dezembro 29, 2004

Balanço Negativo

O fim do ano aproxima-se e é tempo dos balanços. Infelizmente o balanço não é positivo e as perspectivas futuras são ainda mais negativas. Em fins de 2003 e no início deste ano as perspectivas eram animadoras embora reservadas. Os indicadores macroeconómicos do país acusavam então uma evolução positiva. As diminuições do consumo privado e público haviam conduzido a uma forte retracção da procura interna. Como a propensão marginal à importação é muito elevada, nomeadamente em flutuações marginais da procura interna, essa retracção havia levado a uma importante quebra das importações.

Como a quebra da procura interna foi parcialmente compensada pelo aumento das exportações (procura externa), esta conjugação de factores permitiu um maior equilíbrio da Balança de Pagamentos (que passou de cerca de –9% do PIB em 2001 para cerca de –2,5% em 2003) e, portanto, a uma situação mais saudável da economia portuguesa. O facto de, com a crise internacional, as nossas exportações terem tido um aumento significativo, era um bom sinal.

Já era mais preocupante a forte quebra na Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), embora o Governo afirmasse então que se tratava do investimento menos produtivo e, por isso mesmo, de menor impacte no crescimento económico. Mas não levei na altura aquela afirmação muito a sério, porquanto nessa FBCF se contabilizavam, certamente, os montantes despendidos nos estádios para o Euro 2004 que não era, de forma alguma, um investimento produtivo.

Outra situação preocupante era a Ministra das Finanças revelar-se incapaz de controlar o défice pelo lado da despesa, como seria o desejável. Portanto o montante do défice iria depender das receitas geradas pelo hipotético aumento da actividade económica.

Infelizmente os maus presságios confirmaram-se e as previsões optimistas goraram-se. O aumento da procura interna do primeiro semestre traduziu-se num acentuado aumento das importações, enquanto as exportações têm patinado, devido à estagnação da competitividade do sector exportador português, potenciada pela queda do dólar, em cerca de 8% durante 2004. A conjugação desses dois factores agravou o défice da nossa Balança de Pagamentos, invertendo a tendência verificada no ano de 2003.

O Euro 2004 contribuiu para o melhor clima económico sentido no primeiro semestre. Mas esta melhoria não era sustentável, porquanto não resultava de nenhuma situação estrutural, mas de uma situação meramente conjuntural. Além do que o governo de Durão Barroso havia perdido a sua inicial fúria reformista, fúria que aliás era mais verbal que real. Verba non res foi a divisa de Durão Barroso. Havia no governo de Barroso diversos ministros e secretários de Estado cuja remodelação era urgente e o chefe do executivo foi adiando essa remodelação, por razões que não consigo atingir, mas que julgo deverem ser procuradas na sua falta de coragem política, de preferência a qualquer estratégia política suicidária.

A saída de Barroso e a sua substituição por Santana Lopes trouxe objectivamente uma melhoria. A equipa ministerial de Santana, com uma ou outra excepção, era claramente melhor que a anterior. Foi um governo que desenvolveu uma grande actividade para um tempo de existência tão reduzido. Meteu ombros a reformas que exigiam grande coragem política e que, até então, todos os governantes tinham evitado.

Todavia algumas dessas reformas pecavam por diversos erros. A Lei do Arrendamento Urbano era insuficiente, privilegiava o comércio perante a habitação, e os condicionalismos impostos aos aumentos das rendas comerciais tornavam esses aumentos praticamente impossíveis. Por outro lado aquilo que é um travão ao funcionamento do mercado de arrendamento é o incumprimento contratual da maioria dos inquilinos que já celebraram os contratos de arrendamento no regime de liberdade contratual, posterior a 1990. Aliás a dificuldade em cobrar dívidas em Portugal é um travão ao funcionamento de todos os mercados, e não apenas o do Arrendamento Urbano. Neste último caso é duplamente grave pois, além de não pagarem renda e da morosidade das acções de despejo e das acções de execução da sentença, o senhorio recebe uma casa que necessita de obras de recuperação.

Há que desburocratizar o regime jurídico que vigora nestes casos, de forma a facilitar os despejos por não pagamento das rendas e agilizar todo o processo de cobrança coerciva das dívidas. Portugal é um paraíso para os caloteiros. Um dos sustentáculos do bom funcionamento de uma economia de mercado é a protecção da propriedade privada. Ora um caloteiro rouba, objectivamente, a propriedade de outrem e, em Portugal, fica impune, a menos que as dívidas sejam importâncias suficientemente vultuosas que sustentem as custas de acções judiciais. Mas mesmo assim, cobrar uma dívida sai caro e é um processo muito moroso.

Se objectivamente o governo de Santana Lopes constituía uma melhoria, subjectivamente foi ferido de morte pelo comportamento do PR e pelo vampirismo da Comunicação Social que o comportamento do PR incentivava. Foi a demora caricata, excessiva e injustificada na indigitação do governo; foi o discurso de posse, que era um convite à instabilidade social e mediática; foram diversas atitudes durante aqueles quatro meses que diminuíram a força política do governo, sempre sob a permanente ameaça de demissão. Não era possível governar naquelas circunstâncias, com a permanente oposição do PR e o vampirismo mediático estimulado pela fragilidade institucional do governo.

A dissolução da AR e a demissão do governo foi o corolário lógico de todo este processo nefasto.

Portugal está numa situação muito difícil. Objectivamente já aqui a descrevi por diversas vezes. Mas subjectivamente é pior. Os portugueses vivem na ânsia de esmolar o Estado, desde as empresas até aos agentes culturais. Temos graves carências a nível da instrução pública e na qualificação científica e profissional. Ansiamos por sinecuras e empregos que sejam asilos e somos avessos ao risco, à mudança e à mobilidade profissional. Temos um aparelho estatal desproporcionado que funciona pessimamente. A nossa sociedade está compartimentada em corporativismos poderosos que rejeitam obstinadamente qualquer mudança, quaisquer reformas. E esses corporativismos não existem apenas no sector público, pois também subsistem no sector privado.

Todavia, nos últimos vinte anos têm ocorrido melhorias no sector privado, mais dinamismo, mais capacidade de conviver com o risco. Há sectores industriais e de serviços que conseguem uma boa performance em concorrência com o exterior. Aliás a produtividade do nosso sector exportador tem crescido muito mais rapidamente que a do resto da nossa economia. Se não tivesse sido assim, Portugal estaria presentemente falido.

Mas se o sector privado tem experimentado algumas melhorias, embora muito insuficientes, o mesmo não acontece, antes pelo contrário, no sector público, onde magistrados, professores, médicos, função pública em geral, estão cada vez mais refractários a mudanças que belisquem minimamente interesses instalados, muitas vezes ilusórios.

E o que se perspectiva no horizonte não é brilhante. Escolher entre os que não conseguiram resolver a crise económica e financeira e aqueles que a criaram e ainda não se deram conta disso é uma tarefa difícil, nomeadamente quando estes últimos acenam com miragens não concretizáveis, mas substancialmente mais atractivas que a nudez forte da verdade.

Ler ainda sobre esta questão:
Da Importância de um PEC
Aspirina ou Benuron?

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dezembro 28, 2004

Quando os não factos são notícias

O país estava carente de notícias. É certo que a catástrofe do Índico, que deve ter ceifado cerca de cem mil vidas, foi um maná para a sede sanguinolenta das nossas Tvês. Com que luxúria se lançaram sobre aquele pesadelo, com repórteres afadigados na perseguição de traumatizados, questionando-os sobre o cataclismo, tentando sacar as imagens mais arrepiantes possíveis. Mas não há nada que se compare com uma boa zaragata nacional.

Se não há notícias, nada como criá-las. O «Diário Económico» noticiou hoje que o Ministério da Segurança Social ordenou a suspensão do pagamentos dos subsídios de doença e de desemprego que deviam ser efectuados nos últimos dias de Dezembro, com o objectivo de transferir despesas para o próximo ano, aliviando a execução orçamental de 2004.

A razão apontada é pouco consistente. O défice orçamental avalia-se em termos de compromissos (custos e receitas) e não em termos de fluxos financeiros (pagamentos e recebimentos). Portanto parte daqueles fundos já estaria incluída no défice. Por outro lado os valores em causa são irrelevantes quando comparados com os montantes da despesa pública e do défice. Não excluo liminarmente que houvesse tentativa de protelamento de pagamentos, como tem acontecido, desde sempre, com mais frequência do que seria desejável, mas, se tal tivesse acontecido, seria por questões pontuais de tesouraria.

Aliás, o Ministro das Finanças, que é o responsável pelo orçamento, desmentiu, através de uma porta-voz, recorrer a «eventuais» atrasos no pagamento dos subsídios de desemprego e doença para controlar o défice orçamental de 2004, afirmando que «não deu qualquer ordem ou orientação nesse sentido» e desconhece «eventuais atrasos» no pagamento daquelas prestações sociais, a cargo do Ministério da Segurança Social. E acrescentou que alegados atrasos «a existirem, nada têm a ver com controlo do défice, cujas contas estão feitas e foram já explicadas». O Ministério da Segurança Social desmentiu igualmente a notícia.

As notícias referem-se a alegados factos, mas os protestos foram verdadeiros, coléricos e arrebatados. Carvalho da Silva apelou a uma revolta nacional e afirmou, com a segurança de quem sabe ser ele próprio um dos principais responsáveis por isso, que «o país assim não se desenvolve». As oposições reagiram indignadas gritando "a sua profunda indignação pela ignóbil atitude do governo”. As notícias foram desmentidas, mas os protestos mantiveram-se. Apenas deixaram de ser protestos contra as notícias ... passaram a ser protestos contra as alegadas notícias.

A TVI conseguiu mesmo, após uma devassa exaustiva, descobrir duas pessoas, no Algarve, uma em Faro e outra em Loulé, que se queixavam de atrasos no recebimento de subsídios.

Louvemos em piedosa atitude estas duas modestas algarvias que, heroicamente, sozinhas, sustentam o défice da nossa Pátria. Sem o seu patriótico, abnegado (e forçado) contributo, a Pátria, e os seus egrégios avós, estariam agora a contas com os empedernidos contabilistas do Eurostat. Louvemos igualmente a TVI por nos dar a conhecer quem, tão devotadamente, é o sustentáculo do nosso precário equilíbrio orçamental. Nunca tão poucas, valeram tanto.

E louvemos o heróico Director do Diário Económico que, segundo ele próprio, e já desesperado por ninguém reconhecer o seu merecimento, apareceu nos jornais televisivos das 20H00 a vangloriar-se de se dever a ele, e à sua notícia, que os subsídios de doença e de desemprego vão ser pagos.

É bom ser-se Director de um jornal. Diz-se que havia no Pireu, na clássica Atenas, um louco que se reclamava dono do porto e de todas as embarcações que o demandavam. Um director de um meio de comunicação, com a empáfia de Martim Avillez, pode reclamar-se de ser o motor de tudo o que aconteça. Basta noticiar que um facto notório não vai acontecer e aparecer, depois, a clamar ... olha se não fosse eu!

Amanhã o Sol não tem intenções de se levantar, asseguro-vos. Mas se ele despontar, desde já afianço que só o fará devido ao escândalo abjecto que eu acabo de denunciar publicamente, neste blogue. Portanto, se ele nos iluminar amanhã ... a mim o devem.

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dezembro 20, 2004

Pausa para Reflexão

A marcação de eleições antecipadas teve uma vantagem. Pôs diversas personalidades dos meios políticos, económicos e mediáticos a reflectirem sobre o impasse em que o país se encontra.

Em primeiro lugar há a constatação que nem António Guterres, nem Durão Barroso, nem Santana Lopes conseguiram gerar uma dinâmica de mudança no nosso país, nem promover as reformas necessárias para essa mudança e para alterar a estrutura de funcionamento da nossa economia. Eu acrescentaria a estes nomes o de Cavaco Silva, porque, apesar de ter levado a cabo importantes mudanças no país, não conseguiu, nem me parece que tenha tentado, resolver o problema da ineficiência do sector público.

Não vale a pena falar dos governos anteriores a Cavaco, que não merecem qualquer crédito, quer por terem exercido o poder por tempo insignificante, quer por o desvario social e político em que se vivia e que impedia quaisquer reformas, mesmo que as quisessem fazer, quer pelo facto de serem, na maioria, gente sem clarividência, apenas preocupada com abstracções ideológicas, completamente fora da realidade. Em suma, uma década que levou Portugal a uma situação absolutamente calamitosa.

É certo que António Guterres exerceu o poder em circunstâncias diferentes das de Durão Barroso e Santana Lopes. Durante os primeiros anos do governo de Guterres poucos se aperceberam do abismo para onde Portugal estava a deslizar. Guterres pôde levar a cabo uma política despesista, como nunca tinha sido possível até então, porque estava escorado em situações conjunturais que gente mais avisada compreendia que eram ilusórias, mas às quais o grande público era insensível.

As baixas taxas de juro e o aumento do consumo, da actividade económica e do emprego gerados por essa política satisfazia o grande público. Apenas os que sabiam ler para lá das quimeras do dinheiro fácil se preocupavam com o que viria a seguir. Guterres, e Portugal, desaproveitaram as circunstâncias excepcionais do primeiro mandato legislativo para introduzirem reformas importantes nas finanças do Estado. Em vez disso, aproveitaram essas circunstâncias para uma política populista e insensata que se traduziu num agravamento significativo da situação real do país.

A partir daí foram as meias legislaturas de António Guterres (o 2º mandato), Durão Barroso e Santana Lopes (apenas 4 meses). Nenhum conseguiu resolver, nem sequer inverter, o percurso calamitoso da economia portuguesa. É certo que Guterres, no seu 2º mandato, estava manietado pelas concepções políticas que havia veiculado no mandato anterior. Por outro lado não era seguro que ele estivesse convicto da gravidade da situação, embora houvesse, entre os socialistas, individualidades que já teriam consciência do facto.

É igualmente certo que Durão Barroso teve uma governação atribulada, desfalcado das principais individualidades do seu partido, que recusaram integrar o seu governo, e muito contestado por diversos motivos (nomeadamente por falar na urgência de reformas, que nunca chegou aliás a concretizar), dentro e fora do seu partido. Finalmente o governo de Santana Lopes foi morto à nascença. Santana Lopes nunca teve condições para governar, mesmo que o seu governo tivesse capacidade para tal.

Ora estes 3 governos integraram e foram directamente apoiados, em teoria aritmética, por tudo o que há de mais notável nas estruturas partidárias de partidos que compreendem 80% do eleitorado português – PS e PSD (neste último com a excepção de alguns dos seus notáveis). Além do mais, os 2 últimos governos contaram ainda com o apoio, embora como sócio menor, do PP. Apenas ficaram fora das responsabilidades governativas partidos da franja da esquerda radical, mas cujo concurso para as soluções da economia portuguesa seria uma completa calamidade, atendendo aos modelos económicos e sociais que propõem.

Portanto toda a classe política portuguesa, por acção (quase todos) ou omissão, esteve implicada no processo que tem conduzido à situação actual. E será entre estes políticos que teremos que escolher o governo que terá por missão salvar o país da desgraça em que se encontra. Desgraça para onde os seus erros e desleixos, ou incompetências, nos foram arrastando.

Mas será que 80% a 90% (descontando os restantes, que são lunáticos) da classe política portuguesa é incompetente? Obviamente não. Individualmente, a maioria deles não será incompetente. O problema é que toda essa classe está manietada pelos lobbies corporativos que têm amplas e profundas ramificações nos interiores desses partidos. O problema é que toda essa classe está manietada pela necessidade de ganhar eleições a qualquer preço, para satisfazer as suas clientelas partidárias. Para tal tem que fazer promessas ilusórias para cativar um eleitorado que, obviamente, não quer ver diminuído o seu poder de compra e a estabilidade e o imobilismo do seu posto de trabalho, no caso do sector público.

Portanto vamos assistir mais uma vez à formulação de promessas que não poderão ser cumpridas, e iremos viver depois uma governação que terá total dificuldade em seguir uma política de verdade por lhe estarem permanentemente a lembrar as promessas feitas e deixadas na gaveta. E esses apelos ao despesismo vêm não apenas de fora, mas também de dentro do partido (ou partidos) do governo. Portanto, o governo que sair das próximas eleições começa a sua governação fragilizado pelas promessas a que foi obrigado, para ganhar o poder.

Para se fazerem as reformas de que o país necessita para evitar esta descida contínua ao abismo, é necessária a congregação de mais de dois terços dos deputados, para permitir que se façam as leis necessárias a essas reformas, e as alterações constitucionais necessárias para que essas leis não sejam arguidas de inconstitucionalidade. É necessário um amplo apoio do espectro político, porque serão reformas que terão um impacto muito profundo no sector público, não apenas no número dos seus efectivos, como na avaliação do seu desempenho, como nos hábitos de aquisição de consumíveis (o SNS está incontrolável, neste aspecto) e outras despesas afins.

Porque a questão não é apenas a do défice orçamental. Qualquer desafogo dos orçamentos familiares salda-se imediatamente pela derrapagem das nossas contas com o exterior. A competitividade do nosso sector exportador continua a diminuir face à concorrência internacional, quer pela conjuntura internacional, quer pelos estrangulamentos internos, e qualquer aumento do rendimento disponível das famílias é maioritariamente despendido em bens importados.

Se não se fizer isto, todos os fins de ano vão ser palco das cenas que estamos a viver agora. Como há dias escrevi aqui em «A Tirania do Défice(*)», parecia-me impossível que o Eurostat aceitasse uma operação que, em termos simples, era trocar dinheiro por uma declaração de dívida caucionada por cerca de 60 imóveis. O défice, tal como os custos e proveitos das empresas, não é medido em termos de fluxo de pagamentos, mas em termos de fluxo de compromissos, pagos ou em dívida. Não entendo como o Ministro das Finanças acreditou que o Eurostat avalizasse semelhante operação.

Nesta emergência, o governo só tem dois caminhos: 1) vende os imóveis, e considera menos relevantes os princípios éticos que apregoou quando desistiu da venda, pela razão de ser um governo de gestão; 2) desiste da operação, admite um défice superior ao limite do PEC e permite que o próximo governo tenha mais bens para poder alienar no fim de 2005, para trazer novamente o défice para valores inferiores ao limite fatídico. Mas o primeiro caminho só será viável se tiver o aval do PR, o que talvez seja possível face aos problemas que o não cumprimento do défice nos poderão trazer. Lembremos que Portugal, contrariamente à França e à Alemanha recebe fundos comunitários, e está por isso numa posição muito mais vulnerável.


(*) Escrevi então: Mas se não há alienação patrimonial não percebo como tal poderá ser aceite por Bruxelas, porque me parece ter uma característica similar à hipoteca, embora com a designação pomposa e anglo-saxónica de lease and lease back.

Publicado por Joana às 11:41 PM | Comentários (18) | TrackBack

dezembro 17, 2004

Balanços Cruzados

Miguel Cadilhe fez o balanço dos dois anos de actividade da agência a que preside. Foi genial e objectivo: «Continuamos a não ter o problema do tratamento de resíduos industriais perigosos resolvido em Portugal e isto é uma vergonha ... Desde a primeira hora que chamamos a atenção para isto e chegamos a encomendar um estudo sobre municípios com melhores possibilidades de receber uma estação mediante contrapartidas» desabafou, adiantando que «há empresas que transportam resíduos industriais de forma ilegal, clandestinamente, enquanto outras espalham-nos pelo território e um país que se quer desenvolvido não pode virar as costas ao problema.».

Foi luminoso como exemplo de rigor e adequação, abrindo novos e entusiasmantes caminhos para o trabalho a desenvolver pelas nossas agências e institutos. Quando o Presidente do Instituto de Resíduos fizer uma conferência de imprensa sobre o balanço da sua actividade, certamente alertará o auditório sobre os problemas graves decorrentes da má fiscalização da actividade dos areeiros e sobre a má utilização do domínio hídrico em Portugal, sugerindo soluções oportunas e necessárias e prometendo que agilizará a implementação da directiva da água de forma coerente e exemplar.

Como se espera e será óbvio, o Presidente do INAG fará um balanço da sua actividade no Instituto da Água, chamando a necessária atenção para o mau estado das estradas em Portugal, para a vergonha que tal representa para o país e para a imagem com que ficam os estrangeiros que nos visitam, enjoados pelos solavancos das viaturas e pelas apertadas e desnecessárias curvas e lombas à espera das devidas rectificações. E igualmente para as pontes que estão com limitações de tráfego, obrigando os utentes a trajectos muito mais longos.

Entretanto o Presidente do IEP, na sua anunciada conferência do balanço de actividade, não deixará de anunciar logo de início: Senhoras e senhores, estou aqui para vos comunicar que a situação da orla costeira é catastrófica, vítima de uma erosão persistente e odiosa que urge combater. E nossa Zona Económica Exclusiva está no mais lamentável abandono. É para esse combate que eu apelo a todos vós e que vos prometo que irei dedicar os próximos dois anos da minha actividade.

E assim, finalmente, o país começará a aperceber-se da gravidade dos seus problemas. O Presidente do Instituto Hidrográfico prestará contas da sua actividade, desabafando a sua comoção pelos problemas da adolescência desvalida e sujeita às piores tentações; o Presidente do Instituto de Reinserção Social virá a público clamar contra a baixa qualificação nas empresas e como a sua competitividade perante o exterior se ressente disso. O Presidente do Instituto de Emprego falará revoltado da situação dos vitivinicultores e da necessidade de apoiar essa actividade exportadora e com tantas e gloriosas tradições. O Presidente do Instituto da Vinha e do Vinho produzir-se-á em público arengando sobre a falta de iniciativas e promoções turísticas em Portugal, vitais para uma actividade que tantas divisas traz para o país. O Presidente do Instituto do Turismo industriar-nos-á sobre o tormentoso estado da agricultura em Portugal e da falta de apoios de que sofre; o Presidente do IDRHa elevará a sua voz de protesto contra os horários e o mau serviço público dos museus. O Presidente do Instituto dos Museus debruçar-se-á numa solene advertência sobre o facto de não estar a ser devidamente dinamizado o investimento estrangeiro em Portugal.

E a vida política e económica conhecerá um dinamismo maior e inesperado ... sobretudo inesperado. Quando o Presidente do IAPMEI entrar, todos os jornalistas estarão impacientes, roendo nervosamente as esferográficas, na expectativa da matéria que será abordada.

O Presidente do IAPMEI levanta-se, pigarreia, bebe um gole de água e começa entusiasmado:
- Chamei-vos para que compartilhem comigo as preocupações que tenho sobre a situação do controlo aéreo em Portugal e da gestão dos aeroportos. Nestes últimos dois anos tenho dedicado toda a minha actividade e sentido do dever público a analisar essa situação e tenho a dizer-vos que ...

Que país magnífico! Que exemplo de devoção pelo serviço público ... dos outros!

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dezembro 13, 2004

A Fuga das Elites

Elites Run

Subitamente o país despertou para o desaparecimento das elites. Faltam-nos elites capazes de transmitir um projecto, dizem uns; as nossas elites económicas não interiorizam princípios fundamentais (logo, são pseudo-elites) asseveram outros; artigos em semanários de referência escritos pelos seniores da república lastimam a degradação da qualidade dos agentes políticos devida ao afastamento das elites; o senior seniorum da república turbou-se de tal jeito com a má qualidade do pessoal político, que confundiu políticos com beterrabas, diagnosticando ser problema porventura tão remediável quanto uma má colheita. Há algo de obscuro, telúrico e misterioso que assombra o país e que urge investigar.

Substancialmente, trata-se de responder às perguntas clássicas: Quando fugiram? como fugiram? porque fugiram? e para onde fugiram?

O modelo teórico para este problema foi proposto há alguns anos e cenarizado, não com beterrabas, como pretendia o senior seniorum da república, mas com galinhas que, como se verificou após estudos laboriosos, têm uma capacidade de locomoção superior à das beterrabas.

A base epistemológica deste modelo é o stress provocado pela incapacidade em conseguir cumprir a quota diária de ovos que é imposta exogenamente. O modelo foi depois refinado, introduzindo um operador vectorial que transformava em empadas os elementos do conjunto em análise.

Será que as elites portuguesas foram sujeitas à obrigação de pôr ovos com um ritmo frenético e inadequado? Não conseguimos responder cabalmente a esta questão. A elite mais evidente que sobejou no panorama português, o EPC, não é uma galinha, mas um elefante branco. Ora os elefantes brancos, como diversas experiências têm demonstrado, não põem ovos, mas uma massa disforme, flácida e conspicuamente fétida. Em qualquer dos casos esta via de análise teve algum merecimento porque permitiu determinar as causas da não-fuga daquele elemento da elite: ninguém está interessado em que ele aumente o ritmo da postura.

Parece pois consensual que as elites tenham desaparecido por terem sido objecto de exigências desproporcionadas. Mas desproporcionadas relativamente a quê? O nosso modelo opera com valores finitos, logo um valor só pode ser considerado desproporcional quando comparado com um valor supostamente normal. Como é um modelo fechado, o equilíbrio interno do conjunto obriga a que essa desproporção seja quantificada em termos das contrapartidas para os seus elementos, de modo a manter o equilíbrio.

Portanto parece que houve exigências excessivas às elites portuguesas sem as adequadas contrapartidas. Retomando o modelo das galinhas, além das exigências elevadas relativamente aos ritmos da postura, não se lhes dava milho, gritava-se-lhes permanentemente chô, galinhas, chô! chô! e corria-se atrás delas com varas de marmeleiro fustigando-as sempre que cacarejavam em busca de alimento para debicar.

A pergunta «Quando?» é de resposta imediata: desapareceram logo que se aperceberam que a situação no galinheiro estava num impasse.

As perguntas agora mais pertinentes são o «Como?» e o «Para onde?». Porém, quando chegámos a esta fase avançada da investigação verificou-se que o modelo das galinhas já não era suficiente e avançámos para outros modelos que tivessem, porventura, maior poder explicativo.

Um dos modelos testados foi a lei de Gresham, ultimamente em voga. Segundo este modelo, a população informe e mediana estaria a expulsar as elites da circulação. Mas expulsar, para onde? Para serem entesouradas em baús dispersos por alguns vetustos solares do país? Mas já não há solares vetustos, mas apenas casas em ruína e baús esgarçados sem capacidade de entesouramento.

Não, o modelo de Gresham não é suficientemente explicativo.

Mas subitamente fez-se luz! Se não era explicável a fuga, era porque as elites continuavam entre nós. Era evidente! E se não reparávamos nelas, era porque elas estavam disfarçadas. E então tudo se tornou claro para as centenas de bolseiros que conduziram durante anos esta investigação laboriosa, cujo relato apresento aqui e agora em primeira mão: as elites andam disfarçadas de gente medíocre, para não serem detectadas pelo resto da população e pela comunicação social. Assim, todos alinhados pela mediocridade já não há zangas, invejas, má língua, mesquinhez. O país fica tranquilo, em estabilidade política, social, económica e em serenidade emocional

Os portugueses não perdoam o sucesso, como afirmou outro dia um cientista português na diáspora, quando passava, fugidiamente, pela Portela. A solução é sermos todos medíocres.

Nota - Ler ainda
As Elites

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dezembro 10, 2004

Belém pariu um rato

Para aqueles que estavam à espera que o PR expusesse finalmente as razões consistentes que o levaram à dissolução da AR só não estão desiludidos porque a maioria deles queria a dissolução com razões ou sem elas. O bota abaixo sempre foi um leit-motiv da conduta política da uma parte significativa da esquerda portuguesa.

Por isso a comunicação ao PR postergou as questões formais, que agora teriam ainda menos consistência que em Julho, e dispersou-se por uma análise política necessariamente fluida, para tentar que o seu discurso pudesse ser interpretado como sendo o de um PR e não o de um qualquer líder partidário da oposição. Julgo que falhou esse desiderato.

O Presidente da República deu a entender que o parlamento vai ser dissolvido porque ele pensa que a sua composição já não corresponde à vontade do eleitorado. Mas isso não é motivo para dissolução. Por essa razão, quase todos os governos da UE teriam sido demitidos após as eleições europeias. É normal que a meio de uma legislatura se situe o ponto mais baixo de popularidade dos governos. Se esta razão prevalecer como válida nos hábitos constitucionais portugueses, então qualquer próximo governo será obrigado a governar olhando permanentemente para as sondagens, até deixar o país na bancarrota.

O Presidente da República foi mais directo quando alegou como fundamento «uma sucessão de episódios que ensombrou decisivamente a credibilidade do Governo e capacidade de enfrentar a crise que o país vive». Mas esta é uma afirmação paradoxal para um PR que tutelou os episódios ridículos em que o governo de Guterres esteve envolvido, com ministros a saírem e a fazerem declarações insultuosas, convocando mesmo conferências de imprensa para o efeito.

Por outro lado, ao dizer isto, está a passar um atestado público de incompetência ao governo de Santana Lopes e seria exigível que sustentasse melhor e com mais rigor esse gravoso julgamento da competência do governo, pois ao deixá-lo no vago, ele pode ser interpretado como um mero discurso de abertura de campanha do Partido Socialista.

Por outro lado se o governo é tão incompetente e descoordenado, que justificação há para o ter pressionado a aprovar o Orçamento de Estado para 2005? Um Orçamento que é uma peça estrutural da governação em 2005, porquanto a margem de manobra dos orçamentos rectificativos não permite alterar as traves mestras do orçamento. A explicação que tal permitiu os aumentos de vencimentos na função pública, não colhe, visto serem os próprios sindicatos, embora contrafeitos por aquele motivo, a estarem contra a aprovação do orçamento.

Mas também não vale muito a pena conflituar sobre esta dissolução. Não passa de um epifenómeno de um período de 4 meses em que o PR indigitou o governo criando-lhe ab initio usque ad finem uma situação instável, perecível, ao sabor dos humores presidenciais, incentivando a sua permanente contestação por todas as forças com protagonismo mediático e tornando essa governação impossível. Não é a dissolução que é grave em si, o que foi grave foi toda a estratégia montada pelo PR desde a demissão de Durão Barroso, e que teve o seu culminar no anúncio da dissolução.

Por isso, ainda antes do anúncio da dissolução, no post Obviamente, Demito-me, eu havia afirmado, sem ambiguidades, que Santana Lopes não tinha condições para governar e escrevi então: «Se PSL não é capaz de resolver os problemas do país, que é que ganha em permanecer no governo, aplicando paliativos, fazendo meias reformas, e sendo grelhado em fogo lento por (quase) todos os corifeus da política e da comunicação social? Nada ... apenas uma derrota estrondosa nas próximas eleições ... O melhor é cortar o mal pela raiz, assumir a sua incapacidade, em face da actual situação social, em governar da forma que entende como a mais adequada ao país (se é que ele tem alguma ideia sobre qual a forma mais adequada ao país) e fazer as malas.». Não podia ter sido mais clara.

Aparentemente, a fazer fé nas palavras de Dias Loureiro, Santana Lopes já teria equacionado aquela solução, que era evidente face à estratégia de aranha que o PR estava a usar, com o apoio de parte substancial do poder mediático.


Nota - Ler ainda:
O Sismógrafo do Salsifré
Dois Registos

Publicado por Joana às 10:17 PM | Comentários (24) | TrackBack

dezembro 09, 2004

Santos do pé da Porta ...

Ou como o barato sai caro

O editorial de hoje da Capital, o émulo do New York Times na declaração pública de apoio a Kerry à presidência, traça um panegírico exaltante de Vasco Vieira de Almeida. E depois de tanto espanto e admiração por essa ínclita figura, esperar-se-ia, no fim da alocução daquele brilhante advogado e empresário no jantar de homenagem a Mário Soares, que Luís Osório acorresse para os braços do eminente causídico e, num exaltado amplexo, lhe murmurasse ao ouvido todo o arrebatamento político, económico, jurídico, oratório, social, culinário, etc., que lhe fizera brotar na sua alma de jornalista de causas presidenciais americanas.

