derramado pelas páginas dos jornais?


Ler ainda:
Sísifo e o Estado 2
Sísifo e o Estado 3
Estado e Desenvolvimento 1
Estado e Desenvolvimento 2

Publicado por Joana às 12:08 AM | Comentários (55) | TrackBack

junho 27, 2005

Sinais dos Tempos

Hoje, um gerente bancário telefonou-me excitadíssimo, explicando-me que tinham um novo produto, fabuloso. Em face do meu cepticismo, enviou-me a papelada por fax. O produto ostenta «China» no nome e está indexado ao Hang Seng China Enterprises (HSCE) que é o índice ponderado pela capitalização bolsista de empresas detidas pelo Estado Chinês e ao Dow Jones (DJGT). Tem um mínimo de remuneração garantido e um máximo que depende da overperformance do HSCE relativamente ao DJGT. Ou seja, especula com o potencial de crescimento chinês face ao crescimento ocidental.

Entre loas sobre o dinamismo económico chinês e sobre a forte centralização da política nas mãos do PC Chinês que ao aderir à economia de mercado (!!)…., etc., que criou condições para …, etc., num dos folhetos é apresentado um gráfico comparativo da evolução do HSCE e do DJGT desde Dez-99 até Abr-05, mostrando que o primeiro teve, sobre o segundo, uma overperformance de 164,62%. As restantes meia dúzia de páginas são pautas de música para violinos espargirem notas melodiosas sobre a excelência do investimento.

O que é interessante no gráfico é que a overperformance do HSCE sobre o DJGT ocorreu, quase integralmente, entre Agosto-03 e Dez-03. A partir daí as duas curvas são, praticamente, paralelas. Aliás, o máximo do HSCE foi justamente em Dez-03. O banco em questão atrasou-se … deveria ter emitido este produto em Abril de 2003. Em todo o caso, nada está perdido, nem para os eventuais investidores, pois pode acontecer outro pico daqui a algum tempo, nem para o banco, porque os sons arrancados aos violinos são tão exaltantes que este produto terá certamente bastante procura.

Ao ler este folheto, apercebi-me que o velho Adam Smith tem sempre razão, pois «cada indivíduo … ao tentar satisfazer o seu próprio interesse promove, frequentemente, de uma maneira mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretende fazer». Os agentes económicos (neste caso o departamento de marketing do banco) agem sob o incentivo dos seus interesses, mesmo entoando panegíricos a situações que violam as bases da sociedade que permite que os seus interesses e objectivos se manifestem livremente. Ou seja, para propagandear uma transacção típica de uma economia liberal, utilizam-se referências iliberais à forte centralização da política do PC Chinês. E com isso vão dinamizar o mercado das poupanças e, eventualmente, dar um pequeno empurrão à economia mundial (até porque este produto deve estar a ser comercializado noutros países). Como escrevia Mandeville, no início do século XVIII, «As qualidades mais vis, frequentemente as mais odiosas, são as mais necessárias para torná-lo apto a viver com o maior número. São elas que … mais contribuem para a felicidade e prosperidade das sociedades»

Ora é aquela forte centralização, que é sublinhada com entusiasmo, que me cria desconfianças. Não tenho a mínima confiança na intervenção de qualquer Estado na economia. Normalmente tem efeitos negativos ou mesmo calamitosos. Portanto, quando me falam na forte centralização da política nas mãos do PC Chinês que ao aderir à economia de mercado ..., eu fico na dúvida sobre se a próxima intervenção do PC Chinês não fará cair o HSCE a pique. Mas eu não tenho o perfil do investidor tipo a que estes prospectos se dirigem.

Num mercado, os agentes económicos têm comportamentos que podem ser estimados através de modelos explicativos que, normalmente, têm uma boa aderência à realidade, desde que introduzamos as variáveis com maior poder explicativo. Os Estados têm razões (não económicas) que a razão (económica) desconhece. Eu não consigo criar um modelo explicativo do comportamento político e económico do Estado Chinês nos próximos 6 anos (tempo de maturidade deste produto). Não consigo. Nem eu, nem ninguém.

Ou seja, o risco económico e financeiro de uma economia de mercado numa sociedade liberal pode ser avaliado dentro de limites com uma manga de precisão razoável. O risco económico e financeiro de uma economia de mercado dependente da forte centralização da política do PC Chinês é impossível de ser avaliado, a menos que eu pertencesse ao Politburo. E mesmo assim …

Publicado por Joana às 07:05 PM | Comentários (41) | TrackBack

maio 26, 2005

O Efeito dos Impostos

Muitos pensam que o aumento do IVA (ou do ISP ou sobre o Tabaco) penaliza apenas o consumidor. Não é verdade. Muitos julgarão que o Estado arrecada mais 2% do volume das transacções finais, no caso do IVA. Também não é verdade, embora o Estado estivesse desejoso que tal acontecesse. Que acontece então?

Na figura seguinte apresentam-se os dois casos limites e um caso intermédio.

Se a procura D for completamente rígida (inelástica), ela é uma recta vertical no espaço Preços-Quantidades (gráfico da esquerda), e um aumento do imposto que leva a oferta de S para St maximiza a arrecadação do Estado (rectângulo laranja), mantém o volume de vendas e o preço (antes de imposto) do produtor e o consumidor é que paga o total da factura. (Nota: em azul, o ponto de equilíbrio do consumidor e em roxo, o do produtor)
IVA_ISP_T.jpg

Se a procura for perfeitamente elástica (gráfico do centro) o Estado arrecada muito menos, e essa arrecadação acaba por ser paga pelo produtor. O consumidor apenas consumiu menos quantidades e não pagou nem mais um cêntimo.

Estas duas situações são absolutamente extremas. A procura nunca é absolutamente rígida nem absolutamente elástica. No gráfico da direita está apresentado uma situação intermédia. O Estado arrecada uma parte intermédia entre as duas situações anteriores, o volume de vendas e o preço do produtor têm valores igualmente intermédios, e o mesmo sucede com o dispêndio do consumidor.

Portanto quanto mais rígida for a procura de um bem, maior é o aumento do preço pago pelo consumidor e menor a queda do preço efectivamente recebido pelo produtor. E maior será a arrecadação de imposto pelo Estado.

Quanto às quantidades transaccionadas, se a procura for absolutamente rígida, mantêm-se. O seu mínimo ocorre no caso da procura absolutamente elástica. Nos comportamentos intermédios da procura, as quantidades transaccionadas variam entre aqueles valores extremos.

No caso dos combustíveis e do tabaco a procura não é absolutamente rígida, pois poderá haver diminuição de consumo e a “elasticidade de substituição” com combustíveis comprados em Espanha (por isso o aumento foi ligeiro) ou com tabaco contrabandeado (neste caso o aumento foi maior porque o Governo pensa que consegue controlar com mais eficácia o contrabando).

Nota: O IVA é um imposto sobre o valor. Logo a recta St não é paralela a S, mas diverge à medida que o preço aumenta. Mas este é apenas um exemplo ilustrativo porquanto, no limite, e dado o valor em causa (2%), a diferença não tem significado.

Nota 2: A translação da recta St relativamente a S está obviamente desproporcionada (os aumentos do IVA e do ISP são de 2%, e apenas o dos Tabacos é significativamente maior). Mas a ideia não foi obter um resultado quantitativo, mas dar uma ideia do comportamento genérico das variáveis em causa.

Publicado por Joana às 12:15 AM | Comentários (27) | TrackBack

maio 09, 2005

Moloch e a Mão Invisível

Ou a Razão do Poder contra o Poder da Razão: – 1) o Mercado do Trabalho

A Teoria Económica diz que a taxa salarial deve ser igual à produtividade marginal do trabalho. É injusto, mas está demonstrado. A Angelina Jolie ganha muitos milhões de dólares por filme. Porque não eu? Sinto uma terrível e mesquinha inveja. Vingo-me, mentalmente, pensando que se Angelina Jolie se candidatasse a um lugar na minha empresa, ganharia dez vezes menos que eu. É a malvadez daquela relação iníqua criada pelos caprichos satânicos da Mão Invisível.

É óbvio que aquela relação só se aplica a situações concorrenciais: no sector privado, entre os actores de Hollywood, nos craques da bola, nos treinadores poliglotas, etc.. Há outros sectores que não trabalham em concorrência, como o sector público. Mas nesse caso, a diferença entre a taxa salarial e produtividade marginal do trabalho é paga por todos nós. A caprichosa Mão Invisível regula o equilíbrio de preços do factor trabalho no sector privado. O poderoso Moloch fixa o preço do trabalho no sector privado e obriga os seus súbditos a cotizarem-se para pagarem a diferença.

Mas o Moloch, na sua divina providência, também entendeu impor restrições ao preço e mobilidade do factor trabalho no sector privado. Para proteger os trabalhadores, conforme os seus sacerdotes proclamam nas suas prédicas.

O salário mínimo foi instituído como meio de preservação das condições mínimas de dignidade e de qualidade de vida dos trabalhadores. Todavia, nos segmentos menos qualificados, ou entre os jovens que procuram o primeiro emprego, se o salário mínimo fixado administrativamente for superior à produtividade marginal do trabalho esperada, a procura de emprego diminui e haverá um excesso de oferta face à procura, ou seja, dá-se o fenómeno do desemprego. O excesso de oferta de mão-de-obra resolve-se pelo emprego de alguns trabalhadores com o seu rendimento acrescido da diferença entre o salário mínimo e o salário de equilíbrio, à custa da exclusão dos outros candidatos do mercado de trabalho.

Os sacerdotes do Moloch prometeram proteger a qualidade de vida dos trabalhadores. Criaram em paralelo um custo social do desemprego. Os sacerdotes do Moloch não operaram qualquer redistribuição entre ricos e pobres: com o salário mínimo limitaram-se a conseguir uma redistribuição de rendimentos entre famílias pobres - umas ficaram ligeiramente menos pobres e outras sem nada (ou com subsídios de desemprego).

Por outro lado promoveram o florescimento do mercado negro. E assim surge o trabalho clandestino no qual a taxa salarial é mais próxima do nível de equilíbrio, mas quase sempre inferior a ele, visto que existe um prémio de risco para o engajador e para o empregador, que receiam cair nas malhas legais. A produtividade marginal do trabalho será igual à nova taxa salarial (mais baixa) adicionada ao prémio de risco.

Portanto, os sacerdotes do Moloch ao prometerem proteger a qualidade de vida dos trabalhadores, aumentaram o flagelo social do desemprego, reduziram a taxa salarial dos que se viram forçados ao trabalho clandestino e apenas promoveram uma redistribuição de rendimento entre os mais pobres, a um nível mais baixo, porquanto o rendimento global é menor.

O salário mínimo funciona portanto como uma barreira à entrada que assegura o salário dos “insiders” à custa dos candidatos que se mantêm em situações de desemprego prolongado.

Adicionalmente, nos sectores menos qualificados, se os trabalhadores são pagos acima da sua produtividade marginal, essa situação não se poderá manter a longo prazo numa economia concorrencial e, mais cedo ou mais tarde, a empresa que os emprega perde competitividade, e fecha ou deslocaliza-se. Ou seja, mesmo os que ficaram transitoriamente menos pobres, mais tarde ou mais cedo acabam no desemprego.

Há um ponto positivo. Um salário mínimo superior à produtividade marginal do trabalho num dado sector, pode orientar a oferta de trabalho para sectores mais qualificados. Mas essa reorientação é um fenómeno a médio ou longo prazo, porquanto pressupõe uma melhoria de qualificação do factor trabalho.


Ler a continuação:
Moloch e a Mão Invisível 2

E, sobre este tema:
Estado e Desenvolvimento

Estado e Desenvolvimento (2)

Publicado por Joana às 08:58 AM | Comentários (41) | TrackBack

maio 06, 2005

Um pensamento para o fds

O antigo Egipto tinha o duplo privilégio, que sem dúvida explica a sua riqueza fabulosa, de possuir duas espécies de actividades, a construção de pirâmides e a extracção de metais preciosos, cujos frutos, pelo fato de servirem às necessidades do homem sem ser consumidos, não se aviltavam por serem abundantes.

Provavelmente julgam que este pensamento é meu ... se até escrevi, há dias os “Construtores de Pirâmides”!

Mas não. Quem escreveu aquilo foi John Maynard Keynes! E na Teoria Geral, a sua obra seminal. Keynes acreditava que o lucro dos novos investimentos diminuía pelo facto dos investimentos mais viáveis serem assumidos em primeiro lugar, deixando os outros para mais tarde. No fundo, Keynes não acreditava que as inovações tecnológicas proporcionassem uma contínua viabilização de novos investimentos. Vivia-se a Grande Depressão e havia muito cepticismo quanto ao futuro.

E, já agora, deixo a continuação, com a qual Keynes terminou o capítulo 10 – Propensão Marginal a Consumir e o Multiplicador

A Idade Média edificou catedrais e entoou cânticos. Duas pirâmides, duas missas de requiem, valem duas vezes mais que uma — o que porém não é verdade tratando-se de duas estradas de ferro ligando Londres a York. Portanto, assim nos mostramos tão razoáveis, e nos educamos de modo tão semelhante aos financeiros prudentes, meditando bem antes de aumentar as cargas "financeiras" da posteridade pela edificação das casas onde ela viveria, que já nos não é tão fácil escapar aos inconvenientes do desemprego. Temos de aceitá-los como o resultado inevitável de aplicar à conduta do Estado as máximas concebidas para "enriquecer" um indivíduo, permitindo-lhe acumular direitos a satisfações que ele não tenciona exercer em qualquer época determinada.

E no fim de semana também será de leitura obrigatória “Um Governo Derridiano” nos jaquinzinhos

Publicado por Joana às 07:47 PM | Comentários (16) | TrackBack

Mito do Estado Inovador

Aproveitando estar com as mãos na massa, não posso deixar de referir um post de há 2 semanas, que representa uma descoberta notável e original: Salvo raríssimas excepções ... não são os empresários que rompem conceitos. Não é das empresas que saltam as inovações. Não são os empresários que fazem a economia: eles guiam a respectiva locomotiva ... Quem faz a economia são os grupos sociais. Nos últimos séculos consubstanciados no Estado, ou Nação. É o Estado o motor, a locomotiva, da mudança. É a política, enquanto disciplina reguladora do social, que estipula os carris da economia.

A fé com que aquele sentença é proferida só é ultrapassada pela falta de fundamento. Desde Arquimedes, passando pela Revolução Industrial, até ao início da 2ª Guerra Mundial não conheço nenhuma invenção que tivesse origem no Estado ou nos «grupos sociais consubstanciados no Estado» (embora aqui seja forçada a reconhecer que não sei o que tal significa). E depois disso, aquelas que se iniciaram em centros de investigação públicos, ficaram a marcar passo até os privados as desenvolveram e inovarem as suas actividades.

Em primeiro lugar, antes de enveredar pelo assunto, convém afinar alguns conceitos. Há que distinguir entre a ideia ou a concepção de base e as diferentes fases do processo inventivo, até à sua exploração industrial. Aqui convém separar o conceito de inovação do de invenção. A inovação é não apenas inventar um produto ou um processo, mas adaptá-lo à sua utilização ou descobrir novas utilizações para ele. E também adaptar inovações produzidas por outros na sua actividade. E isto tanto para bens como para serviços.

Tomemos o caso da tracção a vapor. Quem descobriu o efeito propulsor do vapor foi Hierão de Alexandria que, sobre o assunto escreveu um tratado, Pneumatica, há 2.100 anos! Todavia a máquina a vapor foi reinventada por James Watt em 1763. E a partir daí, associada aos anteriores inventos da indústria têxtil (Spinning Jenny, por exemplo) e aplicada ao transporte ferroviário (primeiro) e marítimo (depois) foi o motor da revolução industrial. A concepção original de Hierão ficou restrita a alguns “mecanismos lúdicos” propostos no Pneumatica, sem qualquer sequência. A invenção de Watt e as invenções de Hargreaves e Arkwright tiveram rapidamente aplicação tecnológica. Hierão apenas inventou. A tecnologia e o baixo nível de necessidades de então não incentivaram quaisquer desenvolvimentos. As invenções de Watt, Hargreaves e Arkwright traduziram-se imediatamente em inovações sucessivas e foram o motor da Revolução Industrial.

Durante esse período não foi despiciendo o papel do Estado, mas nunca o de «locomotiva, da mudança» ... apenas o de ajudar à manutenção dos carris. Por exemplo, a indústria química alemã apercebeu-se que a manutenção da sua competitividade dependia da sua própria capacidade de inovar. Para isso precisava que as suas descobertas não fossem copiadas, para que os outros não ficassem com o produto dos seus investimentos em I&D. O Estado alemão ajudou a sua indústria promulgando, em 1877, a Patentgesetz para garantir o direito de propriedade intelectual. Todos nós sabemos a capacidade de inovação que os grandes laboratórios alemães, Bayer, Hoechst, etc., têm hoje em dia. Aliás, a indústria farmacêutica vive da sua capacidade de investigação e desenvolvimento, e tem laboratórios próprios, embora, de há alguns anos para cá, mantenha igualmente diversos contratos de investigação conjunta com universidades públicas e privadas. Mas isto não aconteceu apenas na Alemanha, pois rapidamente se alargou aos outros países, pelo Tratado de Paris assinado em 1883. Em diversas indústrias as Economias de Escala são elevadas justamente pelos vultuosíssimos gastos em I&D a que obrigam.

É injusto o desdém, naquele post, por todos esses desenvolvimentos : «o "empresário" agente de mudança do século XIX, de Edison a Ford, é uma imagem romântica hoje desbotada no album de família dos empresários». Edison, para além dos seus inventos, criou o centro de investigações da General Electric que hoje tem mais de mil investigadores. O transístor foi inventado nos Laboratórios Bell, herdeiro do inventor das comunicações telefónicas. E assim sucessivamente. Não são imagens desbotadas.

É um facto que com a 2ª Guerra Mundial e com as necessidades que esta criou, os Estados beligerantes promoveram centros de investigação dedicados ao esforço bélico. E na continuação, com a guerra fria, os centros de investigação estatais prosseguiram as suas investigações no âmbito da indústria de armamento e aero-espacial. Mas, mesmo nestas indústrias, muitas descobertas e inovações foram realizadas em empresas privadas, trabalhando como contratantes.

E por isso mesmo continuam a ser as empresas as responsáveis por mais de 70% dos inventos patenteados no mundo, sendo que 96% das patentes industriais registadas o foram por entidades sedeadas nos países desenvolvidos. Como o peso das universidades e centros de investigação privados é elevado nestes países, seguramente muito menos de 20% das patentes foram da lavra do sector público (universidades e centros de investigação). São as empresas que têm arriscado os vultuosos investimentos em investigação, embora haja igualmente, quer sob a forma de subsídios, quer sob a forma de isenções fiscais, importantes apoios governamentais. Todavia isto não tem nada a ver com ser “o motor, a locomotiva, da mudança”.

Um autor brasileiro(*) estabeleceu, recentemente, uma comparação sugestiva. A Coreia do Sul dispõe de 90 mil cientistas, praticamente os mesmos que o Brasil. Mas, na Coreia, cerca de 80% dedicam-se a fazer pesquisa e desenvolvimento na indústria, enquanto, no Brasil, a indústria não absorve mais que 10% desses investigadores. Essa disparidade explica, segundo o autor, o alto volume de patentes registadas pelos coreanos no ano anterior à publicação do artigo - mais de 3.400, contra apenas 113 patentes brasileiras. Esta diferença abissal, é o que separa a investigação conduzida pelo sector privado e a investigação conduzida no sector público ... a locomotiva.

Como é possível falar no Estado como o motor do progresso e da inovação quando 83% dos investigadores nos EUA trabalham no sector empresarial privado? Mesmo na UE, onde o papel do Estado é muito maior, 50% dos investigadores trabalham nesse sector. Com a agravante, no caso europeu, de que há um enorme défice de investigadores e uma “fuga de cérebros” permanente para os EUA.

As questões ligadas à inovação e invenção também concorreram para o colapso soviético. O esforço armamentista e espacial americano era coordenado por agências estatais, mas desenvolvido, em parte, por empresas privadas, e as inovações destas empresas difundiam-se pelo tecido industrial, tendo aplicações noutros bens. Na URSS ficavam circunscritas às entidades encarregadas daquelas indústrias. A sua eficiência na economia da URSS era incomparavelmente inferior à da economia dos EUA. A situação tornou-se insustentável com a irrupção da informática. A informática para se desenvolver com a rapidez actual, precisa de uma ampla difusão permanente de conhecimentos. Há milhões de utilizadores de informática que concorreram, e continuam a concorrer, para o seu desenvolvimento. Nem o Bill Gates consegue colocar nos carris esses milhões de furiosos da informática. Esta difusão permanente e acelerada de inovações é incompatível com uma sociedade baseada no papel dirigista do Estado.

E a visão do Estado como locomotiva do progresso é herdeira da mentalidade da economia dirigista soviética que conduziu à sua implosão.

Isto não invalida o papel do Estado, quer no financiamento de Universidades e Centros de Investigação públicos, quer na aquisição de bens e serviços de empresas de alta tecnologia. Mas isso não é “o Estado o motor, a locomotiva, da mudança”. Será talvez o de lubrificar os carris e fornecer algum combustível para a máquina.

Quanto à proposição “É a política, enquanto disciplina reguladora do social, que estipula os carris da economia. São a necessidades do Estado que abrem e fecham os mercados.”, confesso que julgava que as desastrosas experiências passadas tivessem trazido alguns ensinamentos.