Sussurrar-lhe-ia:«Vasco ... és um dos portugueses mais brilhantes, nunca ouvi ninguém que o fosse mais. Serias o Presidente da República ideal. Sobretudo, neste tempo em que o sistema é enxovalhado pela miserável mediocridade da maioria dos protagonistas políticos». Naquele enlevo de alma, ledo e fugaz, nem lhe acudiria à memória que a mais «miserável mediocridade» é a dos jornalistas do estilo dele.

Puro equívoco. Quando se esperaria esse intenso sobressalto cívico de Luís Osório, este deixou-se ficar tenazmente grudado à cadeira, a mão que segurava o copo, hirta e estática, os lábios arrepanhados numa cãibra rígida, cenho franzido e carrancudo. Liberto do efeito inebriante e anestesiante das palavras de VVA, o seu cérebro voltou à ronceirice contumaz e os pensamentos laboriosamente arquitectados traduziram-se no editorial de hoje. «A forma como Vasco Vieira de Almeida falou sobre o país, com um brilhantismo formal que poucas vezes vi, ao contrário do que se possa pensar, não me deu qualquer vontade de o conhecer pessoalmente. Aos meus olhos passou a ser alguém que tinha tudo para contribuir de outra forma por este país, mas que decidiu de uma forma egoísta enriquecer e viver para si e para os seus muito restritos

Vasco Vieira de Almeida, se se deu à pachorra de folhear aquele pasquim, por ter sido alertado para tal por algum amigo malevolente, deve estar a esta hora arrependido de ter comparecido naquela cerimónia pública. Ele, que havia fugido da política, poucos meses depois de ter entrado nela, exactamente para evitar as mediocridades e a devassa da vida privada por jornalistas pacóvios e mentecaptos, servir de pasto a um deles, apenas por ter acedido a comparecer a uma festa de aniversário, é uma sina malvada.

Pois é ... Vasco Vieira de Almeida é genial ... porque nunca foi desgastado pela vida política, porque nunca foi sujeito à devassa pública e privada feita por um jornalismo mesquinho, porque quando discursa, não tem milhares de jornalistas a folhear dicionários e a correr motores de busca na net, para inventariar todos os significados e anexações semânticas de todas as palavras, de forma a desconstruir o discurso segundo os eixos de orientação mais convenientes para zombar do orador e desdenhar dos conceitos. Quando Vasco Vieira de Almeida fala, tem por ouvintes apenas homens de negócio ou juristas, objectivos e que se interessam unicamente pelo exacto sentido das palavras e pelos resultados do seu discurso.

Não tenho dúvidas que Vasco Vieira de Almeida seja um homem brilhante. Mas tenho muitas dúvidas que seja um «egoísta» que decidiu «enriquecer e viver para si e para os seus muito restritos», utilizando as palavras do fariseu Osório. Enriqueceu porque é extremamente competente. Não foi egoísta, foi apenas sensato. E essa sensatez ficou provada pelos disparates do Osório.

Portugal está cheio de gente brilhante. António Borges é um deles. Ernâni Lopes, Medina Carreira e Silva Lopes são também gente brilhante, que têm em comum o terem estado sentados nos lugares governamentais apenas por pouco tempo e há muitos anos. Durante a campanha eleitoral de Durão Barroso perfilavam-se por detrás dele nomes brilhantes, sonantes e clarividentes. Tão clarividentes que, quando Durão Barroso quis constituir governo, desvaneceram-se por entre as brumas da memória, deixando-o na necessidade de se socorrer de gente medíocre como, por exemplo, Manuela Ferreira Leite, promovida entretanto a «ministra respeitada» pelo José António Lima e pela oposição em geral, não pelo que fez enquanto ministra, mas pelo que fez, depois de deixar de o ser.

Há muitos portugueses brilhantes, em Portugal e no estrangeiro. Mas são raros os que acedem a participar na vida política. Tudo impede essa participação: a suspeição permanente que a comunicação social e muitos políticos, medíocres e invejosos, lançam sobre os políticos em geral; o regime draconiano e estúpido das incompatibilidades, fruto da crise final do cavaquismo e da ânsia de auto-flagelação que os políticos de então estavam possuídos; os vencimentos que além de baixos, suscitam inveja; o desaparecimento do status social que estava ligado ao exercício de um cargo governativo; etc., etc..

E o mais anedótico é que todos nós, ou quase, reconhecemos isso. Mas continuamos sedentos de mexeriquices e cavilações políticas, irredutíveis sobre a necessidade da política ser um sacerdócio, inexoráveis sobre o desperdício que é pagar vencimentos aos políticos, e desdenhosos sobre o exercício de cargos públicos.

O barato sai caro e santos do pé da porta não fazem milagres. Quem inventou estes anexins populares devia estar a pensar na classe política portuguesa e na nossa relação com ela.

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dezembro 07, 2004

Um país à beira mar pasmado

Em Portugal, quando os assuntos são abordados fora do calor do debate polítio-partidário, existem amplos consensos entre as elites políticas, económicas e intelectuais sobre os males do país e, também, sobre boa parte das reformas que têm de ser feitas. Apenas zonas muito marginais (o BE e a ala mais ortodoxa do PC) estão fora destes consensos, mas exceptuando essa franja política há muita gente a realizar idênticos diagnósticos e a apontar soluções semelhantes.

Há um amplo espaço político em que existem consensos sobre a reforma da administração pública, do sistema educativo e da justiça, a consolidação orçamental, a justiça fiscal, etc. Todavia esses consensos não se traduzem em acção. Não raras vezes assisti a políticos exprimirem opiniões na intimidade, para semanas depois, defenderem, exaltados, exactamente o oposto, no hemiciclo.

O grave é que o país afunda-se, com mais ou menos velocidade, mas continuamente, perante a incapacidade de reversão. Segundo estimativas de Medina Carreira, o PIB, em valores reais, cresceu 80% entre 1980 e 2004, enquanto as despesas totais aumentaram 200%; as sociais, 260%; e as das pensões (SS + CGA), 520%. Quanto aos impostos subiram menos que as despesas e cresceram 180%. Em termos anuais, a nossa economia cresceu durante um quarto de século à taxa anual média de 2% enquanto a despesa pública cresceu, anualmente, à taxa de 4,7%. Segundo Medina Carreira, se esta situação se mantivesse, as despesas públicas corresponderiam, em 2030, a 97% do PIB. Ora esta seria uma situação impensável, pois significaria o funcionalismo público, os pensionistas e os gastos públicos em consumíveis serem pagos pelo sector privado que ficaria apenas com 3% do PIB. Antes disso o sector privado iria à falência e com ele todo o país.

E não vale a pena insistir no estafado tema da evasão fiscal. Combater a evasão fiscal serve para obter uma melhor justiça fiscal, não para continuar a sustentar aquele sorvedouro de dinheiro. Durante aquele período as receitas fiscais cresceram 4,3% ao ano, mais do dobro do PIB e não será possível sequer manter esse ritmo, por muito que se combata a evasão fiscal – não se extrai sangue de um corpo exangue.

As causas para esta descida aos abismos são muitas. A primeira que me salta à vista é o sistema partidário. Os aparelhos partidários são constituídos por profissionais da política, gente que subsiste da actividade política partidária, e que por via disso depende, em termos profissionais, da situação em que o partido se encontra e do seu próprio posicionamento dentro do partido. Como têm, normalmente, uma formação académica fraca ou obtida em áreas do conhecimento com pouca procura e baixa remuneração no mercado de trabalho, não têm independência para se dar ao luxo de ostentarem opiniões próprias. Frequentemente entraram para o aparelho partidário ainda antes de se formarem ou de terem um currículo profissional capaz, o que os inabilita ainda mais.

Desgraçadamente são estes profissionais da política que mantêm em funcionamento as instâncias partidárias - Organizações Nacionais, Distritais, Concelhias, Locais, Profissionais, etc. São eles a mão de obra que coordena e mobiliza as campanhas eleitorais. E são depois recompensados, se o partido chegar ao poder, com lugares nas chefias da administração pública e dos institutos públicos. E mesmo no governo ou nas assessorias do governo.

O seu nível de rendimentos está inexoravelmente ligado ao partido. Se forem forçados a abandonar o partido não podem aspirar a um nível salarial minimamente comparável. Inclusivamente poderão ficar no desemprego.

Haverá entre os políticos profissionais gente que foi para a política com bom currículo e por vontade de servir. Mas muito poucos o farão actualmente e alguns dos que ingressaram na política já a abandonaram entretanto. Igualmente gente ligada à actividade privada cada vez mostra menos empenho em aceitar cargos no governo.

O resultado é um abaixamento do nível de intervenção política.

O sistema eleitoral ajuda neste mecanismo. As escolhas dos candidatos a deputados são feitas pelo aparelho partidário que vive na subserviência dos líderes que julga mais aptos para chegar ao poder e aos almejados cargos públicos. Não é a qualidade política, nem a justeza das políticas, nem o interesse do país que guiam as escolhas. Apenas o interesse do aparelho partidário.

Se cada candidato fosse directamente responsável por quem o elege, a questão colocar-se-ia de modo diverso – o interesse do partido seria o de escolher o candidato mais capaz de ser eleito e não uma lista com um ou dois nomes sonantes, atrás dos quais se perfilam diversas mediocridades. E o seu desempenho durante o mandato seria julgado pelos seus eleitores, na eleição seguinte, e não por um qualquer aparelho partidário. Por outro lado a possibilidade de candidaturas autónomas, fora dos partidos existentes, tornar-se-ia possível e poderia permitir uma mudança paulatina no actual espectro político, que está num impasse.

Sendo assim, uma das reformas políticas indispensáveis será a reforma eleitoral, responsabilizando individualmente cada deputado pelo seu eleitorado.

A segunda questão refere-se às reformas com incidência na economia e nas finanças. Uma delas, a mais urgente, é fazer uma reforma profunda no aparelho do Estado, pois tal é a única maneira de resolver, de forma sustentada, a questão da despesa pública. O que os últimos governos fizeram foram apenas paliativos. Essa reforma tem que ter 3 objectivos: 1) um emagrecimento substancial do aparelho do Estado, incluindo institutos, autarquias, etc.; 2) um melhor desempenho global, principalmente nas áreas vitais da educação, saúde e justiça; 3) mobilidade laboral de forma a optimizar a afectação dos recursos humanos.

Para realizar essa reforma é preciso eleger um governo capaz de a fazer, o que suscita algumas dificuldades, pois existem cerca de 4 milhões de pensionistas e funcionários públicos numa população de 10 milhões de habitantes. Portanto tamanha influência eleitoral dificulta a eleição de uma maioria que esteja disposta a reformas drásticas.

Mas suponhamos que era eleita uma maioria capaz de conceber e implementar as reformas adequadas. Seria praticamente impossível realizar essas reformas. Mesmo que o PR fosse da mesma cor política. Estão consagradas na Constituição disposições que impedem qualquer tentativa de liberalização da economia. O facto do PR promulgar as reformas não impediria que elas fossem posteriormente inviabilizadas pelo Tribunal Constitucional desde que a sua fiscalização constitucional fosse pedida.

Portanto é indispensável expurgar a Constituição da República das disposições que impedem a liberalização da economia e que dão uma ilusória sensação de segurança na caminhada para o abismo.

Mas essa possibilidade é, por enquanto, nula, pois para fazer uma revisão constitucional são precisos 2/3 dos representantes eleitos. Ora o número de eleitores directamente dependentes do Estado mais os eleitores que fazem parte dos seus agregados familiares, devem constituir cerca de 50% do eleitorado.

Portanto os sucessivos aumentos dos efectivos da função pública, conjuntamente com o envelhecimento da população está a colocar Portugal refém dos pensionistas e funcionários públicos. Portugal que, como havia escrito mais acima, está refém de políticos medíocres. Portugal que, como escrevi no post anterior, está refém do despotismo “iluminado” do PR.

Como se resolverá esta situação? É dar tempo ao tempo. Portugal estagnou nesta última década. A aparente convergência do PIB entre 1994 e 1998 deveu-se ao aumento da despesa decorrente das grandes obras públicas do cavaquismo e da Expo’98. Foi tão ilusório como terá sido o aumento do PIB grego em 2003 e 2004 devido às obras necessárias para os Jogos Olímpicos. Portugal está a divergir de forma “sustentada” pois a despesa pública continua, e continuará, a aumentar mais que a riqueza pública. E ninguém consegue garrotar os custos, por mais cortes que faça e medidas restritivas que tome. Cada vez mais portugueses entenderão que alguma coisa terá que ser feita antes que o país entre em falência. Mesmo os que se julgam protegidos por uma legislação socializante começarão a perceber que quando o país falir eles estarão no porão do barco que se afunda.

Por enquanto, aqueles que fazem contas e levantam estas questões são apelidados depreciativamente de neoliberais. Ninguém contesta os números, apenas tentam apoucar quem apresenta esses números. Se quem os apresenta for chamado de neoliberal, os números perdem substância ... é como não existissem.

Mas ano após ano a situação piora. Mesmo os dois últimos governos, que apareceram cheios de intenções reformistas, apenas ministraram paliativos. Em vez da indispensáveis cirurgias, fizeram-nos tomar febrífugos. Atacaram alguns dos sintomas, mas não as causas. Não o conseguiram porque nem tiveram competência, nem os deixaram fazer o pouco que sabiam.

Resta-nos esperar e alertar as consciências na expectativa que o país saia do torpor em que está mergulhado há vários séculos.

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dezembro 06, 2004

O Fim Anunciado da III República

Falar do Fim Anunciado da III República nestes dias conturbados talvez seja ainda despiciendo. Há muita gente inebriada pela satisfação da queda do governo de PSL; outros, como eu, que consideravam que, no ambiente que lhe fora criado, Santana Lopes e a sua equipa já não tinham condições para governar; uma minoria clubista que se mantinha ferrenha no apoio à continuidade governativa.

Todavia a decisão do PR, perfeitamente legal, veio mostrar que os governos, mesmo alicerçados em sólidas maiorias estão totalmente dependentes do beneplácito régio .... perdão, presidencial. Esta prepotência presidencial já existia, está fundamentada na Constituição e ainda não tinha sido exercida apenas por razões de oportunidade política.

Na realidade, e para além dos períodos em que legalmente não o pode fazer, quais as circunstâncias em que o PR não tem conveniência em dissolver a AR?

1 – O PR ter sido eleito pela mesma maioria que governa o país ... e estar de bem com os seus actuais líderes ...

2 – O PR ter receio que novas eleições conduzam a uma nova vitória da maioria e ainda mais folgada.

Mário Soares nunca dissolveu a AR durante os governos de Cavaco Silva (depois da primeira maioria absoluta deste) porque calculava que, se o fizesse, Cavaco Silva conquistaria uma maioria ainda mais sólida. Por isso adoptou a estratégia de ir utilizando a “magistratura de influência” para minar os alicerces do governo.

Jorge Sampaio nunca dissolveu a AR durante os governos de Guterres, apesar de terem acontecido coisas muito mais graves que no actual governo e desse governo ter conduzido o país à bancarrota financeira, porque Guterres pertencia à sua família política. Mesmo depois da demissão de Guterres ainda tentou a manutenção da AR, com a indigitação de um novo governo, mas os próprios socialistas reconheceram que não havia condições para tal.

Jorge Sampaio não dissolveu a AR após a saída de Durão Barroso, porque temia que o PS de Ferro Rodrigues sofresse uma derrota perante Santana Lopes. Preferiu dar tempo ao PS para encontrar um líder mais consensual para o eleitorado e menos fragilizado que FR e, em simultâneo, foi minando o actual governo, fragilizando-o logo no início com uma espera interminável, em que pediu conselhos a meio mundo, para decidir se dissolvia ou não a AR. Depois, condicionou a formação do Governo, obrigando o primeiro-ministro indigitado a ir sucessivas vezes a Belém mendigar a aprovação para os novos convites que ia fazendo. Em seguida ameaçou-o, na tomada de posse, que o iria colocar sob vigilância. Por diversas vezes, sempre que algum português, com um mínimo de mediatismo, tinha qualquer rixa, mesmo que imaginada, com alguém do governo, era chamado a Belém para ser consolado e dramatizar a situação. Desestabilizou em todas as circunstâncias a acção governativa. Paradoxalmente, dado ser um socialista, mostrou-se em extremo incomodado com as críticas dos grandes empresários ao OE 2005. Paradoxalmente, dado estar noutra área política, demitiu-o depois da publicação de um artigo em que Cavaco Silva colocava algum distanciamento face a PSL. Paradoxalmente, porquanto sucederam 4 episódios do mesmo género, mas mais graves, durante a governação de Guterres, anunciou a dissolução da AR após a demissão com pompa e alarido, do Ministro do Desporto.

E, tal era o seu desnorte, esqueceu-se de avisar o Presidente da AR e ainda exigiu à maioria responsabilidades pela aprovação do Orçamento de Estado que tanto o incomodara.

Com este figurino constitucional, e com a actual situação de crise orçamental e falta de competitividade perante o exterior que exigem soluções drásticas, o país não tem capacidade para resolver os seus problemas, independentemente dos maus políticos expulsarem os bons, ou vice-versa. Até agora, pensava-se que, com uma legislatura de 4 anos, o governo poderia utilizar a primeira metade da legislatura para fazer as reformas mais difíceis e conseguir algum fôlego para distribuir as benesses suficientes para concorrer às eleições seguintes com possibilidades de êxito. Verifica-se agora que esta solução depende da discricionaridade do PR.

Esta situação, traduzida em futebolês, para melhor compreensão, é idêntica a estarmos num jogo de futebol onde um árbitro pode, discricionariamente, acabar o jogo segundo a sua conveniência, na altura em que o seu clube está a ganhar. No calor do jogo, os adeptos do clube que é beneficiado pelo fim prematuro da peleja, poderão ficar satisfeitos. Mas quando estiverem a frio e começarem a raciocinar com discernimento, perceberão que se a actuação daquele árbitro for o paradigma da arbitragem, então algo terá que ser mudado, porque na semana seguinte poderá ser o nosso clube o penalizado por isso e, pior, com esse sistema qualquer jogo de futebol será uma espécie de roleta viciada pelo árbitro conforme conveniência.

Todavia a nossa Constituição, para ser revista, precisa de uma maioria de 2/3. Ora essa maioria exige que os dois maiores partidos estejam de acordo. Mas os dois maiores partidos só estão de acordo em questões menores, pois pensam que a manutenção de certas situações dúbias os pode favorecer um dia ...

Mas esta é apenas uma matéria entre muitas. Estou convicta que se algum dia um governo elaborar uma reforma a sério da função pública, esta será vetada por estar repleta de inconstitucionalidades.

Não são os maus políticos que expulsam os bons. Os bons políticos expulsam-se a si próprios por não pretenderem estar sujeitos a entraves permanentes e por não quererem ser objecto de devassa pública por uma comunicação social mesquinha e maldizente.

Sobejam os aparelhos partidários constituídos por gente que não tem habilitações para mais nada.

Nota - Ler ainda:
Um país à beira mar pasmado
Um de nós mentes ...

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dezembro 05, 2004

O Tiro no Pé de Santana

Santana foi vítima da falta dos “princípios da ... boa fé e da lealdade institucional" de Jorge Sampaio, foi vítima dos tapetes que os seus correligionários, antecipadamente descrentes, lhe tiraram debaixo dos pés, foi vítima de um orçamento dirigido contra a sua base social de apoio (e contra as boas normas da economia e finanças públicas) para favorecer, mediocremente, camadas sociais que dificilmente votariam nele por razões ideológicas ou clubísticas, ou seja, contra todos.

Sucede que, em política há uma regra perversa e imutável: as vítimas são punidas por o serem – não merecem compaixão por tal. Os que por ingenuidade ou excesso de auto-estima se deixam trucidar em política, perdem irremediavelmente.

O pedido de Santana Lopes para a Comissão Política ser mandatada para iniciar negociações com o PP para estabelecer uma coligação eleitoral, condimentada pela possibilidade de integrar «várias forças políticas e movimentos cívicos independentes» é uma prova de fraqueza. Ou significa que Santana Lopes desistiu de conquistar votos no centro e centro-equerda, ou que pretende empurrar o ónus da responsabilidade da eventual inexistência de uma coligação eleitoral para o PP, ... ou ambas as coisas. Aliás há um aparente desnorte sobre esta matéria, com declarações contraditórias de vários dirigentes, e de cada um, conforme o dia.

No rescaldo das eleições europeias, Santana Lopes havia dado a entender que uma coligação com o PP era, em termos eleitorais, redutora. No último congresso do PSD foi evidente a oposição maioritária dos congressistas a uma coligação eleitoral. O próprio PP antecipou-se e começou já a tratar das listas e do programa. Portanto, qualquer acordo PSD-PP só poderá significar duas coisas: capitulação do PSD perante o seu parceiro governativo e uma confissão antecipada de derrota na próxima pugna eleitoral.

Quando a coligação governativa foi estabelecida pela necessidade de estabilidade legislativa, o PP era o parente pobre – P Portas estava fragilizado pelo caso Moderna. Durão Barroso construiu uma imagem de Estado à custa da campanha anti-Portas, pois o seu governo foi medíocre. No seu activo credita-se o ter garrotado o delírio despesista da governação PS, mas sem uma estratégia económica adequada. Reformas estruturais ficaram na gaveta, se se exceptuar um anémico pacote laboral. A reforma da administração pública, medida estruturante indispensável para eliminar a crise crónica nas contas orçamentais e nas contas com o exterior, ficou para as calendas gregas.

O PSD que se coligou com o PP, foi o PSD do aparelho partidário, expurgado dos notáveis que evitaram misturar-se num projecto liderado por um político em quem não acreditavam, coligado com um partido de que desconfiavam. O eleitorado, farto de uma política de austeridade sem luz ao fundo do túnel, sem sentir uma estratégia coerente e consistente e seduzido pelas promessas falazes de uma oposição sem sentido das responsabilidades e das realidades, infligiu, nas europeias, uma derrota pesada à coligação. Durão Barroso foi punido por passar todo o tempo da sua governação “ameaçando” com medidas impopulares, que nunca teve coragem de tomar, e por ter sido obrigado a medidas orçamentais muito restritivas, sem ter sido capaz de passar uma mensagem convincente ao eleitorado.

As grandes fragilidades do governo de Santana Lopes eram exógenas e já as sumariei no post anterior. Em matéria de capacidade de decisão constituiu todavia uma rotura com o cinzentismo do governo de Barroso. Alguns dos novos ministros revelaram-se igualmente mais competentes e dinâmicos que os que saíram. Todavia as medidas que tomaram colidiam como muitos interesses e algumas eram de eficácia duvidosa.

Assim, a introdução de portagens reais nas SCUT’s existentes concitava contra o governo autarcas e populações do interior, com um benefício para as finanças públicas muito duvidoso, como já escrevi neste blogue diversas vezes. Duvido que o saldo líquido dessas portagens fosse superior a 20% ou 25% das rendas anuais a pagar às concessionárias. A herança guterrista das SCUT’s é um ónus pesado com que teremos que conviver e que só diminuirá, em termos relativos, com o desenvolvimento económico do país.

Uma Lei do Arrendamento Urbano é necessária, mas a lei aprovada é uma lei mal feita, que não vai resolver a maioria dos casos, porque os deixa de lado, e os que parece resolver arrisca um terramoto social. Por outro lado é socialmente perversa porque privilegia os comerciantes face à habitação. Também a critiquei aqui diversas vezes.

O Orçamento de Estado para 2005 constituiu uma amálgama incoerente de medidas de um populismo ingénuo, como o abaixamento das taxas do IRS, de medidas de uma eficácia económica duvidosa, como a eliminação dos benefícios fiscais em sede de IRS, de um fundamentalismo fiscal contraditório com um Estado de Direito, como a diminuição das garantias dos contribuintes – inversão do ónus da prova e pôr o sigilo bancário à mercê discricionária de qualquer funcionário do fisco. Dar à administração fiscal poder ilimitado não aumenta as receitas fiscais – aumenta a corrupção através da chantagem dos agentes do fisco sobre os contribuintes. E os contribuintes mais atingidos são os da classe média. Os pobres são insolventes e os grandes empresários têm força política e económica suficiente para passarem incólumes perante as investidas de um qualquer funcionário. Se a justiça é ineficiente ou lenta, encontrem-se processos ágeis, nunca eliminar as garantias de um Estado de Direito. Quanto à aplicação imediata da nova directiva da poupança poderá ter efeitos mais negativos que positivos.

O Orçamento de Estado para 2005 não agradou nem a gregos nem a troianos. As medidas populistas seriam sempre insuficientes face ao monstro insaciável que parasita a sociedade, a economia e as finanças públicas portuguesas, e o mundo empresarial ficou furioso com disposições que considerava mais próprias de um BE ou de um PCP, que de uma coligação de direita. Curiosamente, ou talvez não, foi o PS que atacou “pela direita” aquele orçamento.

A oposição implacável do mundo empresarial facilitou a liquidação do governo de Santana e o pretexto desejado pelo PR para o demitir. Há a rábula surrealista da sua aprovação por uma AR com a dissolução anunciada, mas apenas porque o PR não quer ficar com o ónus da função pública viver mais um semestre sem aumentos. Sabe-se lá quem depois o vai aplicar e como.

O percurso deste governo foi errático e incoerente. Tentou fazer muito em pouco tempo, o que é psicologicamente compreensível para um governo sob a ameaça contínua da demissão, mas politicamente desastroso, pois as decisões apressadas prestam-se a trapalhadas por falta de amadurecimento das matérias. Tentou medidas populistas, mas não tinha margem financeira nem institucional para tal ... nem tempo.

Santana foi vítima de si próprio. Tentou conjugar uma postura subserviente perante o PR com algum populismo canhestro. Falhou em ambos. Nunca ganharia nada em ser subserviente face ao PR, pois se a estratégia deste fosse a dissolução, então essa dissolução aconteceria fatalmente de acordo com o calendário político do PR. Qualquer pretexto serviria, pois todos os dias a comunicação social, solícita, fornecia munições ao PR. E Santana Lopes falhou politicamente ao não se ter apercebido disso.

Também não se soube relacionar com a comunicação social. A comunicação social esteve sempre contra ele, mas esse era um dado do problema. A melhor solução era ignorar as suas críticas e boatos e não entrar em conflito com ela. Obviamente que o conflito, em vez de esvaziar as críticas, alimentou-as. Nesta matéria não soube ter mão em alguns ministros cuja incontinência verbal foi desastrada, o que permite fundadas dúvidas sobre a sua capacidade de liderança firme de uma equipa governativa.

No dia anterior ao anúncio da demissão, no meu post Obviamente, Demito-me, eu havia escrito que «Se PSL não é capaz de resolver os problemas do país, que é que ganha em permanecer no governo, aplicando paliativos, fazendo meias reformas, e sendo grelhado em fogo lento por (quase) todos os corifeus da política e da comunicação social? Nada ... apenas uma derrota estrondosa nas próximas eleições e um país que, devido aos paliativos e mezinhas que aplicou, ficou com alguma pequena mas enganosa margem para mais umas ilusões despesistas.» Para mim era evidente que ele não tinha condições para governar. Alguma vez as teve? Hoje, a minha resposta é não, embora me pareça que se ele tivesse agido com mais continência, perspicácia e sagacidade, poderia ter complicado muitíssimo a estratégia presidencial e, eventualmente, preveni-la.

Até ao anúncio da dissolução, o PR grelhou-o em fogo brando. A partir de agora, e até às eleições, os seus adversários internos prosseguirão com a receita culinária encetada pelo PR. Sobreviverá politicamente? Só um milagre ...

Santana Lopes teve tudo e todos contra ele ... incluindo ele próprio.

Publicado por Joana às 10:22 PM | Comentários (19) | TrackBack

novembro 29, 2004

Obviamente, Demito-me

Penso que Santana Lopes se deveria demitir e sugerir ao PR a realização imediata de novas eleições. Todos (ou quase) as querem: a maioria do PSD, o PCP, o BE, os pré-socráticos do PS, o milhão de portugueses que subscreve o Barnabé, etc.. Apenas o PP e Sócrates (e os socráticos) não querem eleições antecipadas. Mas estão claramente em minoria.

O país só sobreviverá com reformas profundas. Foi-se aguentando numa ilusão bem sebastianista de um milagre salvador. Mas atingiu um estado em que a competitividade do sector privado, nomeadamente do sector exportador, já não consegue aguentar a situação. A emergência das novas economias asiáticas foi o canto do cisne da nossa economia obsoleta e pouco qualificada. O país vive muito acima das suas posses e não se convence desse facto.

Para fazer essas reformas, que irão bulir com muitos (maus) hábitos instalados, será preciso um governo com elevada credibilidade e uma extensa base consensual de apoio popular. E essa extensa base consensual popular e a neutralização da comunicação social pacóvia que tem aviltado e iludido o nosso país só se conseguem quando o país estiver num estado desesperado, visível, bem evidente e absolutamente convincente para uma maioria esmagadora da população.

Sócrates não quer eleições antecipadas porque prefere que o governo de PSL faça algumas reformas, impopulares, que ele nunca teria coragem de as fazer, mas que gostaria que fossem feitas. Quando Leonor Coutinho clama, desgrenhada, que quando o PS for governo revoga a Lei do Arrendamento está a brincar com o eleitorado. Então, em face dos novos contratos entretanto firmados, que vai o PS fazer? Revoga com efeitos retroactivos? Nada disto é sério.

O governo de Santana Lopes, pelo que mostrou até agora, não tem capacidade de fazer reformas de fundo. O Orçamento para 2005 é uma mistura de populismo contraproducente (a baixa das taxas do IRS, que ninguém vai sentir), medidas anti-económicas (aumento excessivo, para as contas públicas, do rendimento disponível e diminuição dos incentivos às poupanças das famílias e das empresas), condimentado com ameaças de um despotismo fiscal incompatível com um Estado de direito. É necessária uma lei que reveja os contratos de arrendamento anteriores a 1990, mas esta lei está mal feita, é mais severa com a habitação (que é uma função social) que com o comércio (onde a renda é um custo de produção) para satisfazer o lobby dos comerciantes, e vai provocar um terramoto social sem resolver a questão de fundo (Leia-se sobre este assunto os diversos artigos que escrevi neste blogue sobre o arrendamento urbano).

A reforma da administração pública é vital e nada se faz ... porque é difícil. A Saúde e o Ensino custam fortunas ao erário público com resultados deploráveis. Sem estas reformas não há dinheiro que chegue para aplacar este monstro. Aliás, se a crise da competitividade exterior da zona euro se agravar, duvido que num futuro, talvez mais próximo do que se imagina, haja dinheiro para pagar a função pública, as transferências sociais, etc., a menos que haja cortes substanciais naquelas despesas. E quanto mais se vai buscar às empresas mais a competitividade destas diminui, mais o défice das transacções com o exterior se agrava e menos dinheiro há, por insolvência das empresas e das famílias.

A economia portuguesa não se cura com os emplastros que o governo de PSL aplica, embora se tenha que reconhecer que sempre é melhor aplicar emplastros que afundar-se nos desvarios despesistas da era Guterres, que comprometeu o país para os 25 anos seguintes. Nenhum governo português, nestes últimos 2 séculos, havia deixado uma herança tão sinistramente pesada.

Se PSL não é capaz de resolver os problemas do país, que é que ganha em permanecer no governo, aplicando paliativos, fazendo meias reformas, e sendo grelhado em fogo lento por (quase) todos os corifeus da política e da comunicação social? Nada ... apenas uma derrota estrondosa nas próximas eleições e um país que, devido aos paliativos e mezinhas que aplicou, ficou com alguma pequena mas enganosa margem para mais umas ilusões despesistas.

O melhor é cortar o mal pela raiz, assumir a sua incapacidade, em face da actual situação social, em governar da forma que entende como a mais adequada ao país (se é que ele tem alguma ideia sobre qual a forma mais adequada ao país) e fazer as malas.

E quem vier atrás que feche a porta, se for capaz ... ou se o deixarem ...


Nota: A demissão de Henrique Chaves é uma prova da forma repugnante como a política está a ser vivida actualmente. Um ministro não se demite na praça pública, sem previamente avisar o 1º Ministro, e deve deixar correr um período razoável de nojo, antes de se produzir na comunicação social. Aliás, Henrique Chaves já devia sofrer de uma profunda instabilidade psíquica, visível quando recebeu os dirigentes do SL Benfica. Quer se goste ou não, nunca deveria afirmar publicamente que só por delicadeza não atirou pela janela fora um DVD que os dirigentes do Benfica haviam lá deixado. Só um ministro em estado de completa incontinência verbal produz afirmações públicas como aquela. Era mais sensato ter deitado o DVD no ecoponto mais próximo e ter ficado calado.


Nota 2 - Ler a seguir:
... E o óbvio aconteceu

Publicado por Joana às 07:59 PM | Comentários (27) | TrackBack

A Lei de Gresham e o Entesouramento dos Políticos

A velhinha Lei de Gresham afirma que a má moeda expulsa a boa moeda da circulação devido ao facto do ouro ser entesourado, em virtude do seu valor comercial ser superior. Explicando por miúdos, na época em que o valor do dinheiro equivalia ao seu peso em ouro ou prata, se houvesse quebra da moeda (o rei ou o governo decidisse cunhar moeda com o mesmo valor nominal, mas com menos teor em ouro ou prata), então os possuidores da moeda antiga preferiam guardá-la, porque embora o valor nominal para as transacções no mercado fosse o mesmo, ela valia intrinsecamente mais. Portanto, pouco a pouco, as transacções faziam-se usando apenas a má moeda, enquanto a boa moeda era entesourada nos baús caseiros. Segundo Cavaco Silva descobriu há dias, o mesmo fenómeno está agora a ocorrer entre os políticos.

Temos assim que os maus políticos estão a expulsar os bons políticos da circulação. Estamos portanto perante o fenómeno do entesouramento dos bons políticos. Os agentes económicos portugueses (famílias e empresas) estão a açambarcar os bons políticos, deixando os maus políticos para as trocas do dia-a-dia.

Sempre fui contra os açambarcamentos, embora reconheça que quando o mercado não funciona, os agentes económicos reagem na defensiva. Trata-se portanto de um mau funcionamento do mercado. Por razões ainda por esclarecer, mas que já deveriam estar sob a alçada da Inspecção-Geral das Actividades Económicas, estão a ser lançados no mercado políticos de qualidade medíocre. O IGAE, que vigia a oferta de produtos e serviços nos termos legalmente previstos, já deveria ter procedido à investigação e instrução dos respectivos processos por contra-ordenação.

E ao mesmo tempo o IGAE deve investigar quem açambarcou, e onde param, os bons políticos. Eu desde já asseguro que não tenho na minha posse qualquer político, quer mau, quer bom. É um bem muito sujeito a flutuações que considero arriscado transaccionar. Políticos, Pararede e BCP são coisas a evitar.

Em qualquer dos casos, ordenei hoje de manhã, ao sair, uma aspiradela rigorosa por todos os recantos da casa, não fosse o diabo tecê-las, pois hoje em dia, os jardins escolas e os primeiros ciclos do básico são locais onde se efectuam as trocas mais inesperadas.

E ao chegar a casa verifiquei que apenas haviam sido recolhidos 42 peças de puzzles da Majora, um urso de peluche, um Action Man Operation Cuba e um Tito Gusanito, que eu julgava que já tinham ido para o ecoponto, 2 Spiderman Action, 75 peças legos, 2 kgs de plasticina e 5 kgs de cotão. Políticos ... nem um.

Tenho as minhas suspeitas sobre quem açambarca os bons políticos: as empresas privadas. E açambarcam com tal proficiência que as próprias empresas públicas apenas conseguem obter maus políticos. Dos bons políticos nem um sobeja para o serviço público.

Além do que os bons políticos converteram-se num recurso muito escasso, demasiado escasso. E pelas leis do mercado, quando os recursos são escassos, o seu preço de equilíbrio aumenta vertiginosamente. Será que a situação financeira do país permite remunerar adequadamente os bons políticos?

Publicado por Joana às 07:10 PM | Comentários (8) | TrackBack

novembro 23, 2004

O Estranho Caso da RTP

A audição de José Rodrigues dos Santos e Almerindo Marques, ontem, perante a subcomissão parlamentar de Direitos Fundamentais e Comunicação Social, deixou-me confusa.

Ao longo de toda a audição uma interrogação pairou em permanência: porquê este braço de ferro, quando anteriores desacordos sobre colocações se sanaram a contento? Porquê este braço de ferro numa altura em que saíam notícias no Expresso sobre uma alegada avaliação de Rodrigues dos Santos? Porquê este braço de ferro numa altura em que o governo era bombardeado diariamente com críticas sobre a sua relação com a comunicação social? Porquê este braço de ferro entre duas entidades que se elogiaram mutuamente e que garantiram, ambas, nunca ter havido interferência do CA na política informativa? Porquê este braço de ferro sobre uma questão aparentemente menor, embora Rodrigues dos Santos argumentasse que a decisão do CA significava que já não estava no uso pleno dos seus poderes, e que tal era grave? Porquê ter sido este o primeiro concurso em que o júri da parte editorial apresentou os resultados sob a forma de lista seriada?

Em primeiro lugar ambos os auditados gozam de boa reputação. Almerindo Marques é conhecido por ser um homem com uma “integridade à prova de bala”, que não privilegia o amigo e incapaz de despromover o inimigo. É extremamente trabalhador e exigente consigo próprio. Subiu a pulso na vida. Estava no Banco da Agricultura quando, em fins da década de 60, um novo administrador, para escolher um adjunto, convocou diversos quadros da empresa para reuniões onde expunha as suas ideias sobre o futuro do banco. Algumas pecavam, propositadamente, por falta de sensatez. Chegada a sua vez, Almerindo, que ainda não tinha 30 anos, ouve-o perplexo. No fim disse-lhe: "Com esses critérios não fico no banco." Esta resposta corajosa garantiu-lhe o lugar.

Sempre se pautou pela integridade, reconhecida por todos, numa vida profissional ligada à Banca até abandonar a CGD, nas vésperas de eleições de 2002, após denunciar várias operações financeiras pouco transparentes. Esteve sempre, pelo menos até 2002, ligado ao PS.

Sobre José Rodrigues dos Santos não tenho informações, mas sempre me pareceu um sujeito sensato, e a sua actuação como Director de Informação da RTP parece-me que tem sido excelente. Aliás, a RTP ganhou muita credibilidade com a actual equipa, que está lá desde meados de 2002.

Por isso mesmo este caso permanece muito misterioso. Como é possível que por causa do provimento de um lugar de correspondente em Madrid, se tenha chegado a este braço de ferro? A única discrepância, com substância, entre os dois depoimentos refere-se à forma como decorriam os concursos. Concursos que aliás só começaram a haver com esta equipa.

Rodrigues dos Santos deu a entender que sempre houvera uma seriação dos candidatos e que o CA sempre concordara com as propostas da Direcção de Informação. Ou quase sempre. Houve casos que, por razões de representação institucional, o candidato escolhido não teria sido o primeiro.

A CA tem uma tese completamente diferente. Houve 14 preenchimento de vagas para correspondentes, mas só alguns lugares haviam sido providos através dos resultados dos concursos, por diversas razões, mas sempre por acordo entre o CA e a Direcção de Informação. Não havia um regulamento escrito do processo de concurso, que o CA havia pedido há algum tempo à Direcção de Informação, mas cuja minuta esta só lhe entregara para apreciação em Outubro passado.

Por outro lado sempre havia sido o entendimento do CA, entendimento que fora comunicado à Direcção de Informação, que os resultados dos concursos seriam sempre fornecidos em termos de apto e não apto para o lugar. O CA não julgava conveniente, para o ambiente dentro da empresa, porquanto se tratava de um concurso interno, que os resultados das apreciações do júri conduzissem a uma seriação dos candidatos. Em face dos candidatos que a Direcção de Informação considerasse aptos, o CA complementaria a escolha tendo em conta a gestão dos recursos humanos e as características do lugar em termos da representação da empresa e das tarefas administrativas e financeiras. O CA insistiu muito neste ponto. Ainda segundo o CA, o concurso para Madrid foi o primeiro em que a Direcção de Informação apresentara a lista dos resultados do concurso sob a forma de uma classificação ordenada.

Segundo foi dito por Rodrigues dos Santos, em face de não ser possível escolher o 1º classificado (por razões que não expuseram, mas sobre as quais estavam ambos de acordo), ele propôs o segundo. Entretanto o CA havia escolhido a nº 4, pelas razões aduzidas no parágrafo anterior.

Rodrigues dos Santos não abdicou da sua escolha, pois achava que ela dizia unicamente respeito à Direcção de Informação. O CA fazer escolha diversa era invadir a sua esfera de competências. Segundo ele afirmou, no caso do cargo de correspondente da RTP em Madrid, a esfera da administração era apenas a decisão sobre se aquele cargo podia existir ou não, tendo em conta as disponibilidades financeiras. O resto era da exclusiva competência da Direcção de Informação.

Para o CA a esfera de competências da Direcção de Informação acabava com a indicação dos jornalistas que considerava aptos a exercerem o cargo. A partir daí entrava-se na esfera de competência do CA. E o CA não abdicava da sua competência em gerir a empresa.

Portanto ambos concordaram que havia sido um conflito interno de competências. Quando foram inquiridos sobre as notícias que o Expresso publicou sobre uma alegada avaliação que estaria a ser feita a Rodrigues dos Santos, nenhum lhes deu importância para os factos em apreço. Ambos negaram ter havido, directa ou indirectamente, pressões políticas.

Resta acrescentar que o Conselho de Redacção da RTP não partilhou, no seu comunicado, do ponto de vista de Rodrigues dos Santos.

Os próprios deputados da oposição, embora o tivessem tentado, não viram como haviam de dar volta à questão. Almerindo Marques propôs-se explicar as razões porque entendia que não deveria haver seriação. Mas como essa explicação, pelo melindre de envolver referência a nomes de jornalistas da RTP, deveria ser feita à porta fechada, perguntou-se aos deputados se alguém requeria à mesa o prosseguimento da audição à porta fechada. Ninguém requereu.

A oposição tentou construir um cenário em que a escolha do CA seria uma tentativa para colocar Rodrigues dos Santos numa posição tal que seria forçado a pedir a demissão. Todavia este cenário não teve sustentabilidade. Em primeiro lugar a carreira de Almerindo Marques é incompatível com este tipo de jogos. Em segundo lugar, as razões aduzidas pelo CA para que o júri decidisse apenas sobre a aptidão dos jornalistas para exercerem a função parecem sólidas e consistentes. Quando Rodrigues dos Santos afirmou que "Se não consigo escolher as pessoas que acho adequadas para determinada função não posso ter responsabilidades sobre esses conteúdos", está a omitir que se considerou a nº 4 como apta, assume implicitamente que «pode ter responsabilidades sobre os seus conteúdos». Se não pudesse, tinha-a considerado não apta.

Aliás este cenário foi-se esvaziando no decorrer das audições. A alocução final de Alberto Martins do PS é a constatação da impotência para se chegar a uma base mínima que sustentasse aquele cenário. «Ambas as versões são consistentes e sólidas, embora contraditórias na questão de Madrid» reconheceu.

Por parte da coligação, Narana Coissoró tentou fazer passar a ideia que este braço de ferro por questão menor estaria integrado numa estratégia destinada a prejudicar a imagem do governo. De facto quem tomou as iniciativas quanto à ruptura foi sempre Rodrigues dos Santos: forneceu, pela primeira vez, uma lista seriada; considerou, pela 1ª vez, que as razões editoriais seriam as únicas que deveriam ser tomadas em conta; apresentou a demissão porque a sua opinião não prevaleceu; insistiu no seu pedido de demissão depois de lhe pedirem para reconsiderar.

Todavia este cenário parece-me demasiado «maquiavélico». Porque entraria Rodrigues dos Santos em choque com o CA? Que ganharia com isso? Pelos vistos foi um confronto pessoal, embora parte da Direcção de Informação se tivesse depois demitido por razões de solidariedade. Todavia o Conselho de Redacção da RTP não validou aquelas posições dos colegas e alinhou pelas teses da administração.

Na vida de uma empresa surgem frequentemente atritos que, por vezes, se vão avolumando com o tempo e levam a uma confrontação por razões menores. Rodrigues dos Santos pareceu-me um sujeito com uma forte auto-estima e muito cioso das suas opiniões. Sabe-se, pelos casos que se contam da sua vida, que Almerindo Marques é “à prova de bala”. São pois duas personalidades muito fortes. Terá sido isso? Mas porquê exactamente agora, com o governo sob o fogo da comunicação social? Será que Rodrigues dos Santos quis bater com a porta na altura em que esse bater fosse mais fragoroso por razões externas? A exemplo do que aconteceu com MRS?

Julgo que, quer no caso de Rodrigues dos Santos, como no anterior caso de Marcelo Rebelo de Sousa, só saberemos a verdade (se alguma vez a chegarmos a saber), pelos percursos futuros destes personagens. Até lá, estamos presos na caverna de Platão: só vemos as imagens reflectidas e filtradas.

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novembro 22, 2004

Cassandra ao Retrovisor

Mário Soares na sua alocução, quinta-feira à noite, no Porto, não fez apenas diagnósticos. Fez também profecias. Profetizou a possível ocorrências de «revoltas descontroladas ou rupturas que podem levar a aventuras, como aconteceu no fim da I República, dando lugar a uma ditadura obscurantista ... A integração na União Europeia defende-nos de aventuras militares, mas só uma consciência cívica nacional evitará outros perigos».

Há algo de similar entre as profecias de Mário Soares e as de Cassandra, embora seja uma similitude às avessas. Mário Soares é uma Cassandra vista pelo retrovisor.

Cassandra, filha de Príamo, Rei de Tróia, foi dotada com o dom da profecia. Todavia «meteu na gaveta» as promessas que, em troca desse dom, havia feito a Apolo. A punição divina foi pesada: Cassandra continuaria a prever o futuro mas sem poder convencer ninguém da veracidade das suas afirmações. Todo o drama de Tróia aparece pontuado pelas profecias desacreditadas de Cassandra: em vão avisou os troianos da desgraça que se abateria sobre a cidade. Avisou-os que Páris, seu irmão, deveria ser eliminado, pois se vivesse seria a causa da ruína da cidade; avisou-os que a viagem de Páris a Esparta traria desgraças (e ... ele trouxe Helena, raptada); avisou-os que se Helena não fosse devolvida, Tróia seria destruída; avisou-os que o cavalo de madeira deixado pelos Gregos às portas da cidade, como presente, não deveria ser trazido para dentro da cidade ... e ninguém, alguma vez, acreditou em quaisquer das suas profecias!

Na repartição do espólio da Guerra de Tróia, ela foi dada, como cativa, a Agamemnon, o rei de Micenas, para ser sua concubina. Em vão, numa derradeira e inútil profecia, Cassandra anunciou o que o futuro reservaria ao rei e a ela própria, se regressassem a Micenas: a morte às mãos de Clitemnestra, a rainha, e de Egisto, que havia substituído Agamemnon no tálamo real, durante aqueles 10 longos anos de ausência.

Mário Soares anda há anos a fazer profecias completamente inverosímeis, mas que são reverenciadas pelos meios de comunicação e políticos em exercício ou no desemprego. A maldição lançada pelo determinismo histórico, por Soares ter «metido o socialismo na gaveta», foi inversa à da punição divina sobre Cassandra: Soares debitaria profecias cada vez mais insensatas e, em contrapartida, os seus auditórios evidenciariam a mais cândida credulidade.

A inversão da imagem é visível no facto dos troianos deste outro extremo da Europa alegarem que, em vez de os avisar, foi ele próprio quem introduziu o cavalo de pau Frank Carlucci dentro das muralhas da cidade. Alegarem que depois da derrota, enquanto Cassandra foi violada por Ajax e levada cativa por Agamemnon, Soares violou as promessas que havia feito, liquidou politicamente o vencedor Eanes e cativou inexplicavelmente o cargo de PR. Alegarem que, enquanto Cassandra permaneceu sempre fielmente troiana, com Mário Soares nunca se sabe se ele está a ser grego, troiano, ou nem uma coisa, nem outra.

Cassandra, ao profetizar, tornou-se sempre uma das primeiras vítimas da recusa em acreditarem nas suas profecias. Mário Soares, ao profetizar, apenas vitimiza os crédulos que seguem as suas profecias.

Publicado por Joana às 12:02 AM | Comentários (9) | TrackBack

novembro 21, 2004

Mário Soares diagnostica-se

Ao ler as declarações proferidas por Mário Soares, quinta-feira à noite, no Porto, fiquei empolgada. Senti-me transportada às leituras dos manifestos e proclamações que lançaram o PRD na arena política. Certamente, naquela noite sublime, flutuaria um halo sobre a cabeça do «Patriarca da Democracia», o mesmo halo que terá refulgido sobre o penteado de Manuela Eanes, então transfigurada em Nossa Senhora de Fátima, que se aprestava a salvar o país da desgraça em que se encontrava, e a repô-lo sob a sua divina protecção. O diagnóstico que Soares fez do país é um perfeito remake do diagnóstico que os promotores do PRD e o casal Eanes fizeram do mesmo país há 2 décadas.

Apenas uma ligeira diferença formal, sem substância. Em 1985 Portugal encontrava-se, conforme aquele diagnóstico (um deles, pois qualquer serve), numa «situação bem difícil, sem estratégia para o futuro, desorientado, perdido no seu labirinto político», onde «os abusos, as injustiças e as corrupções» campeavam e onde havia o «polvo da corrupção que alastrava os seus tentáculos no Estado, na sociedade, nos partidos e nas autarquias». Todavia quem então fazia aquele diagnóstico considerava o próprio Mário Soares, e a camarilha que o rodeava, como os autores materiais e morais daquela situação calamitosa. Mário Soares e os seus acólitos eram considerados a prova «que o sistema estava a seleccionar, para baixo e para o mal, os políticos» e que só se viam então «figuras menores».

Os eleitores aceitaram aquele diagnóstico e as eleições de 1985 foram um completo descalabro para o PS. Se eles aceitaram maioritariamente aquele diagnóstico em 1985, é porque ele teria substância. Portanto todos «os abusos, as injustiças e corrupções», de que fala agora Soares, deveriam ainda ser mais revoltantes nessa época, dada a reacção dos eleitores. Reacção que validou não apenas aquele diagnóstico, como constituiu um veredicto de culpa, para Mário Soares e os líderes do PS da altura, no julgamento que os eleitores fizeram sobre os responsáveis do estado em que o país estava.

Portanto Mário Soares não disse nada de novo no seu diagnóstico. Limitou-se a repetir o que outros haviam dito sobre o estado do país em 1985. Só omitiu uma coisa: É que ele havia sido declarado o principal responsável por essa situação, situação que ainda se manteria, segundo as suas palavras. Quem reflectir sobre as palavras de Mário Soares terá que concluir que ele lançou um terrível libelo acusatório ... sobre si mesmo. Só que inflamado pela sua prolixa eloquência se esqueceu que o arguido ali, era ele. Mas isso é normal – os políticos têm a memória curta, fenómeno que se vai agravando com a senectude.

Todavia há algo de abonatório que se deve dizer, duas décadas volvidas. Mário Soares lembrou que "as televisões dão a conhecer escândalos impensáveis e depois não acontece nada". Em 1985 a televisão pública não dava a conhecer nada. Em 2004, mesmo que não aconteça nada, pelo menos ficamos a «conhecer escândalos impensáveis». Já é alguma coisa, pelo menos muito mais que há duas décadas. Mário Soares fala horrorizado do caso Casa Pia. Mas o caso Casa Pia já existia na época. Apenas não era um «caso», porque não havia então condições para vir a lume.

Mário Soares revolta-se por o país ser "uma espécie de telenovelas de desgraças. E a justiça mostra-se incapaz de agir. As polícias sabem muita coisa mas só actuam por critérios pouco claros". Mário Soares confunde os sintomas com a doença. A doença já existia então, provavelmente mais grave, mas os sintomas permaneciam ocultos, por falta de meios de diagnóstico: canais televisivos privados, banalização da informação (TV cabo, Internet, blogs, etc.), etc.. Mário Soares afirma, cheio de virtudes democráticas, que o caso Marcelo nunca ocorreria no seu tempo. Tem toda a razão. Nunca ocorreria porque nunca chegaria ao domínio público. MRS seria despedido ... mas não haveria «caso Marcelo». E a hipocrisia destas afirmações é certificada pelo facto de elas provirem de quem, quando PR, se travou de razões com o J E Moniz, na altura director da RTP, e que mandou Alfredo Barroso repreender o director de um canal TV por este ter o desplante de responder ao PR. Quando foi PM, com tutela sobre os meios de comunicação, na maioria estatais, sabe-se lá o que terá acontecido.

A lógica obriga pois que se conclua da alocução de Soares que, em 2004, o país está mal, talvez não tanto como em 1985, e que um dos principais responsáveis é precisamente Mário Soares, já então seleccionado «para baixo e para o mal» como «figura menor».

O que é revoltante neste diagnóstico é que ele enfatiza, com cores sombrias, o que a população conhece agora devido à banalização da informação. Mas quando Mário Soares foi 1º ministro, ele estaria certamente informado (quando não implicado) de muitos dos podres e corrupções então existentes, e no mínimo tão graves como os actuais, cujo conhecimento era vedado à população por falta de transparência da comunicação social. Para Soares, os problemas só adquirem gravidade quando vêm a lume. Enquanto estão no domínio restrito das chefias políticas (a que ele pertence) ... são irrelevantes.

Por isso, quando apela à «honradez republicana», e sabendo-se do nepotismo e corrupção existentes durante as suas governações, sabendo-se, quando já PR, do caso de Macau, tal invocação não é para ser levada a sério. São frases sem conteúdo para uma plateia ansiosa por ouvi-las, independente de terem ou não substância.

Uma das afirmações de MS pode causar estranheza. «É preciso restituir a voz aos cidadãos, se quisermos evitar ... rupturas». Sabe-se que em Portugal há regularmente eleições, de acordo com os prazos e preceitos constitucionais e para as diversas instâncias do poder. É assim que funciona a democracia representativa de que Mário Soares foi um dos principais promotores, e acérrimo defensor, antes e na sequência do 25 de Abril. Esta afirmação só será compreensível se significar que Mário Soares deixou de acreditar naquilo porque lutou durante décadas, e que se tornou um adepto da democracia participativa.

Ainda o veremos a correr pelas ruas, empunhando cartazes anti-globalização, a apedrejar montras e a incendiar automóveis.


Nota-Ler a continuação em:
Cassandra ao Retrovisor

Publicado por Joana às 10:18 PM | Comentários (26) | TrackBack

novembro 19, 2004

Regulador desregulado

O relatório da AACS é a prova de que em Portugal não é possível haver isenção e objectividade na comunicação social e nas entidades que emanam dela. A futura entidade reguladora que venha a substituir a AACS, extinta pela última revisão constitucional, por acordo do PSD, PP e PS (mas que funciona interinamente entretanto), deveria ser constituída maioritariamente por magistrados e personalidades capazes de fazer prevalecer a razão sobre a paixão. Jornalistas, ou gente oriunda da comunicação social, não deveria fazer parte desse órgão, ou ter uma representação muito diminuta e por via institucional (representantes do SJ, do patronato da CS, etc.). Ninguém é bom juiz em causa própria e, pior que isso, os jornalistas não se têm revelado como modelos de isenção.

A AACS entendeu que as declarações do ministro Rui Gomes da Silva configuravam "uma tentativa de pressão ilegítima" sobre o grupo Media Capital contrária à independência dos media "constitucional e legalmente consagrada. O relatório não refere, no entanto, qualquer relação causal entre as declarações de Rui Gomes da Silva e a saída do ex-presidente do PSD da TVI, tendo mesmo Artur Portela adiantado que esta não ficou provada com os depoimentos das três partes envolvidas prestados na AACS.

Ora se não ficou provada qualquer relação causal entre as declarações de Rui Gomes da Silva e a saída do ex-presidente do PSD da TVI, como é possível deduzir no relatório que houve uma tentativa de pressão ilegítima. Mas o que é uma tentativa de pressão? Houve pressão ou não? Por tudo isto é natural que o Presidente da AACS, um juiz conselheiro que já foi vice-presidente do STJ, tenha votado vencido contra esta «contradição nos termos».

Durante a audição de Marcelo Rebelo de Sousa, a postura subserviente da AACS, principalmente a do seu pivot Artur Portela Filho, foi aviltante. A AACS não estava ali para ajuizar das razões do professor, mas para o abraçar, comovida e pesarosa, e derramar abundantes lágrimas de compreensão, apoio e carinho no seu ombro amigo. Foi exactamente isso o que fez.

O ministro Gomes da Silva reagiu inabilmente a algo que não concordava. Fez mais ou menos (talvez um pouco mais) o que o Presidente Sampaio havia feito anos antes, relativamente ao mesmo comentador, e não me consta que o PR tenha sido acusado de "uma tentativa de pressão ilegítima", o que aliás seria igualmente absurdo. O ministro em causa tem-se notabilizado pela sua incontinência verbal. Mas o julgamento sobre essa característica inquietante do ministro faz parte da esfera da acção do 1º Ministro: ajuizar da adequação do ministro em causa ao cargo que ocupa e agir em conformidade, destituindo-o ou não, quando julgar oportuno.

Mas, na verdade, entre o ministro Gomes da Silva e a AACS não há diferença. O primeiro fala em cabala não intencional. A segunda em tentativa de pressão sem nexo de causalidade. Estão bem um para o outro.

Outra pérola: A AACS censurou expressamente o presidente da Media Capital, Paes do Amaral, considerando que a conversa que este teve com Marcelo Rebelo Sousa pode de facto "ser interpretável como condicionamento da colaboração do comentador". Considerou, por outro lado, que o presidente da Media Capital "infringiu a liberdade editorial legalmente protegida" ao conversar com Marcelo "sem a presença, a intervenção atempada ou sequer o conhecimento prévio" do director de informação da TVI, Eduardo Moniz.

O que significa "pode ser interpretável como condicionamento”? Não significa nada com substância. Pode ser ... mas também pode não ser ... Como é possível, depois desta suposição de uma outra suposição, extrair qualquer conclusão?

Ora Miguel Paes do Amaral e Marcelo Rebelo Sousa são cunhados e amigos há décadas (ou eram). Tiveram uma conversa num bar, num dia feriado. Foi uma conversa entre pessoas que eram amigas e, segundo parece, trocaram impressões, entre outras coisas, sobre o formato e conteúdo dos comentários de MRS. Mesmo que tivesse havido pressões (e resta saber como graduar uma troca de palavras – sugestão, conselho, pressão ou ultimato), nenhum tribunal as consideraria como provadas. Quanto à ausência do director de informação, ela nunca poderia ser considerada relevante, dada a relação entre MPA e MRS e o local e o dia em que o encontro ocorreu. Não pretendo com isto afirmar que houve ou não pressões. Eu não estava lá e só sei as versões que cada um tornou públicas. Há todavia um conceito, designado por benefício da dúvida, que é uma das bases do nosso direito. Mas para a AACS há benefício da dúvida apenas para uma das partes, pois para a outra há o prejuízo da dúvida.

Portanto aquela conclusão da AACS não tem fundamentação adequada. É apenas uma suposição. Ora um órgão com as responsabilidades da AACS não pode basear as suas conclusões em suposições. Por isso, a AACS sentiu-se na obrigação de não impor coimas a Paes do Amaral, alegando razões de "prudência e razoabilidade". A AACS agiu apenas como instância política e não como entidade reguladora. A aplicação de coimas cabe às entidades reguladoras, instâncias políticas fazem apenas comunicados.

Publicado por Joana às 12:00 AM | Comentários (36) | TrackBack

novembro 18, 2004

Transsexualidade Política

Acabei de ouvir as declarações de Jaime Gama e estou confusa. Mesmo atónita. Defendeu uma política de rigor orçamental, alertou para uma expansão baseada num aumento indesejado do rendimento disponível induzido pela diminuição do IRS, e para a derrapagem nas importações induzida pela distensão que os portugueses sentiram relativamente ao clima de austeridade. E foi com profunda emoção que vi depois todos os deputados do PS levantarem-se, num voto unânime contra a falta de ambição deste Governo na consolidação orçamental e criticando a política de descontinuidade orçamental.

Todavia, não foram as declarações de Jaime Gama, e de outros líderes socialistas, que me perturbaram. O que me perturbou não foi o conteúdo das declarações, foi elas serem proferidas pelos mesmos que andaram dois anos e meio a protestar contra a “obsessão” pelo défice, a favor da necessidade de aumentar a despesa pública para dinamizar a economia, e que fizeram uma campanha para as eleições europeias baseada na luta contra a austeridade orçamental.

Fiquei perplexa porque vi um país às avessas. O PS preocupado com o ataque à classe média decorrente do fim dos benefícios fiscais e contra a diminuição das taxas do IRS dos escalões mais baixos, e a coligação de direita a protagonizar a defesa dos mais desfavorecidos, beneficiados por essa diminuição das taxas. O BE, por seu turno, a dizer-se preocupado com os direitos dos contribuintes face às formas de combate à evasão fiscal preconizadas por um Bagão Félix que, vindo do sector financeiro, desafiava a banca e afirmou repetidamente que era ela o alvo principal das suas medidas de justiça fiscal. Que estranho fenómeno terá ocorrido? Alguma mutação de origem alienígena?

O governador do Banco de Portugal afirmou há dias que sem um forte controlo do défice e dos níveis da dívida pública o país caminha para o abismo. E disse-o como forma de contestação da estratégia económica de Bagão Félix. Ora durante dois anos e meio a coligação andou a citar as sucessivas declarações de Vítor Constâncio como prova evidente da correcção da sua política. Agora Bagão Félix fala, com um sorriso depreciativo, da ortodoxia dos bancos centrais, enquanto o PS descobre inebriado a excelência da análise económica e financeira do governador do Banco de Portugal, depois de ter andado dois anos e meio a ignorar os seus apelos à austeridade das finanças públicas.

Há obviamente algo de errado em tudo isto. Os mais versados em matérias científicas alegarão alguma mutação provocada por qualquer vírus desconhecido, eventualmente alienígena. Os mais inspirados pelos reality show dirão que houve operações maciças de mudança de sexo político nos membros da AR e do governo. Que estamos perante um fenómeno inesperado de transsexualidade política. Erro profundo.

Estamos apenas perante uma elite política incapaz de ultrapassar as tricas partidárias, incapaz de conseguir consensos que possam promover as reformas urgentes de que o país precisa, e apenas capaz de se digladiar em jogos de poder.

Estamos perante uma elite política incapaz de debater objectivamente a essência das coisas, por estar mais preocupada com a sua existência enquanto fonte do poder.

Publicado por Joana às 07:57 PM | Comentários (25) | TrackBack

novembro 17, 2004

Lei do Arrendamento Urbano

Ou ... quando não se domina a matéria não se acerta na solução

O arrendamento urbano no nosso país foi um exemplo de como pacotes legais feitos com as melhores das intenções de justiça social e de protecção à habitação, regulamentando o mercado, estabelecendo preços que não correspondiam aos equilíbrios que se formariam pelo seu funcionamento normal, e a manutenção dessa situação ao longo de décadas, conduziu à ruína dos centros históricos das cidades, à derrocada dos prédios antigos, ao excessivo endividamento das famílias, à dificuldade prática de uma reforma fiscal moderna do património e à total injustiça social, onde as gerações mais antigas têm casas de rendas irrisórias, enquanto os mais novos têm um ónus terrível em despesas de habitação; onde os senhorios dos prédios antigos estão descapitalizados, sem capacidade de intervirem na reabilitação dos seus prédios, enquanto os senhorios de áreas mais recentes têm rendimentos incomparavelmente superiores, com custos muito menores. Muitos dos prédios degradados nem sequer têm senhorios conhecidos. Quem consta do registo das Conservatórias já não existe e os herdeiros nunca reclamaram a herança porque provavelmente o Imposto Sucessório seria muito superior ao valor dos imóveis. A perversão do sistema é total.