(*) cf Brito Cruz - O lugar da inovação no desenvolvimento

Publicado por Joana às 12:05 AM | Comentários (90) | TrackBack

maio 05, 2005

O Mito do Estado

No (o vento lá fora) tem havido algumas profissões de fé no Estado. Têm 3 coisas em comum: a veemência, a fé e a ausência de fundamentação científica. Comecemos por esta citação: “Tomemos o ensino, como podíamos tomar a rede viária ou a Imprensa. Sob o pretexto de que o sistema estava falido, sem dúvida alguma devido à irresponsabilidade do Estado para o gerir, abriu-se o ensino superior à "iniciativa privada". Efeitos: o ensino superior não só não melhorou como globalmente dá hoje piores resultados; a grande maioria das universidades privadas está tecnicamente falida”.

Comentário: Portugal é, depois da Finlândia, o país da UE que investe mais na educação em termos do PIB. Portugal gasta mais 50% em Educação que a média europeia e tem o mais baixo nível de educação da UE. Portanto o sector público do ensino não está falido apenas porque é pago pelos contribuintes, por todos nós. Em segundo lugar as Universidades privadas foram-se criando, algumas com o compadrio do poder, numa época em que o sector público não conseguia satisfazer a procura. Entretanto a oferta pública aumentou e os subsídios às privadas diminuíram. É óbvio que as Universidades Privadas não podem concorrer com as públicas: são em média 10 vezes mais caras para os utentes. A menos que se imponham pela qualidade – e apenas duas ou três o conseguem fazer, tal a diferença de propinas.

E depois acrescenta, consternado, com as consequências desta situação que “a sociedade (representada pelo Estado) perante um dilema terrível: ou as deixa fechar pelo curso inexorável dos tempos, com alguns custos políticos (governo que o faça fica com esse ónus), ou as mantém artificialmente com os balões de oxigénio das notas de acesso mais baixas”.

Eu estou mais consternada com o custo exorbitante do nosso sistema de ensino, que se não fosse eu e muitos outros pagarem para ele, já teria falido há algum tempo. Mas para o pagarmos sobrecarregamos o tecido produtivo com impostos e levamos as empresas à falência. Os defensores do peso do Estado estão convencidos que o dinheiro que ele custa, aparece por obra e graça do Espírito Santo (a 3ª pessoa da Trindade e não o Banco!). Não é verdade – ele sai do nosso bolso. É o nosso bolso que paga o Estado, a sua ineficiência e evita, não sei quanto tempo ainda, que ele vá à falência. (o vento lá fora) está preocupado com a possibilidade de falência dessas universidades privadas. Eu não estou. O corpo docente de parte delas é constituído, em muitos casos, por “turbo-professores” que ficarão, resignados, reduzidos às universidades públicas. Estou mais preocupada com o desemprego e a desaceleração económica gerados na indústria pelo gigantismo do Estado (ver aqui e aqui). Aí não há turbo-empregados. Há gente que fica em desemprego de longa duração.

Quanto “aos manuais escolares” julgo que há um total equívoco. Eles sempre foram produzidos por editoras privadas. O Estado não se alheou. Foi exactamente o contrário que ocorreu. É o Estado que altera constantemente os currículos e que introduz o caos naquele mercado. As editoras limitam-se a tabelar os livros adicionando um prémio de risco para o caso do ministério ou das escolas mudarem de ideias. Um manual escolar está em permanente risco de se tornar num mono e a editora de ficar com dezenas de milhares de exemplares em stock. Não é alheamento ... é uma acção nociva do Estado.

Quanto ao SNS, (o vento lá fora) afirma que “Está por provar que a gestão hospitalar privada seja a solução”. Concordo. Todavia a situação de descontrolo orçamental do SNS está provada e tem que acabar, quer seja com privados, com hospitais SA ou com hospitais EPE. E isso é o âmago da questão. (o vento lá fora) afirma que os privados não são solução (embora antes tenha afirmado que tal está por provar) porque “a saúde não é uma actividade lucrativa”. Esta afirmação é apenas uma tirada moralista. O abastecimento de água, o tratamento de efluentes e a recolha e tratamento do lixo também não eram actividades lucrativas, e muitas delas foram concessionadas a privados porque estes as fazem com preço mais baixo, e ainda conseguem obter lucro.

A ideia do lucro como pecado é uma tradição escolástica, dos tempos de S Tomás de Aquino. Se uma entidade me prestar um serviço, com a mesma qualidade, e a um preço inferior, não me importo que ela possa ter lucro. É o prémio por ela prestar dois serviços: o serviço em si, e a eliminação do desperdício social anterior. Claro que há que haver cuidado com o contrato de concessão e com as obrigações nele consignadas e constituir uma entidade reguladora que vele pelo cumprimento contratual e pelo andamento da concessão. Anteriormente foram construídas centenas de ETA’s e ETAR’s pelo sector público que ou nunca funcionaram, ou deixaram de funcionar ao fim de pouco tempo. Isto sim ... é desperdício. Eu prefiro o pecado do lucro a deitar dinheiro à rua.

Em matéria de Comunicação Social não vou discutir com um “insider”. Só posso dar o testemunho de leitora que não é abonatório, embora provavelmente por outras razões.

Mas o paradoxal é que, quando confrontado com a sua relação com o Estado, conclua que “o Estado é mau. Hoje em dia não é pessoa de bem”, que foi por “ter deixado chegar a este ponto de gordura paralisante que a sociedade passou a demandar a sua desestruturação, em benefício do sector privado”. Sobre isso estamos de acordo. Todavia lembro que essa “demanda” sempre foi objecto da Ciência Económica até à actualidade. As próprias receitas keynesianas de aumento de despesa pública referiam-se a circunstâncias muito específicas, completamente diversas das existentes no pós-guerra. E referiam-se a investimento público e não ao aumento estéril da burocracia e das sinecuras. E se o keynesianismo é hoje atacado, é por se tentarem usar as suas receitas em circunstâncias completamente diversas (embora também seja atacado por razões de capelinhas científicas). O que aconteceu entretanto foi que as sociedades ocidentais criaram um monstro (no caso português, além de monstro é totalmente ineficiente) que não conseguem dominar e de que se arriscam a serem vítimas. E há uma progressiva tomada de consciência disso à escala do mundo desenvolvido.

Todavia quando (o vento lá fora) afirma : «Mas agora temos um novo problema: o sector privado também foi incapaz de responder aos desafios como se desejava e impunha» está a esquecer-se de várias coisas. Em primeiro lugar, o peso do Estado é ele próprio um entrave ao desenvolvimento (ver os meus posts * e * e os estudos * e *). Em segundo lugar, e no caso português, há uma história espúria de dependência dos empresários relativamente ao Estado (contratos públicos, condicionamento industrial e outras formas de protecção anti-concorrencial, etc.); levantar aquela questão é o mesmo que dizer: este tóxico-dependente não está a ter um bom desempenho, o melhor é continuar a drogá-lo. Em terceiro lugar, e apesar de ser «incapaz de responder aos desafios como se desejava e impunha», é ele que paga o Moloch estatal. É do sector produtivo que, directa ou indirectamente, sai o financiamento da despesa pública, que já ultrapassou 50% do PIB. É ele que tem que competir com a globalização que nos bate à porta e arca ainda por cima com a ineficiência do Estado, enquanto o sector público se permite ignorar as regras da eficiência e só ainda não faliu, porque esse «sector incapaz de responder aos desafios», continua a ser capaz de o sustentar.

Os meus parabéns, todavia, pela frase final, que é uma conclusão genial face ao conteúdo do texto: «Vamos em Portugal continuar a viver tempos difíceis e de desorientação geral».


Ler a continuação:
Mito do Estado Inovador

Publicado por Joana às 10:59 PM | Comentários (11) | TrackBack

maio 03, 2005

Estado e Desenvolvimento (2)

Keep it simple, stupid

Os números que indiquei no post de ontem têm poder explicativo e mostram que o peso do Estado num dado momento, medido em percentagem do PIB, influencia negativamente o crescimento subsequente. Mostram igualmente que quanto maior é o ritmo do crescimento do peso do Estado, maior é a desaceleração do crescimento económico. Ou seja, o crescimento económico é entravado pelo peso do Estado e pela rapidez com que esse peso aumenta. E estes resultados são confirmados por um outro resultado que mostra que o investimento reage negativamente ao peso do Estado. E estas conclusões apoiam-se mutuamente – se o investimento reage negativamente, afecta obviamente o crescimento económico.

É óbvio que as equações de regressão estimadas só são válidas dentro de certos limites. Se não houvesse quaisquer despesas do Estado (G=0) o crescimento não seria 7,72% ao ano, nem o investimento 28,4% do PIB. Provavelmente não haveria investimento e o país estaria num caos. O Estado tem que existir para assegurar a protecção dos cidadãos e dos seus bens, a aplicação da justiça, a soberania nacional e evitar que no processo de funcionamento da economia surjam situações de violação das regras da concorrência, suprimindo as barreiras que limitam a liberdade económica, nomeadamente aquelas que resultam das tentativas de agentes económicos de criarem cartéis, barreiras à entrada num dado mercado, etc.

Por outro lado, o Estado deve fornecer serviços que “organizem” as desigualdades sociais e económicas de forma a trazer aos mais desfavorecidos melhores perspectivas e a serem compatíveis com o objectivo permanente da igualdade das oportunidades. Ou seja, equidade na política de educação, segurança social, saúde, infra-estruturas públicas, etc.. Todavia aqui o Estado tem que evitar a tentação do igualitarismo, que conduziu, pouco a pouco, aos modelos sociais absurdos e em vias de falência. Não é a igualdade que é importante, mas sim a equidade. Este princípio é compatível com um aumento da desigualdade. Pouco importa que o rico se torne muito mais rico se o pobre se tornar menos pobre. Portanto o Estado deve definir com rigor o seu “core business” e não se dimensionar para além do aceitável.

O Estado deve ater-se ao princípio KISS: keep it simple, stupid.

O estudo apresentado ontem refere-se a países com alguma identidade: democracias estáveis onde existe o primado do direito e com níveis de desenvolvimento e organização social sem diferenças abissais entre eles. Por isso, a introdução de variáveis adicionais, tais como a variação do número de anos de escolaridade e da taxa de inflação revelaram-se, segundo os autores, sem poder explicativo.

Nesse sentido o estudo em causa alargou o leque de países para 60, incluindo os da OCDE. Não foram indicados os países em causa, mas presume-se que foram aqueles para os quais era possível obter dados fiáveis. Foram excluídos os países da antiga URSS e da Europa de Leste, bem como a China. Mesmo assim, o período de análise cingiu-se a 1980-1996, por dificuldade em obter dados anteriores.

Foram introduzidas mais algumas variáveis independentes interessantes:

1) dados sobre a segurança da propriedade e do primado da lei: riscos de expropriações; riscos de violação contratual, etc. Os dados foram obtidos a partir de uma empresa internacional de análise de risco. Como é usual em estatística não paramétrica, aquelas indicações foram quantificadas com scores de 1 a 10. Designei por Π essa variável. Simultaneamente introduziram outra variável, relativa à variação daqueles scores ao longo do período em análise – ΔΠ.

2) Foi introduzida uma variável para avaliar os efeitos da inflação sobre o crescimento. Os autores escolheram o desvio-padrão da taxa inflação de inflação, o que me parece razoável, porquanto o mais importante, para um agente económico, é a incerteza associada a este fenómeno. Designei-a por σi.

3) Foi introduzida ainda uma outra variável representativa da escolaridade média dos indivíduos de idade superior a 25 anos (E). Embora o número de anos de escolaridade não seja suficiente, pois não entra em conta com a qualidade do ensino, acaba por ser uma boa variável proxy. Em princípio os países com mais anos de escolaridade terão um ensino de melhor qualidade (ou pelo menos não inferior).

4) A variável ΔG foi subdividida em 3 variáveis – ΔG1 (variação de G entre 1980 e 1985); ΔG2 (variação de G entre 1985 e 1990); ΔG3 (variação de G entre 1990 e 1995).

Foram estimadas 4 equações de regressão múltipla

(1) ΔY = – 8,27 – 0,62xG – 1,15x ΔG1 – 1,15x ΔG2 – 0,68x ΔG3 + 1,37xΠ + 1,46x ΔΠ – 0,82x σi
R2= 0,48

(2) ΔY = – 8,72 – 0,49xG – 1,17x ΔG1 – 0,97x ΔG2 – 0,60x ΔG3 + 1,30xΠ + 1,36x ΔΠ – 0,57x σi + 0,61xE
R2= 0,54

(3) ΔY = – 8,81 – 0,42xG – 1,01x ΔG1 – 0,83x ΔG2 – 0,31x ΔG3 + 1,13xΠ + 1,25x ΔΠ – 0,68x σi + 0,085xI
R2= 0,49

(4) ΔY = – 8,98 – 0,40xG – 1,09x ΔG1 – 0,81x ΔG2 – 0,40x ΔG3 + 1,17xΠ + 1,25x ΔΠ – 0,52x σi + 0,55xE + 0,048xI
R2= 0,54
DG_Table5.jpg
Estes resultados confirmam tudo aquilo que tenho escrito, em quase dois anos, neste blog.

Em primeiro lugar os estimadores com maior significado estatístico são os que se referem ao risco que pende sobre a propriedade e sobre o cumprimento dos contratos. Quanto menor é o risco, maior é o crescimento. Já sublinhei aqui diversas vezes a importância do bom funcionamento da justiça no desenvolvimento da nossa economia. Um país de caloteiros insolventes não é atractivo para um investidor.

Em segundo lugar o peso do Estado (G) e as variações desse peso têm um efeito fortemente negativo sobre o crescimento e os estimadores dos respectivos coeficientes têm um elevado nível de significado, excepto os relativos a ΔG3, o que é compreensível, visto que os seus efeitos ainda não se fizeram sentir completamente. É evidente que deve haver alguma multi-colinearidade entre estas 4 variáveis e a repartição do peso da influência de cada uma no crescimento económico, indicada nas equações, pode estar enviesada por esse fenómeno. Mas isso não invalida a acção conjunta destas variáveis – o nível da despesa pública tem uma influência preponderante no crescimento e age negativamente, entravando-o. Este é um resultado incontornável.

A variação dos anos de escolaridade age positivamente e tem algum significado estatístico. Enquanto isso, e como seria expectável, o risco de variações da taxa de inflação age negativamente no crescimento, embora o significado estatístico do estimador seja baixo.

Uma última palavra sobre o Investimento. Tem um efeito positivo, mas um significado estatístico baixo. Eu atribuo isso ao efeito da multi-colinearidade, visto haver uma forte correlação (negativa) entre o investimento e as variáveis relativas à despesa pública. O que é importante é haver uma sólida relação entre crescimento e despesa pública (negativa) e entre crescimento e investimento (positiva). É menos importante saber como essa relação se “reparte” em termos dos estimadores dos respectivos coeficientes.

Resta a questão da optimização do peso do Estado. Os autores concluem que um valor de 15% é a dimensão óptima. Todavia não entram em conta com as pensões de reforma e o serviço de saúde. É certo que estes dois serviços podem ser prestados por entidades externas, todavia o princípio da equidade que eu referi acima obriga a que o Estado tenha uma intervenção importante nessas áreas, mesmo que apenas complementar. Em Portugal, em 2004, aquelas despesas representavam cerca de 24% do PIB, embora haja, como se sabe, uma enorme ineficiência do Estado. Admitindo um valor de 20%, ter-se-ia um peso do Estado no PIB de cerca de 35%. Com este peso, e admitindo a validade das equações deduzidas no post anterior, Portugal poderia ter um crescimento da ordem dos 3,7% a 4%, mantendo o âmbito das prestações sociais.

Outras acções teriam de ser tomadas porque, como se viu, a despesa pública apenas explica 42% do crescimento, nomeadamente pôr a justiça a funcionar devidamente e aumentar drasticamente a escolaridade média.

Resumindo: Basta reformar a administração pública, reduzindo-a e melhorando o seu funcionamento, e privatizar alguns serviços e empresas ainda desnecessariamente a cargo do Estado.

Publicado por Joana às 10:51 PM | Comentários (24) | TrackBack

maio 02, 2005

Estado e Desenvolvimento

Uma mentira repetida torna-se verdade, pensavam os chefes nazis. É um facto. Todavia torna-se verdade para um número cada vez mais reduzido de pessoas. Os comícios dos primeiros de Maio, onde os líderes sindicais repetem os mesmos chavões, receitas que levaram à bancarrota onde foram aplicadas, presenciados por cada vez menos assistentes cada vez menos entusiasmados, são prova inequívoca disso. Hoje vou dissecar a teoria de João Proença de que "a obsessão pelo défice do Orçamento de Estado" estava a arrastar o País "para um ciclo vicioso de crise económica e de desemprego", que ele havia enunciado há mais de um ano e que dava como provada pelo aumento do desemprego entretanto ocorrido. Esta relação causa-efeito faz lembrar o episódio do cientista e da rã.

Na realidade o problema põe-se inversamente. Foi a política de aumento continuado da despesa pública conduzida pelos governos anteriores, com especial ênfase nos governos de Guterres, que criou as condições "para um ciclo vicioso de crise económica e de desemprego". A “obsessão pelo défice do Orçamento de Estado" apenas tentou, embora convenhamos que de uma forma inábil, inverter aquele processo.

Três economistas reputados apresentaram, há cinco anos, um estudo (Nota 1) analisando o crescimento de 23 países da OCDE durante 37 anos, entre 1960 e 1996, ou seja 23x37=851 observações, estabelecendo uma regressão entre aquele valor, tomado como variável dependente, e o peso do Estado, expresso pela percentagem da despesa pública relativamente ao PIB(Nota 2).
DG_Table1.jpg

Nos quadros seguintes estão os resultados obtidos. O histograma do primeiro quadro é significativo. Quanto maior o peso da despesa pública num dado Estado, no início de uma dada década, menor o crescimento económico desse Estado, nessa década.

No segundo quadro apresenta-se a nuvem de pontos e a recta de regressão. A função estimada é:

(1) ΔY = 7,14 – 0,10xG

O R-quadrado igual a 0,42, indica que 42% do crescimento é explicado por aquela variável. A estatística t = 8,1 indica um elevado nível de significância do estimador do coeficiente de G (a variável é significativamente diferente de zero com probabilidade superior a 99%). Ou seja, podemos concluir com uma elevada segurança estatística que quando a despesa pública tem um aumento de 10% em termos do PIB, o crescimento económico diminui em 1%. E isto é um resultado que tem em conta o comportamento de 23 países ao longo de 37 anos. Não se refere apenas a um país ao longo de 37 anos, nem a 23 países num dado ano.
DG_Table2.jpg
E chamo a atenção para o facto de que quanto mais elevado é o peso do Estado, menor é a dispersão das observações face à recta de regressão. Basta olhar para o segundo quadro que se identifica essa situação. O aumento do peso do Estado torna-o uma causa cada vez mais significativa da diminuição do crescimento económico.

Outra adenda significativa. Como o estudo se refere a dados até 1996, estão excluídos os recentes desenvolvimentos provocados pela globalização e pela crise dos Estados sociais. Além disso, parte dos dados refere-se às 3 gloriosas décadas em que aqueles países tiveram elevados crescimentos e dominavam económica e comercialmente o mundo. Ou seja, se o estudo tivesse incluído as observações até 2004, provavelmente o estimador do coeficiente da variável G seria maior em valor absoluto. Por outro lado, ninguém pode argumentar contra a validade do estudo baseando-se no “ruído” destes últimos anos.

Aqueles autores adicionaram, em seguida, mais duas variáveis independentes – a variação percentual da despesa pública ocorrida em cada década (ΔG) e o investimento em percentagem do PIB (I). Os resultados estão no quadro seguinte (Table 4)

As equações são:

(2) ΔY = 7,724 – 0,11xG – 0,046x ΔG

(3) ΔY = 5,365 – 0,099xG – 0,055x ΔG + 0,087xI
DG_Table4.jpg
Houve uma ligeira melhoria do poder explicativo (notar que o R-quadrado foi ajustado ao aumento do número de variáveis) e os estimadores têm um nível de significado elevado, embora seja de admitir uma provável existência de multi-colinearidade (as variáveis independentes não são independentes entre si e pode haver erros na “repartição” dos coeficientes entre si) e auto-correlação (há séries temporais o que pode provocar correlação entre grupos de séries de observações ordenadas no tempo). Todavia estes efeitos não alterariam os resultados globais, quanto muito influenciariam ligeiramente os coeficientes dos estimadores e o seu peso relativo.

A equação (2) mostra que o crescimento não diminui apenas com o peso da despesa pública, mas também com a rapidez do crescimento dessa despesa. Esse fenómeno explica o agravamento da crise económica a seguir ao descontrolo da despesa pública guterrista. Não aconteceu por acaso, ou apenas pela conjuntura internacional. É um efeito normal de um erro financeiro e económico. A conjuntura internacional apenas agravou esse efeito.

Quanto ao investimento, equação (3), favorece o crescimento económico, como seria evidente. Todavia, tem um poder explicativo estatisticamente menor que o peso da despesa pública, e isto é importante, para compreender a análise subsequente.

Uma quarta regressão foi efectuada tomando I como variável dependente e G como variável independente. O resultado, que está na mesma tabela, conduziu à seguinte equação de regressão:

(4) I = 28,4 – 0,159xG

O R-quadrado igual a 0,22, indica que 22% do investimento é explicado por aquela variável. A estatística t tem um valor elevado (p>99%). Portanto quando a despesa pública tem um aumento de 10% em termos do PIB, o investimento diminui em 1,59%. O aumento da despesa pública desincentiva o investimento.