Em Portugal apenas 70% dos fogos são utilizados como residência habitual. O que significa que cerca de 1,5 milhões de fogos estão vagos ou servem apenas para uso ocasional; 78% da população vive em casa própria e apenas 22% em casa arrendada; mais de meio milhão de fogos (544 mil) estão vagos, dos quais 105 mil para venda e 80 mil para arrendar (embora apenas o INE saiba onde estão estes últimos fogos); e há 29 mil famílias ou 82 mil pessoas a residir em barracas ou similares.

A situação é (e é desde há muitos anos) catastrófica. Tem que ser resolvida. Têm que se ser encontradas soluções. Para se resolver um problema é necessário fazer-se um diagnóstico muito exacto e rigoroso da situação, saber avaliar com muita clarividência os efeitos directos e colaterais das soluções possíveis e ter a coragem de resistir aos lobbies e aos interesses que obviamente se levantarão para desfigurar qualquer solução no sentido dos seus interesses.

Nada disto está a acontecer. Desde 1990 que o arrendamento é livre e a prazo (5 anos). Portanto os fogos actualmente devolutos estão em mercado livre. O primeiro estudo que o governo deveria ter feito seria o de investigar porque é que há 544 mil fogos devolutos (359 mil, se descontarmos os que alegadamente estão à espera de comprador ou arrendatário) num mercado livre. Enquanto o governo não perceber as razões porque tal acontece, não vale a pena dar o passo seguinte, pois irá certamente fazer asneira.

Eu não sei responder. Mas posso fazer conjecturas. Em primeiro lugar pergunto: todos aqueles fogos existirão realmente? Não se tratarão, em muitos casos, de construções antigas, entretanto demolidas, mas que continuam a constar nos registos matriciais? E se existirem, pergunta-se: Não estarão em tais condições de inabitabilidade que se poderão considerar em ruínas?

Em segundo lugar pergunto: que desmotivação leva um senhorio a manter devoluto um fogo habitável? Aqui a minha resposta é liminar: actualmente muitos dos novos inquilinos pagam o 1º mês e o mês de caução e ficam 2 ou 3 anos à espera que a acção de despejo e acção para execução da sentença os obriguem a sair, deixando o fogo num estado lastimável. O senhorio recebe 2 meses de renda (alguns, mais afortunados, 4 ou 5) e tem que pagar aos advogados e as obras de reabilitação do fogo quando o inquilino sair. E não se consegue ressarcir. O fiador, quando existe, é tão insolvente quanto o inquilino; no caso de arrendamento para a habitação, nenhum banco aceita prestar uma garantia. Quando o inquilino for despejado, o senhorio pensará duas vezes sobre o que irá fazer com o fogo.

Ora a resolução expedita dos contratos em caso de incumprimento por falta de pagamento não consta da presente lei. Poupa-se uma acção judicial, mas mantém-se o recurso aos tribunais e o ónus da lentidão da justiça portuguesa. Quanto ao ressarcimento dos estragos perpetrados pelo inquilino ... é melhor esquecer. Sabe-se que há um diferencial, estimado em mais de 40%, que é uma espécie de prémio de risco para o senhorio. O empolamento das rendas deve-se ao receio do senhorio face ao imprevisível comportamento do inquilino e não a outro motivo.

Relativamente aos fogos actualmente devolutos, esta lei poderá ter efeitos nos imóveis degradados, parcialmente devolutos, e parcialmente ocupados com rendas irrisórias, que o senhorio poderá agora reabilitar, aumentando as rendas dos actuais inquilinos e alugando os actualmente devolutos. Mas será que isto vai funcionar? Resposta: só muito parcialmente.

E porquê? Não é por muitos senhorios estarem descapitalizados. Os que não tiverem dinheiro, nem know-how, poderão sempre vender o imóvel a um promotor capaz de o reabilitar e fazer o negócio. Há várias razões que irão dificultar o negócio: 1) muitos dos actuais arrendatários estão nas categorias sociais ou etárias que impedem a liberalização da respectiva renda, logo não há qualquer estímulo para o senhorio reabilitar o imóvel, nem encontrará qualquer promotor interessado na sua aquisição; 2) muitos dos fogos (provavelmente a maioria) têm dimensões tão reduzidas e os imóveis, de que fazem parte, uma área de implantação no solo (área de cobertura) tão pequena, que não faz sentido reabilitá-los tal como estão. As novas gerações não conseguirão viver em fogos com áreas de 15 e 20 m2. A reabilitação desses imóveis terá que passar por uma reformulação das tipologias, com muito menos fogos. Ora isso será muito complicado para o proprietário. Há casos que só poderão ser resolvidos em termos de quarteirão, remodelando este integralmente, o que envolve vários proprietários. Que destino se vai dar aos actuais inquilinos dos fogos minúsculos? Haverá dispositivos legais para resolver esta situação?

Talvez por se ter apercebido destes efeitos “colaterais”, apareceu hoje nos jornais uma notícia afirmando que «o Governo admite entregar casas em bairros sociais em alternativa ao pagamento do subsídio especial de renda (SER), previsto para apoiar os agregados familiares mais desfavorecidos e que os estudos do governo indicaram ser cerca de 102 mil famílias».

A questão que coloco agora é a seguinte: pretendendo o governo dinamizar o mercado do arrendamento, vai agora o próprio Estado adquirir imóveis para os alugar com rendas sociais? Então e os tão falados 544 mil fogos devolutos? Se presentemente os senhorios não alugam 544 mil fogos, como irão alugar os 646(544+102) mil fogos entretanto devolutos? Provavelmente aquela é a única solução para essas famílias ficarem com casas reabilitadas. Mas é também a certificação que a lei não satisfaz as razões que foram invocadas como primordiais para a sua feitura.

E não venham com a estafada proposta de agravamento do IMI sobre fogos devolutos. Estudem primeiro os assuntos, analisem bem as causas das coisas, antes de dizerem os primeiros disparates que vêm à mente. Ora todos estes ziguezagues decorrem justamente do governo não ter conseguido obter um diagnóstico exacto da situação, nem se ter apercebido de todos os efeitos da lei, por desconhecimento da situação.

Continuando no campo da habitação, há varias dezenas de milhares de famílias que estão no caso da negociação livre. O governo encontrou uma solução “engenhosa” para desmotivar os senhorios de avançarem com uma proposta inicial extremamente elevada, através do estabelecimento de indemnizações por inexistência de acordo. Em linguagem de Bridge, diria que o governo quer impedir as aberturas de barragem. O problema é que um inquilino que habite um fogo há 20 ou 30 anos, com a casa arranjada e a vida estabelecida, não terá o mesmo sangue frio que um jogador à mesa do Bridge. Neste, o jogador, se falhar na negociação do contrato, poderá apanhar com um “cabide”, naquele, o inquilino poderá ter que se mudar com mobílias, roupas e dezenas de cabides. Há varias dezenas de milhares de famílias ( ... classe média) naquelas circunstâncias. Este é um assunto que se pode tornar explosivo.

Passemos agora ao arrendamento comercial. O direito à habitação é uma questão social, mas a utilização de um espaço para efeitos comerciais ou industriais é um factor de produção. Não tem nada de social. Pergunto: porque é que o governo foi muito mais cuidadoso com o comércio que com a habitação? Porquê prazos muito mais dilatados para o ajustamento das rendas no comércio?

Fala-se no comércio tradicional e nas suas dificuldades. Rio-me dessa afirmação. Uma das certezas que há em Economia é que andar subsidiar empresas anos a fio apenas serve para desperdiçar dinheiro. As empresas subsidiadas têm a vertigem do abismo: não inovam, não mudam, não saem da cepa torta. Assim sendo, o comércio dos centros históricos foi desbaratando qualidade, cristalizou, e perdeu mercado face ao comércio menos central e com maior capacidade de inovação e aos grandes espaços. A degradação da qualidade da actividade comercial nos centros históricos tem igualmente concorrido para a ruína destes e para a sua desertificação.

Portanto este extremoso cuidado governativo com o arrendamento comercial é duplamente perverso: encara-o com uma perspectiva mais “social” que a habitação e não percebe que subsidiar (não o Estado, mas os senhorios) empresas é contraproducente do ponto de vista económico. Agita-se o espectro do desemprego. Mas porque não intervém o Estado nos valores locativos dos espaços nos Centros Comerciais, onde há uma enorme mortalidade? Porque o emprego renova-se. As empresas menos aptas dão lugar a outras e o emprego, que desapareceu, é gerado novamente. Pois a situação será a mesma no caso do comércio tradicional.

E o mais perverso é que os comerciantes que se constituíram em lobby para obterem situações mais vantajosas na nova lei, são os mesmos sobre os quais há o consenso generalizado de que fogem aos impostos. Os comerciantes são notoriamente insolventes: rendas, IRC, IVA, etc..

Por outro lado não concordo que os contratos celebrados a termo certo a partir de 1990 caiam sob a alçada da nova lei e que na data da sua renovação os senhorios os possam denunciar, com pré-aviso de 3 anos. Na lei actual o valor inicial do arrendamento é livre, mas pode escolher-se entre um prazo de 5 anos, no fim do qual pode haver denúncia do contrato, (com pré-aviso), ou ilimitado (termo certo renovável). Ora um comerciante cria um negócio, fideliza uma clientela, e, dependendo do tipo de negócio, não quer correr o risco de ser obrigado a abandonar o local ao fim de 3 ou 5 anos. Para obviar esse risco, ele pode ter feito um contrato em que aceitou pagar uma renda superior em troca do prazo ser ilimitado. Se o fez ... Todavia concordo que, numa lei do arrendamento, prazos ilimitados sejam obviamente inaceitáveis, porque ninguém domina o futuro. Assim sendo, aqueles contratos deveriam ter um tratamento próprio, embora não descaracterizando o princípio da lei.

Portanto temos uma lei que era absolutamente necessária, mas que incide sobre situações muito complexas, que se foram complicando cada vez mais por décadas de imobilismo, e cuja solução não é fácil. Julgo que o que escrevi mostra como a falta de rigor, no diagnóstico exacto da situação e na avaliação de todos os efeitos, está a criar uma lei ineficiente, que não resolve muitos problemas, nomeadamente aqueles que se propõe resolver. Julgo que o que escrevi mostra como uma lei ineficiente tem dificuldade em resistir aos ataques dos interesses instalados que acabam por a tornar não só mais ineficiente, como injusta, porque desigual.

E não é a primeira vez que digo exactamente o mesmo sobre esta matéria. Quem vai mudando, parágrafo aqui, linha acolá, é o governo. Eu apenas observo a realidade, mas o governo está há mais de dois anos a estudar esta matéria, sabe-se lá com quantos assessores, institutos, Direcções-Gerais, técnicos qualificados, etc., etc..

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novembro 16, 2004

Congressos e Coligações

As duas últimas eleições vieram mostrar algo que se sabia há muito. Eleitoralmente o PSD e o PP valem mais sozinhos que em coligação. O discurso do PP e, principalmente, a imagem que toda a comunicação social transmite dele, afugentam o eleitorado do centro e centro-esquerda. Em contrapartida, parte da direita não se revê na política centrista do governo de coligação.

A coligação foi inicialmente considerada um mal necessário, pois a situação do país não permitia um governo minoritário, flutuando ao sabor dos caprichos parlamentares. Era óbvio que Paulo Portas não poderia ser deixado fora do governo, pois fora dele seria incontrolável. Durão Barrosos apesar de nunca ter concordado com uma coligação com o PP, foi forçado a aceitá-la como um mal menor. Todavia, e contrariamente a muitas profecias, Portas e os ministros PP foram sempre de uma lealdade exemplar para com os interesses da coligação.

E o que aconteceu durante o governo de Durão Barroso, continuou durante o governo de Santana Lopes.

No congresso de Barcelos foi nítida a rejeição de uma parcela significativa dos congressistas, senão da maioria, de uma coligação eleitoral com o PP. Aliás, já no rescaldo das eleições europeias, em face dos maus resultados, vozes dentro do PSD tinham questionado o interesse de uma coligação eleitoral. O problema da Ciência Política é que não se podem repetir experiências utilizando outros ingredientes. Nunca se saberá quais seriam os resultados se os dois partidos tivessem concorrido separados naquela altura.

O comportamento de muitos congressistas do PSD teria indignado dirigentes do PP e só a necessidade de se manterem coligados, face à alternativa certa de dissolução da AR e de novas eleições, manteve a coligação governativa, segundo os órgãos de comunicação. Mas este desfecho seria sempre incontornável. Só suicidas maníacos tomariam decisões de rotura numa altura destas. Uma coisa são declarações de militantes isolados, ou aplausos de uma plateia indiferenciada, outra são decisões das chefias partidárias, de quem se espera mais continência.

Aliás, o resultado da votação foi concludente. Os congressistas do PSD deram carta branca a Santana Lopes, pois a alternativa era o fim do governo e a derrota eleitoral. Mas essa é a lógica dos congressos: os militantes do PS deram a vitória esmagadora a Sócrates, não porque lhe votem uma admiração especial, mas porque julgam que com ele regressarão ao poder.

A não existência, actualmente, de sinergias eleitorais numa coligação PSD-PP, e serem os congressistas do PSD os mais recalcitrantes em aceitá-la, é natural que indisponha os dirigentes e militantes de topo do PP. Afinal, os ministros mais polémicos, que mais problemas causaram à coligação e que pior desempenho tiveram foram, justamente, gente oriunda do PSD. Mas a política não tem moral, o PP é o parceiro menor de um governo que não soube gerir adequadamente a difícil situação em que o país estava, e de outro governo que vai pelo mesmo caminho, e a penalização que o eleitorado irá infligir, se tudo continuar como até aqui, recairá sobre ambos. E talvez com mais gravidade sobre o próprio PP.

As declarações de muitos dos congressistas do PSD e as afirmações de hoje, produzidas por Narana Coissoró, indiciam que, a menos que o governo inverta a situação, consiga um bom desempenho no próximo ano e melhore substancialmente o clima económico do país, assistiremos a um progressivo distanciamento entre o PSD e o PP à medida que se aproximarem as eleições e, eventualmente, se a situação se tornar grave e quando já não houver o risco da dissolução da AR, à rotura da própria coligação, à formação de um governo PSD de recurso, em minoria, e ao PP começar a campanha eleitoral, muito antes da abertura oficial desta, atacando o governo de que entretanto saiu.

A coligação tem tido uma enorme coragem em pôr na agenda política reformas de que o país necessitava há muito. Todavia são reformas que, por muito adiadas, irão conduzir a um terramoto social e político, a menos que haja muita argúcia na sua concepção, que me parece que escasseou, e muita determinação na sua aplicação, que eu não entrevejo.

Uma política difícil, de austeridade e de rigor, não se faz aos ziguezagues. Tal política, se for conduzida sem tibiezas, por muito que bula com interesses e hábitos instalados, acaba por resultar e ser compreendida pela população. Fazê-la, ou julgar-se que a faz, aos ziguezagues, não conduz a bons resultados e desacredita as reformas e o governo perante a população.

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novembro 15, 2004

Casa onde não há pão

O Estado tem que ter um orçamento. Elaborar um orçamento pressupõe fazer escolhas, engendrar planos, prever as despesas decorrentes das escolhas feitas e dos planos engendrados, e determinar as receitas para suprir as despesas, de forma iterativa, até encontrar a melhor solução tendo em conta as restrições existentes. Parece simples.

Deixa de ser simples, porque as restrições são de tal monta que as escolhas se tornam muito limitadas e todas más. Deixa de ser simples, porque Portugal é como uma família que contraiu demasiados compromissos financeiros para o nível salarial que a sua qualificação permite. Portugal vive acima das suas posses. Sempre, durante os regimes representativos, viveu acima das suas posses. Só em períodos ditatoriais tal não aconteceu. Os regimes representativos em Portugal sempre preferiram quer satisfazer as suas clientelas políticas e sociais, quer capitular perante interesses corporativos, na ânsia não comprometerem o seu futuro no poder, quer ambas as coisas. Nunca foram capazes promover a adequada qualificação científica e profissional e criar os mecanismos que permitissem a dinamização do tecido produtivo do país. Pior, começando pela venda dos bens nacionais, criou-se uma relação perversa de dependência entre o tecido empresarial, clientelar e frágil, e o poder político todo-poderoso e centralizador.

Quanto à ditadura, pela sua matriz ideológica de um Portugal agrário e corporativo (no sentido medieval), preferiu manter a população na ignorância, ou com instrução na qual era apenas suficiente «saber ler, escrever e contar», e criar regulamentos corporativos e restritivos para a actividade industrial que não permitiram o seu desenvolvimento. Foi a única época em que Portugal não viveu acima das suas posses ... pois viveu na miséria. Mas é fácil, em ditadura, controlar a despesa pública.

Por tudo isto, o orçamento anual do Estado português tem sido, é, e continuará a ser, um exercício sado-masoquista de alcance enorme, nas palavras dos seus autores, mas nulo (quando não negativo), nos seus efeitos práticos. O país não se desenvolve com os orçamentos. O país desenvolve-se se conseguir aumentar a sua competitividade em todos os seus sectores de actividade. Em primeiro lugar, na administração pública que é, proporcionalmente, a mais cara da Europa, e que piores serviços presta - O peso das despesas públicas (das quais cerca de 90% representam, em média, a despesa corrente) subiu assim perto de 60% entre 1980 e 2004 (31% do PIB em 1980 e cerca de 48% em 2004), com o crescimento económico sempre em desaceleração. Parte substancial da riqueza que o país penosamente produz é assim sorvida por esse monstro insaciável. Em segundo lugar, criar mecanismos que levem ao aumento da competitividade do nosso sector produtivo, nomeadamente nos sectores abertos ao exterior.

Ora isso só é possível com um amplo consenso partidário, porque implica reformas estruturais profundas que irão bulir com hábitos instalados e porque implica um regime de austeridade prolongado. E, com esse consenso patriótico, os orçamentos de Estado poderiam ser um instrumento importante para afectar os recursos necessários às rubricas estruturantes, gerindo a sua escassez da forma mais eficiente para o desenvolvimento do país. Senão entramos no ciclo «eles governam, eles perdem» e a implementação de reformas, mesmo ligeiras e com alcance limitado, é sabotada. A cobardia do governo e a demagogia da oposição (quaisquer que sejam as cores partidárias de um e da outra) impede que se saia desse ciclo vicioso.

Basta lembrar que Orçamento de Estado é um instrumento de política económica, fiscal e financeiro que, em teoria, deveria ser de importância relevante para o país e, por via disso, ser discutido com seriedade e isenção. Mas tudo o que ouvimos e lemos são afirmações para fazer manchete e nada mais. Portanto, bem lá no fundo, a classe política e a comunicação social portuguesas estão convencidas do que eu escrevi acima. Na prática, em Portugal, o orçamento do Estado não passa de um exercício sado-masoquista irrelevante.

Como ninguém quer atacar a doença, pretende-se atacar alguns sintomas. Quando se fala em cortar na despesa contrapõe-se o combate à evasão fiscal. Mas o combate à evasão fiscal deve ser feito para reduzir a pesada carga fiscal que recai sobre os portugueses, a troco de muito pouco que eles obtêm em troca, nunca para satisfazer esse Moloch insaciável.

Parte dos pesados impostos que pagamos (nomeadamente o Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e o imposto automóvel) destina-se não só a alimentar esse monstro, mas também a restringir o consumo e as importações, para contrariar o abismo para onde caminham as nossas contas externas. Sem o aumento da nossa competitividade externa não haverá meio de sair dessa situação.

Bastou, em 2004, uma ligeira diminuição do sufoco, para se agravar substancialmente o défice comercial português que cresceu 20,3% nos oito primeiros meses de 2004, visto as importações terem tido um aumento de 9,1% e as exportações crescerem a um ritmo de 4,2%. A taxa de cobertura das importações pelas exportações desceu três pontos percentuais, face a igual período do ano passado, para os 66,4%. Ora o orçamento actualmente em discussão irá provavelmente agravar este défice. Todavia a oposição andou dois anos e meio a combater a austeridade do governo. Não se percebe como defende agora a austeridade, em vez exigir ainda maior desafogo orçamental. Isto é ... não se perceberia se Portugal fosse um país a sério.

Depois há gente que dá socos no ar. Em face dos números do desemprego os líderes sindicais afirmam que o aumento do desemprego é o resultado das políticas do chamado rigor orçamental que «os governos andaram a praticar nos últimos anos». «Essa falta de investimento conduz a esta degradação que vemos traduzir-se no desemprego ... Face à crise económica que Portugal atravessa, só uma forte aposta em sectores estratégicos poderá inverter a subida da taxa de desemprego».

Ora o investimento público, enquanto dura, dinamiza sobretudo a Construção Civil (embora haja alguma influência induzida noutros sectores). O seu aumento não influenciaria significativamente a taxa do desemprego, visto a quase totalidade dos desempregados não ser dessa área. Influenciaria, quanto muito, o fluxo imigratório. Além do que, o investimento público, como forma de produzir euforia económica, é como uma droga – só produz efeitos enquanto se está sob a acção dela. Quando passa o efeito, volta tudo ao mesmo.

Quanto ao investimento em sectores estratégicos, os líderes sindicais saberão do que falam? Os sectores estratégicos são altamente competitivos, e têm, na sua maioria, economias de escala muito elevadas, muito superiores à dimensão do mercado nacional. O Estado não está vocacionado para gerir esses sectores, como mostrou a seguir ao 25 de Abril, e cujo o exemplo mais acabado é o das petroquímicas de Sines. Deve haver investimento em sectores estratégicos, mas o papel do Estado será incentivá-lo, criando condições favoráveis para que ele se faça. Mas se são os próprios líderes sindicais, com a sua visão jurássica do mundo laboral, que dificultam o estabelecimento dessas condições?

Escreve-se com alguma frequência que Portugal é um país inviável. Ele não é inviável. É a nossa elite política, sindical e comunicacional que anda a tentar inviabilizá-lo.

Publicado por Joana às 09:46 AM | Comentários (27) | TrackBack

novembro 12, 2004

Pior era impossível!

As declarações dos políticos e dos fazedores de opinião sobre o Orçamento de Estado para 2005 revelam que atingimos em Portugal o grau zero da racionalidade política e económica. E daí, talvez esteja equivocada. Portugal é um país de talentos insuspeitos que se revelam inesperadamente – quando pensamos que batemos no fundo, verificamos, pouco tempo depois, que ainda havia mais um fundo por debaixo do fundo ... e assim sucessivamente. Vejamos a questão da alegada descida do IRS.

Em primeiro lugar, ninguém entre a classe política está de acordo sobre se o IRS irá baixar ou não. Ora sabendo-se que 8,6% de famílias subscreveram PPR e 9,3% Contas Poupança Habitação, não custa a acreditar que, segundo estimativas oficiais, 88% das famílias vejam o seu o IRS reduzido ou mantido e as restantes 12% das famílias o vejam aumentado. Até aqui parece simples.

Simplesmente, este orçamento é para vigorar em 2005. Logo, logicamente, se em 2005 as retenções na fonte fossem feitas com as novas tabelas, com taxas inferiores, e tendo os reembolsos do IRS ainda em consideração os benefícios fiscais válidos para o exercício de 2004, haveria uma descida de receitas em sede de IRS durante o exercício de 2005. Todos veriam o seu IRS a descer em 2005. Populismo, clamaram diversos políticos e fazedores de opinião – é o regresso do despesismo e da falta de rigor orçamental. São as eleições autárquicas a pressionar!

Entretanto o ministro veio avisar que as retenções na fonte seriam feitas de forma que, durante 2005, aquela desfasagem na cobrança do IRS não levasse a uma diminuição das respectivas receitas. Ora isso significa que a correcção à liquidação do IRS nas declarações de 2005, feitas em 2006, poderá fazer com que os contribuintes recebam reembolsos do IRS, mais chorudos, na véspera das legislativas de 2006. Populismo, clamaram diversos políticos e fazedores de opinião – é o regresso do despesismo e da falta de rigor orçamental. São as eleições legislativas a pressionar!

Confusos? Mas há mais. Cerca de 10% das famílias verão o seu IRS aumentar. Não será um aumento exagerado, mas terá algum significado. Admitindo que a massa total do IRS se mantenha (a preços reais), tal significa que 90% da população verá o seu IRS descer, em média, 11% da valor médio do aumento sofrido por cada família “mais abastada” ... ou seja ... não verá nada, ou só enxergará alguma coisa, se estiver mesmo muito atenta ... e for muito forte em aritmética.

Por isto tudo não é de admirar que uma sondagem elaborada pela Marktest indique que 56% dos portugueses estão convencidos que vão pagar mais IRS em 2005. Um governo decidir baixar os impostos com o intuito de satisfazer a população, e esta ficar com a ideia que eles vão subir, é o pior que pode acontecer a um governo. Mais valia não ter feito nada. Evitava ser criticado por descer os impostos. Evitava ser criticado por afinal não descer os impostos. Evitava o recurso a algumas receitas extraordinárias, isto se cortasse alguns dos benefícios fiscais (e parece-me que estes cortes deveriam ter sido faseados para evitar agravamentos bruscos de IRS para os contribuintes atingidos). Ou então, mantinha o recurso às receitas extraordinárias e distribuía fundos por alguns autarcas sequiosos de numerário para fazerem obras e botarem figura, tendo em vista a proximidade das eleições de Outubro de 2005.

O impacte da diminuição de IRS para cerca de 90% dos contribuintes vai ser muito pequeno. A engenharia fiscal compensando essa descida com o corte de benefícios fiscais é capaz de ter um impacte mais negativo na opinião pública, pois atinge uma minoria mais influente. O governo não conseguiu fazer passar uma mensagem explicando bem os resultados da uma política fiscal que, já de si, se prestava a confusões. Aliás passou diversas mensagens que se prestavam, cada uma, a interpretações ambíguas e eventualmente contraditórias. O clamor das oposições contestando uma coisa e a sua oposta, ajudou à entropia fiscal. A consabida iliteracia jornalística fez o resto.

Julgo que o governo deveria substituir alguns assessores de imagem por assessores de estratégias políticas consistentes. Fazer uma coisa, e ser penalizado por o eleitorado ficar convencido que vai fazer a oposta, indicia alguma imperícia na concepção estratégica.

Pior era impossível!

Nota - sobre o OE 2005, consultar ainda:
Transsexualidade Política
Casa onde não há pão

Publicado por Joana às 11:35 PM | Comentários (17) | TrackBack

outubro 27, 2004

Amigos, amigos ... Negócios à parte

Ou, com amigos destes ... o melhor é ter só inimigos

Marcelo Rebelo de Sousa e Paes do Amaral são amigos (ou melhor ... eram); são familiares (ou melhor ... vamos a ver) e tiveram uma conversa de amigos, no bar de um hotel, num dia feriado. Coisas inocentes que amigos normalmente fazem ... ou melhor, coisas que amigos inocentes normalmente fazem, porque estes nem são, afinal, amigos ... e muito menos inocentes.

Estes amigos têm uma característica comum. São pessoas conhecidas e permanentemente sujeitas ao escrutínio público. Por isso não será de admirar que um deles (Paes do Amaral) tenha pedido ao outro (Rebelo de Sousa) que considerasse aquela conversa de “amigos” como "privada", que a tratasse "com reserva" e que não divulgasse o seu teor, o que MRS prometeu fazer.

Esta conversa foi o início de uma série de ocorrências que têm feito as delícias da comunicação social: Marcelo Rebelo de Sousa abandonou a sua homilia dominical na TVI; Gomes da Silva que, entre o agendamento da reunião “amigável” e a sua realização, cometeu a imprudência de dizer o que pensava das homilias de MRS, (obviamente um crime político, pois um político nunca deve dizer o que pensa), o que lhe valeu o ter-se tornado o mau da fita e servir de punching-ball; o PR recebe MRS em audiência solene; a AACS ressuscita plena de afã e de adrenalina; audições na AACS e na AR sucedem-se ... e entre cada ocorrência, o inefável ministro Gomes da Silva em permanente incontinência verbal.

A questão central desta soap opera seria a eventual existência de pressões governamentais que teriam obrigado Miguel Paes do Amaral a pressionar por sua vez Marcelo Rebelo de Sousa no sentido deste mitigar, nos comentários na TVI, a sua «opinião sistematicamente antigovernamental».

Na sua audição na AR, Paes do Amaral disse que apenas se tratou de «uma conversa de amigos» para Marcelo o aconselhar como «jurista» sobre «temas estratégicos para a Media capital». Afirmou que a conversa constituía informação privilegiada, e que portanto não poderia divulgar o seu conteúdo. Sobre as críticas do ministro a Marcelo, o presidente da TVI disse que não as considerou «suficientemente importantes para as encarar como uma forma de pressão». À questão sobre se teria pedido um crédito à Caixa Geral de Depósitos de que necessitava até 31 de Outubro para fazer face a uma situação decorrente de uma tomada de posição hostil da RTL, Paes do Amaral negou a existência do pedido de crédito e rejeitou qualquer cedência ao poder político por razões económicas ou financeiras. Em suma, Paes do Amaral negou peremptoriamente ter sofrido quaisquer pressões, directas ou indirectas, por parte do Governo e assegurou que a Media Capital «nunca beneficiou de nenhum favorecimento político».

Marcelo Rebelo de Sousa quis que a sua audição perante a AACS tivesse toda audiência possível, o que não é de estranhar, sabendo-se o seu empenho comunicativo. Depois, como providência cautelar para justificar o ir violar a privacidade que lhe tinha sido pedida sobre a conversa em questão, alegou, com a candura que todos lhe reconhecemos, que nunca esperou que Miguel Paes do Amaral tivesse revelado a conversa entre ambos e que precipitou a sua saída da TVI. A partir dessa razão sólida, MRS falou durante duas horas sobre Paes do Amaral, a TVI, o Governo, o ministro Gomes da Silva, o 1º Ministro, a comunicação social, etc., etc..

Mas Paes do Amaral nada havia dito sobre o conteúdo da conversa, referindo apenas que não tinha a ver com os seus comentários dominicais, mas com um pedido de conselhos sobre temas estratégicos para a Media Capital, de curto e médio prazo, que não podia revelar por se tratar de “informação privilegiada", como uma "conversa de amigos". Ora isto não é “revelar uma conversa”. Mesmo a frase de que se perceberiam melhor as razões da conversa daqui a 6 ou 9 meses, Paes do Amaral sublinhou, na AR, que se estava a referir a opções estratégicas do Grupo Media Capital.

Portanto Marcelo Rebelo de Sousa deu, como razão da sua loquacidade desta tarde, uma mentira, ou melhor, como diria Paes do Amaral esta noite, uma “imprecisão”.

Marcelo Rebelo de Sousa falou muito. Desenvolveu abundantemente alegados conceitos televisivos que Paes de Amaral lhe teria revelado, antes de lhe pedir que modificasse o formato da sua coluna. Isto não é uma conversa entre amigos de há mais de vinte anos e familiares. Durante esse longo período, MRS e MPA deveriam ter ficado a saber, pormenorizadamente, o que cada um pensa da actividade dos meios áudio-visuais em Portugal e das suas relações com o poder e com os grupos económicos. Parece-me plausível que Paes do Amaral tivesse pedido a MRS para modificar o formato da coluna, mas não faz sentido ele ter feito todo aquele preâmbulo descrito por MRS. Nomeadamente sobre o papel do Estado na manutenção da concessão do serviço televisivo e dos perigos daí advenientes, o que seria completamente insensato. Parece-me ainda menos sustentável que a teoria da cabala de Gomes da Silva.

Marcelo Rebelo de Sousa deu a entender que de facto houve uma conversa sobre «temas estratégicos para a Media capital», como Paes de Amaral dissera anteriormente, mas pormenorizou que esses temas tinham a ver com modificações da política editorial e de programação que iriam abranger toda a TVI e que o próprio formato dos seus comentários deveria sofrer algumas modificações. Aliás, Paes de Amaral também referira que o consultara igualmente na qualidade de «jurista».

Portanto, o que temos aqui é uma situação em que um PDG de uma empresa tem uma conversa “de amigos” com um consultor externo, onde lhe comunica as suas intenções de modificar a orgânica empresarial, modificações que também incluíam algumas alterações na forma e conteúdo da sua prestação. Como são amigos de longa data consultou-o sobre a generalidade dos negócios sem passar pelos canais hierárquicos. Aliás, a acreditar nas declarações do “consultor externo”, essas modificações poderiam mesmo abranger alguns desses “canais hierárquicos”.

E depois o “consultor externo” vem para a praça pública dar as dicas que entende sobre o “plano de reestruturação”. Numa empresa privada “normal” isto seria matéria para litígio: o “consultor externo” revelou matéria confidencial. Mas a comunicação social tem razões que só o coração conhece. Numa empresa de comunicação social só é possível falar-se publicamente em modificações quando essa empresa já está em estado de falência técnica. Até lá impera o sacrossanto direito dos jornalistas estarem em auto-gestão. É óbvio que há modificações, mas são feitas aos poucos, com todo o recato, sem alarido prévio e, principalmente, evitando consultar um “consultor externo”, amigo de longa data e, ainda por cima, familiar.

Todavia, este caso ainda vai dar muito que falar. Marcelo Rebelo de Sousa é um velhaco que usa a sua abundante loquacidade e o sofisma argumentativo de forma magistral. Mas Miguel Paes do Amaral, pelo que mostrou na audição na AR e hoje à noite, nas declarações que fez, não lhe fica atrás em algumas daquelas características, substituindo todavia a loquacidade e os sofismas argumentativos por um discurso milimetricamente preciso. Diz exactamente o que pretende, com uma linearidade e simplicidade extremamente convincentes, e nem uma palavra a mais (talvez ... algumas palavras a menos). Quanto ao resto parecem-me bem um para o outro. E as diferenças resultam apenas dos planos de intervenção: MRS é um político e fala demais, MPA é um empresário e só fala o indispensável.

Quanto ao ministro Gomes da Silva está a protagonizar o papel de “inocente útil”. Inocente, não no sentido de simples, singelo, ingénuo, mas na extensão de significado que se lhe atribui com frequência. Útil, porque cada vez que fala, os adversários do governo ficam abundantemente municiados para as refregas que se seguem.

Portugal está, de facto, ingovernável: se os mais encarniçados inimigos do Governo se encontram nas fileiras do principal partido governamental, como é possível pensar em consensos inter-partidários? Se nem intra-partidários os há!

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outubro 25, 2004

O Arrendamento Urbano

A nova Lei do Arrendamento Urbano, na sua actual formulação, vem acabar com uma situação que era insustentável, que havia levado os centros urbanos à decadência e à ruína, pervertido o mercado do arrendamento e da construção e gerado desequilíbrios profundos na sociedade portuguesa. Nessa óptica ela era necessária e é bem-vinda.

Todavia os efeitos que ela se propõe atingir só o serão a longo prazo. A curto e a médio prazo não haverá outros reflexos para além de uma actualização substancial das rendas de algumas dezenas de milhares de áreas urbanas. E mesmo a longo prazo ela só terá efeito significativo se outros factores que desincentivam o arrendamento forem eliminados. Vejamos porquê:

Em primeiro lugar acho muito duvidoso que vá ter um grande efeito dinamizador no mercado do arrendamento. Fala-se das centenas de milhares de casas que estão devolutas. Muitas estão devolutas porque não têm condições de habitabilidade, mas o imóvel onde se situam tem fogos alugados por preços irrisórios e o senhorio não tem quaisquer incentivos em fazer obras de reabilitação, que serão caríssimas, e para as quais não terá retorno, mesmo com a actual lei. Na maioria dos casos o senhorio nem tem dinheiro para fazer obras, nem aptidão para as mandar fazer. Nestes casos a solução melhor para o senhorio seria este vender o edifício a algum promotor imobiliário, mais apto a utilizar os benefícios que a nova lei lhe concede. Todavia, na situação actual, dificilmente encontrará um promotor que lhe pague o montante que ele acha justo. O mais provável é que esta situação se continue a arrastar.

Outro caso são casas semi-devolutas. Os inquilinos já não moram lá, por diversos motivos (o mais vulgar será por se terem reformado e ido viver para a terra deles). Nestes casos estes inquilinos dificilmente poderão manter o arrendamento com os novos valores e estas casas poderão ir para o mercado de arrendamento.

Todavia uma parcela importante das casas devolutas deve-se ao facto dos senhorios terem receio de arrendar as casas. Actualmente, arrendar uma casa é jogar à roleta russa. O inquilino paga os 2 primeiros meses (incluindo o de caução), às vezes mais um ou outro, e depois fica tranquilamente à espera de ser despejado judicialmente. Há a acção de despejo ... depois uma acção de execução da sentença, para a polícia ou a GNR ir proceder coercivamente ao despejo, e depois uma acção para tentar receber as rendas em atraso. As 2 primeiras podem demorar 2 anos, ou às vezes mais, a produzirem efeito. A 3ª não leva geralmente a nada. O inquilino e o fiador são normalmente insolventes. A prestação de uma garantia bancária no valor de um ano de rendas poderia ser uma solução. Todavia os bancos só prestam garantias a quem tem activos, o que só acontece, e nem sempre, em arrendamentos comerciais e de habitações de luxo. E se o senhorio for exigente em matéria de fiador (alguém com bens), o mais certo é não arranjar inquilino com essas garantias.

Adicionalmente o senhorio arrisca-se a receber a casa em situação tal que tenha que despender uma soma elevada em obras de beneficiação. Se se somar os custos dos processos (incluindo os advogados) e os custos das obras de beneficiação, o senhorio irá perder muito dinheiro com o arrendamento. Esse factor de risco tem feito subir o valor das rendas. Estima-se que mais de 40% desse valor é um factor de risco. Todavia é falacioso pensar que se o senhorio pedir menos pela renda, terá um inquilino mais “honesto”. A experiência mostra que são ocorrências independentes. O raciocínio do senhorio é que quanto mais receber inicialmente pela renda, menos perderá com o negócio. Ou então pura e simplesmente desiste de arrendar e deixa ficar o fogo devoluto que se vai degradando aos poucos. E ao fim de alguns anos o dilema é: faz obras para o colocar no mercado do arrendamento, ou deixa andar? E a resposta, alimentada pela experiência, é a de que não vale a pena gastar um cêntimo se não sabe se o vai recuperar. Esta é uma questão incontornável no arrendamento urbano.

Portanto, só será possível dinamizar o mercado de arrendamento se se agilizar o despejo das casas no caso de não pagamento das rendas, responsabilizando igualmente os inquilinos pelo estado em que deixam as casas. E encontrar formas simplificadas de cobrança coerciva para as rendas não pagas e para os estragos que os inquilinos fizeram nas casas onde moraram. A lei actual apenas vai ter efeito sobre os contratos antigos, que normalmente estão estabilizados (um inquilino com uma renda antiga dificilmente cometerá a imprudência de arranjar matéria para ser objecto de uma acção de despejo). Portanto, apenas a longo prazo terá um efeito benéfico.

Na situação actual, mais casas no mercado de arrendamento não irão produzir alterações significativas nos montantes das rendas nos novos contratos. Hoje em dia, a oferta “potencial” já é muito superior à procura, logo, aumentar essa oferta “potencial”, não irá, obviamente, ter reflexos no preço de equilíbrio. Esse preço, o preço actual, incorpora um factor de risco enorme decorrente da incerteza que o senhorio tem sobre se o inquilino cumpre ou não o contrato. E esse factor de risco não é eliminado com a actual lei. O que é importante é tornar essa oferta “potencial”, oferta efectiva.

Uma última questão. Há maior “benevolência” com os arrendamentos comerciais que com os de habitação. Quer na lei do governo, quer nos comentários da oposição. Nos meios de comunicação são mais frequentes imagens de comerciantes recalcitrantes que de moradores em pânico. Ora a habitação tem uma função social, enquanto o arrendamento comercial é um factor de produção. Faz sentido proteger algo que tem uma função social, enquanto subsidiar a produção tem tido sempre efeitos económicos, a longo prazo, negativos. Basta ver como o comércio dito tradicional perdeu qualidade, se tornou obsoleto e tem constituído um factor de desqualificação dos centros urbanos.

Há ainda nesta questão uma situação paradoxal, ou talvez não: no que toca à evasão fiscal, os lojistas são quem tem pior fama. Provavelmente têm a fama e o proveito. É espantoso que, para além dos impostos, também não queiram pagar uma renda justa. E mais espantoso que meios de comunicação e políticos veiculem as suas posições. Dá ideia que o cérebro dessas entidades tem um septo: numa das partes disserta-se sobre a imoralidade da evasão fiscal dos comerciantes relapsos; na outra sobre a imoralidade dos infelizes comerciantes ficarem sob o gládio dos senhorios. O septo não permite transferência de informação entre as duas partes.

Nota - Ler ainda:
Lei do Arrendamento Urbano

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outubro 18, 2004

Os Negativos dos Políticos

Ou um país às avessas

O Orçamento de Estado para 2005 e o seu debate promete, a avaliar pelos prenúncios, novos e estimulantes avanços em matéria de política e de economia. A Direita apresenta um orçamento que acusaria de ser despesista e de esquerda, se estivesse na oposição, e a Esquerda ataca o orçamento com os argumentos que a direita usaria se estivesse no seu lugar. Muitos mestres da ciência política têm afirmado que estão esbatidas as diferenças entre esquerda e direita. A experiência portuguesa obrigá-los-á a aprofundar essa tese. Há uma importante diferença, mas essa diferença já não é apenas o local onde se sentam no hemiciclo. A diferença é se apenas se sentam no hemiciclo, ou se se distribuem entre o hemiciclo e os assentos governamentais. O lugar no hemiciclo apenas afecta algumas figuras de retórica. A diferença não é entre ser de esquerda ou ser de direita. É entre ser-se governo ou ser-se oposição.

Ou melhor, estamos a ver as imagens dos políticos não reveladas: não vemos os positivos, a revelação, mas apenas os seus negativos.

Este orçamento estimula o consumo em lugar da poupança. A redução, embora ligeira, da carga fiscal dos escalões mais baixos irá incentivar o consumo, enquanto a eliminação dos benefícios fiscais diminui os incentivos à poupança, embora se reconheça que alguns daqueles produtos tinham perdido qualidade e apenas eram subscritos na miragem de uma diminuição à colecta que dificilmente compensaria os parcos benefícios que traziam. Ora o aumento do consumo das famílias num país com elevada propensão marginal às importações agrava o défice das contas com o exterior.

Quanto à questão da taxa de IRC não me parece que a sua manutenção tenha um efeito importante. Durão Barroso havia prometido um choque fiscal. Todavia há factores que pesam muito mais na decisão de investir ou não em Portugal que uma descida das taxas de IRC: a burocracia; a baixa qualificação da mão de obra; a pouca mobilidade laboral; a lentidão exasperante da justiça; a “normalidade” dos atrasos excessivos do pagamento das facturas, etc., etc..
Em contrapartida a proposta de um limite mínimo de 15% fixado no Orçamento do Estado para a taxa efectiva de IRC, que uma esquerda dificilmente se atreveria a propor, poderá ter efeitos imprevisíveis. Em primeiro lugar numa queda bolsista induzida pela diminuição dos dividendos distribuídos por acção. Depois nos eventuais efeitos induzidos quer por esta queda, quer por decisões que as empresas atingidas (principalmente os bancos) irão tomar. Ora a introdução desta taxa mínima, a quebra do sigilo bancário sem aviso prévio, as restrições mais apertadas às operações nos off-shores são medidas de muito forte impacte. É uma medida fiscalmente justa obrigar os bancos a subirem a sua contribuição para a receita do Estado, mas muitas vezes medidas mais graduais são mais eficazes a longo prazo. Aumentos fiscais bruscos incentivam manobras defensivas mais elaboradas. Vejamos se Bagão Félix tem capacidade para lhes fazer frente.

Tudo que tenha a ver com matéria fiscal tem que ser sempre avaliado com muita cautela. A eficiência das medidas fiscais depende do comportamento dos contribuintes. A prática ensina que as variações das taxas fiscais são “amortecidas” por aqueles comportamentos. Um aumento fiscal excessivo incentiva a evasão fiscal e vice-versa. Se a carga fiscal é elevada o contribuinte, ao avaliar o risco da evasão fiscal, pode concluir que é um risco estatisticamente compensador. Se a carga fiscal baixa, o contribuinte terá mais incentivos a ser “bem comportado”.

Quanto às previsões em que se baseia o orçamento (um crescimento económico de 2,4% e uma inflação de 2%) estão em consonância com diversas projecções internacionais. As dúvidas assentam quase em exclusivo na questão do preço do petróleo, que se situa neste momento na casa dos 50 dólares, contrapondo o ministro das Finanças 38,7 dólares o barril como preço médio para 2005. Estas previsões constituem um risco elevado face à volatilidade actual do preço do crude, mas são a mesma base, ou mesmo mais conservativa, dos restantes países europeus. Quando se faz um cenário têm que se prever como evoluirão determinados parâmetros. Não deve ser nem pessimista, nem optimista mas tomar como referência as previsões internacionais.

Há outras previsões mais falíveis. Basta que as portagens nas SCUTs se atrasem, ou que o tráfego não seja o esperado, e as receitas dessas portagens muito inferiores ao que o governo previu, para se ter um buraco orçamental. Todavia como continua a haver o recurso às receitas extraordinárias, é uma questão de usar mais ou menos esse expediente, para o qual parece não haver cura.

Quanto à questão do populismo, este orçamento nada tem de populista. A baixa do IRS traduz-se num aumento pouco significativo do rendimento disponível para os mais carenciados. Adicionalmente, as empresas irão utilizar o argumento relativo a esse aumento do rendimento disponível por via fiscal, para serem mais prudentes nos aumentos salariais. Em contrapartida a classe média, nomeadamente a média-alta, é fortemente atingida. O governo vai distribuir pouco a muitos a partir de tirar muito a poucos. Mas estes poucos (20 a 30% da população) têm muita influência pública e eleitoral.

Ou seja o governo não vai contentar muitos e vai desagradar muito a poucos, com a agravante de que vai desagradar sobretudo à sua base natural de apoio.

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outubro 15, 2004

O Desastre de Cravinho

Ou como as SCUTs, mesmo virtuais, podem produzir desastres aparatosos.

O debate mensal, quinta-feira passada, na Assembleia da República, foram as forcas caudinas de Cravinho, sob as quais passou, repassou e trespassou, sem honra nem atenuantes, até que António José Seguro pôs termo a tão penosa situação pedindo à mesa o agendamento de uma conferência de líderes, pedido cujo único objectivo era o de pôr ponto final a tanto sofrimento. Quem não assistiu ao visionamento do debate não pode fazer ideia da catástrofe que o mesmo constituiu para João Cravinho.

Estabelecer parcerias público-privadas para construir auto-estradas não é, em si, um erro. Pode ser um óptimo negócio, desde que bem conduzido. Que essas auto-estradas tenham portagens virtuais também não constitui, em si, um erro. Mas foi um enorme erro não se ter visto a sua exequibilidade face a um planeamento financeiro a longo prazo e o ter-se utilizadas as receitas fiscais geradas pelas obras (IVA, IRC das empresas e IRS dos trabalhadores envolvidos) e induzidas por estas no restante tecido económico, para uma política de expansão da despesas pública que, pela sua rigidez, agravou o ónus a ser herdado nos anos futuros. Todavia Cravinho era apenas o «pai» da construção. Certamente que ao ministério das Finanças de então caberão igualmente responsabilidades pela ligeireza com que o seu financiamento futuro foi encarado. Todavia estes não terão sido os maiores erros cometidos em todo este processo.

Quando se contrata uma obra com um empreiteiro, ou um concessionário (que pode incluir, para além do(s) empreiteiro(s), uma entidade financiadora, uma entidade exploradora, etc.) deve ter-se um clausulado seguro, não existirem indefinições sobre o programa e sobre os projectos de construção. Todas as alterações de programa e dos projectos geram custos adicionais aos empreiteiros (na construção propriamente dita e nas imobilizações do estaleiro) e estes sabem fazer-se ressarcir, pesadamente, junto do dono da obra.

Ora as SCUTs, nomeadamente as iniciais (e de custos mais elevados) foram lançadas sem estudos de impacte ambiental (obrigatórios para a obtenção de financiamentos do BEI ou de outras instituições comunitárias), portanto sujeitas a alterações de traçado ao sabor dos resultados dos estudos. Foram lançadas sem as expropriações feitas, o que é um suicídio, porque, em caso de desacordo, a posse administrativa não é pacífica, haverá demoras, custos adicionais, escolhas difíceis entre parar uma obra ou pagar um valor excessivo por um terreno em litígio, etc.. Além do mais este processo foi passado para as mãos das concessionárias, para o resolverem de forma expedita ... mas à custa do erário público. Tudo isto originou um custo exorbitante, tornando o valor médio, por quilómetro, das portagens virtuais muito superior ao das actuais portagens reais, apesar da construção das praças das portagens e a exploração do sistema de cobranças representar um encargo adicional de cerca de 20% face ao custo de construção da auto-estrada sem portagens reais.

Outro constrangimento foi o Estado ter-se comprometido a não fazer vias alternativas ou a efectuar beneficiações nas vias existentes, para além da indispensável manutenção. Relativamente a esta exigência das concessionárias, deve dizer-se que é natural que a façam. Elas basearam as suas propostas em estudos de tráfego com a actual configuração das vias. Se a situação for alterada, os cenários dos estudos deixam de ser verdadeiros e existe um risco para as concessionárias. Em qualquer dos casos o Estado em todas estas negociações agiu com uma absoluta irresponsabilidade, não acautelando os interesses públicos, assumindo por sua conta todos os riscos do negócio e mostrando uma total incompetência na condução dos processos. O Estado nem acautelou o cumprimento das obrigações prévias que cabem a qualquer Dono de Obra minimamente responsável, nem acautelou as cláusulas contratuais que o penalizariam por esse incumprimento.

O que eu acabei de escrever é sobretudo válido para as primeiras SCUTs (as mais dispendiosas de longe). Houve depois uma ligeira melhoria na capacidade negocial.

O ex-ministro Cravinho alegou, a certa altura da sua intervenção, que o relatório do BEI certificava que o Estado português tinha capacidade para solver os compromissos. Esta declaração mostra que o Engº Cravinho, ou não percebeu nada do que andou a negociar, ou quer lançar poeira para os olhos. Não sei que parcela foi financiada pelo BEI, mas o que sei é que o BEI precisa que alguém garanta o empréstimo. O relator do processo tem que apresentar à direcção do BEI a indicação de quem garante o empréstimo e quem o garante é, normalmente, o Estado português, quer directamente, quer como avalista. Não interessa ao relator do BEI saber onde o Estado português vai buscar o dinheiro. Basta-lhe saber que o Estado português é uma entidade que solve os seus compromissos dentro do âmbito da UE.

Portanto, todo este acumular de erros, incompetências, negligências, etc., conduziu à situação calamitosa actual

Foi marcada para 13-10 uma audição, na comissão parlamentar de Obras Públicas, sobre as SCUTs. João Cravinho, depois de haver manifestado a sua «total disponibilidade» para ser ouvido no Parlamento sobre aquela matéria, acabou por não estar presente, fazendo as alegações que já referi numa posta anterior. Simultaneamente desdobrava-se em declarações públicas, verbais e escritas, sobre aquela matéria. Todavia aquela audição não correspondia a qualquer julgamento. Destinava-se apenas a confrontar as opiniões de quem tem a paternidade do negócio com quem o quer liquidar.

João Cravinho poderia alegar razões em favor da sua ideia. Ela, em si, é exequível. A questão de não ser financeiramente sustentável decorre mais da política económica e financeira do governo Guterres, que não acautelou o futuro, do que do próprio negócio. Se as receitas geradas pela construção, sem contrapartida de despesas (que foram proteladas vários anos), fossem utilizadas em sanear o orçamento em vez de o serem em empolar a despesa pública corrente de forma irreversível, talvez a situação orçamental do Estado permitisse solver actualmente aquele compromisso.

Há algo que ele todavia não pode negar: foi o processo atrabiliário e irresponsável como decorreram os processos de concurso e que encareceram drasticamente os valores a pagar. E isso preocupa-o sobremaneira. Tanto assim que declarou que apenas tinha assinado o contrato relativo à primeira, tendo os contratos das três seguintes sido assinados por Jorge Coelho, os dois posteriores da responsabilidade de Ferro Rodrigues, e o último (que aliás apenas representa 7,5% do compromisso total) assinado por Valente de Oliveira, no início da presente legislatura.

As datas de assinatura dos contratos têm uma importância relativa. Os processos de concurso desenvolvem-se de forma complexa, há decisões intermédias tituladas por correspondência, há a chamada “intenção de adjudicação”, que tem efeito legal, e a assinatura do contrato é um acto formal, indispensável, mas que consubstancia um compromisso já assumido. Certamente que Cravinho é igualmente responsável pelas negociações de algumas das SCUTs que se seguiram à da Beira Interior, embora admita que haja partilha com os ministros que se lhe seguiram. Não sei em que circunstâncias Valente de Oliveira assinou o último contrato. Provavelmente o estado em que as negociações estavam não lhe permitia outra alternativa. Não deixa todavia de ser caricato.

Ontem, no debate mensal, Cravinho avocou o tema das SCUTs na interpelação ao PM. Se não houvesse contraditório talvez Cravinho tivesse ficado satisfeito com a sua prestação. Porém ontem Santana estava imparável. Começou por ler o resumo das conclusões da auditoria do Tribunal de Conta, que são absolutamente demolidoras para os responsáveis pelo negócio, e depois foi por aí fora arrasando completamente as alegações de Cravinho.

A seguir coube a vez do deputado Marco António, do PSD, aproveitar a sua interpelação para criticar a ausência de Cravinho na audição da Comissão Parlamentar das Obras Públicas a propósito das SCUTs. Aí o PS cometeu um novo erro. José Junqueiro saiu em defesa da honra de Cravinho alegando uma série de circunstâncias relativas à tramitação da convocatória que considerava constituírem razões sólidas para justificarem a não comparência. Foi a humilhação definitiva: o presidente daquela comissão, Jorge Neto, fez um resumo, citando peças escritas e contactos telefónicos com Cravinho que desmentiam completamente as afirmações de José Junqueiro.

Enquanto Jorge Neto falava, a câmara focava alternadamente o deputado do PSD e Cravinho. Cravinho estava com o rosto fechado, olhar vazio, sem capacidade de reacção. Nem um músculo se mexeu, nem um gesto ou olhar de protesto foi esboçado enquanto Jorge Neto ia demolindo, peça a peça, facto a facto, as alegações de José Junqueiro. Mal acabou a intervenção de Jorge Neto, António José Seguro fez a intervenção acima citada e Cravinho viu ser posto termo à sua desnecessária humilhação.

Desnecessária porque se Cravinho tem a paternidade de um negócio que deu mau resultado, ele não é o único responsável. Além do que pode encontrar muitas razões para o insucesso, conforme descrevi acima. Ao recusar-se a ir à audição, Cravinho cometeu um erro político, pois além de ser catalogado como o pai das SCUTs passou a ser acusado de «fugir às suas responsabilidades» no processo. A forma como defendeu as SCUTs no debate mostrou que ele ainda não percebeu qual é exactamente o problema (ou então pensa que os outros são estúpidos), o que se prestou à crítica demolidora do PM. Finalmente nunca deveria ter deixado José Junqueiro ter aceitado o repto de Marco António. Teria sido preferível dizer que responderia depois em sede própria e tentar desdramatizar o assunto. Cravinho, pelo acumular de uma série de erros, alguns perfeitamente desnecessários sujeitou-se a uma humilhação que para um homem com os anos que tem de vida política activa e que exerceu tantos cargos de relevo, constitui um tremendo enxovalho.

Nota - sobre este assunto ler igualmente:
Cravinho recusa ser Cícero

Publicado por Joana às 08:58 PM | Comentários (17) | TrackBack

outubro 13, 2004

Cravinho recusa ser Cícero

O deputado socialista João Cravinho recusou-se a comparecer à audição na comissão parlamentar de Obras Públicas alegando que «não é o único responsável dos governos do PS pela implementação das auto-estradas Scut» e que lhe ser "imputada a responsabilidade política de todo o processo das Scut representa uma flagrante violação do princípio da objectividade e não discriminação na atribuição de responsabilidades políticas nos termos da lei".

Em vez disso, escreveu uma carta ao presidente da comissão, dando aquelas explicações para justificar a sua recusa em comparecer, e teceu diversas considerações sobre a bondade das SCUTs. Apesar de estar absolutamente convencido da excelência do negócio, não quis deixar de partilhar esse merecimento com os ministros que se lhe seguiram. Para ele, com a humildade que o caracteriza, apenas reivindicou a paternidade da ideia e a concessão da SCUT da Beira Interior (que aliás representa mais de 25% do custo anual previsto para as SCUTs), e mesma essa de parceria com o então ministro das Finanças, Sousa Franco.

Cravinho leva ainda a sua amabilidade em sugerir à comissão parlamentar que lhe comunicasse "os quesitos precisos correspondentes ao que se pretende saber", afim de poder prestar a sua "colaboração" com o "máximo de rigor”. Por escrito, claro.

Cravinho já tem publicado diversos artigos sobre a excelência daquele negócio. Como teme que os membros da comissão não leiam os jornais com a atenção requerida, ou considere que um negócio tão meritório exige um tratamento mais personalizado, promete escrever mais artigos sobre as SCUTs, mas desta feita dedicados apenas aos membros da comissão parlamentar de Obras Públicas. Certamente que os membros desta comissão ficarão sensibilizados com o anúncio de um tratamento tão personalizado e tirarão daí as devidas consequências.

Mas o que há de interessante em tudo isto é que a comissão se ia reunir para debater as virtudes ou vícios do negócio. Cravinho, que teve a paternidade do negócio, deveria exaltar as suas virtudes e Mexia, que se apresta para acabar com ele, verberar os seus defeitos. Aparentemente Cravinho teve receio de não ter os mesmos méritos e ser tão convincente, em controvérsia verbal, como à sua secretária, enchendo folhas de papel, em elegante cursivo e sem receio de contradita.

Acontece aos melhores. Cícero defendeu Milão da morte de Clódio tão desajeitadamente que Milão foi condenado ao desterro. Depois redigiu Pro Milone e enviou-o a Milão que lhe agradeceu e comentou:«se tivesses dito isto no julgamento não estaria agora, aqui, em Marselha, a comer peixes tão saborosos!». Cravinho, ao não comparecer na comissão, quis evitar uma prestação à Cícero. Achou que era injusto poder ser comparado a tamanho mestre da eloquência ... escrita.

Basta-lhe a glória das SCUTs e das muitas centenas de milhões de euros anuais que elas irão custar no próximo quarto de século, a menos que Mexia encontre um remédio milagroso.

Publicado por Joana às 11:45 PM | Comentários (10) | TrackBack

outubro 10, 2004

Portugal está Enfermo

Quando escrevi aqui, há dias, uns textos sobre o advento da República, não o fiz por uma mera intenção de recordar a efeméride. Fi-lo igualmente para recordar que em matéria política e social, quem semeia ventos colhe tempestades.

Tem sido repetido à exaustão que o regime emergente do 25 de Abril não deveria repetir os erros da 1ª República, pois esses erros haviam conduzido a um ambiente social que facilitou a instauração da ditadura. Este apelo continha, porém, um vício de análise profundo. A 1ª República foi vítima da crise social e de valores que ela própria perverteu durante as duas décadas que precederam a implantação da república. Como escrevi na altura, a 1ª República acabou por cair na armadilha que havia construído para os outros – a permanente chicana política, a difusão de boatos sem consistência com o intuito de enlamear as figuras publicas e a classe política em geral, a apologia da violência como arma política, a assimilação da conspiração e do terrorismo a valores respeitáveis e heróicos da luta política, a promoção dos autores de atentados e dos regicidas a heróis nacionais, exaltando a sua figura e organizando sessões e romarias em sua memória.

Um regime em que muitas das suas figuras emblemáticas ascenderam ao poder, lançando lama sobre a classe política anterior, ao tornarem-se poder, tornaram-se igualmente alvo da lama e do descrédito da classe política. Quando os valores de uma sociedade são degradados, essa degradação atinge também aqueles que a promoveram. Ficaram reféns do próprio aviltamento das instituições e valores que provocaram. A 1ª República caiu porque quando se implantou já continha em si o gérmen da sua liquidação. Só faltava saber se cairia às mãos dos republicanos moderados de Pimenta de Castro, do presidencialismo populista de Sidónio Pais, ou da ditadura do 28 de Maio. Quanto mais tarde fosse liquidada, maior seria a factura a cobrar.

Portugal vive, desde há vários anos, um clima de permanente chicana política cuja génese está na classe política e na comunicação social. São estatisticamente muito minoritários dentro da sociedade, mas apenas eles detêm a capacidade de falar e escrever publicamente. Somente alguns órgãos regionais e meia dúzia de sítios da net escapam a esta Gleichschaltung und Tarnung comunicacional, onde a comunicação social exerce um totalitarismo comunicacional dissimulado por constantes alertas sobre os perigos de um alegado controlo externo dos mídia. É o gatuno a simular a inocência, gritando «agarra que é ladrão!».

Portugal está doente e essa doença alastrou por todo o corpo social. A nossa juventude está a perder hábitos de trabalho e apenas alguns se empenham no estudo, apesar das dificuldades constituídas pelo contrapeso, cada vez maior, dos que vão para a escola apenas com intenções lúdicas. Alunos do Leste europeu, ao fim de 2 anos, são os melhores alunos das turmas e, frequentemente, os melhores alunos em Português, eles, que desembarcaram em Portugal não sabendo soletrar uma palavra da nossa língua materna.

Quando adultos reclamamos contra a situação social, exigimos reformas mas protestamos quando se tentam implementar essas reformas porque a sua concretização nos afecta directamente ou nos atinge em alguns interesses particulares. Consideramos excessiva a despesa do Estado, mas recusamos que a sua contenção seja feita através de um maior rigor no desempenho da função pública e da perda de algumas mordomias que desfrutamos. Criámos um monstro que consome a maior parte da riqueza que penosamente criamos e que não conseguimos reformar porque ele se recusa a tal e o lobby que o sustenta é mais poderoso que a nossa força para o mudar.

Há uma imunodeficiência adquirida pela nossa sociedade que a torna inerme perante esta enfermidade que a corrompe e avilta. E o alastramento dessa doença acelerou-se na última década pela emergência do BE na vida política portuguesa. Até aí tínhamos um partido anti-sistema que lutava por causas, com as quais podíamos não concordar, mas que eram causas sociais e políticas cuja sustentação era legítima. Mesmo quando utilizava métodos considerados malevolentes, havia limites que não ultrapassava. Porém o BE não é um partido de causas, mas um partido de casos. O BE vive da permanente chicana da vida política, sustenta-se do enxovalho contínuo da classe política a que ele finge não pertencer, medra na baixa intriga e nos processos de intenção, que em Portugal sempre fizeram a delícia de alguns extractos sociais urbanos que vivem na ociosidade, mesmo quando alegadamente trabalham.

E a lama e a imundície que o BE lança sobre a política e a sociedade são disseminadas profusamente através dos ventiladores de que dispõe na comunicação social. O BE tem na comunicação social um peso e uma influência completamente desproporcionados face à sua implantação social. E usa-os para degradar os já aviltados valores do país. Com que fins? Nem ele sabe. Os partidos radicais não têm estratégias de longo prazo, apenas tácticas imediatistas de intriga e envilecimento político. A longo prazo apenas perseguem quimeras. E quando as tácticas resultam e a sociedade é abalada nos seus fundamentos, são eles as primeiras vítimas do refluxo da maré.

E o BE fez escola. Basta lembrarmo-nos do terrorismo parlamentar do PS, da aliança Povo-RTP e dos prenúncios a PREC que ocorreram nos primeiros meses da actual legislatura.