Se os líderes sindicais não vivessem no Parque Jurássico, deveriam debruçar-se sobre estes resultados. O aumento do peso do Estado desincentiva o investimento e sem investimento não há criação (ou mesmo manutenção) de empregos. E, por via disso, mas não só, o aumento do peso do Estado é um entrave ao crescimento económico e, obviamente, ao nível de emprego. Os líderes sindicais fazem reivindicações que contrariam os objectivos com que acenam aos trabalhadores.

Mas não são apenas os líderes sindicais a viverem no Parque Jurássico. Jorge Sampaio afirmou ontem na Figueira da Foz que «Não fazer as coisas porque não há dinheiro é atitude de país rico e nós não somos um país rico». Na sua linguagem de Pitonisa de Delfos, Sampaio disse uma verdade sem intenção: meter-se a fazer coisas sem dinheiro e sem avaliar o rácio benefício-custo desse empreendimento é uma aventura típica de um país subdesenvolvido que não percebe como há-de sair dessa situação de baixo desenvolvimento. Sampaio continua sem estar consciente da importância da diminuição do peso do Estado no desenvolvimento do país.


(1) The scope of government and the wealth of nations - James Gwartney, Randall Holcombe, and Robert Lawson, Cato Journal, Vol. 18, No. 2 (Fall 1998)

(2) No que respeita a este indicador transcrevo esta nota dos autores: «Throughout this paper, total government expenditures as a share of GDP are used to measure the size of government. Total government expenditures include spending on government consumption, transfers and subsidies, net interest on outstanding debt, and capital goods. Previous cross-country studies have generally used government consumption (or central government expenditures) as a share of GDP to measure the size of government. While those figures are easier to obtain and available for more countries, they are often highly misleading. The government consumption figures substantially understate the size of government for countries with either (a) large transfer and subsidy sectors or (b) a high level of government investment. Similarly, the central government figures will understate the size of government for countries (for example, United States and Switzerland) where substantial expenditures are undertaken at lower levels of government. Thus, the total government expenditure figure is both a more accurate and more comprehensive indicator of government size».

Publicado por Joana às 10:32 PM | Comentários (48) | TrackBack

abril 21, 2005

Decapitar o Mensageiro

O movimento anti-globalização continua pujante. Existe apenas uma diferença subtil – há anos, grupos radicais organizavam manifestações maciças contra os líderes políticos dos países mais ricos, acusando-os de promoverem a globalização com o intuito de explorarem o terceiro mundo e sublinhavam esse repúdio vandalizando as cidades onde aqueles líderes se reuniam; agora imprecam irados contra a invasão dos produtos provenientes do terceiro mundo que exploram os países ricos, e exigem que estes sejam protegidos dessa globalização pérfida. Em qualquer dos casos o culpado é o mesmo: o neoliberalismo. O neoliberalismo é acusado de ser e de não ser.

Os economistas não inventaram a globalização. Têm-se limitado a estudá-la e a deduzir os seus efeitos. A globalização começou com as descobertas da América e do caminho marítimo para a Índia e foi progredindo até ter atingido um ponto alto nas vésperas da 1ª Guerra Mundial. Durante essas épocas, os economistas foram produzindo teorias para explicarem o funcionamento das economias e deduzirem as formas dos Estados obterem ou produzirem uma maior riqueza – mercantilistas, fisiocratas, clássicos ingleses e históricos alemães, socialistas, etc. – mas não foram agentes do processo. Nas naus de Vasco da Gama e de Colombo não há indicação da existência de economistas. No Estado-Maior de Lord Clive também não foi detectada a presença de economistas. Quando Bonaparte, no Egipto, antes da batalha das Pirâmides, ordenou “Burros e sábios ao centro”, os sábios eram egiptólogos e os burros pertenciam mesmo à espécie asinina – nenhum deles era economista.

As sequelas da guerra de 1914-18 e o estabelecimento de regimes totalitários, comunistas e fascistas, que apostavam na autarcia e no dirigismo económico, reduziram o mundo a compartimentos estanques. A seguir à 2ª guerra mundial, e apesar da queda do fascismo, a progressiva substituição do colonialismo europeu por regimes autoritários, muitos reclamando-se do marxismo, manteve essa situação que, contrariamente às intenções dos seus promotores, tornou os países ricos, mais ricos, e os pobres, mais pobres. Também durante este período os economistas limitaram-se a explicar as diversas situações e a deduzir teorias que fornecessem instrumentos de resposta. Keynes, entre as duas guerras, foi um deles. Quando a validade de muitos dos axiomas keynesianos foram postos em causa pela experiência do pós-guerra, chegou a vez da Escola de Chicago ganhar poder explicativo.

A implosão do comunismo, a queda de muitos regimes autoritários terceiro-mundistas e a alteração das políticas económicas de alguns Estados no sentido de uma maior abertura (Índia, China, etc.), conjuntamente com uma rapidez cada vez maior do fluxo da informação, reactivaram o processo da globalização. Todavia, não foram economistas que demoliram o Muro de Berlim; quando Ieltsin subiu para um tanque em Moscovo, não havia qualquer economista ao lado dele e não foram certamente os neoliberais que induziram Deng Xiaoping a iniciar a criação das Zonas Económicas Especiais.

Em todos estes processos, os economistas (e os neoliberais, em particular) limitaram-se a percepcionar os fenómenos, a analisar os seus efeitos, a deduzir modelos explicativos e a propor instrumentos de acção. Têm sido apenas os portadores das mensagens e, quando lhes pedem, de eventuais soluções. Assacar-lhes a responsabilidade de um fenómeno que, com altos e baixos, se tem aprofundado de há 500 anos para cá, é pura ignorância. É o mesmo que responsabilizar os meteorologistas pela seca ou os geólogos pelos terramotos.

Aliás, aqueles que há dois ou três anos vandalizavam as cidades, repudiando a globalização porque esta significava a exploração dos países pobres pelos ricos, e agora vandalizam os meios de comunicação social, repudiando a globalização porque esta significa a exploração dos países ricos pelos pobres, não têm qualquer valimento científico ou ético para o fazerem – pois se eles nem percebem o que se passa! Pois se eles contestam com a mesma veemência o A e o não-A!

Prefiro aqueles que fazem procissões, rezando com fervor para que venha chuva. Têm seguramente mais êxito (a chuva acabará por vir, só não se sabe quando) e não partem montras nem alvorotam os espíritos.

A globalização não se combate com manifestações de repúdio, nem com preces e procissões. Aliás, não é possível combater um fenómeno natural, porquanto ele é inerente ao progresso da humanidade. Os fenómenos naturais domam-se de forma a tornarem-se úteis para nós, e não um factor de destruição. Para tal temos de os estudar e organizarmo-nos quer para evitar eventuais efeitos destrutivos, quer para os utilizar em nosso proveito.

Publicado por Joana às 10:43 PM | Comentários (64) | TrackBack

abril 20, 2005

Conservação Destrutiva

... em vez da Destruição Criativa

É um dado adquirido que o principal motor do crescimento económico é a inovação tecnológica (e a concomitante melhoria da qualificação laboral). E a experiência do último século e meio provou que essa inovação assenta num permanente movimento de substituição e/ou reafectação dos factores de produção – Capital e Trabalho. Sem essa Destruição Criativa, utilizando a terminologia de Schumpeter, não teria havido crescimento, ou esse crescimento teria sido muitíssimo mais lento. Em Portugal, Governos e sindicatos têm apostado, preferencialmente, na Conservação Destrutiva.

Há dias, a CGTP e a UGT exigiram ao ministro do Trabalho e da Solidariedade que procedesse à revalorização do Salário Mínimo Nacional (SMN) numa perspectiva económica e não pelo impacto que vai ter no Orçamento de Estado. Exigiram igualmente a revisão do Código do Trabalho, obviamente numa perspectiva de uma maior rigidez. Isto é, os sindicatos privilegiam os “insiders”, face aos restantes; privilegiam a rigidez dos factores de produção, face à sua mobilidade; privilegiam a “conservação” do statu quo face à Destruição Criativa; em suma privilegiam a Conservação Destrutiva.

O progresso económico só se consegue com uma contínua renovação e reafectação dos factores de produção. No caso do Capital, todos estão de acordo. É mais simples ... é o empresário a pagá-lo. No caso do Trabalho há uma forte oposição. Governos e sindicatos não perceberam que sem mobilidade laboral não há inovação, ou esta é muito lenta. Governos e sindicatos não perceberam que sem mobilidade laboral não há incentivos ao investimento e à renovação do factor capital. Nenhum empresário está disposto a fazer investimentos vultuosos, a arriscadas rupturas tecnológicas, com efectivos cuja imobilidade não incentiva à requalificação. A rigidez laboral desincentiva a Destruição Criativa do Capital.

Li há tempos que na década de 1990 foram criados, nos EUA, cerca de 330 milhões de postos de trabalho e destruídos cerca de 305 milhões. Ou seja, o número de postos de trabalho aumentou cerca de 25 milhões. Sem aquela enorme “Destruição” não teria sido possível a criação de uma tão grande quantidade de empregos e o elevado ritmo de progresso económico dos EUA. Aqueles números indicam que um trabalhador americano mudou, em média, duas vezes de emprego durante a última década

A rigidez do mercado do trabalho torna o desemprego friccional das economias dinâmicas, em desemprego estrutural, de longa duração, nas economias “conservativas”, como a nossa.

Quanto ao SMN, se ele se mantém baixo, a sua influência sobre o nível de emprego é despicienda. Todavia, se ele aumenta, a partir de certo nível torna-se um travão ao aumento do nível de emprego, nomeadamente no segmento dos menos qualificados. E, na actual situação da Economia global e da baixa qualificação laboral portuguesa, pode ser um incentivo à deslocalização e ao aumento do desemprego. É uma protecção envenenada aos menos qualificados. Os sindicatos acenam com ilusões, atrás das quais se perfilam as duras realidades.

No caso português coexistem dois mercados de emprego: um rígido e outro pouco ou nada regulado (contratos a prazo e recibos verdes). É este último mercado que, apesar dos disparates económicos que se têm cometido, serve de travão a um aumento mais acelerado do desemprego. É esse mercado que propicia alguma Destruição Criativa. Também é neste mercado que há os comportamentos mais indecorosos de alguns empresários (conjuntamente com o banditismo fiscal do Estado sobre os trabalhadores em regime de recibo verde) que são tomados como manifestações da impiedade neoliberal, quando eles resultam de uma política cobarde e deliberada do Estado que, incapaz de regulamentar o mercado de trabalho de forma eficiente, deixa continuar a rigidez excessiva no mercado “normal” e é obrigado a permitir uma total desregulação no mercado “lateral” de forma a incentivar o emprego e evitar que o nível de emprego caia drasticamente devido à rigidez dos “insiders”. Uma obrigação com que ele, aliás, não deixa de lucrar abusivamente.

Mas não é só no mercado do trabalho que prevalece a Conservação Destrutiva. Portugal é o segundo país da União Europeia (dos 15) que mais ajudas concedeu às suas empresas em 2003, com 1,24% do PIB, atrás da Finlândia (1,41%) e muito à frente da Alemanha (0,77%), para uma média da UE (dos 15) de 0,57%. Não é apenas o ónus para a despesa pública e para os bolsos do contribuinte que tal representa. Proteger empresas ineficientes desvirtua a concorrência, provoca uma deficiente afectação dos recursos e conduz a um nível menor do bem estar social. E leva a que os empregados dessas empresas percam a noção de que estão a servir uma clientela e se julguem numa sinecura.

Ao pôr entraves à Destruição Criativa, em nome de uma “Conservação” ilusória, o nosso país protege o que é obsoleto, avesso ao risco e à mudança. É uma Conservação Destrutiva, porquanto julga conservar, mas cria as condições para a destruição progressiva do nosso tecido económico.


Sobre esta matéria ler:
O Caso Bombardier
Construtores de Pirâmides
Estado de Silêncio

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abril 13, 2005

Adam Smith e Marx

Adam Smith e Marx influenciaram de uma forma decisiva o pensamento político, económico e social dos últimos dois séculos. Há um século de diferença entre ambos. Curiosamente o mesmo período que medeia entre Marx e a vivência do poder soviético. Igualmente é curioso verificar que, dessas três “vidas”, o pensamento que se mantém mais actual e vivaz é o da primeira. Todavia há uma estranha complementaridade entre Adam Smith e Marx. Adam Smith preocupou-se com o funcionamento económico da sociedade em que vivia. E extraiu dessa observação conceitos, ainda em vigor, que se revelaram extraordinariamente operacionais. Marx preocupou-se com as causas do devir social e histórico e estabeleceu uma teoria explicativa desse devir que continua a manter algum poder explicativo, embora a sua aplicação mecânica e absoluta se tenha revelado insuficiente e errónea. No seu sóbrio e prático raciocínio de um burguês britânico, Adam Smith ficou em muitos aspectos mais actual que Marx, o típico filósofo alemão que aspirava ao absoluto da totalidade explicativa.

A Riqueza das Nações é um manifesto de combate contra as coacções extra-económicas então existentes (obrigações feudais, corporações, regulamentos diversos) mas também contra o mercantilismo e a fisiocracia, então em voga. Curiosamente o mercantilismo assentava em três noções que continuam a inquinar a nossa sociedade: o Estado como principal agente económico, o progresso baseado na injecção de dinheiro na economia e o superavit da balança de transacções com o exterior. Nos nossos dias tal corresponde ao mito estatizante, ao despesismo dos dinheiros públicos e à desvalorização cambial para incentivar as exportações. Para Adam Smith é o indivíduo, e não o Estado, o principal actor económico; a riqueza é a produção efectiva em bens e serviços e não a criada artificialmente pela injecção de dinheiro na economia; o comércio internacional é apenas um comércio como outro qualquer.

Para Adam Smith a prosperidade nasce da divisão do trabalho. A divisão do trabalho é a condição sine qua non do crescimento. Mas qual é o seu fundamento? A racionalidade dos indivíduos? O fruto de uma vontade colectiva? Não, resume-se simplesmente ao gosto visceral dos homens pela troca e pelo lucro. Os sapatos que calçamos não os devemos ao sentido altruísta do fabricante de calçado, mas à satisfação do seu interesse egoísta em obter um lucro. E a melhoria das condições de produção na sua fábrica não se deve a um sentido altruísta, a um ideal estético ou a uma virtude política: é unicamente fruto do seu interesse pessoal em melhorar a competitividade da sua exploração para maximizar o seu ganho. Escreveu Adam Smith Na realidade, ele não pretende, normalmente, promover o bem público, nem sabe até que ponto o está a fazer …. só está a pensar na sua própria segurança; e, ao dirigir essa indústria de modo que a sua produção adquira o máximo valor, só está a pensar no seu próprio ganho, e, neste como em muitos outros casos, está a ser guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte das suas intenções. Nem nunca será muito mau para a sociedade que ele não fizesse parte das suas intenções. Ao tentar satisfazer o seu próprio interesse promove, frequentemente, de uma maneira mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretende fazer. Nunca vi nada de bom, feito por aqueles que se dedicaram ao comércio pelo bem público.

Não nos dirigimos ao humanismo do industrial, mas ao seu egoísmo; não o convencemos das nossas necessidades, mas das suas vantagens. São os planos e projectos daqueles que empregam o capital que regulam e dirigem todas as tarefas mais importantes do trabalho, e o lucro é o fim que buscam todos esses planos e projectos. E o que é mais surpreendente é que esta transacção de egoísmos e de utilidades, o mercado, corresponde, igualmente, a um óptimo colectivo. É um óptimo por defeito, porque nenhum outro funciona. Em vez da providência divina do pensamento escolástico, é a mão invisível que provê ao nosso bem estar

Há um ponto em que tem que haver intervenção do Estado. Na defesa e segurança pública. A sociedade tem necessidade de ser protegida e de ser liberta dos entraves que possam prejudicar o seu progresso: suprimir as barreiras que limitam a liberdade económica (regulamentos e corporações no plano interno e restrições às importações e travões ao comércio livre no plano externo), porque a liberdade do funcionamento da economia e do comércio tende a maximizar o rendimento anual da sociedade.

E isto porque Adam Smith vê a liberdade do mercado do ponto de vista do conjunto da sociedade e do bem público. Não a vê do ponto de vista dos “interesses” dos produtores em termos de criarem regulamentos ou situações que pervertam a liberdade de mercado, para daí extraírem lucros adicionais: O interesse dos comerciantes, em qualquer ramo de actividade, é, todavia, sob muitos aspectos, sempre diferente e mesmo oposto, ao do público. O interesse dos comerciantes está sempre em alargar o mercado e estreitar a concorrência. O alargamento do mercado é, muitas vezes, suficientemente vantajoso para o público, mas a redução da concorrência é sempre contra ele e só pode servir para permitir aos comerciantes fazerem incidir, para seu próprio beneficio, através da elevação dos lucros para além ao seu nível natural, um imposto absurdo sobre os seus concidadãos. Qualquer proposta para uma nova lei ou regulamento do comércio proveniente desta classe deveria ser sempre escutada com as maiores precauções, e nunca deveria ser adoptada sem ter sido antes longa e cuidadosamente analisada, não só com a mais escrupulosa atenção, mas também com a máxima desconfiança. Ela provém de uma classe de indivíduos cujos interesses nunca coincidem exactamente com os do público, que têm geralmente como objectivo defraudá-lo e mesmo oprimi-lo, e que o têm efectivamente, em muitas ocasiões, defraudado e oprimido.

Adam Smith vê a liberdade do mercado como base do bem estar social e recusa qualquer derrogação a essa liberdade, quer por regulamentos e leis, quer por conluios ou práticas anti-concorrenciais dos agentes económicos. Por esse motivo recusa igualmente qualquer despesa pública em favor dos pobres quer por considerar que se favorece uma classe de cidadãos face a outra, quer por entender que tal cria obstáculos à mobilidade dos trabalhadores. Ora esta última razão continua a ser defendida hoje em dia: uma das razões pelas quais a economia americana atinge mais facilmente o pleno emprego é a menor subsidiarização do desemprego, e essa situação, para além de diminuir o desemprego, aumenta a riqueza pública.

Esta formulação de Adam Smith foi a base da Economia Positiva e da teoria microeconómica ainda em vigor.

Marx pôs a tónica no devir social e na forma como o posicionamento dos agentes económicos face à produção e à propriedade dos meios de produção cria clivagens sociais, comportamentos diferenciados entre os grupos sociais que detêm essa propriedade e os grupos sociais não possidentes, clivagem essa que origina uma luta de classes que se torna o motor da sociedade e a leva, mais tarde ou mais cedo, a ser substituída por outra sociedade em que o posicionamento dos agentes económicos face à produção e à propriedade dos meios de produção seja diverso do da anterior.

Marx escrevia A Economia Política parte da existência da propriedade privada; não a explica. E tem razão nesse ponto. Mas tal constituirá uma razão de superioridade do pensamento económico de Marx sobre Adam Smith?

Marx escreve nos Manuscritos: A alienação do trabalhador no objecto do seu trabalho, é expressa da seguinte maneira nas leis da Economia Política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu trabalho, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho tanto mais frágil o trabalhador; quanto maior a inteligência revela o trabalho tanto menos inteligente e mais escravo da natureza se torna o trabalhador.

Esta texto poderá fazer as delícias de alguns mitómanos da esquerda radical. Mas terá sido confirmado pela história económica? O trabalhador tornou-se mais bárbaro e grosseiro à medida que o produto do seu trabalho se tornou mais aperfeiçoado e civilizado? É óbvio que não. Marx ficou preso, na sua análise, ao tempo e ao espaço das manufacturas de meados do século XIX.

Na verdade, do ponto de vista da Teoria Económica, O Capital apenas tem valor arqueológico. A Teoria da Reprodução Simples e a Teoria da Reprodução Ampliada têm, descontando obviamente o século de diferença, uma importância inferior ao Tableau Économique de Quesnay. Quem, no pleno uso das faculdades mentais, acredita actualmente na Lei da tendência decrescente da Taxa de Lucro? ou na Lei da pauperização crescente do proletariado? Quem pode acreditar que a classe operária constitui a maioria, está pauperizada e é a portadora exclusiva e decisiva do desenvolvimento social? Ora era nestes axiomas que se exprimia o carácter contraditório do capitalismo: o crescimento dos meios de produção, em vez de se traduzir pela elevação do nível de vida dos operários, traduzir-se num duplo processo de proletarização e de pauperização.

Igualmente, a concepção marxista do desenvolvimento da classe operária no capitalismo avançado não se confirmou e, ao invés, ocorreu e continua a ocorrer o seu enfraquecimento relativo.

Mesmo que se objecte que o conceito de proletariado será diferente, hoje em dia, e inclua os trabalhadores intelectuais e a intelligentsia, eu oporia que, de acordo com Marx, sendo a consciência social determinada pelo ser social, então este proletariado não teria nada (ou muito pouco) a ver com o proletariado de Marx.

Ora aquela formulação era um axioma basilar do pensamento de Marx. Marx não nega que entre os capitalistas e os proletários existam múltiplos grupos intermédios, artesãos, pequeno-burgueses, comerciantes, camponeses proprietários. Mas afirma duas proposições. Por um lado, à medida que o regime capitalista evoluir, tenderá para uma cristalização das relações sociais em apenas grupos: os capitalistas e os proletários. As classes intermédias não têm nem iniciativa nem dinamismo histórico. Há apenas duas classes capazes de imprimirem a sua marca à sociedade. Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária. No dia do conflito decisivo, todos e cada um serão obrigados a juntar-se ou aos capitalistas ou aos proletários.

A história traiu Marx e os seus epígonos. E mesmo depois de se verificar, na prática, que aqueles axiomas não eram verdadeiros, eles continuaram a ser repetidos à exaustão pelos intelectuais “ditos” marxistas.