Estou pouco preocupada que o BE, ou qualquer dos seus émulos, venha a ser essa vítima: quem semeia ventos colhe tempestades. Mas estou cada vez mais preocupada pela evolução da vida política, social e económica de Portugal, pelo aprofundar do nosso atraso e pela nossa manifesta incapacidade de sair da situação para onde temos sido arrastados, por nossa culpa, e na qual nos afundamos, cada vez mais. O país está doente e a parte sã do seu corpo não parece ter capacidade de regenerar o todo colectivo.

A questão já não é a de termos deixado de ver a luz ao fundo do túnel. O grave é que já não vemos a luz no topo do poço.

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setembro 25, 2004

Quem nasce torto

A nova Lei do Arrendamento Urbano, até onde me foi dado entender, tem uma qualidade: quebrou um tabu. Tem um defeito: a sua eficiência na retoma do mercado do arrendamento, e no mercado imobiliário em geral, vai ser insignificante no curto prazo. Talvez no muito longo prazo venha a ter efeito, se a nossa veia legiferante (ou legiferoz) não a esvaziar entretanto, e se for complementada com legislação tornando expedito o despejo por não pagamento de rendas.

O problema é que, no que diz respeito à habitação, qualquer lei seria má ... embora melhor que a actual situação. E o mais perverso é que esta situação insustentável foi criada com a melhor das intenções sociais durante o consulado de Salazar, quando a inflação era inexistente, e cristalizada na sequência do 25 de Abril, quando se desencadeou um processo inflacionário que, durante alguns anos, atingiu valores superiores a 30% ao ano. O congelamento das rendas atingiu não apenas o sector habitacional, que seria eventualmente defensável como medida de filantropia social (embora o Estado reservasse essa acção de benemerência para os senhorios), mas também o sector do arrendamento comercial, o que era totalmente injustificável, pois o espaço ocupado por uma empresa para a sua laboração é um factor de produção, e o preço da sua utilização deve ser interpretado como um custo normal de produção.

Portanto a regulamentação do mercado do arrendamento teve diversos efeitos perversos e de ónus pesadíssimos. Em primeiro lugar as famílias foram, pouco a pouco, equilibrando os seus orçamentos domésticos mercê de rendas com valores reais cada vez mais irrisórios. Qualquer alteração significativa das rendas seria, a partir de certa altura, a subversão desses orçamentos familiares. Os senhorios, com rendimentos imobiliários insuficientes para fazerem obras de beneficiação, foram deixando degradar os imóveis até limites inimagináveis, em alguns casos até à derrocada. As lojas e espaços comerciais, pagando cada vez menos pelo espaço utilizado foram perdendo capacidade de inovação e habituaram-se ao ramerrão do comércio sem qualidade. Em resumo, fomos conduzidos à degradação do parque habitacional, à ruína dos centros históricos de Lisboa e Porto e das restantes cidades do país, à inexistência de um mercado de arrendamento eficiente, à opção pela aquisição de casa própria e ao endividamento exponencial das famílias para o conseguirem.

A questão que se põe é saber se a nova lei vem resolver esta situação. Mesmo sem conhecer a lei em profundidade, a minha resposta é parcialmente negativa.

Em primeiro lugar, a reforma da Lei do Arrendamento vai deixar de fora cerca de 227 mil famílias, segundo os dados divulgados pelo Ministério das Cidades, Administração Local, Habitação e Desenvolvimento Regional. Os fogos ocupados por estas famílias estão, na sua maioria, nos centros históricos degradados das cidades portuguesas. Correspondem seguramente aos senhorios mais idosos e descapitalizados. Como poderão ser recuperados?

Para além destes fogos, e por causa da nova Lei do Arrendamento, o Estado prevê apoiar cerca de 102 mil famílias de menores rendimentos com subsídios de renda. Mesmo apoiadas, serão rendas condicionadas com valores bastante inferiores aos do mercado.

Para além destes, os arrendamentos comerciais, relativos ao pequeno comércio, são objecto de um regime a longo prazo, de contornos pouco precisos.

A quase totalidade dos senhorios destes imóveis, certamente dezenas de milhares, alguns dos quais nem são conhecidos, pois quem consta do registo das Conservatórias já não existe e os sucessivos herdeiros nunca reclamaram a herança porque provavelmente o Imposto Sucessório seria muito superior ao valor dos imóveis, não têm capacidade financeira para fazerem obras de reabilitação, cujo retorno só é expectável a muito longo prazo.

Para além de não terem capacidade financeira, não têm know-how para se abalançarem a obras tão complexas como a reabilitação urbana. E são complexas por várias razões:

1 – Será de manter a tipologia e a organização de espaço existente? Em Alfama e noutros bairros históricos de Lisboa e Porto há muitos fogos com 20 m2, ou menos, de área útil, e um fogo por piso. Estas áreas inviabilizam tipologias de acordo com os mínimos aceitáveis. Não faz sentido reabilitar um fogo mantendo uma tipologia completamente desadequada face à vivência actual. Mas se aumentam as áreas, alguns dos inquilinos terão que ser realojados noutros locais. Como é que o senhorio vai dirimir esta questão?

2 – Uma obra realizada num tecido urbano de arruamentos muito estreitos, com as exigências camarárias de manutenção das traças (às vezes das próprias fachadas) é muito mais cara que construir de raiz, nomeadamente no estado em que a maioria dos imóveis se encontra. Os senhorios desses imóveis, na sua maioria idosos e de baixa qualificação, não têm capacidade para gerirem empreendimentos destes. Arriscam-se a caírem nas mãos de empreiteiros pouco escrupulosos.

3 – Na sua quase totalidade, a lei não abrange estes imóveis ou, os que abrange, é em regime de renda condicionada, que não é suficiente para haver retorno do investimento, admitindo que os senhorios tivessem capacidade financeira e competência para promoverem a reabilitação.

Portanto a perversão que o congelamento das rendas provocou no mercado imobiliário (com a melhor das intenções sociais!) foi de tal forma profunda que não se descortina uma solução a curto ou a médio prazo. A reabilitação dos imóveis terá que passar, para além de um suporte legal mais adequado que este, pela acção conjunta do Estado, das autarquias e dos senhorios (os actuais, ou a quem estes os venderem, se se sentirem inabilitados para os recuperarem).

Há ainda outro factor para a queda do mercado do arrendamento urbano que permanece esquecida. Há meio milhão de fogos devolutos, mas a lei permite, desde 1990, arrendamentos em regime livre, pelo prazo de 5 anos, com a possibilidade de não serem renováveis. Porque é que continuam devolutos? Porque se instalou em Portugal o hábito dos inquilinos pagarem os 2 meses de entrada, com o contrato de arrendamento, às vezes mais um ou dois meses, e depois deixarem de pagar. O senhorio move uma acção de despejo e fica ano e meio a dois anos à espera que o inquilino seja despejado. A forma de segurar o pagamento das rendas seria uma garantia bancária de um ano de rendas. Mas os bancos não vão nisso, porque só passam garantias a clientes em que tenham confiança ou com bens que possam caucionar. Mesmo fiadores, ou não são fiáveis, ou o inquilino não os consegue apresentar.

Portanto, alugar uma casa em Portugal é uma situação arriscada. Para quê alugar uma casa se as rendas recebidas não chegarão para pagar os advogados, os processos judiciais e a reabilitação do fogo que normalmente é deixado em mísero estado? Como é uma situação de elevado risco, o senhorio tende a pedir um valor mais elevado para a renda para se precaver com uma espécie de seguro ou, pura e simplesmente, não aluga, ficando à espera de melhores dias.

Portanto, para dinamizar o mercado de arrendamento, mais importante que a nova lei, é encontrar procedimentos legais que permitam o despejo rápido, no máximo dois meses, por não pagamento da renda, e formas de execução sumária das rendas devidas e não pagas e dos danos provocados no fogo pelo inquilino.

Os únicos inquilinos que irão sentir os efeitos desta lei são os que pertencem à classe média. Será esta a única a pagar. E a punção que recairá sobre os seus rendimentos ainda não é definida: depende de uma negociação “dita” livre com o senhorio. Mas como é balizada? Se não forem estabelecidas balizas nunca será uma negociação livre, pois a alternativa é o despejo. O governo corre o risco de alguns locatários, pressionados pelos senhorios, resolverem a “negociação” adquirindo casa própria o que terá um efeito absolutamente contrário ao pretendido pela lei.

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setembro 08, 2004

A Descoberta do Caminho Marítimo

Para Portugal

Portugal pode ter-se tornado o Eldorado ...
.......................................
Daqueles Activistas que foram dilatando
A Fé na Participação, e as costas viciosas
Da Lusitânia e da Figueira andaram devastando
E que por Desígnios e Causas valerosas
Se vão das leis do Estado libertando
Injuriando, vandalizarão por toda a parte
Se a tanto os ajudarem a Comunicação e arte.

O Barco do Aborto é a primeira chegada da frota imensa que já se perfila no horizonte e que promete salvar os íncolas da Lusitânia das trevas em que se encontram imersos. A civilização que, no século XIX, nos chegava penosamente pelo vapor do Havre, chegar-nos-á radicalmente, no século XXI, pelos vapores de Amesterdão, presididos por Rebeccas providas de autoridade proconsular, colocadas, mercê do seu avanço civilizacional, muita acima das leis desdenháveis e despiciendas dos aborígenes.

Os que mais proximamente se avizinham são os barcos dos casamentos intrasexuais, promovidos pelas organizações Gays on Waves e Lesbian on Waves. Os enlaces, com os necessários registos civis e marítimos, serão celebrados fora das águas territoriais, incluindo os copos de água. Para os convidados cujos estômagos delicados não aguentarem o baloiço marítimo, haverá um sistema de vai-vem com lanchas rápidas que permitirão o alívio em terra firme e o regresso para repor conteúdos.

Mais longe, no horizonte, recorta-se o barco da «Irresponsabilidade Social», que virá ajudar todos os delinquentes activos ou candidatos a delinquentes. A todos os que forem a bordo reclamar apoio, será concedido um certificado de inimputabilidade, repleto de alegações provando a total responsabilidade da sociedade como causa única e determinante da sua delinquência. O barco traz uma inventariação exaustiva de todos os traumas sociais infligidos pela sociedade cruel onde nos obrigam a viver, e a relação causal, necessária e obrigatória, entre cada acto delinquente e o trauma que o desencadeou, agravado pela violência repressiva das forças de segurança.

Na esteira deste, sulca entretanto as águas o barco da «Vitimização Rácica», mais especializado, destinado a proteger os direitos absolutamente prevalecentes de outras etnias e raças que se dediquem à delinquência. Quem demandar esse barco, e se enquadrar naquelas tipologias, receberá um certificado de permanente vítima inocente do racismo, da xenofobia e da violência policial.

Mais longe, na cola do anterior, virá o barco da «Desorçamentação Equilibrada». Prevê-se uma enorme adesão, pois estará dotado com o equipamento mais moderno e sofisticado de fabricação de moeda, papel e electrónica. Autarcas, funcionários públicos e corporações sindicais são o público alvo. Todos receberão de acordo com as suas necessidades e, de forma alguma, pelo injusto e obsoleto sistema de “segundo as suas capacidades”. Esta oferta marítima de moeda não contará para o défice, porquanto é emitida em águas internacionais. Em terra estão previstos seminários sobre a influência marítima na curva LM e os novos equilíbrios macroeconómicos emergentes.

Finalmente, para o indispensável remate, perfilar-se-á na barra do Tejo o barco de Nosferatu, sulcando as águas com a mesma sombria lentidão com que abordou o porto de Bremen. Nosferatu erecto no convés, sobraça o caixão, perscrutando a costa na ânsia incontida de se dessedentar na seiva já anémica dos aborígenes que sobraram das incursões anteriores.

Publicado por Joana às 06:46 PM | Comentários (29) | TrackBack

setembro 03, 2004

Paradoxos dos Abortonautas

Paradoxo do Modelo Espanhol

Para mostrar o “atraso” legislativo português face à Europa invoca-se permanentemente a necessidade das mulheres portuguesas se terem de deslocar a Badajoz para aí abortarem com apoio clínico. O populismo tablóide de esquerda agita permanentemente Badajoz como a terra prometida para a libertação do “nosso corpo”. Ora o que é paradoxal é que ninguém se questiona sobre o facto desses abortos se fazerem em Espanha e não em Portugal apesar da legislação actual sobre a IVG ser, excepto em alguns pormenores de prazos, idêntica à espanhola.

Quem ouvir os furiosos do “direito ao nosso corpo” poderá pensar que há diferenças legais entre Elvas e Badajoz. A diferença reside apenas na interpretação abrangente que a classe médica espanhola dá à “saúde materna” como justificação para realizar o aborto. Muitos médicos portugueses consideram essa argumentação desonesta. Aliás muitos médicos portugueses recusam-se a realizar abortos mesmo quando não existem quaisquer dúvidas sobre a sua legalidade face à lei actual. A diferença entre ser ou não ser crime reside apenas na justificação médica apresentada para a realização do acto e não na lei. Não é a nossa lei que é obsoleta, como muitos clamam. A sua interpretação é que faz a diferença.

Não vou escrever que não percebo porque é que os alegados defensores da “mulher” não reclamam a integral aplicação da actual lei, nem porque será que não apoiam a criação de centros médicos para, à semelhança do que sucede em Espanha, realizarem idênticas intervenções clínicas. Não escrevo que não percebo, porque percebo perfeitamente: O populismo tablóide de esquerda apenas tem interesse pela agitação irracional e pelos chavões do seu Parque Jurássico Ideológico. Nem o MST, o sex-symbol da Lapa, escapa a esta influência obscurantista.

Também não vou escrever que não percebo porque nem os meios de comunicação, nem os políticos abortonautas esclarecem esta situação para fundamentarem a exigência de mudanças dentro do actual quadro legal. Percebo perfeitamente: Quer o populismo tablóide de esquerda, quer o populismo tablóide que se dirige às domésticas entediadas, baseiam-se na ignorância e desinformação dos seus receptores. Se esses receptores estivessem esclarecidos ... lá se iam as audiências.

Como pano de fundo de tudo isto prefigura-se a velha pecha portuguesa: quando as coisas não correm de feição há uma panaceia universal – mudar a lei. Ninguém pensa em aplicar devidamente a lei vigente.

Paradoxo dos abortos feitos sem condições sanitárias

O populismo tablóide de esquerda indigna-se com as condições vexatórias e ausência de apoio médico, em meios humanos e materiais, em que decorrem os abortos clandestinos e o risco de vida que tal comporta. É um facto iniludível. Todavia, como alternativa, propõem abortos realizados num pequeno barco, no alto mar, na costa ocidental portuguesa (onde uma pessoa normalmente enjoa, mesmo quando está apenas a desfrutar o prazer turístico), num contentor sem equipamentos médicos de apoio, nem condições de segurança, o que levou um tribunal holandês a interditar semelhantes intervenções a uma distância superior a 20 milhas de um hospital que possua tais meios.

Será que estão à espera que alguma mulher alinhe em semelhante procedimento, a menos que esteja integrada em alguma operação mediática?

De acordo com a lei portuguesa o barco é uma clínica não autorizada e não vistoriada. À luz dos regulamentos da Ordem dos Médicos, qualquer clínica que abra em território nacional tem o dever de o comunicar a uma direcção regional da OM que enviará 2 médicos para fazer uma vistoria. Por sua vez os médicos holandeses que queiram exercer temporariamente actos em Portugal devem inscrever-se previamente na OM, que foi o que sucedeu com os médicos das selecções estrangeiras no Euro 2004. É evidente que, enquanto estiver fora das águas portuguesas, nem o barco nem os médicos estão sujeitos àquelas obrigações, mas uma questão interessante seria saber o que aconteceria se uma das mulheres que eventualmente abortasse em águas internacionais se queixasse à OM em consequência de actos clínicos praticados a bordo.

Paradoxo do Mercado ter mais sensatez que os políticos abortonautas

A JS anda afadigada a ver se afreta um barco para transportar a imensa mole de grávidas que se acotovelam no porto da Figueira da Foz ansiando por emanciparem “o seu corpo”.

Isto sucedeu porque o proprietário do barco “Capitão Capela” se recusou a transportar mulheres grávidas invocando razões de segurança: o «transbordo de pessoas no alto mar é difícil e as mulheres grávidas são casos de risco», afirmou.

Este proprietário tem arrecadado alguns milhares de euros com os políticos e jornalistas abortonautas que demandam o “velo de ouro” do extermínio fetal. Provavelmente nunca fez tanto negócio. A esquerda radical sempre diabolizou a ominosa sede do lucro dos gananciosos capitalistas e os efeitos deletérios do mercado. Por este raciocínio o proprietário do “Capitão Capela” deveria estar agora a promover uma operação publicitária de âmbito nacional com pacotes convidativos de viagens destinados a grávidas. E o papel destinado aos dirigentes da esquerda, tendo em conta os valores éticos que, na sua esclarecida opinião, os diferencia da direita e dos gananciosos, seria o de se empenharem na segurança das pessoas e travarem os excessos e perversões do mercado de transporte de pessoas no alto mar.

Afinal quem está empenhado na satânica sede de lucro mediático são os políticos. Afinal, a sensatez está no funcionamento do mercado e a tontice e ganância está entre os políticos.

Paradoxo dos Abortonautas à deriva

Não me vou pronunciar sobre a bondade da decisão de proibir a entrada do “Barco do Aborto” nas águas territoriais portugueses, nem sobre os fundamentos jurídicos dessa decisão. Do ponto de vista legal, e exceptuando alguns jornalistas e fazedores de opinião, ninguém contestou a fundamentação da decisão do governo português. O próprio governo holandês, apesar de pressionado pelos seus radicais domésticos, reconheceu o direito de Portugal em tomar aquela decisão.

A questão é saber se estrategicamente teria sido a decisão mais acertada. A costa ocidental portuguesa, nomeadamente a zona a norte de Peniche, é caracterizada pela forte ondulação e pelas tempestades frequentes. É a zona mais agreste de toda a costa portuguesa. Observando as dimensões do navio, duvido que, mais dia menos dia, ele não tenha que ser socorrido por razões humanitárias (1) e conduzido a um porto de abrigo. Parece-me que isto será inevitável se a estada do navio se prolongar.

Se o barco for obrigado a ancorar por razões humanitárias, que irá fazer então o governo? Presume-se que tenha um plano de emergência para tal situação. Quando se toma uma decisão devem-se analisar todas as variantes que podem ocorrer na sequência dessa decisão. E o rigor da identificação e avaliação das variantes deve ser proporcional à sensibilidade da matéria. Para tontos já bastam os radicais de esquerda.


(1) Fala-se muito da desproporção de meios, com uma corveta a vigiar o navio. Não sei se também foi essa a intenção, mas Portugal tem deveres para com as embarcações que cruzam as suas águas ou a sua ZEE. Em face da proibição, é preferível estar uma corveta por perto, do que não haver quaisquer meios nas imediações. Todavia, em caso de forte intempérie a corveta pode ser útil no resgate de algum acidentado, mas pode não ser suficiente e o barco do aborto necessitar de se abrigar nalgum ancoradouro.

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setembro 02, 2004

O Paradigma Totalitário

O Barco do Aborto e a Mentira

Uma das técnicas da esquerda radical e de uma ala não despicienda do PS é a da manipulação da verdade, mentindo objectivamente, mas mascarando a nudez forte da mentira sob o manto diáfano do trauliteirismo verbal e de um pretenso apego a valores.

Há 2 semanas, o “crítico (!?)” cinematográfico MJT dava 5 estrelas (se bem me recordo) ao Fahrenheit 9/11 e escrevia «este manisfesto anti-Bush é demagógico. Pois é. Não hesita em manipular materiais e imagens. Quanto a isso não há dúvidas. No entanto fá-lo de maneira exposta, clara, “honesta”(!!??), sem falsos subterfúgios ... Quando o mundo é comandado por um louco furioso porque não expô-lo e ridicularizá-lo?» Ora a tese de que a mentira e a manipulação são úteis e necessárias para combater os nossos adversários foi a base da propaganda nazi, o que coloca Fahrenheit 9/11 muito mais próximo do “Judeu Süss” do que do “Triunfo da Vontade” da Leni e o “nosso crítico”, embora julgando-se provavelmente de esquerda, como um obscuro epígono de Goebbels. A sua convicção («Bush é um louco furioso») é instituída como uma verdade universal, um postulado que não necessita ser demonstrado, e a partir daí desenvolve-se uma teoria em que tudo é permitido, e mesmo necessário, para exterminar o seu adversário.

A viagem do navio da Women on Waves em demanda de Portugal veio mostrar que o paradigma totalitário da utilização da mentira como arma política e social é a norma na esquerda (esquerda definida com o âmbito acima referido) e que se o reconhecimento público do comportamento totalitário possa ser, no caso citado acima, fruto da ingenuidade de um crítico, ele existe e está generalizado. Vou centrar-me nesta questão e deixar para uma ocasião mais oportuna (quando houver ambiente para um debate sereno) a questão da descriminalização do aborto. Não é possível o esclarecimento público e manter um debate sério, quando a generalidade dos políticos de esquerda assume a despenalização do aborto como uma questão ideológica ou política. Não é possível contribuir para a solução do problema do aborto, quando a essência do debate se faz à custa de extremismos e de argumentos demagógicos. Não é possível levar a sério uma esquerda que arvora esta bandeira para atacar agora a actual maioria, quando no passado dispôs de várias oportunidades para mudar a legislação e não o fez.

Analisemos o paradigma totalitário da mentira com alguns exemplos actuais:

A lei sobre a IVG é imposta por uma minoria fanática

A actual lei sobre a IVG é imposta por uma minoria fanática ou, como escreveu Fernando Rosas, uma minoria impõe «totalitariamente a toda a comunidade a sua particular visão filosófica sobre a vida, transformando-a em lei imperativa da IVG».

Mentira: A actual lei foi referendada pelos eleitores portugueses em 1998. Pior, quando foi referendada a questão da interrupção voluntária da gravidez a lei que se propunha referendar já tinha obtido a maioria de votos na generalidade na Assembleia da República. Foi o PS que, em face da questão não ser pacífica internamente, levou o assunto a referendo. Pode acusar-se o PS de cobardia por não ter legislado, apoiado na maioria da AR. Todavia, depois de se ter realizado o referendo, já não havia condições políticas para a aprovar na AR, embora o referendo não fosse vinculativo dado o elevado número de abstenções. A própria JS na altura o reconheceu e retirou a proposta de lei, contra a vontade do PC e BE que exigiam que essa lei fosse aprovada na AR, apesar dos resultados do referendo.

Portanto a actual lei resultou da vontade do país e o referendo e a respectiva campanha mostraram que era uma questão que atravessava transversalmente todos os partidos (se não os seus dirigentes, pelo menos os seus eleitores). O eleitorado português não é uma minoria fanática e a sua opinião mereceria bastante mais respeito.

Quando Rosas não se lembra (ou finge não se lembrar) de algo que ocorreu há meia dúzia de anos, podemos pôr em dúvida a sua competência como historiador (se desconhece um facto tão relevante e recente) ou a sua probidade (se finge que é um facto que não existiu). Mas a questão não se resume ao Rosas. Louçã e outros dirigentes do BE, do PCP e da ala esquerdista do PS também evidenciam a mesma ausência selectiva de memória.

A Holanda faz pressão junto do governo português

Mentira: Aart-Jan de Geus, ministro dos assuntos sociais e do emprego da Holanda, já declarou ao Parlamento Europeu que “não pretende levantar a questão junto do governo português”.

O ministro dos negócios estrangeiros Ben Bot igualmente informou que não vai pedir explicações oficiais a Portugal, devendo manter apenas uma conversa informal com um representante do governo português. Aliás, a France-Press noticiou que Ben Bot (o MNE da Holanda) afirmou (ou escreveu ao parlamento holandês) que «Portugal tem o direito de interditar a entrada do barco. Portugal pode entender, legitimamente, que a vinda do barco não é inocente e interditá-lo de entrar nos seus portos e nas suas águas territoriais».

A única acção do MNE holandês foi ter transmitido ao governo português o “desejo” do parlamento holandês de que o barco pudesse atracar.

Aliás este assunto é caricato, porquanto os partidos que mais apostam agora na “interferência” estrangeira foram sempre os que mais protestaram contra a “sujeição” de Portugal a alegados interesses estrangeiros. Os partidos que mais têm “desconfiado” da Europa são agora os que mais empolgados ficam com o apoio da Holanda e mais referem os “valores europeus”. Não partilho dessa concepção “selectiva” da soberania e acho-a hipócrita.

Igreja concorda com a entrada do Barco do Aborto em águas nacionais

Mentira: Em primeiro lugar, D. Januário Torgal é apenas Bispo das Forças Armadas e não a Igreja. Em segundo lugar o que o Bispo Januário Torgal declarou foi que «se o barco pretender fazer apenas uma simples campanha, ninguém pode impedir a liberdade de expressão ... contudo se o barco da WoW pretende, através desta ou de outra modalidade, infringir a lei, é perfeitamente legítima a acção das autoridades portuguesas».

Aliás, sobre esta questão há várias opiniões. Pacheco Pereira, entre outros, acha que «enquanto não quebrar a lei a sua acção é do domínio da pura propaganda e agitação e isso as leis da república protegem como liberdade de expressão». Outros entendem que as intenções da WoW, quer pelas declarações iniciais, quer pelas informações no seu site, configuravam uma intenção de infringir a lei. Ou seja, uns entendem que se deveria esperar que infringissem a lei, outros que bastava conhecer a intenção, para prevenir a infracção. Todavia, D. Januário Torgal, admitindo que houvesse essa intenção, consideraria «perfeitamente legítima a acção das autoridades portuguesas»

Sampaio exige explicações

Mentira: Sampaio reconheceu apenas «haver um problema para os juristas discutirem que dá pano para mangas», mas adiantou não estar descontente. Posteriormente os factos vieram provar que a “arma” Sampaio havia sido uma inventona dos meios de comunicação.

Santana abre a porta a mudanças na lei do aborto

Mentira: Santana Lopes apenas revelou abertura para debater alterações à lei do aborto, afirmando que o «debate sobre esta questão estará sempre em aberto uma vez que as leis e os resultados dos referendos não são definitivos ... nem as sociedades são estáticas, nem as leis são estáticas, nem os referendos são estáticos». Isso foi claro nas suas declarações feitas na quarta-feira, mas que os jornalistas, ansiosos de tomarem os seus desejos por realidades, leram ao invés. E o mais espantoso foi os jornalistas dizerem hoje, quando PSL repetiu as suas declarações para que não houvesse dúvidas, que a “confusão” havia sido agora desfeita, quando a confusão fora criada por eles próprios.

Apoio popular à acção

Uma das teclas é falar-se das muitas centenas de milhares de mulheres vítimas de uma legislação vexatória e desejosas de serem redimidas pelo barco libertador. A acreditar nessa indignação, ver-se-iam certamente centenas de milhares de pessoas (nomeadamente mulheres) a manifestarem-se tumultuosamente, exigindo a atracagem do barco redentor.

A população tem dado uma resposta elucidativa. Menos de meia dúzia de pessoas estiveram presentes na manifestação junto do Ministério da Defesa, amplamente divulgada por SMS e depois nos meios de comunicação. Na manifestação junto à residência do 1º ministro estiveram 200 a 250 pessoas, incluindo dirigentes dos partidos de esquerda. Na Figueira da Foz, no primeiro dia, apareceram uma a duas dezenas de curiosos. Depois nem isso. Aparentemente há mais organizações envolvidas na acção da vinda do barco do que pessoas a manifestarem-se.

Como os meios de comunicação não encontram manifestantes indignados na Figueira da Foz, vão entrevistando pescadores que estão entretidos a restaurarem a pintura dos barcos. Mas sabe-se como são usadas essas entrevistas de rua (vox populi) pretendendo que funcionem como representativas do todo nacional.

É evidente que há uma questão social onde se insere o recurso ao aborto. Mas a situação proclamada insistentemente nos meios de comunicação pelos corifeus da esquerda já só existe na sua imaginação. Os filhos não são algo que é imposto à mulher. Não nascem nas nossas barrigas por obra e graça do acaso. E as mulheres que não querem ter mais filhos têm hoje um sem número de maneiras de responsavelmente os evitar. O aborto não é, nem pode ser apresentado como mais um método anti-conceptivo.

A questão do aborto, que tanta energia suscita, não está em qualquer lista de inquietações dos portugueses e é um tema que a população já mostrou repetidamente que se sente indecisa perante ele. A insistência obsessiva em o levantar deve mais a uma ânsia de protagonismo e conveniências tácticas que a qualquer sentido de dever público.

Hipocrisias

Para mostrar a hipocrisia da esquerda no seu alegado apego a combater a subalternização da mulher e a lutar pelo “direito ao seu corpo”, basta constatar os esforços que fez para que não fosse votado um projecto que visava criminalizar a mutilação genital feminina (MGF). Frases do género "mais do que uma lei específica, são necessárias medidas de prevenção", "há que intervir junto das populações para alterar hábitos ancestrais"... pareciam argumentos esgrimidos pelos mais ferozes opositores de qualquer forma de IVG. Várias deputadas, que se destacaram na luta pela alteração da lei do aborto, como Odete Santos e outras, utilizaram a argumentação da prevenção e dos estudos para protelarem as alterações legislativas que tipificariam a MGM como uma ofensa grave.

Sabe-se que tal ocorre nas comunidades imigrantes (da Guiné-Bissau, por exemplo) com carácter regular. Se a lei sobre a MGF for aprovada, apesar das manobras dilatórias da esquerda, e se alguma vez tiver lugar, em Portugal, um julgamento sobre esta matéria, ouvir-se-á certamente que é um julgamento de “brancos contra negros", de "colonialistas contra os oprimidos", dos "cristãos contra o islão", etc..

Esta esquerda (sublinho ... a esquerda radical e uma ala não despicienda do PS) não tem ética nem tem coerência nas suas causas. Apenas as usa como armas de arremesso político.

Publicado por Joana às 11:46 PM | Comentários (20) | TrackBack

agosto 17, 2004

Uma Questão de Choques

A religião é o ópio do povo ... a iconolatria ideológica é o ópio dos intelectuais

João Dias escreveu um longo panegírico, ontem, no Público, sobre o Plano Tecnológico de José Sócrates (Choque fiscal “versus” choque tecnológico). É um texto com que na generalidade estou de acordo. Aliás, há dias escrevi aqui que o Plano Tecnológico de Sócrates tinha uma virtude: dizia coisas sobre as quais estamos todos de acordo, excepto algumas franjas minoritárias da nossa sociedade. Falhava onde nós sempre falhámos: não explicava como é possível concretizar o plano.

Ora o texto de João Dias, embora seja mais elaborado do que o Plano do Sócrates, pelo menos a versão que apareceu na imprensa, enferma do mesmo vício. O exemplo da Finlândia, que aponta, é conhecido e é um caso de sucesso. Todavia, para o reeditar em Portugal torna-se necessária a reforma total da administração pública e, principalmente, do sistema educativo. E Sócrates está disposto a arrostar com os interesses corporativos instalados, nomeadamente os sindicatos?

Mas a reforma não passa apenas pelos corpos docentes. A questão é que na Finlândia, os professores, os alunos e os pais destes levam as coisas a sério. Em Portugal todos aqueles segmentos sociais gastam as suas energias a arranjarem álibis para se subtraírem às chatices.

Em 4 de Junho escrevi aqui, em Novos Rumos para a Escola que, segundo um estudo da Organização Mundial de Saúde, abrangendo 37 países e entre eles o nosso, os adolescentes portugueses estão, no que respeita à aprendizagem, entre os que mais se sentem pressionados pelo trabalho na escola e os que mais acreditam que os professores não os consideram capazes. Simultaneamente Portugal aparece no grupo dos seis países onde mais adolescentes dizem gostar muito da escola e são os que mais acham que os colegas são simpáticos.

Este estudo prova, como escreveu Fátima Bonifácio anteontem no Público (Mais Dinheiro para a Educação?), que os trabalhos escolares «são vistos, pelos alunos e por muitos pais, como um fardo cruel para crianças e adolescentes» ... e ... «trabalhar é a última das prioridades para adolescentes confrontados com mil e uma solicitações divertidas que os distraem das suas obrigações, a que não dão importância». A escola apenas serve para espaço lúdico. Esforços mentais provocam um stress desnecessário às crianças e são de evitar.

Portanto acabam todos, funcionários do ministério, professores, alunos e pais, por confluir no mesmo: diminuir, sempre e cada vez mais, os níveis de exigência.

João Dias ao falar na aposta das tecnologias da informação como um desígnio nacional está a pôr o carro à frente dos bois. Devia começar por explicar como se consegue pôr o nosso sistema educativo a funcionar para possibilitar ganhar a seguir a aposta das tecnologias da informação. Na minha opinião tal reforma dificilmente será possível sem um pacto de regime que envolva os dois maiores partidos portugueses, que tenha a duração necessária para que surta efeito e que não seja objecto de chicana por um desses partidos quando na oposição, ou de desvirtuamento pelo outro, quando estiver no governo. Mas para isso seria preciso estarem ambos de acordo sobre um modelo viável e há muitos interesses corporativos que agiriam por dentro dos partidos no sentido de minarem qualquer tentativa de acordo ou tornar o modelo acordado sem efeitos operacionais.

Onde João Dias erra é na oposição que estabelece entre choque fiscal e choque tecnológico. Não se opõem, antes podem ser complementares: se houver incentivos às empresas estas investem e entre esses investimentos haverá sempre uma parcela que é utilizada no aumento da qualificação dos seus efectivos. Certamente que João Dias não pensa que o choque tecnológico é apenas promovido pelo Estado. Em todos os casos de sucesso, parte importante da requalificação da mão de obra passou sempre pela acção das empresas.

Portanto, os incentivos às empresas são necessários. O que eu duvido é que, de facto, a diminuição da taxa de IRC seja o incentivo mais importante. O mais importante continua a ser a reforma da administração pública: desburocratizar os seus procedimentos e tornar, por exemplo, a justiça rápida e eficiente. A actual lentidão e fragilidade de competência da justiça portuguesa protege objectivamente os vigaristas e os que agem de má fé. As empresas que interessam à nossa economia não podem estar à mercê de incumprimentos contratuais que demoram anos ou décadas a serem resolvidos pelos tribunais, quando não prescrevem. Ou estarem à espera que o Estado, os seus institutos e as autarquias demorem 6 meses, um ano ou mais, a pagarem as facturas.

A argúcia dos nossos políticos resume-se, face à dificuldade de fazerem reformas a sério, à implementação do ditado «quem não tem cão, caça com gato». Não resolvem a questão ciclópica da administração pública e, para distrair, prometem o rebuçado do choque fiscal. Mas isso também será o que Sócrates irá enfrentar se chegar a primeiro ministro. Será ele capaz de resolver? Pelas banalidades que tenho lido ... duvido.

Mas, que fique bem claro: Sócrates diz banalidades, porque não explica a concretização das suas propostas ... mas fala sobre factos, sobre o país real. Posso achar que ele está a pôr o carro à frente dos bois, mas ele sabe que existem o carro e os bois e está preocupado como os há-de atrelar. Manuel Alegre só fala de ícones: a «alma da esquerda», «refazer a esquerda», «lutar por convicções de esquerda e não piscar o olho ao centro», «é necessária a convergência à esquerda nesta época globalizante», «combate e construção de alternativas às opções neo-liberais», etc., etc.. Há apenas ícones ideológicos no seu discurso e nos discursos dos seus apoiantes. Não há nada de substantivo. Há apenas rezas aos sacralizados ícones ideológicos.

O problema da esquerda que se reclama de ter «alma» é que não tem qualquer ideia viável sobre a governação e a gestão económica do país. E ícones ideológicos só servem para entreter a devoção dos intelectuais.

A religião é o ópio do povo ... a iconolatria ideológica é o ópio dos intelectuais.

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agosto 08, 2004

A Maldição de Santarém

Santarém foi o resultado de um erro e da sua correcção por parte do Criador. Depois de ter criado aquelas sete colinas magníficas sobranceiras a um rio largo e vagaroso, rodeadas por uma lezíria ubérrima que se estende por dezenas de quilómetros, mas sem se perder de vista, tal a proeminência da colina principal, amuralhada há milénios, concluiu que tinha sido extremamente injusto na distribuição das benesses divinas e resolveu remediar a injustiça e equilibrar o balanço, com o povoamento que fez brotar daquelas terras.

Santarém tem condições geográficas únicas. É por direito geográfico irrecusável a capital da mais fértil região do país. A própria ninfa Calipso, entediada por reter sete anos o adorado Ulisses na sua ilha, levou-o, numa escapadela turística, às plagas lusitanas, subiu Tejo acima, até àquelas amenas e formosas paragens, e aí desovou o fruto da sua paixão, o príncipe Ábidis.

Mas as forças vivas daquela terra sempre se julgaram demasiado importantes para aceitarem benesses de outros, a menos que essas benesses sejam consideradas um tributo rendido à sua importância. O rei da terra mandou que Ábidis fosse lançado numa cesta às águas do Tejo, para servir de alimentação da fauna piscícola e aparecer mais tarde, nas ementas regionais, sob a epígrafe de «açorda de sável».

Mas o que os homens fizeram, os animais desfizeram, e também nas margens do Tejo, à semelhança do Tibre, uma loba salvou, amamentou e criou um futuro rei. E assim, escapando à voracidade do sável, Ábidis passou a patrono de pastelarias e hotéis do burgo multi-milenar.

E todos foram rendendo tributo à sua importância: Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos, Visigodos, Muçulmanos, etc. Essa importância geo-estratégica e económica de Santarém tornou-a um dos locais preferidos das cortes portuguesas e um dos povoados em que mais tempo permaneceram os nossos monarcas até ao acidente equestre ocorrido nos arredores de Santarém que causou a morte do infante D. Afonso, filho do rei D. João II.

Mas foi ainda em Santarém que D. António Prior do Crato se aclamou rei de Portugal, em 1580, na tentativa falhada de impedir a perda da independência de Portugal. Foi em Santarém que, durante a Guerra Civil entre liberais e absolutistas, D. Miguel estabeleceu o seu último reduto de resistência aos liberais e foi de lá que D. Pedro IV dirigiu a liquidação final das forças miguelistas.

Massena escolheu Santarém para a sua posição militar chave, na tentativa frustrada de romper as Linhas de Torres, atrás das quais estava o último reduto da Europa Continental que se opunha às águias napoleónicas. Se, em vez do «filho querido da vitória», tivesse vindo o próprio Napoleão, este teria certamente proclamado aos seus soldados, para lhes avivar o entusiasmo: «Do alto daquelas muralhas trinta séculos vos contemplam». Felizmente tal não aconteceu. Não apenas por Napoleão ser um adversário mais temível que Massena, mas também porque se Napoleão tivesse reeditado a ordem do dia «burros e sábios ao centro», geraria longa e penosa controvérsia sobre quem seriam os sábios e quem seriam os burros.

Durante séculos todas as vilas e burgos do Ribatejo renderam tributo a Santarém. Era um tributo natural pela sua posição geográfica e por os serviços administrativos, o liceu, etc., estarem aí situados. Os proprietários das grandes casas agrícolas da região também procuraram essa colina sobranceira ao Tejo para olharem, sobranceiros, os íncolas que labutavam ao longe, sol a sol, pela lezíria.

Todo este enquadramento geográfico e histórico criou uma camada social proeminente, extremamente fechada, auto-convencida da sua importância na cidade e na região. Todavia, as circunstâncias que permitiram ao longo dos séculos a sua criação modificaram-se nos últimos 30 anos. Houve descentralização dos equipamentos culturais e educacionais. As cidades e vilas ribatejanas conheceram um grande dinamismo e começaram a ficar mais próximas dos centros de decisão de Lisboa, sem passarem pela intermediação de Santarém. Quem conheça bem a região não deixará de notar que nas duas últimas décadas Santarém tem tido uma modernização menos significativa que a da maioria dos aglomerados ribatejanos que a rodeiam (Cartaxo, Almeirim, Rio Maior, etc.). Tudo se modificou, menos a mentalidade daquela camada social.

Há semanas o governo pôs a hipótese de transferir a Secretaria de Estado da Agricultura e da Alimentação para Santarém. Os dirigentes escalabitanos comportaram-se então com o elevado sentido da importância que a si próprios se atribuem. O presidente da autarquia da ínclita cidade estava tranquilamente em férias e o vice-presidente, do alto das suas sobranceiras muralhas, declarou ao CM (30-07-2004) que a «autarquia não tem imóveis preparados para receber uma estrutura deste género» e que aquela «deslocalização não tem significado nem vai ao encontro das legítimas aspirações dos agricultores».

Como escrevi acima, as forças vivas de Santarém sempre se julgaram demasiado importantes para aceitarem benesses de outros, a menos que essas benesses sejam consideradas um tributo rendido à sua importância. Portanto, desvalorizar essas alegadas benesses, seria um passo imprescindível e necessário para um autarca puro-sangue escalabitano, antes de as aceitar. Seria Santarém a fazer o favor de aceitar ... assim é que estava certo e mandava a tradição

Todavia aconteceu algo que seria inverosímil décadas atrás, e que continua a sê-lo para as mentalidades escalabitanas: O presidente da Golegã, perante o que ele qualificou de «inércia e inépcia de Santarém» disponibilizou junto do governo um magnífico palácio do século XVII, interiormente modernizado, apto para utilização imediata e mesmo no centro da terra.

O presidente da CMS ficou de tal forma siderado que interrompeu as férias. Criticando a CM Golegã por ter feito aquela proposta insidiosa (“mau tom” e “deselegante”) e que violava os direitos de vassalagem devidos pela Golegã, o presidente da CMS propôs, apressadamente, o que viu mais à mão, de relance: a EZN (que não é da CMS, mas do próprio Ministério da Agricultura) e o CNEMA (cujo accionista maioritário é a CAP, em cujo Conselho de Administração a CMS só tem 1 representante, entre 6, e que tem tido relações péssimas com a autarquia). Isto é, a CMS «disponibilizou» ao governo instalações de outrem e que, para cúmulo, se encontram ocupadas.

A Golegã não tem bons acessos na direcção de Lisboa. A estrada Santarém – Golegã é um caminho de cabras. A melhor solução é ir na direcção do Entroncamento e tomar a A1 no nó de Torres Novas. Mas as localizações que, tardiamente, a Santarém sugeriu, para além de serem de outrem e de estarem ocupadas, são muito periféricas relativamente à cidade: 2,5 kms (CNEMA) e 8 kms (EZN), bastante distanciadas do tecido urbano.

Neste processo, os autarcas de Santarém mostraram o lado mais negativo do carácter «puro-sangue» escalabitano e o porquê da estagnação relativa da cidade. Sobranceiros perante a «oferta», quando julgaram que não havia concorrência, coléricos perante o vassalo (Golegã) que renegou os seus deveres de fidelidade, arranjando apressadamente soluções de recurso insensatas quando se viram postergados.

Se a CMS achava que aquela «deslocalização não tem significado nem vai ao encontro das legítimas aspirações dos agricultores», deveria manter essa posição até ao fim. Teria sido mais digno e, sobretudo, coerente, que arranjar soluções de recurso insensatas e criticar Golegã por haver disponibilizado uma solução alternativa.

E o mais curioso é que ambas as autarquias são socialistas e que a Golegã nem sequer tem qualquer vereador do PSD, de tal maneira o PSD é uma força minoritária no concelho. Até 1997 Golegã foi uma Câmara CDU. O PS ganhou em 1997 e esmagou literalmente a CDU em 2001.

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agosto 03, 2004

Sócrates: da Ideologia à Tecnologia

E vice-versa

O Plano Tecnológico de Sócrates tem uma virtude: diz coisas sobre as quais estamos todos de acordo, excepto algumas franjas minoritárias da nossa sociedade. Falha onde nós sempre falhámos: não explica como é possível concretizar o plano.

O Plano é, por via disso, um rosário de banalidades: «estamos a divergir» ... temos que «descobrir como obter uma taxa de crescimento superior» ... «a nossa competitividade não pode continuar a assentar no velho e inviável modelo dos baixos salários», etc. e de ilusões, tais como «precisamos de retomar o rumo de uma convergência sustentada». A ilusão (?) de Sócrates é que nós nunca tivemos «uma convergência sustentada». A nossa convergência resultou do realinhamento de diversas variáveis macroeconómicas decorrente da adesão e do estabelecimento da moeda única e dos efeitos directos e, sobretudo, induzidos, dos fundos comunitários.

O governo de que o Engº Sócrates fez parte não se deu conta dessa ilusão. Com a queda drástica das taxas de juro e o incremento do consumo público, os agentes económicos, famílias e empresas, endividaram-se e a procura interna, o emprego e o PIB cresceram significativamente, mas de forma não sustentada. Neste quadro, e em face das debilidades estruturais da economia portuguesa, o que iria obviamente acontecer seria um aumento desmedido das importações, uma diminuição do peso das exportações e um desequilíbrio insustentável, a médio prazo, da balança de transacções com o exterior.

Esgotada a capacidade de endividamento de empresas, das famílias e do Estado (este por imperativos do PEC), veio a recessão e o desemprego, visto que, como Sócrates muito bem assinala no seu Plano, no enquadramento actual já não é possível esse ajustamento fazer-se recorrendo «às receitas tradicionais da desvalorização cambial». O reajustamento faz-se, mais tardiamente e mais dramaticamente, através da recessão e do desemprego. Foi o que veio a acontecer.

A afirmação de Sócrates que a «escolha do Governo foi apostar tudo numa agenda financeira e orçamental» está incorrecta. A contenção orçamental era um imperativo resultante de estarmos no euro. O insucesso dessa contenção (se não entrarmos em conta com as receitas extraordinárias) resultou fundamentalmente da recessão económica portuguesa gerada pela política financeira e económica do governo anterior (onde estava o Engº Sócrates) e do marasmo económico europeu, nosso principal parceiro comercial.

É evidente que Sócrates tem razão ao afirmar que o nosso problema está na economia e que a actuação do governo nessa área não foi convincente. Eu também tenho essa opinião. Todavia duvido que, por muito boa que tivesse sido a actuação governativa, fosse possível evitar o aumento do desemprego. Aliás, também duvido (e nisso concordo com Sócrates) que a diminuição da taxa de IRC tenha impacte significativo na competitividade.

A eterna questão de Portugal é que as medidas com impacte, capazes de inverter as tendências da nossa economia são muito difíceis de implementar porque bolem com todo o nosso tecido social, porque implicam sacrifícios no imediato em muitos segmentos sociais e porque não temos competências suficientes para as implementar no terreno.

Ora a questão que se coloca é saber se Sócrates está interessado nessa política de verdade ou se o «salto qualitativo» de que fala é apenas uma figura de retórica. Porque Sócrates pretende a quadratura do círculo: o salto qualitativo sem as medidas impopulares necessárias para se «formar» esse salto. Diz, por exemplo, que «países que recusaram uma visão neo-liberal conseguiram dar um salto qualitativo». Gostava de saber quais. Se ele se está a referir à Europa Central e Setentrional das «3 décadas gloriosas» entre o fim da guerra e o 1º choque petrolífero, está a viver de ilusões porque aquele enquadramento económico e demográfico já não se volta a repetir. E são justamente os países que deram aquele «salto» que agora tentam reajustar os seus modelos sociais e económicos para permitir sustentar a continuação do crescimento.

Quando Sócrates escreve que o problema está na «baixa infra-estrutura social, nomeadamente nos domínios da qualificação dos recursos humanos e da tecnologia» ou que «Quanto mais baixa é a qualificação dos recursos humanos, maior é a tendência para se instalarem actividades com baixa componente tecnológica, sobretudo quando as novas tecnologias reclamam elevadas competências» apenas edita algo que qualquer um de nós subscreveria. Mas isso não é suficiente.

O que Sócrates propõe a nível do ensino do Inglês, Português e Matemática é o que se pratica, por exemplo, na Suécia (pelo menos era o que se fazia há 3 anos quando passei por lá). A questão que ponho é saber porque é que os suecos conseguem isso (obviamente com o Sueco em vez do Português) com despesas na educação proporcionalmente inferiores às nossas e nós não o conseguimos sequer em Português e Matemática. Na Suécia não é possível a progressão de ano sem se passar nas 3 disciplinas. E há turmas de recuperação em horário suplementar para quem mostre dificuldades. Em Portugal tentaram-se medidas semelhantes mas não resultaram. Havia demasiadas reprovações o que degradava as estatísticas do ensino e as turmas de recuperação não funcionavam apesar do rácio professor-aluno ser superior em Portugal. A questão é que na Suécia, os professores, os alunos e os pais destes levam as coisas a sério e aqui todas aquelas corporações gastam as suas energias a arranjarem álibis para se subtraírem às chatices. E assim acabam todos por confluir no mesmo: diminuir, sempre e cada vez mais, os níveis de exigência.

David Justino declamou coisas maravilhosas sobre a educação. O que é que ele realizou? Sócrates proclama que temos que «desenvolver medidas sérias de combate ao abandono escolar». Medidas sérias? Antes deveria interrogar-se porque é que há décadas que ninguém leva a sério quaisquer medidas que se tomem e que acabam sempre por ficar sem efeito. Quando não se sabe como resolver as coisas, usam-se adjectivos e advérbios «fortes»: medidas «sérias», programas «consequentes». Que eu saiba, nunca ninguém prometeu medidas «hilariantes» ou programas «inconsequentes». Infelizmente foi o que sempre aconteceu depois.

Um edifício constrói-se a partir das fundações. Portanto, nesta matéria, Sócrates deveria primeiro resolver o que está de errado no sistema educativo português e pô-lo a funcionar devidamente. Mas sem gastar mais dinheiro, pois o nosso sistema educativo já é o segundo mais caro da UE dos 15, e o pior, de longe, em desempenho.

Relativamente à formação científica e profissional, Sócrates repete aquilo que todos os governos têm prometido, cada vez com mais veemência, de há décadas a esta parte, e sempre falharam a seguir. Não constitui por isso novidade.

Nesta matéria tenho verificado uma clivagem completa entre a comunidade universitária e científica e as empresas. A comunidade universitária e científica portuguesa não sabe o que se passa nas empresas e estas, na sua quase totalidade, não têm qualificação suficiente para saberem como melhorarem significativamente o seu desempenho.

Por um lado, para que as empresas admitam pessoal com elevada qualificação científica e apostem na inovação tecnológica, não basta que tal se encontre disponível no mercado. É preciso que elas percebam que isso lhes traz vantagens.

Por outro lado, não vale a pena apregoar grandes investimentos nas áreas de investigação científica e interessar os investigadores em permanecerem no país, sem se compreenderem as razões que levam a que a investigação científica não tenha efeitos práticos no tecido produtivo português.

Há que promover, de forma intensiva, protocolos entre empresas e universidades e centros científicos para dinamizar uma investigação com efeitos práticos. Promover a investigação para dizer que temos investigadores, para além dos efeitos positivos na docência universitária, é deitar dinheiro à rua. Nomeadamente porque os investigadores, para ascenderem na sua carreira (e não apenas por questões salariais) acabam por ir para o estrangeiro.

É óbvio que não devemos descurar a investigação abstracta. Interessa à melhoria da docência universitária e é um dever que temos para com os membros da nossa comunidade científica. Mas devemos sobretudo apostar na investigação ligada com o nosso tecido económico, porque aí se poderão gerar muitas sinergias que melhorem as qualificações e competitividade de empresas e institutos públicos e agarrem os investigadores aos nossos problemas e à sua solução.

É essa investigação que teremos que dinamizar quer através de incentivos às empresas, quer interessando nela universidades e centros científicos. E é essa investigação direccionada que poderá abrir novas perspectivas às empresas e às universidades e centros científicos e realimentar futuros desenvolvimentos. Só a permanente permeabilidade do conhecimento e de ideias entre as entidades económicas e científicas permitirá, em Portugal, o avanço científico e tecnológico de uma forma sustentada e a rentabilização dos investimentos na investigação.

Mas isso não pode ser feito «à portuguesa», aproveitando eventuais subsídios para as empresas obterem mão de obra barata durante alguns anos. Têm que ser protocolos com objectivos claros e com avaliações intermédias.

A questão socrática do Plano Tecnológico é que ele não é convincente para o tecido empresarial, porque se perde em banalidades, nem para a esquerda «mais à esquerda» para a qual o que continua a valer são os seus ícones ideológicos de que nunca abdicarão ... por muitos Muros de Berlim que caiam. Tecnologias ... disciplina orçamental ... competitividade ... avaliações de desempenho ... tudo truques do capitalismo para tornear os imperativos éticos e cívicos e vacilar a alma esquerda do PS.

Neste entendimento, a luta entre o Plano Tecnológico de Sócrates e o Plano Ideológico de Alegre pode acabar, em face das banalidades do primeiro e da obsolescência do segundo, numa mistela sem efeitos operativos, eventualmente satisfatória para a vender a eleitores em busca de ilusões. A menos que a consabida obstinação de Sócrates consiga outro tipo de equilíbrio.

Sócrates termina sublinhando que o seu Plano Tecnológico não é um truque de magia que aspire a transformar a nossa sociedade e a nossa economia da noite para o dia. Não ... ele teve o cuidado de dizer que levava algum tempo. Quanto ao resto, pela forma como está elaborado, parece mesmo um «truque de magia»

Publicado por Joana às 10:25 PM | Comentários (23) | TrackBack

agosto 02, 2004

Sócrates, Ex-ministro

José Sócrates é um excelente comunicador televisivo, verbaliza bem as questões e constrói uma argumentação eficaz em termos de comunicação verbal. Todavia, agora que aspira a líder do PS, Sócrates teve que enveredar igualmente pela comunicação escrita e esqueceu-se que uma argumentação verbal, que parece convincente pela sua fluência, pode reduzir-se a mera banalidade, quando se produz sob a forma escrita. Foi o que aconteceu com as últimas produções de Sócrates que vieram a lume.

Conheci Sócrates quando ministro e considero que foi o nosso melhor ministro do Ambiente. Aliás, este elogio nem sequer é lisonjeiro tendo em conta os ministros que têm gerido aquela pasta. É um homem vivo, perspicaz e com boa capacidade de decisão. Em contrapartida foi frequentemente um sujeito muito teimoso, talvez devido ao excesso de auto-estima que tem ou, pelo menos, teve enquanto ministro.

Concordei com muitas medidas que ele tomou e impulsionou: leis de protecção ao consumidor, fim das lixeiras, co-incineração, etc. Houve outras com que não concordei. A mais grave foi a clara chantagem feita às autarquias para aderirem aos sistemas multimunicipais, controlados pelas Águas de Portugal, directamente, no caso do abastecimento e do saneamento, e, indirectamente, através da EGF, no caso dos Resíduos Sólidos Urbanos. Quem aderisse via as suas candidaturas ao Fundo de Coesão avançarem e os seus projectos serem comparticipados até 85%, quem não aderisse via as suas candidaturas estagnarem nos serviços do ministério do Ambiente.

Ainda hoje, vários ministros passados, Sócrates continua a concitar muitos ódios entre os autarcas, nomeadamente entre aqueles que queriam ter sistemas independentes da ingerência estatal.

A sua política de permitir a construção de aterros sanitários gigantescos foi errada. Os aterros devem ser construídos faseadamente, célula a célula, de acordo com o ritmo do enchimento, caso contrário tornam-se, no Inverno, extensos lagos de RSU flutuantes, com enormes prejuízos ambientais: o aumento da humidade acelera a libertação do metano, que é muito mais nocivo (cerca de 20 vezes mais) que o CO2 no que toca ao efeito estufa; o período demasiado extenso de enchimento de uma única unidade inviabiliza o aproveitamento da quase totalidade do biogás libertado pelo aterro; a exposição das telas isolantes à intempérie (sol e chuva) anos a fio não será muito conveniente para a manutenção das suas características impermeabilizadoras, etc..

Teria uma vantagem financeira: as comparticipações da UE foram mais substanciais para cada unidade. Todavia não sei se uma análise mais aprofundada, numa óptica custo-benefício, entrando em conta com todos os factores financeiros e sociais quantificáveis, não conduziria a resultados contrários. E haveria certamente outros projectos que pudessem aproveitar os fundos estruturais sobrantes.

Acrescento ainda que, de entre os sistemas de tratamento de RSU, os aterros sanitários são os mais negativos do ponto de vista ambiental. Aliás, a UE deixou de comparticipar aterros há dois ou três anos, enquanto continua a comparticipar as incineradoras, embora com uma taxa mais reduzida que, por exemplo, a reciclagem multimaterial ou a valorização orgânica (compostagem e digestão anaeróbia). Incineradoras, que por razões de populismo barato, se tornaram nas bestas negras dos ambientalistas portugueses.

Sócrates falhou em levar avante a co-incineração, mas foi muito torpedeado dentro do seu próprio partido e a queda inesperada do governo liquidou o assunto. A co-incineração tinha-se tornado matéria política e não técnica, e quando a política se substitui à técnica, todas as desgraças podem acontecer.

No cômputo geral, a sua prestação como ministro foi positiva. E se fizermos essa apreciação em termos relativos e dado ter-se tratado de um governo de indecisos, a começar pelo 1º ministro, pode mesmo afirmar-se que foi uma prestação muito positiva.

Amanhã falarei da sua actual prestação como candidato a candidato.

Publicado por Joana às 11:13 PM | Comentários (53) | TrackBack

julho 22, 2004

O Paradigma Teresa Caeiro

Ontem, a cena política portuguesa foi surpreendida pela transferência, à última hora, de Teresa Caeiro da Secretaria de Estado da Defesa para a Secretaria de Estado das Artes e Espectáculos. Houve gente que ficou abalada; outra que chacoteou com o que qualificou de trapalhada; alguns remeteram-se a um silêncio prudente.

Estas reacções apenas mostram uma total e absoluta incompreensão pelas novas realidades da vida política portuguesa. Estas mudanças de funções governativas de Teresa Caeiro são, verdadeiramente, o paradigma da seriedade com que estas matérias são encaradas no novo estilo governativo. São o paradigma de uma política inovadora e o rasgar de novos e fecundos horizontes.

Tornou-se agora evidente para todos que estamos a travar um ingente combate pela Cultura. Logo, alguém ser transferido da Defesa para a Cultura é algo que só pode merecer o nosso louvor e os nossos encómios. Todos queremos uma Cultura combativa, capaz de avanços fulgurantes e incisivos e com grande poder de impacte que possibilite rupturas profundas nas hostes contrárias e o seu envolvimento pelos flancos. Há que trazer os artistas para as trincheiras da cultura, arranjar-lhes uniformes capazes e obrigá-los a uma disciplina efectiva.

Mas mesmo em matéria de política geral, Teresa Caeiro pode trazer algo de muito importante. Teresa Caeiro está, como se sabe, ligada afectivamente à Endemol, a criadora do Big Brother. Ora este movimento artístico é a transposição das ideias do genial Jeremy Bentham expostas há 2 séculos no seu Panopticon.

Não julguem, portanto, que o interesse dos portugueses por aquele movimento artístico é recente. De forma alguma! O interesse do nosso país por Jeremy Bentham e pelo Big Brother (na altura conhecido sob o erudito nome de Panopticon) levou inclusivamente as nossas soberanas Cortes Constituintes de 1821-22 a publicarem o seu projecto. Neste entendimento, só desconhecedores da cultura com «C» (ou «K») podem duvidar da importância do Big Brother como elemento inovador das Ciências Políticas e Sociais. Seria o mesmo que pôr em causa um dos principais teóricos da política do século XIX.

A Panoptizição da política vai alargar o âmbito da intervenção pública e a transparência dos actos políticos. Haverá câmaras em todos os ângulos e apanhando todas as perspectivas. Será a política total. Será a exposição global.

Mas esta mudança de funções governativas mostra que o recíproco também é verdadeiro. Prova-se assim, de forma cabal e definitiva, que Portas encara a guerra como um acto de Cultura. Só assim se explica que tivesse querido aproveitar a vertente cultural de Teresa Caeiro na secretaria da Defesa.

E isto é uma inovação nos nossos critérios e dispositivos de defesa. Com o material artístico de que dispomos, esta ambivalência pode introduzir um elemento altamente perturbante e inovador em futuras operações militares. Com as nossas actuais munições artísticas, para além de atingir o inimigo, desmoralizamo-lo absolutamente.

E as guerras ganham-se desmoralizando o inimigo. Tem sido sempre assim.

Publicado por Joana às 08:35 PM | Comentários (23) | TrackBack

julho 21, 2004

As 2 faces de Janus

A incompetência e o provincianismo da política e comentaristas portugueses toca o absurdo. Há dois dias Nobre Guedes era uma escolha abstrusa para o Ambiente. Não tinha nada a ver com o ambiente, não percebia nada do ambiente. Era um nulo em ambiente e em tudo o que respeitava a questões ambientais.

Foi geral o clamor nos meios políticos e na comunicação social. Desde Marcelo, o Guru dos nossos analistas políticos, até aos dirigentes da Quercus, a reprovação era unânime: como era possível empossar como ministro do Ambiente, uma pasta tão complexa e delicada, uma pessoa que nunca tinha tido nada a ver com questões ambientais, que desconhecia em absoluto a matéria, cujo currículo era totalmente omisso nesta área.

Nicolau Santos assegurava que «Luís Nobre Guedes vai ter tempos difíceis no Ambiente - sector ao qual nunca esteve ligado até agora»; outros achavam, por isso mesmo, que ele teria uma mais que «duvidosa qualificação para o exercício do cargo de ministro do Ambiente». José Alho, presidente da Liga para a Protecção da Natureza, lamentava a nomeação de Nobre Guedes para liderar o Ministério do Ambiente pois era «injustificável, mais uma vez, colocar-se a pasta do ambiente sob a responsabilidade de um personalidade que é um outsider do ambiente (...) o que não nos augura nada de bom».

Mas nós vivemos num país extremamente dinâmico (por enquanto apenas no que toca à má-língua) e dois dias depois, uns míseros e parcos 2 dias, Nobre Guedes tornou-se incompatível porque afinal era um expert em questões ambientais: resíduos (presidente da mesa da Assembleia-geral da Novaflex e da Novabeira, assessorias jurídicas à Empresa Geral de Fomento e à Sociedade Ponto Verde, etc.), águas (ligações à AdP via EGF, etc.). Afinal o homem estava em tudo o que era Ambiente. Conhecia, pela via da consultoria profissional, a maioria dos dossiers mais importantes da área ambiental.

Ora conhecer uma matéria pela via da acção prática, no real concreto, é, de acordo com alguns fazedores de opinião, incompatível com o exercício de um cargo governamental. Se Nobre Guedes conhecesse o Ambiente através, única e exclusivamente, da docência universitária, evitando prudentemente qualquer contacto prático com a matéria, poderia ser uma escolha válida. Se, como os ambientalistas, conhecesse o Ambiente e a Natureza unicamente das revistas editadas por outros ambientalistas que, igualmente, apenas conhecem o Ambiente através das revistas publicadas pelos primeiros, e cuja experiência prática na matéria se resumisse às suas prestações frente às câmaras televisivas, Nobre Guedes seria uma escolha excelente.

Mas não, Nobre Guedes não servia há dois dias para o Ambiente, porque não tinha visibilidade abstracta naquela área, e não serve agora para o Ambiente, porque tem visibilidade concreta naquela matéria. E os mesmos que antes se abespinhavam contra a nulidade Nobre Guedes, trovejam agora contra as suas alegadas incompatibilidades.

Desconheço as reais capacidades de Nobre Guedes e se será ou não um bom ministro. Mas não é isso que está em jogo nesta questão. O que está aqui em jogo é a incoerência e a tontice de todos estes pretensos fazedores de opinião. E também a ideia que fazem das competências necessárias para exercer um dado cargo.

Para mim, o «caso» Nobre Guedes é apenas um exemplo da forma pouco séria e inconsistente como se abordam estas matérias

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julho 15, 2004

Futebol e Política

O futebol tem sido anatemizado pela baixa estatura ética dos seus dirigentes, pelo trogloditismo das claques, pelo mercenarismo dos jogadores, pela corrupção na arbitragem, etc., etc..