Não será mais actual a afirmação de Adam Smith que A real e eficaz disciplina exercida sobre o trabalhador não é a da sua corporação [Adam Smith referia-se às corporações feudais, muito fechadas e regulamentadas], mas a dos seus clientes. É o medo de perder o emprego que o refreia na prática de fraudes e lhe corrige a negligência. Uma corporação exclusivista necessariamente retira força a este tipo de disciplina. Há, nessas circunstâncias, um determinado grupo de trabalhadores que de certeza obterá emprego, seja qual for o seu comportamento. Não foi a inexistência deste efeito de mercado que provocou a ineficiência económica do regime soviético? Que tornou, nesse regime, o produto do trabalhador menos aperfeiçoado e civilizado?

Quanto à contribuição de Marx para a explicação do devir histórico, ela é importante. Mas, embora haja um fio condutor permanente no pensamento de Marx sobre as causas desse devir, a sua formulação mais concreta é a que citei em “Marx (in)actual” e em algumas passagens do Manifesto. E esses conceitos avançados por Marx têm um óbvio interesse explicativo. Todavia a ânsia de tornar “científico” o “materialismo histórico” levou posteriormente à estilização da caracterização das sociedades. A história foi arrumada em comunismo primitivo, esclavagismo, feudalismo, capitalismo e socialismo (e, num futuro radioso, o comunismo).

Isto equivaleu a deitar a História no leito de Procusta do “marxismo mecanicista”. Ora a escravatura no Império Romano nunca atingiu, relativamente à população total, a percentagem da existente na Confederação Americana, em meados do século XIX. Fenómenos típicos da economia capitalista que ocorreram na antiguidade – inflação, crises financeiras, etc. – não podiam ser explicados. Diversas formas de sociedade escapavam àquela arrumação. A teoria do modo de produção esclavagista só conseguia explicar Atenas e, parcialmente, a Roma Cidade-Estado. A teoria do modo de produção feudal só conseguia explicar cabalmente os modelos francês e alemão e, em menor grau, os da restante Europa Ocidental. Falhava clamorosamente em Bizâncio e no mundo islâmico. E que dizer das sociedades indianas e chinesas? Em face dessa falência, os teóricos soviéticos e os seus “compagnons de route” inventaram o “Modo de Produção Asiático” para encaixarem desajeitadamente todas as peças do puzzle que falhavam.

Também aqui o pragmatismo de Adam Smith revelou-se mais fecundo. Longe de pretender qualquer explicação absoluta, Adam Smith interessou-se pela importância da “Divisão do Trabalho”, da criação de excedentes por uma dada comunidade ou grupo social e da sua troca por bens que eram necessários a essa mesma comunidade. Sendo assim, o Homem, tal como existe actualmente, resulta de um processo histórico em que o primeiro passo fundamental foi o da “Divisão do Trabalho”, ou seja da progressiva especialização de tarefas. A “Divisão do Trabalho” permitia uma maior produtividade, mas só funcionaria se se desenvolvessem as trocas comerciais. E foi essa espiral produção-consumo que permitiu, com avanços e recuos, o aumento da prosperidade da humanidade.

E veja-se que, ao longo da história, os povos que tinham vantagens comparativas ao nível do comércio – portos marítimos ou fluviais abrigados, encruzilhadas facilitadas pela geografia física, etc., foram os que mais prosperaram e induziram o desenvolvimento dos restantes. O Egipto e a Mesopotâmia desenvolveram-se porque os seus rios facilitavam as trocas (para além da riqueza agrícola que, todavia, não seria tão explorada se não fosse possível trocar os excedentes). A Fenícia, Creta, as cidades gregas, Cartago, Roma, Constantinopla, as repúblicas italianas (Veneza, Génova, etc.), as cidades flamengas, Lisboa, as Províncias Unidas, a Inglaterra, etc. são exemplos da importância do comércio e da “troca” na prosperidade dos povos.

Marx falhou estrondosamente na Economia, porque teve uma abordagem totalmente enviesada: a sua intenção era unicamente explicar os fundamentos da exploração capitalista e da extracção da mais-valia. Não é possível estudar e aprofundar qualquer ciência apenas com um determinado intuito. A abordagem científica deve ser despida de preconceitos. Deve procurar as explicações e não partir destas para construir uma ciência.

Marx, e principalmente os seus epígonos, falhou (falharam) na História e na sua explicação porque perseguiu uma explicação absoluta e total. Era o filósofo alemão, o discípulo, embora recalcitrante, de Hegel, na perseguição da verdade absoluta. Mas descontando essa pretensão, quando Marx abordou acontecimentos políticos da época, produziu trabalhos de elevado interesse científico, no campo da Teoria da História – As Lutas de Classes em França 1848-1850 e o 18 de Brumário de Luis Napoleão, por exemplo.

Faltava a sobriedade e o pragmatismo de um burguês britânico que analisa a realidade e o seu devir de uma forma límpida e fecunda, sem pretensões a explicações absolutas.


Nota - ler igualmente, na "pré-história" do blogue:
Adam Smith e Marx
Hegel e Marx

Ler ainda, mais recentes e sobre Marx:
Marx (in)actual
Marx Neoliberal-Educação Gratuita?
Marx Neoliberal

Publicado por Joana às 11:36 PM | Comentários (79) | TrackBack

abril 11, 2005

Adam Smith ... do produtor

Ou uma lembrança para o Blasfémias.

Adam_Smith_Book_IV_2.jpg

Notas:
1 – A imagem poderia estar melhor, mas eu não quis calcá-la, pois é uma edição do século XVIII. O último período está, parcialmente na página seguinte.
2 – O outro excerto, não o digitalizei por duas razões: a primeira, porque isto é apenas uma brincadeira e andar a pôr edições antigas em scanners, só por festa; a segunda, porque metade da citação está numa página e a outra metade na página seguinte

Publicado por Joana às 09:59 PM | Comentários (15) | TrackBack

abril 08, 2005

A Mão Invisível estrangula o PSD

O PSD está a agir como o empresário estilizado da Teoria Neoclássica. O seu objectivo é único – maximizar a percentagem eleitoral. As suas regras de cálculo são lineares – presumindo ter uma informação perfeita sobre a sua clientela política e interpretando liminarmente os sinais do mercado (as intenções de voto) julga ser conduzido a uma solução eleitoral óptima conseguindo um score eleitoral tal que o ganho político com o último voto seja igual ao custo político da transigência ideológica.

Este PSD (tal como o empresário da teoria neoclássica) reage de forma automática aos estimulantes. É um comportamento apriorístico, pois pode ser mecanicamente deduzido das características do enquadramento em que se move. Esta teoria política (ou microeconómica) reduz um partido (uma empresa) a um ponto sem espessura nem dimensão temporal, realizando continuamente ajustamentos imediatos e reagindo de forma automática a estímulos. Não é uma estrutura provida de ideologia, é uma bola de bilhar.

A Teoria Neoclássica é um instrumento de uma lógica maravilhosa, simples, maleável e de uma elegância matemática notável. Todavia só serve para explicar tendências gerais de comportamentos. Não serve para gerir empresas. A forma como se geram equilíbrios levou a que, antes das equações matemáticas os deduzirem, se criasse a metáfora da Mão Invisível para idealizar aquele processo. Mas metáforas, por muito sugestivas que sejam, não chegam para construir um projecto economicamente viável, ideologicamente sólido, socialmente coerente e politicamente corajoso. É preciso uma sólida base ideológica por detrás.

O empresário atomizado reagindo automaticamente a estímulos é uma abstracção para criar as equações de partida do sistema. Os modelos explicativos vão-se refinando à medida que são introduzidas variáveis, parâmetros, restrições, etc., adicionais e deverão ser interpretados tendo em conta as limitações dos mesmos. Por exemplo, uma empresa real tem que planear a sua actividade a longo prazo. Uma nova unidade industrial pode demorar 3 a 5 anos a ser construída e ter uma vida útil de 15 a 20 anos, portanto o decisor terá que interpretar o mercado de forma estratégica e a longo prazo, visto uma decisão que ele tomar agora só será validada pelo mercado ao longo da próxima década.

Do mesmo modo um dirigente político tem que analisar a sociedade, diagnosticar as suas necessidades e conceber e equacionar as soluções e tudo isto inserido num sistema coerente de ideias e valores adequado. E este “mercado” tem que ser avaliado a longo prazo e a estratégia estruturada e planeada a longo prazo. O político não pode reagir automaticamente a estímulos. Não pode planear as suas decisões como um empresário planeia uma nova linha de lingerie.

Ora o próximo congresso do PSD mostra que não existe no espectro político ali presente qualquer base ideológica relativa à liberdade do funcionamento da economia, à assumpção do risco, da inovação e da mobilidade, que é indispensável à tarefa de reformar o Estado e a sociedade portuguesa para os preparar para os desafios com que estão confrontados. Pelo contrário, sugestionados por uma análise superficial do “mercado”, recolhida na noite eleitoral, preparam-se para pescar nas mesmas águas turvas da política da ilusão consumista, no projecto da segurança medíocre e sem futuro do Estado asilo, que tem caracterizado a nossa vida económica e social na última década.

O posicionamento ideológico dos principais protagonistas deste congresso, de acordo com o Público (posicionamento cujas bases de cálculo ignoro o fundamento), está muito próximo dos actuais dirigentes do PS – estão no mesmo quadrante estatizante-libertário, na zona social-democrata. Nada os distingue. Marques Mendes não é alternativa a Sócrates, pois estão ideologicamente colados.

Ao iludir-se com os sinais do mercado, o PSD está a estrangular-se com a Mão Invisível que criou, ao não conseguir interpretar o “mercado político” para além dos sinais superficiais que detectou na noite eleitoral.

A situação é catastrófica, mas ... não inquietante ... A experiência tem mostrado que todas as medidas de liberalização do tecido económico, e que têm permitido diversos países ultrapassarem situações de estagnação, foram tomadas sob a premência inadiável dessas situações e contrariavam as promessas eleitorais feitas pelos respectivos governos, socialistas, sociais-democratas, centristas, democratas-cristãos, etc., quando em campanha. Os programas vendidos em campanha estão normalmente viciados pela ideologia pretensamente social que está nos genes do pensamento estatizante. E pretensamente social, porque sob o álibi do igualitarismo e justiça social, esconde-se o caminho que conduz à estagnação económica e ao nivelamento pela mediocridade.

A solução não é boa. É como passarmos da carroça para o automóvel, substituindo algumas peças de cada vez – rodas, motor, partes da carroçaria, caixa de velocidades, etc. Quando chegarmos a ter um automóvel completo, será uma figura compósita com peças de séries diferentes, que se encaixam mal umas nas outras e com uma performance inferior à desejada.

É a consequência, como escrevi acima, de não haver um projecto coerente.

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abril 07, 2005

O Erro dos Futurólogos

A faceta mais interessante dos futurólogos é a de que nunca acertaram em nada. Júlio Verne foi-se tornando cada vez mais desinteressante, porque acertou sempre ao lado: o homem criou o transporte aéreo e submarino, mas nada que se parecesse com as soluções ficcionadas por ele; criou os veículos motorizados para uso particular, mas completamente opostos à Casa a Vapor; e assim sucessivamente. Uma coisa é imaginar que uma dada acção se torne possível no futuro; outra é prever de que forma e porque processo essa acção se irá concretizar. Imaginamos o futuro, mas sempre através da matriz presente.
Deixemos a ficção científica e concentremo-nos na ficção económica. Analisemos a questão da evolução da produtividade do trabalho versus horário de trabalho à luz das ilusões dos fazedores de utopias.

Entre 1789 e 2003 o PIB per capita nos Estados Unidos, a preços constantes, aumentou 32,5 vezes (1.100 para 35.790 dólares de 2000). Ou seja, a produtividade anual do trabalhador americano teria aumentado cerca de 30 vezes. Mas o aumento da produtividade horária foi superior. Admitindo que esse trabalhador médio trabalhasse então cerca de 4.500 horas por ano e que actualmente a duração média anual de trabalho seja 40% daquele valor, teríamos um aumento da produtividade horária de 75 vezes. Estou a admitir que a percentagem da população activa na população total fosse idêntica nas duas épocas, o que talvez não seja verdade. Todavia o aumento da população activa feminina compensa, pelo menos parcialmente, a diminuição do trabalho infantil. Também não vale a pena cálculos muito exactos para o que pretendo ... digamos que a produtividade horária teria aumentado seguramente 50 vezes, provavelmente mais.

Ou seja, aquele trabalhador médio poderia trabalhar agora apenas 90 horas anuais ... meio dia (4 horas) por semana, durante metade do ano! (note-se que alguma parte do nosso sector público já atingiu esse desiderato).

Mas isso só seria possível se o trabalhador actual tivesse os mesmos hábitos de consumo que o de 1789 – 80% do consumo em alimentação e bebidas, contra menos de 20% actualmente (e fosse uma alimentação pobre, baseada em muito pão e em pouca carne, como era então) – e estivesse disposto a medicamentar-se com as mezinhas caseiras da época, a utilizar a água que fosse buscar à fonte, a abdicar das transferências sociais que lhe garantissem a protecção na doença, invalidez e velhice, etc., etc.(note-se que a parte do nosso sector público que atingiu aquele desiderato, não compreende estas contrapartidas).

Ou seja, o trabalhador médio de 2003 satisfaz o consumo de 50 trabalhadores de 1789 ... mas não de 2003.

Coloco todavia outra questão: seria possível uma sociedade funcionar assim? Se o trabalhador médio de 2003, com os hábitos de consumo do trabalhador de 1789, constituísse uma excepção e não a regra, isso poderia ser possível. Se fosse a regra, tal seria absolutamente impossível.

O aumento da produtividade do trabalho exige investimentos maciços em capital, quer equipamentos industriais, quer em investigação e desenvolvimento (I&D). Mas estes custos só se diluem se as produções atingirem níveis elevados. De outra maneira a produtividade não aumenta significativamente.

Por exemplo, uma produção de tractores só atinge a produtividade de 2003 se produzir centenas de milhares de unidades por ano e se estiver associada à produção de outros tipos de veículos. Uma empresa de veículos só é viável se produzir vários milhões de unidades por ano. Há modelos de que só são produzidas algumas dezenas ou centenas de milhares de unidades/ano, mas estão associados a outros modelos, havendo muitos componentes comuns. Mas a produtividade da indústria automóvel baseia-se, igualmente, entre outros factores, no preço do aço. Ora a dimensão mínima óptima de uma siderurgia é actualmente de 5 a 10 milhões de tons/ano, para além das restrições em termos de localização. E assim sucessivamente.

Os produtos de elevada tecnologia têm custos fixos cada vez mais elevados, nomeadamente em I&D, e esses custos fixos só são minorados se a produção for muito elevada. Porque é que só há meia dúzia de gigantes na indústria farmacêutica mundial? Aparentemente produzir pílulas pode estar ao alcance de qualquer pequena unidade. A questão é que a parcela principal do custo do medicamento reflecte os custos I&D e só as grandes empresas têm arcaboiço financeiro para alimentarem laboratórios de investigação caríssimos e inovarem e descobrirem novos produtos. E o mesmo sucede com a informática de ponta.

Ou seja, nós temos uma produtividade enorme porque produzimos em grande quantidade e essa produção só é viável porque consumimos em grande quantidade. Sem esta espiral produção-consumo não teriam existido os aumentos de produtividade a que assistimos em 2 séculos. Cada vez há menos gente na agricultura e na indústria, e mais gente nos serviços, porque a sofisticação dos equipamentos e de outros factores de produção da agricultura e da indústria exige cada vez mais I&D. Por detrás da automatização e da robótica está muito trabalho altamente qualificado investido.

Não é possível a coexistência do trabalhador médio de 2003 e do consumidor médio de 1789. A sociedade não funciona assim, nem é viável assim. Aliás, se os trabalhadores médios de 2003 passassem a ter os hábitos de consumo médio de 1789 (admitindo que isso fosse possível, dada a organização da sociedade actual), ao fim de poucos meses seria a crise generalizada e a maioria dos trabalhadores no desemprego.

Houve, durante estes dois séculos, uma descida acentuada no horário médio anual de trabalho. Essa descida foi-se desacelerando até se ter estabilizado nas décadas seguintes ao pós-guerra. A inversão da pirâmide etária foi talvez o factor mais importante dessa estabilização, mas não só – na maioria das actividades, nomeadamente nas mais qualificadas, não é possível manter um elevado ritmo produtivo a coexistir com períodos de lazer prolongados. Tal só é possível em actividades rotineiras. E a espiral produção-consumo tem que ser mantida, como base de um aumento sustentável da produtividade.

O erro dos futurólogos é o de preverem as possibilidades futuras em termos da sua mundividência presente. Ora o futuro nunca acontece assim porque os factores da sua concretização nos são desconhecidos. Imaginamos o geral, mas não prevemos o mais difícil – quais as peças do puzzle que irão construir esse geral. Foi aí que falhou Verne, apesar da genialidade de muitas das suas futurologias - construiu-as sempre com as peças que eram da sua época, ou que eram previsíveis na sua época.

Nos estudos de viabilidade económica normalmente não se ultrapassam os 15-20 anos (tempo médio de vida útil de uma instalação industrial). A partir daí diz-se, desdenhosamente, que é futurologia. Ou seja, as previsões só são válidas para o período em que a aderência do nosso actual enquadramento mental à evolução da realidade tem significado. A partir daí é futurologia.

Publicado por Joana às 08:18 PM | Comentários (46) | TrackBack

março 31, 2005

A Maldição da Economia

A Economia é uma ciência maldita: exige-se-lhe que explique tudo; espera-se que resolva tudo e quando a conjuntura económica não está de feição é o descrédito que se abate sobre ela. É estranho o que se passa com a economia. A nenhuma ciência se exige tanto. Nenhuma outra ciência é encarada de forma tão totalitária, tão absoluta. Nenhuma outra ciência é esconjurada e os seus profissionais desautorizados sempre que uma contrariedade acontece.

Houve o maremoto do sueste asiático, que se saldou em mais de 200 mil vítimas e ninguém, que eu saiba, acusou a Geologia, nem a Geofísica, nem a Tectónica. Foram acusadas as autoridades que não intervieram a tempo, mas os profissionais daquelas ciências passaram incólumes. Limitaram-se a explicar, em frente de gráficos coloridos, o deslizamento de umas placas tectónicas, com a mesma tranquilidade que explicariam a descida de um garoto num escorrega. O país está a ser vítima de uma seca terrível, os metereologistas continuam tranquilamente a prever tempo seco para os próximos dias e ninguém lhes pede satisfações, ninguém escreve indignado para as Televisões exigindo o seu despedimento. Fazem-se novenas; procissões: imprecam-se os deuses, mas metereologistas e geofísicos continuam a gozar da mesma respeitabilidade e credibilidade.

Os acidentes de viatura sucedem-se num cortejo macabro e ninguém põe em causa ou lança o anátema sobre as equações do movimento da Mecânica Clássica de Newton. Poderia citar exemplos decisivos em todas as outras ciências. Em todas se verifica o mesmo: a responsabilidade é dos outros, de erros humanos, ou de calamidades naturais. Nunca das ciências que tutelam a “desgraça” nem dos seus profissionais.

Ora a Economia é uma ciência com objectivos simples. Analisar as forças estáveis que caracterizam o enquadramento onde os agentes económicos interagem, as condições de base da actividade económica; analisar as estruturas dos mercados, ou seja as características do “ambiente” em que decorrem as transacções entre esses agentes; analisar as estratégias desses agentes referindo-as às estruturas onde estes se movem e agem; analisar os resultados obtidos pelos agentes económicos e estabelecer relações funcionais para avaliar em que medida esses resultados “deslocam” as condições de base da actividade económica; alteram as estruturas em que essa actividade se desenvolve e condicionam as estratégias dos agentes. E como todo este processo interage e se formam os sucessivos equilíbrios. E isto para agentes económicos individuais (pessoas e empresas) ou para os grandes agregados.

Para conseguir esse desiderato, a economia constrói modelos que expliquem o comportamento dos agentes económicos e como variam as variáveis e parâmetros micro e macroeconómicos. As suas bases são simples – a partir dos conceitos de escassez (se não houvesse escassez de recursos – se estes fossem infinitos – não haveria economia) e da análise marginal, estabelece as equações explicativas. Exactamente o mesmo tipo de equações e os mesmos processos matemáticos (as funções de Lagrange) que aqueles que conduzem às equações de movimento da Mecânica Clássica.

A Economia apenas explica o que pode acontecer se forem introduzidas alterações no modelo que inflictam quer as condições de base, quer as estruturas, quer os comportamentos, quer os resultados. A Economia não diz o que os agentes económicos devem fazer, nem lhes entoa prédicas moralistas. Essa é a função de sacerdotes, psicólogos, fazedores de opinião, etc.. A Economia não é responsável se os agentes económicos constroem os seus objectivos em função dos seus interesses pessoais e do seu egoísmo. A Economia apenas tem que reconhecer isso, construir os modelos explicativos baseados nesses dados de base e determinar, grosso modo, os resultados para esses agentes e para a sociedade, face às condições de base e às estruturas de mercados.

Responsabilizá-la pelos comportamentos dos agentes económicos, é o mesmo que os déspotas orientais faziam, quando matavam o mensageiro. Não foram os economistas que fizeram com que os agentes económicos agissem de acordo com os seus interesses pessoais. Apenas descobriram que o faziam e calcularam, através dos modelos explicativos, que uma sociedade cuja economia funcionasse em perfeita liberdade contratual, sem entraves, nem barreiras, atingiria um óptimo de funcionamento.

Também calcularam a perda de eficiência que as violações das condições estruturais da concorrência induziriam no bem estar económico da sociedade, quer essas violações fossem endógenas, ou seja, resultassem do próprio funcionamento da actividade económica através das estratégias de agentes económicos, quer fossem exógenas, isto é, resultantes das modificações operadas pelo poder político, ou outros poderes, nas condições de base, nas estruturas, ou nos resultados.

Exorcizar a economia por alertar que uma dada medida irá traduzir-se num certo (mau) resultado é o mesmo que execrar os avisos que nos alertam que se fizermos a curva a mais de 80km/h corremos o risco de nos despistarmos. É uma completa imbecilidade.

Obviamente que são os políticos que tomam as decisões. Cabe aos economistas elencar os resultados possíveis dessas decisões. Também é evidente que em modelos onde há milhões de decisores que se movem por interesses cujas causas nem sempre são absolutamente identificáveis, podem ser construídos modelos explicativos diferenciados, quer por convicção científica, quer para suportar determinadas opções políticas.

O mesmo sucedeu na mecânica, que à medida que se foi aprofundando a observação empírica se verificou que, fora de certos limites, a mecânica clássica perdia valor explicativo, e se criou a mecânica relativista. Igualmente em economia, o refinamento da análise vai progredindo, quer com o aumento das possibilidades de introduzir no cálculo milhões de observações e indivíduos, quer com a verificação dos resultados das medidas políticas tomadas exogenamente e do funcionamento endógeno do próprio modelo.

Há uma teoria que está irremediavelmente liquidada: a convicção que era possível gerar equilíbrios económicos eficientes sem ser em mercado e utilizando a sua capacidade de auto-regulação. Desde sempre, todos os regimes e políticas que se basearam em preços administrados e no planeamento das quantidades a produzir, conduziram ao completo desastre.

Talvez por isso a má vontade contra os economistas e a tendência para os responsabilizar pelas negligências humanas que conduziram aos desastres económicos – os moralistas não suportam uma teoria que se baseia nos instintos dos homens, nos seus vícios e nas suas virtudes. Os moralistas não suportam a realidade e preferem ignorá-la, pregando utopias e exorcizando a realidade do comportamento humano.

Querem um universo asséptico. Infelizmente ele não existe e as tentativas para criar o “homem ideal” conduziram a holocaustos – à liquidação física daqueles que não se enquadravam nesse ideal.

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março 29, 2005

Esquerda e Direita?

Vendo as coisas de uma forma mais abrangente, será uma simplificação afirmar que questão da equidade de acesso à comunicação social se põe entre esquerda e direita. Por exemplo, o PCP é um partido que se diz de esquerda, mas cujas opiniões só têm audiência na comunicação social quando se referem às “questões fracturantes” tão ao gosto dos “politicamente correcto”. Em contrapartida, quando Chirac afirma que “o liberalismo seria tão desastroso como o comunismo” e inviabiliza, ou pelo menos protela, a aprovação da directiva Bolkestein, que pretendia iniciar o processo de liberalização da prestação de serviços no espaço comunitário, tem o beneplácito e o aplauso da esquerda estatizante.

A clivagem, a verdadeira clivagem na sociedade actual europeia e, muito especialmente, na sociedade portuguesa, é entre aqueles que defendem este modelo social estatizante, ancilosado, onde todos, agentes económicos, agentes culturais, militantes de organizações “não-governamentais", etc., se julgam, por igual (como se vivessem na miséria e na exclusão social), com direitos inalienáveis a auferirem dos subsídios que reputam “justos” para bem exercerem a sua actividade, ou que aspiram pela tranquilidade de uma sinecura num “asilo”estatal e aqueles que estão no lado oposto, que acham que a inovação e o progresso só se conseguem aceitando o risco, que a democracia só existe na plenitude se for acompanhada pela liberdade económica e que ao Estado apenas cabe assegurar a protecção da sociedade e a sua libertação dos entraves que possam limitar a liberdade económica, e as transferências necessárias para manter o objectivo permanente da igualdade das oportunidades e da equidade na política de educação, segurança social, justiça, etc..

A clivagem voltou a ser entre o pensamento escolástico medieval, herdeiro de Aristóteles, que só se preocupava com a repartição dos bens de forma a torná-la coerente com a moral que pregava para a sociedade, e que considerava a produção como um dado adquirido, e o pensamento daqueles que acham que o ênfase se devia pôr do lado da produção que não é, ao contrário do que os escolásticos pensavam, um dado adquirido, e que só uma sociedade economicamente eficiente e produzindo em abundância, pode assegurar uma repartição de bens que, não sendo embora coerente com essa moral meramente distributiva, é coerente com uma distribuição que evite a exclusão social e mantenha a economia a funcionar perto do óptimo.

Do lado escolástico, medieval, aristotélico, está a maioria da esquerda, nomeadamente a “esquerda da esquerda”, mas também parte significativa dos políticos de direita, nomeadamente daquela que mais perto tem vivido das sinecuras do poder. A transformação do Estado no actual Moloch que nos suga a seiva vital, foi começada por Cavaco Silva; Guterres apenas a acelerou de forma descontrolada e a tornou insustentável. Durão Barroso nada fez de substantivo contra esse Moloch, quer por falta de coragem, quer por falta de convicção. Santana Lopes poderia ter o benefício da dúvida, dadas as circunstâncias em que exerceu o seu curto mandato, mas com Bagão Félix no governo não me parece que esse benefício deva ser concedido.

Voltámos a meados do século XVIII, mas tendo os protagonistas os papéis invertidos. Os que se julgam os detentores das luzes estão do outro lado.

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março 14, 2005

O Espectro Neoliberal 2

A importância de Hayek foi ter-se apercebido que o “Rei vai nú”, numa época em que ninguém punha em causa que ele estaria soberbamente vestido, uns com o traje Keynesiano, outros pelo figurino comunista. Os “excessos” de Hayek são porventura datados, porquanto são uma resposta ao dogmatismo colectivista do comunismo soviético, ao totalitarismo da organização económica nazi e ao racionalismo construtivista da criação ex nihilo de sociedades perfeitas, que os Prometeus do século XX nos anunciavam que construiriam.

Hayek na sua iconoclasia face aos ícones colectivistas ou do Estado Providência, foi liminar: O salário mínimo é um absurdo que impede a mobilidade de trabalho, reduz a produtividade e o nível de vida da colectividade. O imposto progressivo perturba a afectação óptima dos recursos, pois o imposto deve ser proporcional, afim de salvaguardar a sua neutralidade. O Estado-Providência produz efeitos perversos pois a socialização da economia que o acompanha não pode, por definição, ir a par com a realização do óptimo de Pareto. A intervenção estatal, que pretenda ir além da formulação de regras gerais, não passa de um crime contra a economia, porquanto limita a prosperidade e faz da justiça social uma caricatura.

Durante as 3 gloriosas décadas, em que a Europa prosperou, beneficiando de uma conjuntura única, Hayek não passou de um iconoclasta apenas apto para prelecções académicas.

Foi preciso chegar ao fim dos anos 70, quando o estatismo ultrapassou os limites do razoável e as economias ocidentais entraram em desaceleração, para se começar a escutar Hayek e a reverenciá-lo. A Grã-Bretanha, depois das receitas trabalhistas do após guerra, foi o laboratório onde se verificou, na prática, como se poderia estagnar uma economia a partir de uma alta intervenção do Estado e dos sindicatos. A Grã-Bretanha tinha perdido terreno considerável face ao continente europeu. No final da década de 70, com a eleição de Margaret Thatcher, esta diminuiu drasticamente a intervenção estatal na economia, o que permitiu gerar riqueza, empregos e desenvolvimento. Ironicamente para o pensamento socialista, a economia britânica gerou uma maior justiça social, distribuindo mais riqueza sem interferência do governo, do que até então. É certo que a Grã-Bretanha nunca recuperou totalmente, mas tornou-se, apesar de tudo, numa economia mais dinâmica e saudável que as suas congéneres alemã e francesa.

Para os que o diabolizam, o neoliberalismo é a principal causa da exclusão social do mundo, aparecendo nas Bíblias colectivizantes associada à palavra “globalização”, sendo portanto o principal causador das mazelas sociais mundiais. Para eles, onde há neoliberalismo, não há justiça social. E, na verdade, se justiça social é igual ao paternalismo de um Estado Providência, é evidente que o neoliberalismo não é uma forma de justiça social.

Mas o que é realmente a justiça social e qual a sua relação com o neoliberalismo? Ora, justiça social, na óptica liberal, constrói-se com a liberdade. A justiça social aumenta na mesma proporção que a intervenção estatal diminui, o que permite um desenvolvimento mais eficiente das forças produtivas da sociedade. Se uma empresa paga menos impostos e menos encargos sociais com o factor trabalho poderá crescer e aumentar os seus efectivos, gerando mais riqueza que será entregue directamente a estes trabalhadores e não indirectamente, e apenas uma pequena parcela, através do governo. Se o peso do Estado diminui, a atracção pelo investimento criativo aumenta, e os níveis de emprego e prosperidade aumentam. O próprio mercado de trabalho se encarrega de regular a afectação dos recursos relativos a esse factor.

É incompreensível que aceitando todos que o preço das mercadorias é regulado pelo equilíbrio dos respectivos mercados, muitos garantam que a liberalização do mercado de trabalho seja sinónimo de exploração do trabalhador. Ao fazê-lo estão a admitir que o factor trabalho (ou parte desse factor) deva ser (ou é) remunerado acima do valor de equilíbrio. Como esse valor de equilíbrio é o que garante o funcionamento eficiente da economia, estão a pressionar para tornar a economia ineficiente, ou seja, para a levar à estagnação. Ao afirmarem lutar contra a “exploração do trabalhador”, estão na verdade a lutar pela estagnação ou corrosão dos rendimentos desse mesmo trabalhador.

É a liberdade económica que gerará riqueza, desenvolvimento e bem estar. A existência de diferenças é inevitável, mas, e eu aqui estou a fazer um aggiornamento do pensamento de Hayek, deve ser preservada a equidade: as desigualdades sociais e económicas devem ser organizadas de forma a trazer aos mais desfavorecidos melhores perspectivas e a serem compatíveis com o objectivo permanente da igualdade das oportunidades. Este princípio é compatível com um aumento da desigualdade. Pouco importa que o rico se torne muito mais rico se o pobre se tornar menos pobre. Não é a igualdade que é importante, mas sim a equidade. Equidade na política de educação, segurança social e saúde, administração da justiça, etc..

Para Hayek o mercado livre e a ordem espontânea é a base da prosperidade social e da democracia. Ora a economia vive com regras e com estruturas. Como compatibilizá-las com uma ordem espontânea? Nunca pelo efeito da vontade humana, mas como fruto do acaso, de um darwinismo institucional pois «as instituições são produto da acção dos homens, mas não de um seu projecto». A sociedade acaba por conservar aquelas que são as mais adaptadas.

Portanto para o liberalismo, ou o neoliberalismo, na sua designação actual, a liberdade de mercado e a democracia são inseparáveis. Um sem o outro não funciona. Uma economia liberal não funciona num regime ditatorial, mesmo que os seus líderes a tentem fazer funcionar, como se viu no Chile de Pinochet. Um regime democrático fragiliza-se e sucumbe sem um mercado livre. Marx explicou, interpretando a História, que o capitalismo e o mercado livre tinham sido as condições prévias e necessárias de todas as nossas liberdades democráticas, todavia nunca sonhou, prevendo o futuro, que essas liberdades pudessem desaparecer com a abolição do mercado livre.

Porquê então postular uma espécie de Providência omnipresente e omnisciente, a Mão Invisível, numa época já distante dos primórdios da Economia Política, onde aquela metáfora poderia ter algum impacte “explicativo”? Não bastaria afirmar que o mercado é o menos mau de todos os sistemas conhecidos?

Talvez, mas então que dizer dos defensores do colectivismo ou da intervenção estatal que apostrofam as “forças cegas do mercado"? Se para o liberalismo, o mercado é auto-regulável (a Mão Invisível), para os que se lhe opõem, a economia de mercado sofre de contradições internas que acarretam sua destruição, exigindo, pois, a intervenção estatal para corrigir (ou abolir, no caso de Marx) as suas "falhas". Todavia quem argumenta que as forças de mercado são "cegas" está a afirmar, simultaneamente, que o planeamento estatal é omnisciente, ou, no mínimo, menos falível do que o mercado. Assim sendo, se o Estado é capaz de corrigir as falhas do mercado, deve logicamente suprimi-lo por completo. É essa a contradição dos socialistas democratas (terceira via, keynesianos, sociais-democratas, etc.) pressionados à sua esquerda, pois se o Estado é intrinsecamente superior ao mercado na organização da economia, porque não substitui-lo totalmente? É essa contradição que faz com que, normalmente, os socialistas na governação se comportem como o gestor contra-natura, constrangido pelas realidades a aplicar receitas que, geneticamente, abomina.

Portanto, a Mão Invisível e as Forças Cegas do Mercado não são duas faces da mesma moeda. São duas designações que trazem implícitas duas visões antagónicas do funcionamento da economia.

Todavia, o que as experiências colectivistas provaram foi que a intervenção do Estado no domínio económico também é "cega". Ou seja, a economia colectivista é um processo pelo qual cegos (pois que desprovidos da liberdade de escolhas na produção e no consumo) são guiados por cegos. Aliás, se o paternalismo estatal funciona bem, porque será que praticamente todos os regimes socialistas ruíram?

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fevereiro 14, 2005

O Mercado e os Aprendizes de Feiticeiro

Parafraseando Churchill, o sistema da Economia de Mercado é o pior sistema económico, se exceptuarmos todos os outros. Todos os sistemas sociais e económicos alternativos já experimentados, começaram como utopias exaltantes e acabaram na miséria económica e no totalitarismo político. Todas acções dos aprendizes de feiticeiro que querem regular a economia, mesmo com as melhores intenções, levam invariavelmente essa economia ao desastre.

A ideia da política económica distributiva tem milénios. Os filósofos da Antiguidade e os escolásticos da Idade Média apenas se preocupavam com a repartição dos bens de forma a torná-la coerente com a moral que quer uns, quer outros, pregavam para a sociedade; para eles a produção era um dado adquirido. O lucro era considerado pecaminoso. O bom governo seria aquele que assegurasse a igualdade social. É certo que este discurso moralista nunca passou da elaboração de utopias, mas tem servido de suporte à ideologia que se intitula “de esquerda”, passado que foi o interlúdio do “socialismo científico” de Marx, tornado desvalido pelos infortúnios do “socialismo real”. E assim se regressou do socialismo científico ao socialismo utópico de sempre.

Foi Adam Smith que descobriu o motor do desenvolvimento económico da prosperidade social, que estivera sempre presente na sociedade, mas que nunca havia sido identificado: o indivíduo, e não o Estado, é o principal actor económico; a riqueza é real e não se confunde com uma ilusão monetária; o comércio internacional é apenas um comércio como outro qualquer e não um meio de entesouramento do Estado e da prosperidade de um país, como julgavam os mercantilistas.

Para Adam Smith «a opulência nasce da divisão do trabalho». A divisão do trabalho é a condição sine qua non do crescimento. Mas qual é o seu fundamento? A racionalidade dos indivíduos? O fruto de uma vontade colectiva? Não, é o gosto pela troca e pelo lucro. Não é à virtude moralista do dono da mercearia que devemos o nosso jantar, mas ao egoísmo com que ele cuida dos seus interesses. Não nos dirigimos ao seu humanismo, mas à sua ganância; não lhes falamos das nossas necessidades, mas das suas vantagens.

Este estado da natureza, o mercado, corresponde, além do mais e segundo se demonstra na microeconomia, ao óptimo colectivo. Em vez da providência divina, dos escolásticos, é a mão invisível que providencia o óptimo da colectividade.

Porém, para a economia funcionar tem que haver intervenção do Estado. Mas essa intervenção deve circunscrever-se à defesa e segurança pública e à tarefa de manter a concorrência a funcionar sem entraves, nem barreiras. A sociedade tem necessidade que ser protegida e ser liberta dos entraves que possam prejudicar a eficiência do seu funcionamento: suprimir as barreiras que limitam a liberdade económica: regulamentos e corporações no plano interno; restrições às importações e travões ao comércio livre no plano externo, porque a liberdade de comércio tende a maximizar a riqueza da sociedade. Isto desde que o outro país não prejudique, por proibições ou direitos elevados, as importações vindas do nosso país.

Além disso, outra ideia mítica foi destruída: A produção não é uma criação de matéria, mas uma criação de utilidade. O preço apenas quantifica a utilidade e a raridade dos produtos. Só há produção de riqueza quando houver criação ou aumento de utilidade. Quando se diz que os custos de produção regulam o valor dos produtos, isto apenas é verdade na medida em que um produto nunca pode ser vendido, de uma forma sustentada, a um preço inferior ao seu custo de produção. Todavia é a relação entre a oferta e a procura que fixa o preço. Os consumidores adequam as quantidades consumidas à utilidade que vêem na sua aquisição e os produtores adequam as quantidades produzidas à procura existente, tendo em conta a sua estrutura de custos.

O regresso ao mito milenar que a criação de riqueza é a criação de matéria, postergando a utilidade como elemento definidor do preço foi outro dos vícios do socialismo real. Vício que era aliás imanente à própria ideologia que o suportava. Sabe-se o resultado a que isso conduziu.

A economia de mercado é a base espontânea e natural das trocas e da fixação dos preços e quantidades. Ponham o capitalismo na rua que ele entra pela janela. Em todas as formações sociais, e nas áreas em que não há coacção extra-económica (escravatura, servidão, regulamentos corporativos, etc.), existe economia de mercado. Mesmo nos regimes comunistas o desenvolvimento de uma economia de mercado (aceite institucionalmente ou em mercado negro) acompanhou o aumento da planificação colectiva e a expansão do sistema de preços artificiais.

Todavia, a economia sem a sociedade é um jogo abstracto. A economia de mercado é um processo darwinista (aliás comum à evolução das espécies) que elimina os menos aptos. Mas quando falamos dos menos aptos estamos a referir às pessoas e à sua exclusão social. A sociedade terá assim que implementar mecanismos para “organizar” essa diferença: as desigualdades sociais e económicas devem permitir trazer aos mais desfavorecidos as melhores perspectivas e estas serem compatíveis com o objectivo permanente da igualdade das oportunidades. Este princípio é compatível com um aumento da desigualdade. Pouco importa que o rico se torne mais rico se o pobre se tornar menos pobre. Não é a igualdade que é importante, mas sim a equidade. Equidade na política de educação, segurança social, justiça, etc..

A perversidade foi que a implementação daqueles mecanismos levaram ao crescente poder e importância do Estado como regulador social, para além do necessário. Na Europa Ocidental, a prosperidade das 3 décadas de ouro parecia indicar que o Estado poderia aumentar indefinidamente a despesa pública para subsidiar o igualitarismo social. A esquerda ocidental que abandonara o marxismo, tornou-se keynesiana.

Mas da mesma forma como o mercado liquidou o “socialismo científico”, liquidou o keynesianismo e a sua aposta na despesa pública como motor da economia. As políticas públicas que pretendiam estabilizar a sociedade, revelaram-se destabilizadoras para a economia. Injectar dinheiro na economia é como consumir droga: quando acaba o efeito ilusório é preciso mais, cada vez mais. O socialismo, que havia ficado órfão de Marx, ficou agora órfão de Keynes, embora muitos ainda não se tenham apercebido disso.

E assim Hayek, que havia sido desprezado, foi repescado: O salário mínimo? Uma inépcia que impede a mobilidade de trabalho, reduz a produtividade e pesa sobre o nível de vida colectivo. A fiscalidade, e em especial o imposto progressivo? Uma catástrofe, pois a progressividade perturba a alocação óptima dos recursos; o imposto deve ser proporcional, afim de salvaguardar a sua neutralidade. O Estado-Providência? Uma máquina para fabricar efeitos perversos: a socialização da economia que a acompanha não pode, por definição, ir a par com a realização do óptimo. A intervenção pública? Um crime contra a economia, se o Estado pretender ir além da formulação de regras gerais e da defesa da concorrência.

Foram os países anglo-saxónicos que mais rapidamente se aperceberam da necessidade de mudança: Reagan, nos EUA, e Thatcher, no UK. A revolução thatcheriana, que o trabalhista Blair não repudiou, permitiu que a Grã-Bretanha esteja a atravessar esta fase complexa da economia mundial de uma forma muito mais satisfatória que a França e a Alemanha, cujas economias estagnaram, isto para não falar de países mais pequenos, como a Suécia, a viverem uma crise profunda.

O que Portugal precisa é da liquidação de todos os empecilhos que impedem que o mercado funcione com eficiência (justiça morosa e de desenlace duvidoso, burocracia administrativa, regulamentações obsoletas, rigidez laboral, etc.). Precisa igualmente que a máquina do Estado seja aligeirada e tenha um melhor desempenho, nomeadamente na educação e na saúde. Precisa que o Estado assegure a transparência dos mercados e que não haja barreiras legais ou artificiais à entrada nos mercados.

É essa a tarefa do Estado. Se o fizer, o tecido empresarial português fortalecer-se-á e aparecerão empresários de mentalidade cada vez mais aberta e dinâmica, mesmo que inicialmente sejam os empresários estrangeiros os primeiros a aproveitarem a melhoria do ambiente económico. E este dinamismo irá reflectir-se no volume de emprego e na sua qualificação.

Não cabe ao Estado ensinar aos empresários onde estão as melhores oportunidades de negócio ou incutir-lhes confiança através de declarações públicas. Os empresários sabem melhor que o Estado que oportunidades há e onde estão. Os empresários terão confiança se sentirem um clima de confiança e não por mera retórica.

É neste enquadramento que deve ser lida e avaliada a entrevista de Sócrates ao programa "Diga lá Excelência". Mas isso será objecto de um próximo post.

Publicado por Joana às 08:20 PM | Comentários (60) | TrackBack

janeiro 04, 2005

Desenvolvimento e Fiscalidade

Medina Carreira, em declarações à Rádio Renascença, afirmou que: “Não suponho que seja útil continuar com esta retórica do pacto de regime porque, enquanto a sociedade portuguesa não souber que nós temos uma economia que cresce a um ritmo que é insustentável para manter as finanças públicas, não há pacto de regime que salve nada. O problema é criar as condições de base para que a economia cresça”. O diagnóstico de Medina Carreira parece-me correcto, atendendo a muitos dos comentários que tenho lido. A sociedade portuguesa ainda não se apercebeu da crise económica e financeira em que vive.

Mas como criar condições de base para um crescimento da economia? Não pode ser através do aumento da despesa e da procura interna induzida artificialmente pois a oferta interna não consegue satisfazer a procura, verificando-se uma escalada das importações e uma deterioração das contas com o exterior. Há que aumentar a competitividade das empresas existentes e atrair investimento estrangeiro em áreas de alto valor acrescentado. A economia tem que ser dinamizada pelo lado do produto, das receitas, e apostar preferencialmente na procura externa.

Mas para tornar o país atractivo do ponto de vista do investimento há que desburocratizar a administração pública, nomeadamente a justiça, e agilizar todos os processos ligados ao funcionamento da actividade económica.

No que toca às receitas é ilusório e contraproducente apostar no aumento das receitas fiscais em termos de percentagem do PIB. A carga fiscal é muito elevada em Portugal, principalmente a que se refere à carga fiscal sobre as empresas e actividade económica em geral. A evasão fiscal é um mito que é utilizado por aqueles que querem um álibi para manter níveis absurdos de despesa pública. Há evasão fiscal em Portugal, mas os estudos mostram que ela não é significativamente diferente dos restantes países da UE15.

Temos sim um peso da economia paralela superior ao do resto da UE15, embora similar aos países da Europa mediterrânica, que, segundo estimativas, ronda o quinto do PIB. Mas a incidência da economia paralela tem a ver com o grau de desenvolvimento económico e da qualidade da administração pública de cada país. Não é uma doença, mas um sintoma. As complicações burocráticas e legislações confusas e contraditórias incentivam a ficar fora do sistema.

A ineficiência da justiça também não é atractiva para a economia paralela. Uma sociedade baseada na economia de mercado, para funcionar adequadamente, tem que ter um sistema judicial que assegure o cumprimento dos contratos. Se a nossa justiça não conseguir esse desiderato, se um acordo verbal não tem um valor significativamente inferior ao de um contrato escrito e registado, então tanto faz uma unidade económica laborar na legalidade ou não, desde que a sua dimensão seja pequena.

Além do mais, todos colaboramos na economia paralela. Quando fazemos obras em casa, exigir factura equivale a pagar mais 19% de IVA. Quem é o abnegado combatente da evasão fiscal que exige factura? E que garantia teríamos, nesse caso, que o “mestre de obras” declarasse aquele valor?

O combate à evasão fiscal deve ser feito, e com vigor, em nome da justiça e da ética fiscais e não na esperança de sustentar os níveis absurdos de despesa pública a que chegámos. Deve ser feito para diminuir a carga fiscal das empresas, aumentar a sua competitividade e atrair investimento estrangeiro, e não para deitar dinheiro à rua. Quanto à economia paralela, poderemos diminuir o seu nível se simplificarmos os procedimentos administrativos e legais, eliminarmos os entraves burocráticos e agilizarmos a justiça. E simultaneamente criarmos incentivos para que os clientes finais exijam facturas dos serviços que lhes prestam. O Estado foge a esses incentivos porque pretende ganhar em todos os tabuleiros. No saldo final acaba por perder.

Vejamos os números apresentados recentemente por Medina Carreira no seu artigo do “Titanic”(*), já citado noutro local:

DespesaReceita0.jpg

As colunas 2 e 4 representam o “peso” percentual da despesa em termos das receitas fiscais.

O ritmo anual médio do crescimento daquelas rubricas, durante o período de 1980-2004 foi, segundo cálculos meus:

DespesaReceita1.jpg

Se o elevado crescimento dos custos da segurança social pode ser explicado pelo envelhecimento da população, o mesmo não acontece com as despesas de educação e da saúde, atendendo à péssima qualidade dos serviços prestados. As colunas 2 e 4 mostram a progressiva incapacidade fiscal para o financiamento da despesa pública. Em 1980 a despesa era 28% superior à receita fiscal e em 2004, 38%. O Estado tem sustentado este défice estrutural com receitas extraordinárias, desde as privatizações, até aos malabarismos destes dois últimos anos.

A situação agravou-se durante os governos de Guterres. A despesa pública total subiu de 42% (1990) para 46 % do PIB (2002). Todavia o aumento, expurgado dos juros da dívida pública, foi muito maior: de 33,5% para 43,1%, porquanto o peso dos encargos com a dívida pública caiu de 8,5% para 2,9% (cerca de 5,6% do PIB!). E aquele pesado aumento não inclui os custos gerados naquele período, mas que ficaram para ser pagos nos anos vindouros, como as SCUTs, que durante aquele período foram receitas fiscais (IVA, IRS, IRC, etc.) e, a partir deste ano, pagamentos a inscrever como custos orçamentais. A diminuição dos juros (pela adesão ao euro) e a obras no sistema “faça agora e pague depois” maquilharam uma situação absolutamente desastrada.

Numa entrevista a A Capital, Medina Carreira afirmou que Portugal é o 17.º país da UE25 a “produzir” riqueza e o 3.º a pagar ao “pessoal público”. É uma situação que não se poderá manter.

Esta situação acima sumarizada conduziu a que a economia portuguesa entrasse em derrapagem em 1999, estagnação que se agravou com a recessão da Zona Euro e com as medidas restritivas que o governo de Durão Barroso tomou para conter o descalabro das contas públicas. Todavia, esta contenção é difícil, porque implica contenção com as despesas do pessoal e com as despesas sociais, o que é altamente impopular.

Neste entendimento é fácil perceber que o próximo governo, qualquer que ele seja, terá uma tarefa complicada e os concorrentes às eleições terão que iludir os portugueses durante a campanha eleitoral, se quiserem conquistar o poder. Neste contexto percebe-se a polémica de hoje sobre se o PS aumenta ou não o IVA para 20%, com Miguel Frasquilho a garantir, talvez com excessivo optimismo, que “quaisquer alterações na carga fiscal de um governo liderado pelo PSD no futuro serão no sentido da diminuição e não do aumento das taxas de imposto”, enquanto Sócrates prometeu ontem "mexer" nos impostos, apenas não explicando qual o sentido da “mexida”.

Em qualquer dos casos é provável que seja o PS mais pressionado a aumentar os impostos que o PSD, visto a sua base eleitoral não aceitar cortes na despesa pública. Quanto a medidas estruturais que permitam à economia portuguesa aumentar a produtividade e a competitividade internacional, mesmo que sejam tomadas, só sortirão efeito algum tempo depois. Além do que essas medidas estruturais irão bulir com interesses corporativos, nomeadamente os lobbies sindicais, o que também será uma dor de cabeça para Sócrates.

(*) Quadro extraido do blogue "Grande Loja do Queijo Limiano"

Nota:
Ler igualmente

Haverá vida para além do Pacto?
O Manto Habitual da Hipocrisia

Publicado por Joana às 10:17 PM | Comentários (25) | TrackBack

dezembro 27, 2004

Da Importância de um PEC

Um PEC é absolutamente imprescindível. Mas não necessariamente um PEC simplista, como o existente. Todavia, quando estabeleceu as regras do PEC, Bruxelas deve ter julgado que os dirigentes políticos dos países da UE eram gente sensata e que no ciclo alto não entrariam em desvarios despesistas, para não ficarem de pés e mãos atados durante a recessão. Por outro lado meteram tudo no mesmo saco – a despesa corrente e despesa de capital. Ora isto é perverso para governos insensatos e laxistas. Se em ciclo baixo, Bruxelas alargar o espartilho, teremos os lobbies sindicais do Sector Público e os partidos, cujo horizonte político é a distribuição do que não há, a exigirem aumentos salariais e das pensões.

Ou seja, se Bruxelas apenas alargar o espartilho dos 3%, sem outras especificações, o que acontecerá é ficarmos um passo mais próximo do abismo.

Portanto, embora o PEC seja “estúpido” e “rígido”, a sua flexibilização, sem ter em conta o que enunciei acima, poderia ser a abertura da boceta de Pandora do cataclismo financeiro em diversos países europeus e, em primeiro lugar, no nosso. O Pacto de Estabilidade e Crescimento tem o defeito de, nas fases altas do ciclo económico, não ter um sistema de alerta e de sanções quando a política orçamental está a ser pró cíclica durante a expansão da actividade económica. Esse defeito foi a nossa desgraça nos anos de 1996-2001.

Portugal tem uma despesa pública cerca de 48% do PIB, em termos oficiais, mas na prática é bastante superior. Porque os compromissos reais do Estado vão muito para além disso, como o caso das empresas que embora públicas, são extensões das administrações públicas, e das parcerias publico/privadas. Além do mais, a dívida pública não contém o valor actualizado dos compromissos assumidos há alguns anos atrás, como o caso das SCUTs, que são dívida pública. No caso das SCUTs apenas as anuidades entram no orçamento de cada ano (e só a partir de 2005). O que o governo de Guterres fez, foi não apenas comprometer o presente (dele), como comprometer o futuro do país por várias décadas.

O mesmo iria acontecer, embora em muito menor escala, pois eram montantes muitíssimo menores, com a operação de lease back que Bruxelas teve o bom senso de inviabilizar. O Estado tem imóveis em excesso. Mas deve vender aqueles que não necessita, na altura mais favorável da conjuntura imobiliária. De forma alguma vender imóveis onde estão instalados serviços necessários. Vender e alugar em seguida é uma operação que será sempre desfavorável, porque os Bancos internalizam nas taxas de juro um spread para cobrir o risco da operação, os seus custos na gestão contratual e os seus lucros.

Há alguns anos, ainda durante a gestão de Guterres, em 2001, Abel Mateus fez um estudo comparativo sobre os pesos da despesa pública no PIB de diversos países europeus, e estabeleceu uma recta de regressão linear entre aquelas duas variáveis.

Esse gráfico é o seguinte:
Grafico SPA_PIB.jpg

Não foi indicado o coeficiente de correlação (nem os intervalos de confiança para os coeficientes da regressão), mas ele deve ser elevado, atendendo à distribuição dos pontos.

Ora há dois países “marginais” naquela distribuição, embora em sentidos opostos: Portugal e Irlanda. Que têm em comum? Portugal é o país que mais estagnou nos últimos anos; a Irlanda o país que mais cresceu. A Suécia também está numa posição “marginal”, e também ela tem conhecido uma importante desaceleração económica na última década. A Espanha aproveitou o período da fase alta do ciclo económico e das vacas gordas para consolidar uma situação orçamental saudável. A Espanha tinha em 1995 um défice público superior ao nosso e chegou a 2001 com as contas equilibradas, aproveitando adequadamente o período favorável do ciclo. O gráfico é elucidativo.

Portanto não é com aumentos da despesa pública que relançamos o crescimento económico. O que conseguiremos é, transitoriamente, uma maior animação no comércio, mas seguida logo por um défice acrescido nas nossas contas com o exterior, induzido pelo aumento das importações para satisfazer esse aumento artificial da procura interna, e uma situação insustentável a médio prazo. Qualquer dinamização da economia pelo recurso ao aumento da despesa pública tem o efeito de uma droga. Quando o seu efeito passa, o drogado fica na ressaca e mais dependente que antes. E quanto mais droga se injecta, mais dramático e doloroso vai ser o tratamento dessa dependência.

Portugal teria que descer a sua despesa pública em cerca de 10 pontos percentuais, menos 20% a 25% da actual despesa pública em valores reais. Ora os dois últimos governos, com as mezinhas que as nossas disposições constitucionais permitem e a falta de coragem que os caracterizou, apenas conseguiram garrotar a aceleração anterior. Mas como se viram, entretanto, confrontados com a recessão económica e com a estagnação do PIB real, a despesa pública não diminuiu em termos de percentagem do PIB, antes aumentando, embora a uma taxa muito menor que anteriormente.

O OE para 2005, como escrevi aqui diversas vezes, procurava continuar uma estratégia de controlo do défice orçamental baseada na diminuição do peso do Sector Público Administrativo na economia, fundamentalmente à custa da contenção da despesa corrente primária, mantendo o peso da despesa de capital no PIB. Essa estratégia é correcta, como orientação geral, mas insuficiente em termos quantitativos. O actual governo pactuou com a “necessidade” de satisfazer a tentação eleitoralista dos seus autarcas e de si próprio.

Esse eleitoralismo observa-se também na inversão de prioridades fiscais do OE 2005, favorecendo o consumo e penalizando a poupança. O aumento do rendimento disponível vai induzir um aumento nas importações e um agravamento do desequilíbrio nas nossas contas com o exterior

O nosso problema estrutural é a dimensão do Estado e o seu mau funcionamento. No que toca às empresas e à sua competitividade, a burocracia estatal e, principalmente, a ineficácia da justiça, que inviabiliza, na prática, o cumprimento dos contratos e a cobrança das dívidas, são os factores mais penalizadores. Ou seja, o Estado degrada a competitividade das nossas empresas por duas vias: sugando a seiva do nosso tecido produtivo e não assegurando a função vital em economia, que é proteger a propriedade privada, pois não protege o credor face ao caloteiro, nem a vítima do incumprimento contratual, perante o burlão ou o contraente de má fé.

Actualmente, estamos com um nível de despesa pública cerca de 50% do PIB. Se não pusermos cobro a isto, nós, os nossos filhos e os nossos netos poderemos ter de suportar impostos na casa dos 60% e 70% do PIB, o que seria completamente inviável em termos de crescimento económico e em termos de nível de vida. Antes disso haveria algum cataclismo económico e político.

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outubro 15, 2004

Nobel lá, IgNobel cá

O prémio Nobel da Economia atribuído a Kydland e Prescott representa algo como um prémio Ignóbil da Economia atribuído aos políticos portugueses, particularmente aos que nos têm governado. Porque uma parte substancial dos trabalhos daqueles dois economistas, e que tanto terá entusiasmado o júri do Banco Central da Suécia, refere-se a uma matéria na qual os governantes portugueses têm agido exactamente em sentido oposto. Julgo que Kydland e Prescott, nas suas aulas e ao leccionarem as matérias que os levaram ao galardão máximo, deveriam enunciar um «Case Study» relativo à governação portuguesa, com visitas guiadas às nossas instituições, e seminários com todos os políticos que, nas últimas décadas, exerceram funções governativas em Portugal. Assim os alunos ficariam com a noção exacta e precisa de tudo o que se não deve fazer.

Kydland e Prescott construíram uma teoria destinada a compreender por que algumas políticas económicas têm efeito oposto ao desejado – é a questão da inconsistência intertemporal, que relaciona a discrepância entre as decisões políticas tomadas em diferentes momentos do tempo e as expectativas de diversos sectores da sociedade. Ou seja os decisores políticos tomam deliberações que defraudam as expectativas dos agentes económicos, empresas e famílias, geradas por decisões políticas anteriores.

Um governo pode, por exemplo, anunciar uma determinada política, as pessoas fazerem as suas escolhas a curto e a longo prazo, baseadas nas expectativas geradas por aquela política, e ser tentador para o governo formular, posteriormente, uma nova política, com o intuito de aproveitar as escolhas entretanto feitas pelos agentes económicos para obter resultados económicos e financeiros que julga serem mais positivos. Ora o que ficou provado é que essa inconsistência intertemporal (que em Portugal se traduz por o «Estado não é uma pessoa de bem») acaba por ter efeitos contrários aos pretendidos. O resultado é que a política económica do governo perde a credibilidade e uma sucessão de políticas de optimização de curto prazo quase nunca conduz aos melhores resultados no longo prazo.

Ora este destino tem sido o fado dos portugueses, governantes e governados. Anunciam políticas, legislam em conformidade, suscitam expectativas, incentivam escolhas dos agentes económicos quer a nível do consumo, quer a nível do investimento, quer ainda a nível do endividamento, e depois, tendo em conta essas escolhas, muitas com efeitos (ou sem possibilidade de derrogação) a longo prazo, anunciam novas e contraditórias políticas, revogam as leis e legislam de novo, defraudam as expectativas existentes e criam a ideia que o Estado não é uma pessoa de fiar.

Se o Estado não é uma pessoa de fiar, ele não pode esperar racionalidade no comportamento dos agentes económicos, ou melhor, a racionalidade dos agentes económicos passa a incorporar, na construção do seu julgamento, a noção de que o Estado não é fiável. Será uma racionalidade enviesada, com resultados inesperados face à «racionalidade normal».

Ora uma das hipóteses de base do bom funcionamento da economia e da maximização do bem-estar é a da racionalidade económica. Se os agentes económicos não têm racionalidade económica, ou se a sua racionalização das decisões a tomarem se baseia na certeza de que, do Estado, não podem esperar certezas, antes suspeitarem o pior, os equilíbrios que se venham a formar neste mercado singular serão de previsibilidade difícil e certamente nunca conduzirão à maximização do bem-estar económico, nem de perto, nem de longe.

Outra tese dos mesmos autores é a de que os choques macroeconómicos com origem do lado da oferta têm efeitos mais profundos do que os do lado da procura. Ora o que tem sido feito em Portugal é exactamente o contrário – incentivar a procura através do aumento da despesa e depois tentar controlar desesperadamente o défice através do aumento das receitas porquanto a despesa pública tem uma característica muito incómoda: é de uma enorme rigidez.

Em Portugal, nos últimos anos, a tomada de medidas de curto prazo tem prevalecido nas decisões dos governos e das empresas, em detrimento dos objectivos estruturantes de médio e longo prazo. Em Portugal têm sido seguidas as políticas que Kydland e Prescott provaram conduzir a resultados indesejados.

É claro que a abordagem de Kydland e Prescott ajudou a fortalecer instituições credíveis e independentes do poder político, como dar cada vez mais autonomia e independência aos Bancos Centrais, a criação do Banco Central Europeu e o estabelecimento do PEC. Sempre com o intuito de evitar que os governantes tomem decisões com as “palas” postas, impedindo de ver tudo o que não se relaciona com as necessidades eleitorais. Devemos ao PEC que a nossa deriva económica não nos tivesse levado ao abismo. Não foi aos nossos governantes. Eles apenas agiram pressionados pelo PEC e não pelos seus instintos naturais.

Esperemos que não haja recaídas. Mas se tal acontecer, ao menos que o Case Study Portugal tenha a merecida audiência nas universidades americanas. Fazia-nos muito jeito sermos visitados por fornadas de alunos dos States, estudando o nosso país em seminários prolongados (há cá tanto que aprender como se não deve governar uma economia), dinamizando a hotelaria, a restauração e outros serviços.

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setembro 30, 2004

Eficiência-X

A diferença abissal na actuação e no desempenho entre a Compta (com um volume de negócios anual médio de 28 milhões de euros) e a ATX Software, ilustre desconhecida até ontem (tem um volume de negócios anual médio de 4,2 milhões de euros), sugere-me duas reflexões: uma de índole teórica e outra resultante da prática.

Em Economia, no estudo das fontes das economias de escala, designa-se por Eficiência-X (X-efficiency) a existência de uma eficiência, a nível de qualidade técnica e de desempenho e resultados, não explicável em termos de dimensão. Como aquela eficiência não era explicável, do ponto de vista da fundamentação teórica das Economias de Escala, apôs-se-lhe X, a incógnita matemática por excelência. O oposto, isto é, a causa que leva a que empresas de maior dimensão tenham a qualidade técnica, o desempenho e os resultados muito inferiores aos expectáveis em termos da sua dimensão, designa-se por Ineficiência-X.

Obviamente que tudo é explicável. O problema é que há explicações que são quantificáveis e adequadas para serem introduzidas em modelos matemáticos, e outras de contornos mais difusos e não quantificáveis. Normalmente a Eficiência-X aparece em empresas pequenas ou médias, especializadas em produtos (bens ou serviços) cujo processo produtivo se baseia num know-how muito específico detido pelos indivíduos que constituíram aquelas empresas. Há outras causas que têm sido igualmente propostas, mas ficamos pela que enunciei, a mais evidente e que mais nos interessa no caso em apreço.

À medida que os anos passam sucede com frequência que os sócios fundadores vão perdendo motivação (e enriquecendo) e 2 ou 3 décadas depois, a empresa, com os mesmos sócios, ou com outros que terão entretanto comprado a empresa, já não tem qualquer Eficiência-X. A cadeia hierárquica alongou-se, as motivações individuais perderam-se e entra-se lentamente na fase da Ineficiência-X. A Compta é agora o que poderá vir muito bem a ser a ATX Software dentro de 2 ou 3 décadas.

Saiamos agora da teoria económica e passemos à prática dos negócios informáticos. Empresas como a Compta, e outras com nomes sonoros, vivem à custa do aparelho de Estado e das empresas privadas com alguma dimensão, ou mesmo grandes, mas onde os directores informáticos ou não existem, ou são gente que foi provida no cargo, mais por serem da confiança da administração, do que por competência informática. Quando não se percebe de uma matéria, ainda por cima misteriosa, como computadores, servidores, redes e programas, a tendência dos responsáveis pela informática nessas entidades é protegerem-se, limitando as suas escolhas às firmas com “nomes sonantes”. Se der para o torto estão abrigados atrás da frase:

- Pois quê? A WXYZ, SA é uma firma de grande projecção e é um nome consagrado no mercado! Tive imenso cuidado na consulta ao convidar apenas firmas de reputação segura.

As empresas mais qualificadas, com quadros mais habilitados e cujos directores ou chefes dos serviços informáticos dominam a matéria, não recorrem a empresas tipo “Compta”, mas sim a empresas mais pequenas, mais especializadas no tipo de problema que querem resolver, mais ágeis na compreensão e solução desse problema e com custos muito menores, incomparavelmente menores. Como conhecem o negócio, sabem minimizar não só os riscos, como, em muito maior grau, os custos.

Os custos informáticos (equipamentos e software) suportados por empresas bem geridas e conhecedoras da matéria são abissalmente menores que os suportados pela administração pública e empresas mal geridas (às vezes de um para dez) com a vantagem de se ficar, sempre, mais bem servido.

E o mais espantoso, ou talvez não, é que cobrando incomparavelmente menos dinheiro, essas pequenas empresas, altamente qualificadas e muito mais dinâmicas, chegam ao fim do exercício com lucros, enquanto as “Comptas” vão acumulando prejuízos, mesmo ordenhando as vacas “Estado” e “empresas obesas”.

O que aconteceu no Ministério da Educação acontece invariavelmente em toda a administração pública, mas não é apanágio desta – também acontece em empresas mal geridas ou que sofrem de gigantismo ou obesidade gestora.

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agosto 28, 2004

A Sociedade de Mercado e Agressões Ambientais

Acusa-se frequentemente a economia de mercado de situações nocivas para a sociedade. Um caso curioso em que o mercado é acusado de gerar situações gravosas para a qualidade de vida das populações, refere-se aos prejuízos ambientais. O que é curioso é que as acusações sobre um alegado mau funcionamento do mercado são injustas. Vejamos porquê:

As acções sobre o meio ambiente são designadas, em linguagem económica, como externalidades (custos ambientais e de escassez). Estas externalidades apresentam uma característica interessante: elas resultam da inexistência ou definição imprecisa dos direitos de propriedade, nomeadamente porque agem sobre os recursos naturais - ar, oceanos, rios, lençóis de água subterrânea, vida animal e vegetal. Se fosse possível o estabelecimento de direitos de propriedade sobre todos os recursos atrás referidos, tal eliminaria a maioria dessas externalidades ou favoreceria o seu controlo.

Se aquelas externalidades tivessem os seus preços determinados livremente no mercado, assegurando-se previamente a sua propriedade e controlo, a questão cairia no caso do óptimo de Pareto e não precisaríamos de nos preocupar com os seus efeitos. Em teoria (no mundo abstracto da concorrência perfeita), aquelas externalidades deixariam de existir.

Portanto, no caso dos efeitos ecológicos nocivos, a culpa reside nas imperfeições dos mercados. Em primeiro lugar pela impossibilidade de se estabelecerem mercados relativamente à utilização de bens ambientais, por inexistência ou definição imprecisa dos direitos de propriedade. Em segundo lugar porque nos mercados em que as empresas produtoras utilizam recursos ambientais como factores de produção, o custo desses factores era nulo porque esses recursos ambientais não tinham proprietário e eram, por via disso, gratuitos. A inexistência de mercados a montante tornava imperfeitos os mercados a jusante.

Enquanto a produção industrial e agrícola não foi intensiva, não se levantou a questão da escassez dos recursos ambientais. Eles eram em teoria infinitos. Actualmente tal não é possível e é necessário que o meio ambiente seja considerado como um factor económico, sujeito a escassez e com custo alternativo não nulo.

Portanto existe um conjunto de agentes económicos que obtém benefícios com a utilização de recursos ambientais (traduzíveis monetariamente ou não) na maioria dos casos a custo nulo, mas que tem um determinado valor para a sociedade (superior ao custo suportado por quem beneficia). Este valor designa-se por “preço-sombra”. A consequência é a existência de uma divergência entre o benefício ou custo marginal privado e social, levando a que o equilíbrio encontrado não seja óptimo, isto é, não exista uma alocação eficiente desse recurso. E não existe alocação eficiente justamente pela ausência de mercado.

Em termos analíticos, prova-se que o ponto óptimo é atingido quando o benefício marginal actualizado de utilizar uma unidade adicional de um dado recurso iguala o preço-sombra actualizado do recurso (custo de oportunidade para a sociedade de conservar esse recurso).

Como calcular estes valores? Estes custos e/ou benefícios têm metodologias próprias que se utilizam nas ACB (análises custo-benefício) que complementam os estudos de viabilidade económica dos projectos. Podem citar-se vários métodos de aferição dos custos alternativos, nomeadamente o método dos custos evitados, as funções de dose-resposta (caso particular das funções de produção), o método dos preços hedónicos, o método da avaliação contingencial (mercado hipotético), o método da transferência de benefícios, o método de aferir do valor do bem através da predisposição para pagar (WTP - Willingness to Pay) ou receber (WTR - Willingness to Receive) pelos benefícios obtidos ou pelos danos suportados na utilização do bem, conceitos associados ao excedente do consumidor, etc..

A utilização destas metodologias de quantificação do custo dos recursos ambientais gera algum cepticismo no que respeita à sua fiabilidade. Todavia, na fase dos estudos de viabilidade, é possível haver consenso quanto aos seus resultados, porquanto apenas se procura saber se o projecto é viável ou não. O mesmo não sucede no caso das empresas em funcionamento, como é óbvio, dado que aí é a doer .... Vejamos dois exemplos:

No caso do tratamento de efluentes a legislação portuguesa fixou normas gerais de descarga de águas residuais, estabelecendo os valores máximos admissíveis (VMA) das respectivas concentrações nas águas residuais descarregadas nos meios hídricos receptores. As normas de descarga são fixadas, para cada instalação, pela Direcção Regional do Ambiente competente, tendo em conta, cumulativamente, as normas gerais de descarga, os objectivos ambientais, as utilizações da água dos meios receptores e a sensibilidade dos mesmos. O licenciamento de qualquer descarga de águas residuais é condicionado pelo cumprimento das normas de descarga que lhe forem aplicáveis. A violação das normas de qualidade estabelecidas constitui contra-ordenação punível com coima. Se a empresa não tiver uma ETAR própria, associar-se-á a um sistema de tratamento e pagará de acordo com a carga poluente que emitir para a ETAR colectiva.

Portanto, neste caso, as empresas e as famílias (saneamento urbano) pagam custos ambientais relativamente ao que excede a capacidade de regeneração do meio ambiente. Continua a haver uma parcela de utilização do meio ambiente gratuita (1).

Outro exemplo é o caso da extracção de inertes. O equilíbrio a manter é entre o fluxo de sedimentos transportados e depositados no leito dos rios e a quantidade de inertes extraídos. O difícil é haver um cálculo fiável dos sedimentos transportados e depositados, nomeadamente tendo em conta as alterações no leito dos rios (construção de barragens e açudes, etc.). Mas mesmo que houvesse um equilíbrio entre os inertes depositados e extraídos, nada asseguraria que os locais de extracção seriam os mais adequados, como se viu no caso da queda da ponte de Entre-os-Rios. Adicionalmente há uma dificuldade económica: os inertes são materiais usados na construção civil e têm um custo tradicionalmente muito baixo. Na hipótese da introdução de custos reais (admitindo que fosse possível calculá-los) um aumento substancial do preço dos inertes poderia ter um efeito económico muito negativo. A solução que tem sido seguida é a da contingentação das quantidades extraídas e o pagamento de taxas. É uma solução técnica e economicamente errada, mas que decorre da insuficiência de estudos sobre os leitos dos rios e do mau desempenho dos organismos públicos encarregados do licenciamento e da fiscalização.

Resumindo, para influenciar os agentes económicos para uma utilização mais eficiente dos recursos naturais existem diversos métodos. Métodos económicos, onde se incluem os desincentivos ou incentivos financeiros (impostos ou subsídios), tarifas que cubram os custos de reposição da qualidade ambiental (tratamento de efluentes), licenças, ou o estabelecimento de mercados de quotas de poluição (com um preço e transaccionáveis) e métodos não económicos, que limitam de alguma forma a utilização (p.e. consumir apenas em determinadas situações particulares ou alturas do ano, ou em determinados locais de um rio e em quantidades previamente fixadas).

Conclusão: as agressões ambientais das empresas não decorrem de uma perversão dos mercados, mas da inexistência de mercados dos recursos naturais pelas razões acima aduzidas. A solução económica é simular a existência de mercados de recursos naturais e estabelecer custos alternativos para esses recursos. Uma solução extra-económica é limitar coercivamente a sua utilização.


(1) O custo de remoção das cargas poluentes aumenta exponencialmente à medida que se pretende baixar a concentração. Os VMA considerados na legislação pretendem constituir uma situação de equilíbrio que tem em conta a capacidade de regeneração dos meios receptores e a capacidade de solvabilidade dos utentes (empresas e famílias)

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julho 14, 2004

Desemprego, produtividade e despesa

Em complemento ao meu texto de ontem, queria deixar algumas adendas na intenção de clarificar conceitos que, porventura, ficaram menos claros:

1 – Os investimentos públicos têm, no imediato, um efeito dinamizador no nível da actividade económica e no volume de emprego. Todavia esse efeito só é sustentável se essa despesa pública não for feita à custa de um défice orçamental excessivo, nem provocar, pelo aumento das importações induzido pelo aumento do rendimento disponível, um défice excessivo na balança de pagamentos. Portanto, tem um efeito positivo, mas que pode tornar-se ilusório, se não se tiverem em conta os restantes parâmetros macroeconómicos.

O que se verifica pela experiência é que os investimentos públicos não são, por si só, o motor da economia. Vejamos alguns casos:

1 a – A New Deal? Roosevelt nunca conseguiu restabelecer o pleno emprego antes da guerra. O boom americano do após guerra deveu-se ao extraordinário aumento de produtividade durante a guerra, quando a indústria americana teve que produzir mais com menos gente (devido ao recrutamento militar). Foi esse boom que gerou o crescimento acelerado da economia e do volume de emprego após o fim da guerra.

1 b – O enorme crescimento económico da UE durante as 3 décadas que se seguiram ao lançamento do plano Marshall? Resultou do enorme aumento de produtividade conjugado com um substancial alargamento dos mercados e a ausência de uma concorrência internacional competitiva. Mas, por exemplo, o excesso de intervencionismo na economia britânica levou ao seu declínio, às derrapagens orçamentais, à instabilidade monetária e à revolução Thatcheriana que apostou em menos Estado, num Estado apenas regulador. Mesmo a «terceira via» de Blair é contra a herança keynesiana do voluntarismo da despesa pública.

1 c – E onde estão hoje a França e a Alemanha? Incapazes de controlar a despesa pública, com economias estagnadas, sem conseguirem reformar o Estado Social, nem o manterem, embora tentem alimentar, junto dos eleitores, a ilusão de que tal é possível. As políticas públicas podem ser destabilizadoras. Injectar dinheiro na economia pública é como consumir droga: quando acaba o efeito ilusório é preciso mais, cada vez mais.

2 - A teoria keynesiana da propensão marginal ao aforro está errada e os estudos estatísticos demonstram-no. Os agentes económicos determinam os seus comportamentos em termos de consumo e poupança em função da soma actualizada dos seus rendimentos futuros esperados e não na base do rendimento instantâneo. Também há a poupança de precaução que tem a ver com as expectativas relativas à segurança social e sistema de reformas, à evolução do risco de desemprego, etc.. Portanto, parte substancial da formulação teórica básica de Keynes foi contrariada pelos estudos estatísticos posteriores.

3 – No que se refere a Portugal, quando aderimos à moeda única, as taxas de juro portuguesas aproximaram-se por essa razão das que vigoravam no núcleo da futura União. Como Portugal era dos países que tinha taxas de juro mais elevadas, foi dos que mais beneficiou com essa descida. Esse factor, por si só, teve uma incidência acentuada na diminuição do défice pela diminuição dos encargos com a dívida pública. Assim Portugal pôde manter, durante os governos de Guterres, uma política orçamental expansionista e, simultaneamente, reduzir o défice orçamental. Determinados investimentos públicos, como o caso das SCUT’s, que, sem dispêndio de meios financeiros, geraram imediatamente receitas fiscais volumosas (embora criando obrigações futuras) igualmente ajudaram a nascer a ilusão que esta política era sustentável, apesar do excesso de procura criado por aquela política orçamental gerar por sua vez um défice externo crescente.

O resultado foi, posteriormente, a recessão e o desemprego, com as causas e os sintomas que descrevi ontem aqui.

4 – Produtividade

A produtividade, tal como é apresentada nos debates, neste nível de análise, é uma grandeza macroeconómica agregada que tem que ser vista com cautela. Por exemplo, Portugal tem conseguido manter alguma competitividade externa apesar de uma maior inflação e de outros factores negativos decorrentes do excesso de despesa pública. Se a produtividade do sector exportador tivesse aumentado ao ritmo da produtividade da economia portuguesa, já não tínhamos sector exportador. As empresas deste sector tinham falido e estávamos na ruína total. Isto significa que a produtividade do sector exportador aumentou muito mais que a média nacional.

Aliás, o que condiciona o valor da produtividade de um país é a produtividade dos sectores abertos ao exterior. Como a produtividade é medida em termos de capitação do VAB (Valor Acrescentado Bruto), é óbvio que a produtividade dos sectores abrigados do exterior decorre da produtividade dos sectores abertos ao exterior.

Tomemos o exemplo dos cabeleireiros, um sector completamente abrigado do exterior. O custo deste serviço está relacionado com o nível de rendimentos de um dado país, quer no preço da prestação, quer no custo do factor trabalho. O mesmo trabalho é muito mais bem pago em Oslo do que em Lisboa, quer no que respeita à remuneração dos trabalhadores, quer no que respeita ao preço cobrado às clientes. Sendo assim, a produtividade (macroeconómica) do sector cabeleireiro será muito superior na Noruega (o VAB é muito maior, pois os salários e as vendas per capita são muito mais elevados), apesar da produtividade, em termos físicos, ser, mais ou menos, idêntica em Portugal e na Noruega.

Um país é rico e com elevada produtividade quando concorre no mercado internacional com competitividade nas áreas de elevada tecnologia e valor acrescentado. O resto da economia (os sectores mais ou menos abrigados) alinha sempre e necessariamente pela produtividade «macroeconómica» dos sectores abertos, como se viu no exemplo dos cabeleireiros.

Quanto à produtividade do sector público, o seu efeito positivo ou negativo mede-se, de forma indirecta, pelo ónus que isso representa para o sector produtivo. Quanto mais ele custar, para o mesmo serviço que presta, mais dinheiro é cobrado, para o sustentar, às famílias e às empresas, o que faz aumentar os custos no sector produtivo, diminuir a sua competitividade perante o exterior e deteriorar a situação económica do país.

Adicionalmente a sua ineficácia (como a demora da justiça ou a excessiva burocracia, por exemplo) é um factor desmotivador do investimento, interno ou externo, para além de representar um acréscimo de custos no funcionamento das empresas.

Publicado por Joana às 09:17 PM | Comentários (38) | TrackBack

julho 13, 2004

O Desemprego: Mitos e Realidades

Durante as semanas de «crise política» referi várias vezes o desastre que constituiria para o país um governo liderado por Ferro Rodrigues. Essa minha posição foi, frequentemente, tomada como eivada de facciosismo político. Vou aproveitar a calma de um dia em que se espera pacificamente pelas novidades sobre o novo governo para explanar melhor as minhas razões.

O PS de Ferro, aliado ao BE e, eventualmente, ao PCP seria um governo que apostaria no fim da contenção salarial e numa política keynesiana no que respeita à despesa pública. É aliás um aspecto interessante a forma como o socialismo democrático foi abandonando, a partir da cisão dos anos 20, o marxismo e foi ganho, nas últimas décadas, para o keynesianismo. No fundo mantém-se o mito estatizante, o mito da importância do papel dirigente do Estado como o motor do funcionamento da economia.

No keynesianismo, na versão de esquerda, é o aumento dos salários, e em particular dos salários baixos, que constitui o motor da economia. Isto em conjunto com os investimentos públicos, cuja noção da importância no desenvolvimento económico não é, aliás, apenas património da esquerda. Sobeja a indiferença pelos níveis dos défices públicos e das paridades das taxas de câmbio.

Ora uma política de rendimentos expansionista, que os faça aumentar acima da produtividade, produz de imediato um aumento do rendimento nacional em termos nominais. Antes da existência da moeda única, essa política de rendimentos induzia rapidamente um aumento da inflação pelos custos e uma desvalorização cambial. Era um processo relativamente rápido, até que o valor real dos rendimentos, em termos de poder de compra, voltasse ao valor anterior. Os rendimentos reais aumentavam, eram corroídos e caíam, num prazo curto, até chegarem a valores semelhantes aos de onde tinham partido, senão mesmo inferiores.

Com a moeda única, o ajustamento não pode ser feito através da desvalorização cambial. Nem sequer através da inflação, embora o primeiro efeito seja o aumentar da inflação. Simplesmente este efeito está limitado pela necessidade de manter a competitividade das empresas no mercado único europeu.

Portanto o efeito será a recessão e o desemprego. O desemprego aumenta através de vários efeitos conjugados. Há empresas que fazem reajustamentos no volume dos seus efectivos; outras fecham as portas. Muitos destes desempregados encontram um novo emprego depois. Mas, de acordo com o estudo recente realizado pela Faculdade de Economia do Porto, as perdas salariais nos empregos seguintes ao despedimento atingem 10 a 12 por cento.

Portanto o desemprego, mesmo o de curta duração, é uma forma do sistema económico reequilibrar rendimentos e produtividade.

Portanto os reequilíbrios económicos numa situação de moeda única e em caso de aumentos salariais acima da produtividade fazem-se à custa da recessão e do desemprego. O aumento do desemprego, o fecho de empresas e a diminuição do poder real de compra significam recessão económica. É um processo bastante mais lento que o anterior, mas mais profundo e mais difícil de inverter rapidamente. Em Portugal, a política de rendimentos expansionista levada a cabo entre 1995 e 2001, e à qual Pina Moura tentou debalde pôr cobro ainda durante o governo Guterres, só começou a ter um impacte significativo no emprego a partir de 2002, apesar de, logo nesse ano, essa política ter sido invertida. E os efeitos dessa política no volume de emprego vão continuar a sentir-se nos próximos anos. Pelo menos ainda em 2005, e isto se não se cair novamente na ilusão da insensatez salarial.

Trata-se, portanto, de um processo muito mais lento do que o anterior, quer no prazo em que se fazem sentir os efeitos aparentemente positivos provocados pelo aumento irrealista dos salários, quer no prazo que dura a recessão, quando a actuação dos mecanismos de equilíbrio económico repõem a verdade dos factos.

Ou seja, o actual enquadramento económico permite a perversidade de aumentos salariais irrealistas, sem que haja rapidamente a correspondente erosão monetária. Isto é, permite manter durante bastante mais tempo que na época da moeda nacional, uma ilusão de bem estar. Mas se os ajustamentos são muito mais lentos, são também muito mais duradouros e graves. A recessão, o fecho de empresas, o desemprego de longa duração de gente cuja idade dificulta a obtenção de um novo emprego, são situações de enorme gravidade que só muito parcialmente têm remédio após a retoma.

É claro que as regras do PEC tentam evitar que um país caia em semelhante situação. Todavia, no caso português, durante a primeira fase do governo Guterres, a descida das taxas de juro (provocada pela integração no euro), o lançamento das SCUT’s, etc., possibilitaram um aumento irrealista dos salários e da despesa pública sem menoscabo dos limites do PEC durante os primeiros anos. Mas passado o período em que a acção daqueles factores permitiu mascarar a realidade, esta veio ao de cima e a recessão abateu-se sobre a economia portuguesa com a violência que ainda se mantém.

É a perversidade de ser possível manter uma política salarial irrealista cujos efeitos negativos só se começam a tornar visíveis dois ou três anos depois, e cujo saneamento é moroso e envolve pesados custos sociais, que me fez considerar que um governo de Ferro aliado do BE poderia ser um desastre nacional, tendo em conta as opções económicas e sociais que ambos têm revelado. Nomeadamente quando falam convictamente na sua vontade de combater o desemprego sem perceberem quais são as suas causas profundas e pretendendo, inclusivamente, fazer uma política económica que a prazo vai fazer aumentar o desemprego.


Nota - Ler em complemento:
Desemprego, produtividade e despesa

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maio 20, 2004

Santo António e o Pecado do Lucro

A morte de António Champalimaud e os obituários que, nos dias que se seguiram, foram aparecendo nos meios de comunicação, é o exemplo do país que temos – um país pequeno, mesquinho, reverente, que não sabe lidar com o sucesso dos seus filhos.

Entre a subserviência da AR que se “curvou” perante a figura que... e a diabolização feita pelos jornalistas e fazedores de opinião «politicamente correctos», não há qualquer distância: são lídimos exemplares de uma espécie mesquinha e subserviente, porque a mesquinhez e a subserviência são as duas faces de uma mesma moeda.

Champalimaud foi um empresário de sucesso, frio, objectivo e impiedoso. Se não o fosse, não teria feito (e refeito) a sua extraordinária fortuna. Essa frieza tornaram-no numa figura solitária mas única, que os empresários olham com distanciamento, os políticos com desconfiança e os sindicalistas com ódio.

É óbvio que soube aproveitar as facilidades concedidas pela legislação salazarista. Mas é hipocrisia acusá-lo de o ter feito. A legislação existia, porque não a aproveitar? Aliás, se fosse possível “medir a protecção” auferida pelos grandes empresários da época salazarista, certamente que, no caso de Champalimaud, entre o deve e o haver, o benefício líquido de Champalimaud seria inferior ao dos demais.

Ainda hoje, um reverente admirador do bonzo Mário Mesquita, escrevia no Público que «António Champalimaud representava "o mais típico industrial da era salazarista, mandão e prepotente", que erigiu o seu "império cimenteiro e bancário à sombra da protecção que lhe conferia a legislação proteccionista do "condicionamento industrial" e os instrumentos ditatoriais do regime».

Quanto ao “Império Bancário”, sabe-se como a aquisição do BPA por Champalimaud falhou por intervenção do poder político, devido a uma lei posterior feita pelo governo de Marcelo Caetano e com efeitos retroactivos, o que num Estado de Direito seria inconstitucional. Quanto aos Cimentos, o Sr. Luís Costa ignora que a indústria de Cimentos tem uma barreira à entrada fortíssima dada pelo rácio peso/custo muito elevado. Os custos de transporte e a perecibilidade do produto tornam a concorrência a mais de 100 ou 150 kms praticamente impossível. Por outro lado, a dimensão mínima óptima de uma cimenteira é bastante inferior ao consumo anual de cimento em Portugal. Portanto, com ou sem protecção e a menos que houvesse um grande atraso tecnológico, seria impossível a uma cimenteira estrangeira concorrer no mercado português, excepto em algumas áreas fronteiriças do nordeste.

A maior linha de cimentos em Portugal foi construída em Souselas justamente porque aí existe o maciço calcário mais a norte do nosso país. Mas mesmo assim há entrepostos de moagem na Maia e em diversos pontos do norte do país. O produto sai de Souselas ainda na fase de clinker (que não é perecível) e é moído e ensacado nesses entrepostos, onde é distribuído. No caso da Siderurgia, Champalimaud teve efectivamente vantagens. Todavia, uma unidade com aquela dimensão não seria competitiva em economia aberta. E viu-se o que sucedeu, após a nacionalização, com as tentativas canhestras para a manter. Se Champalimaud tivesse continuado à frente da Siderurgia, talvez o país não perdesse tanto dinheiro com a tentativa frustrada de a manter à tona de água.

Este comportamento instável dos portugueses perante o sucesso empresarial é fruto do nosso atraso ideológico. O conceito do lucro como pecado é uma “aquisição” do cristianismo medieval e perdurou nos países católicos, onde a ética protestante não penetrou, nomeadamente naqueles onde o reaccionarismo clerical sobreviveu mais tempo. É conhecida a proposição de São Jerónimo postulando que «dives aut iniquus aut iniqui haeres» (O opulento é criminoso ou filho de criminoso). Nicolau Santos, no Expresso de há dias, punha-a a circular na “versão de Balzac”.

Santo Agostinho exprimiu o receio de que o comércio afastasse os homens do caminho de Deus e a doutrina de que nullus christianus debet esse mercator (Nenhum cristão deve ser mercador) era geral na Igreja dos começos da Idade Média. No Concílio de Latrão de 1179 foi decretada uma série de proibições severas para a usura. Embora com o desenvolvimento da actividade comercial o Direito Canónica começasse a aceitar alguns “desvios” relativamente à “pureza” primitiva, como o conceito do «justo preço» e o do lucrum cessans (lucro cessante) para justificar o juro dos empréstimos em dinheiro, nunca se libertou da concepção pecaminosa do lucro.

Se as doutrinas protestante e puritana foram ou não conducentes, por si mesmas, ao desenvolvimento do espírito capitalista e, portanto, do próprio capitalismo, é problema que não me proponho aqui resolver. O que é historicamente certo é que com o fim do predomínio do Direito Canónico ocorrem profundas alterações nas relações entre o pensamento teológico e pensamento económico. A harmonia entre os princípios da Igreja e a sociedade feudal que fora a determinante da universalização do âmbito do Direito Canónico, declinou com o fim da sociedade feudal. O pensamento canónico, como concepção social, pretendeu encontrar a unidade onde ela não existia, e manteve-se vigente enquanto o equilíbrio instável se não rompeu por completo. Não obstante as tentativas sucessivamente feitas para introduzir elementos éticos, como esteios da armadura do pensamento económico, este rompeu com eles, ante as solicitações dos novos impulsos sociais que lhe eram antagónicos.

É curioso igualmente verificar que, contrariamente às ideias de Marx sobre os países onde as concepções comunistas se afirmariam mais cedo, foi exactamente nos países da Europa Ocidental mais atrasados que os Partidos Comunistas se revelaram mais fortes e têm sobrevivido mais tempo. Se exceptuarmos a Alemanha imperial e de Weimar (que constitui um caso específico, explicado por outras circunstâncias), é no sul da Europa que os partidos comunistas se têm mantido com maior capacidade de sobrevivência.

Nos países onde a ética protestante mais se entranhou na sociedade, os partidos comunistas e afins são, praticamente, inexistentes. Igualmente nesses países o sucesso empresarial é visto com uma óptica completamente diversa daquela que predomina nos países em que o clericalismo mais perdurou.

No fundo, o horror ao lucro, pecaminoso e demonizado, une o clericalismo tardio (o Direito Canónico medieval) e o comunismo, nomeadamente o comunismo cujos conceitos cristalizaram no leninismo. Esse horror ao lucro e ao sucesso empresarial permanece entranhado na nossa sociedade, mesmo nas elites intelectuais que pululam na comunicação social e que se julgam avançadas e modernistas. É uma mistura paradoxal do reaccionarismo clerical milenar, entranhado no subconsciente social, caldeado por conceitos leninistas ultrapassados e esvaziados de conteúdo.

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dezembro 19, 2003

Como fazer dinheiro sem ser na Bolsa

O Samuel era um comerciante judeu, probo, de cabedais sólidos, bem conceituado na praça.
Um dia, de manhã cedo, a caminho da sua loja, o seu olhar caiu casualmente num anel que refulgia, abandonado à sua sorte, no empedrado da calçada. Circunvagou prudentemente o olhar, a ver se algum transeunte o estaria a observar, ou pudesse ser o dono daquela preciosidade e, em face da rua deserta àquela hora tão matinal, baixou-se, apanhou o anel e guardou-o.

Ao fim da tarde, quando descia os taipais e se aprestava para regressar a casa, deu de caras com o Isaac, um outro abastado judeu que tinha uma loja ao lado, e não pôde deixar de lhe dizer:
- Encontrei este anel. É belíssimo e vou oferecê-lo à Rebeca (o Samuel, para além de honesto comerciante, era um marido amantíssimo)
O Isaac observou o anel e inquiriu:

- Sabes, eu ando há semanas para oferecer qualquer coisa à Ruth (o Isaac, para além de honesto comerciante, era também um marido amantíssimo). Compro-te o anel por 200€.
A oferta era tentadora. Afinal era um anel encontrado ao acaso do trânsito. O Samuel aceitou e vendeu o anel.
Quando chegou a casa, contou a história à Rebeca, sem referir obviamente a sua intenção inicial de lhe oferecer o anel (mesmo nos melhores casamentos é imprudente contar-se tudo ao cônjuge). Enalteceu apenas o negócio que fizera. Mas a Rebeca, perspicaz, contrapôs:
- O Isaac é um negociante muito vivo e deve ter-te enganado. Esse anel vale certamente muito mais. Tu devias reavê-lo.
O Samuel nem dormiu com a tranquilidade habitual. Assim que de manhãzinha chegou à loja, foi ter com o Isaac e propôs-se comprar-lhe o anel. Falou no desgosto da Rebeca, na iminência de um processo de divórcio, etc.. O Isaac regateou, mas acabaram por se entenderem e a transacção fez-se por 250€.
Quando chegou a casa o Isaac disse para a Ruth:
- Hoje ganhei 50€. Revendi o anel ao Samuel.
Mas a Ruth, que também era perspicaz, retorquiu:
- O Samuel enganou-te. Há qualquer coisa com o anel. Esse anel vale certamente mais. Tens que reavê-lo.
Essa noite foi a vez do Isaac ficar com insónias. No dia seguinte novo regateio e nova transacção. O Isaac comprou o anel por 300€.
Não contava porém com a Rebeca. Nessa noite a Rebeca encheu os ouvidos do Samuel sobre a evidência do negócio chorudo que o Isaac fizera.
No dia seguinte, nova transacção: O Samuel comprou o anel ao Isaac por 350€.
E as desconfianças continuaram e as transacções prosseguiram:
No 5º dia o Isaac comprou o anel ao Samuel por 400€.
No 6º dia o Samuel comprou o anel ao Isaac por 450€.
No 7º dia o Isaac comprou o anel ao Samuel por 500€.
No 8º dia o Samuel comprou o anel ao Isaac por 550€.
E todos os dias um deles saía feliz da transacção com um ganho de 50€, até que o debate com a respectiva mulher lhe fazia ver que poderia ganhar mais ainda.
Estas transacções prosseguiram, até que, no enésimo dia, quem era então o detentor do anel, perdeu-o. Ainda hoje não sabe como tal infortúnio lhe pôde ter acontecido.

Nesse dia, como de costume, o outro comerciante veio ter com ele e, resolutamente, propôs-se comprar o anel outra vez. Fez-se um silêncio de chumbo. O que tinha perdido o anel balbuciou, entre dentes:
- Sabes ... perdi-o
O outro ficou desesperado, e revoltado, gesticulando ameaçadoramente, invectivou-o:
- Como? Perdeste o anel? Tu perdeste o nosso ganha pão?!

E ambos se abraçaram comovidos. Tinha sido um rude golpe comercial. Todos os dias, alternadamente o Samuel e o Isaac, um deles ganhava 50€. Era um ganho seguro e sólido, e a desventura do destino tinha-lhes retirado essa fonte de rendimento.

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dezembro 09, 2003

Claro que não está certo abusar da ingenuidade da juventude

O “Blogo existo” elogia a “invulgar seriedade” com que Semiramis “se debruça sobre os temas que aborda” e acrescenta amavelmente que, “O cuidado que põe na argumentação não pode deixar de seduzir um racionalista em part-time como eu”.

Escreve seguidamente que fica todavia surpreendido pela “credulidade da autora em relação à ciência que abraçou”, e refere em abono dessa alegação diversos autores e manuais de macro e microeconomia.

Sem pôr de parte que possa existir da minha parte credulidade, reparo que você vê, ou pelo menos cita, a ciência económica baseado na elegância matemática, mas estilizada, dos modelos macro e microeconómicos. Isso, deixe-me dizer-lhe, é redutor.

Tem razão num ponto. Frequentemente os professores dessas matérias esquecem-se de esclarecer os alunos que são modelos que se destinam a dar uma ideia do comportamento dos agentes económicos e que as relações analíticas exactas desenvolvidas matematicamente (ou geometricamente, como diz) não devem ser interpretados quantitativamente (excepto nos testes, para se avaliar se os alunos os perceberam) mas apenas qualitativamente.

Pior, frequentemente são modelos com domínios de validade, mesmo apenas no que respeita à descrição do comportamento dos agentes económicos, claramente insuficientes. Mas isso é sabido, faz parte da Teoria Económica e só por descuido dos professores e/ou distracção dos alunos, estes não reparam nisso.

A escola clássica inglesa, que procurou desde o início estabelecer relações lógicas entre padrões de comportamento e escassez de recursos, envolvendo um alto grau de abstracção e o recurso a ferramentas matemáticas, foi extraordinariamente enriquecida com as discussões teóricas e práticas emergentes da “Sherman Act” (1890), quando economistas (e os tribunais) se envolveram em disputas acérrimas sobre a forma como as estruturas de mercado influenciavam os comportamentos das firmas e em que medida determinadas situações de oligopólio (ou monopólio) violavam a concorrência. As investigações e os debates em tribunais forneceram aos economistas um grande acervo de informações sobre os comportamentos dos agentes económicos e as estruturas de mercado. Muito da teoria económica se tem desenvolvido a partir dessas disputas legais, que continuam a ocorrer, como foi o caso recente da Microsoft. A teoria dos Mercados Contestáveis nasceu, na década de 80, da controvérsia legal acerca de uma alegada situação de monopólio.

Quando digo enriquecida, refiro-me aos diversos modelos que foram sendo propostos para descrever esses comportamentos. Mas refiro-me igualmente ao aparecimento da “Industrial Organization” que parte do paradigma Estruturas-Comportamento-Resultados, que resumidamente refere que os resultados de uma dada indústria ou mercado dependem do comportamento dos agentes económicos (compradores e vendedores) que se confrontam nesse mercado em áreas como políticas de preços, práticas comerciais, investigação e desenvolvimento, investimento em instalações produtivas, etc.. Os comportamentos dependem, por sua vez da estrutura de um dado mercado, abarcando parâmetros tais como número e distribuição dimensional dos vendedores e compradores, grau da diferenciação (física ou subjectiva) do produto, presença ou ausência de barreiras à entrada de novos produtores, estrutura de custos, grau de integração vertical, etc..

Por sua vez, a estrutura de mercado e os comportamentos interagem com as condições de base. Por exemplo, do lado da oferta, a localização da matéria prima, a tecnologia disponível, durabilidade (ou perecibilidade) do produto, rácio valor/peso, condicionantes ambientais, regulamentos estatais e enquadramento legal, padrões produtivos (por exemplo, produzir por encomenda, ou produzir para armazém – no caso em apreço, para depósito), etc.. Do lado da procura, a elasticidade preço-procura, produtos substitutos (elasticidades cruzadas da procura), taxa de crescimento e flutuações da procura, procura sazonal ou cíclica, padrões de aquisição (por exemplo, transacções através de listas de preços ou por concursos com propostas lacradas).

Ora os modelos iniciais baseavam-se nos “7 axiomas” da concorrência:
Atomicidade do mercado (grande número de concorrentes)
Homegeneidade do produto – não havia diferenciação dentro do mesmo produto (ausência de marcas, modelos, etc.)
Ausência de barreiras à entrada - inteira liberdade (legal e económica) de entrar e sair.
Transparência do mercado (todos conhecem exactamente as qualidades e preço do produto)
Mobilidade perfeita dos factores de produção (capital e trabalho)
Independência dos agentes económicos (não há conluios)
Racionalidade económica absoluta (minimizar para cada produto o consumo dos factores e para cada combinação de factores escolher a técnica que maximiza a produção)

A empresa microeconómica pressupõe um único decisor e um único objectivo (em geral a maximização do lucro). A sua metodologia é simples e linear: dispondo de um informação exacta sobre os seus custos (a sua função de custo) e sabendo interpretar rigorosamente os sinais do mercado (a procura e oferta das restantes firmas), ela é conduzida à solução óptima produzindo uma quantidade tal que, relativamente à última unidade produzida, o seu custo iguale a sua receita (Cmg=Rmg).

Por sua vez o mercado onde aquela empresa está inserida é perfeitamente transparente e o seu funcionamento não oferece a mínima incerteza, dado que é possível serem estabelecidas relações analíticas rigorosas que ligam funcionalmente padrões de comportamento e escassez de recursos. As acções e reacções que a procura e as empresas concorrentes estabelecem mutuamente estão perfeitamente balizadas por aquelas relações funcionais.

Mesmo as eventuais alterações dos padrões de comportamento dos agentes económicos com que o empresário da microeconomia está confrontado são imediatamente absorvidas, dado se supor que este tem a possibilidade de ajustar imediatamente o seu nível produtivo ou o seu preço, maximizando automaticamente a sua variável objectivo.

Embora a concorrência pura e o monopólio apresentem aspectos muito distintos, os modelos de tais mercados, de grande importância do ponto de vista conceptual, tratam-se da mesma forma. O empresário da teoria neoclássica, que opera tanto em concorrência como em monopólio está confrontado com um meio ambiente definido mecanicamente pela curva da procura e a sua estratégia é linear: maximiza o lucro. As estratégias dos concorrentes não influenciam directamente o nosso empresário pois este, na realidade, só está confrontado com uma curva de procura (p = p(q) no caso do monopólio e p = constante no caso da concorrência perfeita).

No entanto, a verificação progressiva de que o que existe nos principais mercados industriais são oligopólios, levou à necessidade de conferir uma atenção cada vez mais vasta ao funcionamento do oligopólio. Esse interesse manifestou-se no estabelecimento de alguns modelos que tentavam explicar o comportamento dos oligopolistas e prever os pontos de equilíbrio daí decorrentes. A complexidade da questão levou a que se formulassem hipóteses determinísticas sobre o comportamento das empresas no intuito de se conseguirem obter relações funcionais que possibilitassem a determinação matemática de soluções de equilíbrio.

Essas hipóteses, embora permitindo obter soluções analiticamente elegantes, rebaixavam, pelo seu determinismo, o empresário da teoria neoclássica a um nível bastante modesto na hierarquia da actividade racional.

Na verdade, não é possível perceber como os duopolistas de Cournot continuam imperturbavelmente a formular estratégias sobre as quantidades a produzir baseados no pressuposto, que nunca se confirma, de que o concorrente mantém as suas quantidades constantes.

Os economistas desenvolveram igualmente modelos tentando explicar situações de violação – Cartel, Firma-líder, preço-limite, etc., mas estes modelos não forneceram à Teoria Geral do Oligopólio, até agora, uma explicação cabal e universal do processo de tomada de decisão dos oligopolistas.

Uma outra abordagem consistiu na utilização da Teoria dos Jogos para analisar os comportamentos dos oligopolistas. Mas esta abordagem é limitada. É possível utilizar a Teoria dos Jogos como modelo de tomada de decisões face a estratégias dos adversários ou concorrentes, níveis de procura ou quaisquer outros acontecimentos futuros que possam influir nas variáveis de mercado com que uma firma é confrontada e que, portanto, possam influir nas estratégias que se irão adoptar e condicionar os seus resultados e relativamente aos quais não é possível ligar uma probabilidade objectiva. Há apenas uma ideia, mais ou menos precisa da verosimilhança da sua ocorrência. Estamos portanto num futuro totalmente incerto. Uma outra hipótese de base é a de que a lista desses acontecimentos futuros é completamente conhecida.

Conhecem-se alguns modelos sugestivos desta abordagem: o dilema do prisioneiro, o equilíbrio de Nash, etc. O facto destes modelos se terem desenvolvido principalmente pela necessidade de estudar o comportamento e as estratégias do “inimigo” durante a guerra fria, e só posteriormente começaram a ser usados na teoria económica, diz bem do carácter forçosamente limitado do âmbito da sua aplicabilidade.

Teve mais êxito a “Industrial Organization”. Para ela, a empresa real:
1- Não está centrada num único decisor – é uma organização administrativa complexa cuja estratégia de actuação depende das relações de força existentes dentro dela: accionistas, gestores, quadros superiores, trabalhadores, etc.
2 - Não reage automaticamente a estímulos – tem que planificar no espaço e no tempo o seu horizonte económico, nomeadamente as empresas cujos activos são bens cujo prazo de investimento é dilatado.
3 - Tem um algum poder sobre os preços e sobre a curva da procura.

Igualmente na caracterização das estruturas de mercado a linearidade da teoria fica longe das complexas relações que se estabelecem no mundo real. É um facto que o poder, a força e a coacção são conceitos congenitamente estranhos à teoria económica elaborada pelos clássicos ingleses. A luta destes era exactamente contra os privilégios e outras coacções extra-económicas. Introduzir em modelos explicativos situações de dominação e de coacção estava bem longe dos pais da ciência económica.

Nessa medida, embora reconhecendo a importância da microeconomia como abordagem qualitativa válida em muitos aspectos da análise económica, reconhece-se igualmente a sua inadequação em analisar as relações entre as modificações das variáveis das estruturas industriais e as consequentes modificações do comportamento das firmas.

Outra imperfeição resulta da inadequação do modelo de concorrência pura e perfeita na indústria, mesmo quando aparenta existir uma certa concorrência. Esse reconhecimento levou a formular a teoria da Concorrência Praticável (Workable Competition) que tenta caracterizar as actuais estruturas de mercado.

Essa Concorrência Praticável implica um alargamento das variáveis concorrenciais (como p. ex., admitir certos fenómenos rejeitados pelo modelo tradicional – concentração, não homogeneidade do produto, etc.), é essencialmente dinâmica (o carácter concorrencial de um comportamento só pode ser apreciado após se ter analisado as suas repercussões a longo prazo e o equilíbrio instantâneo é substituído por conceitos que tomem em conta o tempo, prazos de adaptação, o carácter instável e evolutivo do mercado, etc.) e é pragmática e relativista.

E um dos seus axiomas (2nd Best) é claro: se uma ou mais das condições necessárias para a realização do Óptimo de Pareto não estão realizadas, não é em geral, nem necessário, nem aconselhável, procurar satisfazer outras condições.

Portanto, quando se folheia um manual de microeconomia (ou macroeconomia) tem que se ter em atenção tudo isto. Modelos matemáticos que simulam comportamentos de agentes económicos têm as suas limitações e tomá-los como um “axioma” é errado . Tem que se ter a noção dessas limitações e fazer com que os alunos se apercebam disso. Se não se fizer tal acontece uma de duas coisas:

1 - Os alunos ficam, como o João, a “desconfiar de uma parte substancial da teoria económica pela simples razão de que está tão longe de qualquer método reconhecidamente científico como a escolástica medieval”, perdendo o interesse por ferramentas de análise que são extremamente úteis, desde que se conheçam as suas limitações e a sua aplicabilidade;

2 – Os alunos ficam com uma certeza inabalável naqueles modelos e, quando passam a docentes (infelizmente os docentes são muito mais crédulos que os economistas “práticos” pois lhes falta a experiência da vivência prática das situações) reproduzem as certezas dos modelos microeconomicos para a sua crédula e/ou desconfiada assistência.

Publicado por Joana às 07:48 PM | Comentários (8) | TrackBack