Simultaneamente, quando um clube português está numa competição europeia, nomeadamente na sua fase final, com o pódio à vista, todos, independentemente da cor clubista, torcem por ele. Haverá elementos desgarrados nas diversas claques que não alinharão nessa onda. Mas o que é visível, o que pontifica, é a unidade de todos em torno desse clube. O que emerge é o desígnio nacional de uma vitória portuguesa seja ela obtida por um qualquer clube, mesmo que não seja o nosso.

Em política também pareceu que poderia ser assim. Quando surgiu a possibilidade de António Vitorino ser indigitado Presidente da Comissão Europeia, todo o espectro partidário, excepto alguns marginais da esquerda radical, se uniu no desígnio nacional de levar Vitorino à presidência.

A correlação de forças dentro do Parlamento Europeu inviabilizou essa hipótese e, entretanto emergiu, de forma surpreendente, o nome de Durão Barroso para aquele cargo. A partir dessa altura, para os outros clubes políticos, a sua candidatura era irrisória, pois é «do mais tacanho provincianismo supor que a indicação de um português seja em benefício para o país», porquanto Barroso foi escolhido por ter um “perfil baixo”, pelas razões sólidas de que a sua indigitação «condiz com a relativa desvalorização da Comissão», pela vergonha de que tal não passou da quarta escolha, etc., etc.. Mário Soares, para não falar do seu filho, tem sido em extremo depreciativo sobre as motivações da escolha e sobre a incompetência de Barroso para desempenhar o cargo. As previsões de M Soares sobre o futuro desempenho de Barroso são absolutamente sinistras.

Ontem, à saída da audição do grupo socialista do PE, as declarações dos parlamentares do PS português foram em total desabono da prestação do candidato português. Quem os ouviu e quem ouviu outros membros não portugueses do grupo socialista do PE e leu os jornais estrangeiros de hoje, diria que houve duas reuniões diferentes: uma entre Barroso (um camaleão incompetente para o cargo) e o grupo PS português, e outra entre Barroso (um líder hábil, com domínio da situação e com charme) e o restante grupo socialista do PE que elogiou a sua prestação, mesmo discordando dele em diversos pontos.

Verifica-se assim que os líderes dos clubes da esquerda política portuguesa têm uma estatura ética mais baixa que os dirigentes do futebol, que as suas claques são mais trogloditas que as dos clubes desportivos e que demonstram menos amor pelo seu país e pelo sucesso internacional dos seus compatriotas, que a desacreditada classe dos dirigentes e fãs desportivos.

Deixo apenas uma pergunta: como é que quem não ama o seu país, o pode governar bem?

Publicado por Joana às 08:22 AM | Comentários (16) | TrackBack

junho 27, 2004

Politicamente anões

Durante vários meses aventou-se a hipótese de António Vitorino ser o sucessor de Romano Prodi na Presidência da Comissão Europeia. Era uma hipótese ténue, visto ter contra ela a oposição do bloco de direita, que tudo fazia prever ser maioritário no Parlamento Europeu quando fosse a votação para a sucessão de Prodi.

Mas apesar disso havia um consenso nacional sobre essa matéria. Era um cargo de prestígio; era uma afirmação de que Portugal tinha visibilidade no seio da Europa; tornou-se um desígnio nacional, em suma.

A evolução da política europeia foi no sentido que já era previsível, quando publiquei aqui «O Nosso Homem em Bruxelas», em 10-02-2004, e a candidatura de António Vitorino caiu. Apesar disso, tudo indicou que, quer o governo português, quer o PS continuaram empenhados nessa candidatura.

Entretanto começou a perfilar-se no horizonte o nome de Durão Barroso. Nos meios de comunicação nacionais não pareceu que essa possibilidade tivesse muito crédito. Inclusive, alguns candidatos a «fazedores de opinião» davam a entender que tal não passaria de uma manobra publicitária do próprio: fazer correr que era candidato e que recusava.

Finalmente apareceu escrito, preto no branco: Durão Barroso era, no complexo equilíbrio de forças dentro da UE, o candidato mais consensual. Tudo dependia da sua aceitação.

Então, de um momento para o outro, o que era verdade incontestável passou a ser mentira, igualmente incontestável, o que era A passou a não-A. Agora, é «do mais tacanho provincianismo supor que a indicação de um português seja em benefício para o país» como escrevinha A. Seabra hoje, no Público, ou declarou na passada 6ª feira, à SIC, João Soares, numa entrevista em que mostrou novamente que não passa de um político invejoso e mesquinho; a escolha de Durão Barroso foi feita apenas por ter um “perfil baixo” (e a escolha de António Vitorino seria por ter um “perfil alto”?); a «escolha condiz com a relativa desvalorização da Comissão» (e no caso de Vitorino seria diferente?); não passou da quarta escolha (e no caso de Vitorino isso constituiria um empecilho?), etc., etc.

Enquanto a candidatura de um político socialista para a Presidência da Comissão Europeia era um desígnio nacional, em que a classe política portuguesa, da direita à esquerda, estava irmanada e empenhada solidariamente, a candidatura de uma figura do centro-direita não teve, para a esquerda, ou melhor, para a esquerda com mais visibilidade pública, qualquer valor, não confere qualquer prestígio ao país, não passa de uma quarta escolha; etc., etc..

Ler os jornais dos últimos dias e cotejar as opiniões aí emitidas com aquelas que vieram a lume durante o período em que a candidatura de Vitorino permaneceu em aberto é um espectáculo interessante, do ponto de vista sociológico, mas absolutamente deprimente do ponto de vista da hipocrisia política e do estado de mesquinhez em que o país vegeta.

Publicado por Joana às 05:29 PM | Comentários (40) | TrackBack

junho 18, 2004

Ainda a Questão das Bandeiras

É bom haver este entusiasmo pela exibição dos símbolos nacionais. É pena que ele esteja directamente relacionado com o epifenómeno futebolístico.

É bom que amemos a nossa pátria. É péssimo que nos envergonhemos de mostrar esse amor e que apenas quando surgem ocasiões ou actos, em que os segmentos sociais mais entusiasmados na sua adesão são os que representam 90% da população e 0% dos agentes culturais, é que desponta esse apego aos símbolos nacionais. Um apego popular, da ralé, imediatamente catalogado de bacoco, incipiente e barato pela intelectualidade bem pensante.

Quantos de nós, dos que lêem estas linhas, não sentiriam vergonha em ostentarem os símbolos nacionais fora dos estádios desportivos? Este sentimento está de tal forma arreigado entre a “intelectualidade” que a leva a considerar que tal corresponde à “tradição”.

Ora isso é completamente falso. Por exemplo, em casa dos meus avós era normal hastearem a bandeira nacional nas ocasiões festivas, como o 5 de Outubro, o 1º de Dezembro, etc.. Na sala de visitas havia, e ainda há, o busto representativo da república, com o barrete frígio. Os meus avós eram republicanos convictos. Agora são apenas idosos desiludidos, intrigados com alguns aspectos da sociedade actual. Já não hasteiam a bandeira à janela, há uns 40 anos, porque as pessoas deixaram de o fazer.

Mas se eles engalanavam as janelas era porque tal constituía a regra e não a excepção. E se constituía a regra é porque era a tradição, contrariamente aos que pensam que a tradição começou com os comportamentos que nos têm tentado impor nas últimas décadas.

Não é preciso ir mais longe. Basta estudar a história da 1ª República para nos apercebermos da importância dos símbolos nacionais e da sua ostentação. Quer durante as duas décadas que precederam a sua implantação, quer durante a sua perturbada existência, quer ainda após a sua queda, no período da ditadura, em que o apego à democracia se exprimia pela exibição dos símbolos da república, que a ditadura nunca teve coragem de modificar.

A ditadura teve, nessa situação, o discernimento que escasseia nos nossos “intelectuais”: se não os podes vencer, alia-te a eles. E pouco a pouco, anexou esses símbolos para si própria. Mas mesmo com essa anexação, a exibição “excessiva” desses símbolos era indício claro de oposição ao regime a que a polícia política estava sempre atenta.

O paradoxal foi que à medida que o regime ficou desacreditado as mentes mais tacanhas “anexaram” os símbolos nacionais ao descrédito do regime. Ou seja, a ditadura conseguiu, por via indirecta, no estertor da sua morte, aquilo que não havia conseguido no auge do seu poder: desacreditar a exibição dos símbolos nacionais. Os nossos “fazedores de opinião” que, eles sim, são «baratos, imediatistas e pouco consistentes» encarregaram-se dessa tarefa patriótica e libertadora, ajudados pela degradação do regime.

Foram esses intelectuais «baratos, imediatistas e pouco consistentes», objectivamente aliados ao salazarismo nesta matéria, que têm desacreditado a exibição dos símbolos nacionais: bandeira, hino, etc.. E a sua inconsistência e hipocrisia são tais que consideram que as tradições são os comportamentos que correspondem aos seus desejos e convicções.

Esperemos que continue a acontecer o que tenho verificado na última década: uma progressiva recuperação do apego aos nossos símbolos nacionais.

Que isto não se esgote no epifenómeno futebolístico.

Publicado por Joana às 09:01 PM | Comentários (31) | TrackBack

junho 16, 2004

Eles Governam (mal), eles Perdem

A derrota eleitoral da coligação governamental era esperada. Talvez surpreenda pelo desnível, mas apenas isso.

Alguns políticos da coligação no poder referem a abstenção. Obviamente que uma abstenção tão elevada enviesa sempre os resultados. Mas se a abstenção afectou mais o eleitorado potencial da coligação PSD/PP é porque esse eleitorado não se sentiu mobilizado para votar. E se não se sentiu mobilizado foi porque a actual governação não inspira qualquer entusiasmo.

Já aqui referi por diversas vezes que a actual situação política, económica e social em Portugal é dramática. E pior que isso, não me parece que haja na sociedade portuguesa uma consciência da situação sombria da economia portuguesa. E aqueles que a têm, têm-na a nível individual, por a sentirem na pele, pois estão confusos sobre as causas que levaram a essa situação e as possíveis soluções para ela. Apenas dão socos no ar.

Economicamente, a nossa produtividade é muito baixa, o nosso tecido industrial é muito frágil e vulnerável e os nossos serviços públicos têm um desempenho péssimo e são um sorvedouro inexaurível de dinheiro, o que constitui um ónus pesadíssimo para os contribuintes singulares, que entregam ao Estado muito mais do que as prestações que recebem, em quantidade e qualidade, e para as empresas, cujo peso da fiscalidade nos bens e serviços que produzem e vendem lhes corrói ainda mais a sua já de si baixa competitividade.

O governo deu indícios, no início da sua actuação, de estar consciente da gravidade da situação. Mas durante a primeira metade da legislatura, época ideal para se fazerem as reformas impopulares, o governo foi de uma grande tibieza e não foi capaz de levar à prática as reformas que se impunham. A sua prestação política foi péssima. Reformas que mexem com o statu quo, com hábitos adquiridos, com a necessidade de emagrecer a função pública e melhorar o seu desempenho, com a exigência de uma maior mobilidade do factor trabalho, etc., são impopulares. Têm que ser bem explicadas e os seus protagonistas maioritariamente ganhos para ela.

Não foi nada disto que aconteceu. O governo falou muito de reformas, falou muito, demasiado, do custo dessas reformas, falou em vez de agir. A oposição limitou-se a potenciar o pânico que as declarações governativas lançavam entre quem sentia que o seu statu quo estaria em risco. As reformas passaram a serem vistas como uma ameaça e não como algo absolutamente indispensável para a melhoria do nosso desempenho económico e social e para que a nossa economia se desenvolvesse de forma sustentável.

Pior, a imagem que passou para a opinião pública, em termos de reformas e de combate ao défice, foi puramente virtual: a oposição criticava o governo pelos cortes excessivos na despesa pública que só existiam no universo virtual da nossa classe política, enquanto o governo se defendia justificando a necessidade de cortes que, efectivamente, não aconteciam, ou aconteciam casuisticamente, à toa, sem uma estratégia consequente e com um impacte despiciendo; a oposição brandia a ameaça catastrófica para os direitos do povo trabalhador decorrente das reformas que o governo, afinal ... não estava a fazer ... só dizia que fazia.

Foi uma luta comparável pelo fragor e pela virtualidade à que os deuses da Grécia Clássica travavam no Olimpo, mas nos antípodas da qualidade literária e humana que essas lutas trouxeram à nossa cultura.

Haverá a tentação, nas hostes governamentais, em culparam a ausência de sentido de Estado dos actuais dirigentes do PS. O PS é um partido da área governativa e, de facto, não se percebe a razão de ter andado a reboque do BE no que concerne aos seus “conceitos” de política económica e financeira. Mais tarde ou mais cedo o PS será chamado às responsabilidades governativas e a época em que se podia distribuir o que não há, acabou. A conjuntura do período de adesão ao euro, que permitiu a Sousa Franco diminuir o défice e aumentar a despesa com a função pública, não se volta a repetir e a herança dos governos Guterres afecta não apenas a capacidade de acção este governo como a dos vindouros. Há compromissos que durarão diversas legislaturas.

É verdade que, a tónica geral das eleições europeias foi a amostragem de um cartão “amarelo” aos governos em funções (excepto no caso da Espanha e Grécia, onde ainda se encontram no período de graça), em que o eleitorado teria dado a entender que não deseja reformas que bulam com as suas regalias. O facto dessas reformas estarem a ser promovidas nuns casos pela esquerda, noutros pela direita e serem, regra geral, bastante incipientes, não modificou o comportamento do eleitorado.

Todavia, na Alemanha, a CDU tem apoiado, em termos gerais, as reformas que Schroeder está a tentar levar a cabo, e o SPD teve o seu pior resultado eleitoral do após guerra, apenas ligeiramente superior ao que havia obtido nas eleições de Março de 1933, já com Hitler à frente da chancelaria do Reich. O eleitorado alemão não puniu Schroeder só pelas reformas que pretende fazer, mas também pela sua incompetência neste domínio. Como escreve o "Frankfurter Allgemeine Zeitung", o voto dos eleitores não se explica apenas pelo facto de que um partido paga sempre o preço das necessárias reformas. Não é a política de reformas em si mesma que afasta os eleitores, senão a CDU que advoga igualmente uma tal política, não teria obtido resultado tão bons. Não, a verdadeira razão é a exaustão unânime dos cidadãos que não suportam mais a forma como o SPD de Schroeder conduz a sua política.

Portanto, no caso português, as razões têm que ser procuradas na pouca competência mostrada pelo governo no seu exercício. Perdeu muito tempo em legislar reformas tíbias e legislou mal, sem ter em conta o enquadramento constitucional, originando trapalhadas perfeitamente escusadas que só serviram para diminuir o eventual alcance das reformas, ou para as protelar para as calendas gregas.

Também não parece que seja relevante a questão iraquiana. Em primeiro lugar, a participação portuguesa é muito marginal e tem o apoio do PR; em segundo lugar, no conjunto dos países europeus tanto foram punidos governos que apoiaram a guerra do Iraque - como o italiano, o britânico e o polaco – como os governos que estiveram conta - como o francês, o alemão ou o belga.

Outra questão, que essa, sim, parece pertinente, é a da coligação eleitoral PSD/PP. Essa coligação é, claramente, redutora em comparação com a situação dos dois partidos concorrendo separadamente. Muitos eleitores PSD, ou que oscilam entre o PS e PSD, não se revêem na imagem política que o PP tem. Numa eleição com um único círculo, era previsível que o resultado do «Força Portugal» seria sempre inferior à soma aritmética de PSD e PP, quer em votos quer em lugares. Aliás, mesmo em eleições legislativas, com círculos eleitorais muito mais pequenos, é duvidoso que a sinergia obtida por listas conjuntas compense a diminuição da base eleitoral. Esta constatação não tem a ver com o desempenho relativo dos respectivos ministros no governo, onde, inclusivamente, há mais fragilidades na área do PSD do que na do PP. Tem a ver com uma situação de facto e em política não podemos tomar os desejos por realidades.

Entramos assim na questão central, que é a da maioria dos membros do executivo não estar à altura da missão que lhe foi cometida. Até agora, e se se exceptuar o caso de Amílcar Theias, as alterações do elenco governativo foram forçadas por incidentes que nada tinham a ver com a respectiva prestação governativa. Impõe-se portanto uma remodelação profunda no governo.

O caso mais grave, pelas responsabilidades que envolve, é o da Ministra das Finanças. A ministra é uma boa controladora, muito útil a esquadrinhar os papéis todos e a cortar despesas, mas uma péssima gestora, absolutamente destituída de qualquer imaginação e pensamento estratégico. A política que conduziu, de cortes à toa na despesa pública teve como contrapartida uma diminuição acentuada das receitas do erário público e a manutenção de um défice orçamental corrente excessivo, que era o que se pretendia evitar.

É certo que conseguiu melhorar alguns parâmetros macroeconómicos, como o défice orçamental global e o défice das contas com o exterior. Mas são as reformas estruturais que valem e permitem sustentar uma evolução positiva dos parâmetros macroeconómicos. E aí a prestação da ministra foi menos que insuficiente. Para manter o défice dentro dos limites, a ministra teve que recorrer à venda de património, o que é um claro sintoma da falência da sua política. Manuela Ferreira Leite não tem perfil para ir além de secretária de Estado do Orçamento ou do Tesouro. Para Ministro exige-se alguém mais político e com maior visão estratégica das incidências económicas das decisões fiscais e orçamentais.

Por outro lado é urgente a reforma da administração pública, a introdução de procedimentos eficazes de avaliação de desempenho e fazer com que aquela tenha uma prestação minimamente compatível com o dinheiro que custa ao país. O custo desta administração pública reflecte-se indirectamente na competitividade do sector privado e, portanto, na produtividade geral da nossa economia. Se não reformarmos a nossa administração pública dentro de alguns anos estaremos novamente na cauda da Europa, mas desta vez na dos 25, e não na dos 15. Francamente, não estou a ver a Manuela Ferreira Leite com capacidade para protagonizar essa mudança.

Mas, na generalidade, o elenco governativo é frágil. Carlos Tavares, Celeste Cardona, Figueiredo Lopes, etc. têm desiludido, nomeadamente o primeiro, visto estar numa área nevrálgica. O Ministro da Saúde tem sido muito contestado, mas seria o normal dado o poder que o lobby dos médicos tem. Em linhas gerais tem feito a política que Correia de Campos faria, se este tivesse continuado no governo. As diferenças entre ambos residem apenas na circunstância de estarem ligados a “grupos” diferentes ... Todavia, falta a Luís Filipe Pereira uma vertente política adequada ao difícil cargo que exerce.

David Justino é um sedutor a comunicar, mas nada do seu discurso acaba por ter expressão prática. Esta nova reforma curricular, mais uma ..., vai ser mais um desastre. Por sua vez, os enganos na colocação de professores (esta última lista tinha “apenas” 14 mil erros) são uma trapalhada que não se vê como o ministério a vai resolver. Quando se muda um sistema, qualquer pessoa com experiência sabe que haverá uma fase em que os dois sistemas, o antigo e o novo, têm que coexistir. Seria suicidário não o fazer. As empresas fazem isso quando mudam os programas de gestão financeira e de pessoal. É incompetência absoluta dos serviços do ministério, e indirectamente do ministro, o não terem acautelado esta questão.

Carmona Rodrigues é um técnico de elevado gabarito, embora a sua área profissional seja mais a do ambiente e recursos hídricos, mas ainda não tem o traquejo político suficiente. Todavia a sua acção não tem deslustrado ...

Na minha opinião, apenas Bagão Félix, Marques Mendes e, apesar de alguma incontinência verbal, Morais Sarmento estão acima da mediania.

Mas que remodelação vai Durão Barroso fazer? Existem em Portugal, na área dos partidos do governo, pessoas capazes. Mas quererão elas ir para o governo? Duvido. Ser membro do governo, em Portugal, significa ter uma profissão mal paga e ser objecto permanente da devassa pública por parte dos vampiros da comunicação social. Estes exigem uma alma imaculada, mas não me parece que a pureza e o desprezo pelos bens terrenos de Bento de Núrcia seja compaginável com as qualidades para se exercer com competência um cargo governativo. Cada vez mais a classe política está restrita aos aparelhos partidários (gente que normalmente não tem préstimo para mais nada) e a funcionários públicos e professores universitários (gente que não faz qualquer ideia do funcionamento do tecido empresarial do país). Com o mercado de recrutamento político cada vez mais minguado e enviesado para a mediocridade, será difícil encontrar gente capaz.

E Durão Barroso será capaz de escolher as pessoas certas? Durão Barroso é um político cinzento, sem carisma nem imaginação, que se viu promovido ao poder mercê dos desvarios financeiros e políticos do guterrismo e por Guterres se ter apercebido que seria incapaz de inverter a descida ao abismo e que quanto mais tempo permanecesse no governo, maior seria o rombo na nau socialista. Foi, do ponto de vista estritamente pessoal, uma manobra inteligente, e do ponto de vista de um governante, uma atitude absolutamente destituída de ética.

Ao país, Guterres deixou como herança: o défice orçamental, a convicção que tudo era fácil e conseguido sem esforço, a certeza inabalável que haveria rotativas a produzirem todo o dinheiro que fosse preciso, e ... Durão Barroso. Durão Barroso é, afinal, também uma herança de Guterres.

Resta ainda uma alternativa, que pode ser uma tentação para Durão Barroso e para os autarcas dos partidos da coligação que vêem aproximar as eleições locais de 2005 e não querem perder os seus cargos: alargar os cordões à bolsa, protelar as reformas mais alguns anos e esperar pelas eleições de 2006. Se ganharem as eleições mercê desse expediente (aliás usual no nosso país)... depois se vê quanto a reformas. Se perderem ... quem vier atrás que feche a porta e o PS poderá então ser confrontado com a forma insensata, irresponsável e demagógica como fez oposição durante esta legislatura.

Esperemos que o governo não caia nessa tentação, pois seria o pior que poderia acontecer ao nosso país. Se não for capaz de mostrar competência, pelo menos mostre patriotismo.


Nota 1: Desde o início deste blog que tenho criticado a acção governativa, em termos semelhantes aos actuais. Remeto, entre outros textos, para:

Perspectivas Sombrias maio 18, 2004

Eles Governam, Eles Perdem maio 13, 2004

«Teodisseia» Financeira maio 06, 2004

A Ministra Controleira novembro 20, 2003

Irreflexões nas vésperas do debate orçamental outubro 30, 2003

Isto é apenas uma nota para os maniqueistas, para aqueles, infelizmente bastante numerosos, que quando não lêem exactamente a mesma opinião deles, consideram que quem exprime essa opinião está no campo diametralmente oposto.

Nota 2: Não referi os argumentos expendidos por Vasco Graça Moura na noite eleitoral porque o homem estava claramente perturbado. Mais do que é habitual quando perora sobre matéria política.

Publicado por Joana às 10:00 AM | Comentários (43) | TrackBack

junho 12, 2004

Afinal, Roma sempre não paga a traidores

Independentemente de complicações físicas que possam ter potenciado a crise cardíaca, e os meios de comunicação já haviam evidenciado, nos dias anteriores, o extremo cansaço físico do candidato, Sousa Franco acabou por ser vítima da crispação em que a campanha eleitoral decorreu. Todavia o que há de paradoxal na lamentável ocorrência é que os desacatos tumultuosos que levaram o candidato PS, qual «boneco puxado por marionetistas furiosos», aos baldões, «uma irrelevante casca de noz num mar em fúria», até à porta de saída da Lota de Matosinhos, muito antes do horário previsto, resultaram da luta entre dois gangs rivais da estrutura concelhia do PS em Matosinhos.

Já aqui assinalei, por diversas vezes, que as estruturas PS da região do Grande Porto representam o caciquismo mais mafioso, estéril e vergonhoso que existe no país. Julguei que as sucessivas derrotas eleitorais, primeira em Gaia e depois no Porto, conjuntamente com a nova liderança de Francisco Assis, pudessem levar os militantes à razão e a empreenderem a limpeza dos estábulos de Áugias do PS Porto.

Tal não parece ter acontecido, pelo menos em Matosinhos, mas provavelmente em mais locais do norte do país.

Este caciquismo é mafioso e estéril. Queixa-se das suas fracas realizações atiçando os seus conterrâneos contra o poder central, Lisboa e o Terreiro do Paço. Quando estes caciques recebem fundos envolvem-se internamente em zaragatas, desentendem-se e fazem com que prazos e custos se empolem desnecessariamente, muito mais do que é o “normal” da “anormalidade” das empreitadas de obras públicas portuguesas.

O atraso de consciência cívica dos portugueses presta-se a fenómenos de caciquismo regional. Mas, por exemplo, Alberto João Jardim é diferente. Com ou sem défice democrático, é ele que ganha as eleições e não é sustentado exogenamente pelo seu partido. O PSD precisa mais de Alberto João Jardim que este dele. Alberto João Jardim, com mais ou menos chantagens ao poder central, fez obra e transformou a sua região, que era das mais atrasadas do país, na segunda região a nível do PIB.

Os caciques do PS da região do Porto ganham (quando ganham), as eleições sustentados no prestígio do partido que tinham a obrigação de defenderem e serem eles a prestigiar, chantageiam para receberem dinheiro, mas fazem péssimo uso dele (pelo menos no «uso» que interessa à sua região e à comunidade nacional), e as poucas obras que apresentam custaram rios de dinheiro e demoraram tempos infinitos.

Se o caciquismo de Alberto João Jardim é um fenómeno a combater e desaparecerá com a elevação do nível da consciência cívica nacional, o caciquismo de Narciso Miranda, Fernando Gomes, etc., é um quisto purulento a erradicar urgentemente, porque é mais pernicioso, mais estéril e afecta uma região sete ou oito vezes mais populosa que a Madeira.

Depois dos comentários acintosos de Sousa Franco sobre o governo que acabara de deixar, de Guterres ter avisado que “Roma não paga a traidores”, surpreendeu o facto de Ferro Rodrigues ter ido repescar Sousa Franco. Como na altura escrevi “Afinal Roma paga a traidores”.

Os jagunços de Narciso Miranda e Manuel Seabra encarregaram-se, escrevendo direito por linhas tortas (ou melhor, torto, muito torto, por linhas enviesadas), de repor a sentença de Guterres.

Publicado por Joana às 06:20 PM | Comentários (27) | TrackBack

junho 02, 2004

Enfim, Políticos falam verdade

A falta de ideias da classe política portuguesa deu nisto. Uma absoluta falta de nível da intervenção política.

O grave desta questão é que todos têm razão no que dizem uns dos outros. Só que não deveriam fazê-lo. Sabem o que dizem dos outros, apenas não deveriam dizer o que sabem.

Quando a ministra das Finanças, pressionada pela substituição atrasada da sua declaração de IRS, questiona o jornalista: «e o senhor, nunca considerou um champô como despesa de saúde?» devia estar calada e assumir o esquecimento. É óbvio que, quase de certeza, aquele jornalista já havia “ajeitado” uma ou várias declarações de IRS. Se não o tivesse feito, constituiriam uma excepção, que não me atreveria a designar por honrosa, para não ofender a maior parte dos nossos concidadãos. Todavia espera-se que um titular da pasta das finanças seja cumpridor ou, se cometeu inexactidões, que assuma isso, peça desculpas e evite entrar numa competição sobre “quem se evadiu mais”.

A mesma ministra, há dias, num debate parlamentar, mimoseou o deputado Eduardo Cabrita: "O senhor não merece o ordenado que recebe", "O senhor não sabe do que está a falar", "a pergunta é de um ignorante" e "não percebe o que se lhe explica".

Na verdade Eduardo Cabrita, quer como secretário de Estado da Justiça, quer como deputado, não sabe o que diz: ou é um vazio de ideias, ou fala empolgado de coisas que não têm a ver com a matéria em debate, ou faz insinuações torpes. Basta lembrar as afirmações que ele produziu sobre o caso Moderna e sobre a demissão da Maria José Morgado. Simplesmente é extremamente deselegante, no seio da representação nacional, a ministra chamar a atenção para aqueles atavismos.

E não apenas deselegante. Eu, por exemplo, acho que também a ministra não merece o dinheiro que ganha. Talvez merecesse o vencimento de secretária de Estado do Orçamento. Porém como ministra é uma desgraça: Os cortes à toa na despesa pública e uma ausência de estratégia adequada conduziram a uma diminuição acentuada das receitas do erário público e à manutenção de um défice orçamental excessivo. A Ministra é uma boa controladora, mas uma péssima gestora, absolutamente destituída de qualquer imaginação e pensamento estratégico.

Há dias Carvalhas, em plena AR, chamou cobarde ao Primeiro Ministro. Tinha obviamente razão. Durão Barroso tem tido uma absoluta falta de coragem em levar à prática as reformas que prometeu e de que o país necessita para sair da situação em que está. Também não tem tido coragem para remodelar o governo, tirando o caso do Theias. Mas o Theias não existia – era uma marioneta agitada pela mão que estivesse mais a jeito. Carvalhas tinha razão, mas não o devia ter dito: primeiro, porque foi de uma grande falta de educação e de respeito para com o Parlamento; depois porque acertou no epíteto, mas não na razão para tal.

E não apenas mal educado. Eu, por exemplo, acho que Carvalhas foi de uma cobardia obscena na forma como, por exemplo, se comportou com João Amaral, a quem o unia anos de trabalho comum e uma amizade e um convívio extra-partidários. Com o João Amaral e com muitos mais.

O Bloco resolveu reinventar a moca. Mas isso é de somenos importância O Bloco é uma inventona de jovens que falharam na carreira publicitária e que se tentam safar na política, mas sempre na melancólica busca da carreira publicitária perdida. É a política decorativa. O Bloco não tem conteúdos, apenas tem formas; não discute causas, apenas casos. A moca é um mero ícone da sua nostalgia pela cacetada revolucionária. É uma forma de tal modo esvaziada de conteúdo que enquanto a ostenta por todo o país, continua a chamar trauliteira à direita. Nem repara que a moca, agora, é dele.

Uma interveniente na campanha eleitoral (hesito em chamá-la política), Ana Manso, resolveu tornar-se conhecida à maneira de Erostrato - troçou de uma deficiência física de Sousa Franco. Compreende-se: Ana Manso precisava desesperadamente tornar-se conhecida. Por sua vez a experiência tem mostrado que os portugueses estão desinteressados das finanças públicas. Só se interessam pelas próprias finanças, e no curto prazo. Vão atrás de qualquer demagogo que lhes acene com algum dinheiro de imediato, sem pensarem quanto pagarão por isso, mais tarde. Em desespero de causa Ana Manso vingou-se no físico, em vez de atacar as ideias.

No meio deste desconchavo, os políticos portugueses, enervados, tornaram-se susceptíveis. Tudo os ofende. Paulo Portas chamou a Sousa Franco o «pai do défice». Sousa Franco ficou ofendidíssimo e fez prova pública dessa ofensa. Compreende-se, pois Sousa Franco tem um currículo notável nesta matéria: foi o principal artífice do défice, pelo que fez e pela herança que deixou; caluniou publicamente o seu sucessor que tentava, na medida em que o Guterres o permitia, inverter a situação; tem vivido em permanente auto-elogio, afectando não perceber o que andou a fazer. Portas, sempre incontinente, não esteve com embaraços e corrigiu a afirmação: «não é apenas o pai do défice. É o pai, a mãe, o avô, a avó, o gato e o periquito do défice». E Telmo Correia fez eco com o chefe: «E a família do défice está para as finanças públicas como a família Adams está para os filmes de terror».

Agora coube a vez de Pires de Lima ficar muito ofendido por Sousa Franco o ter apelidado de xenófobo e exigiu desculpas públicas. Errada ou certa, é apenas a opinião de Sousa Franco. É uma opinião política e deve ser contestada politicamente. E Pires de Lima deveria responder-lhe à letra se achava que aquela era uma afirmação gratuita ... mas ofendido? ... exigir explicações?

A questão é simples. Não é apenas a população que não respeita os políticos. Eles próprios não se respeitam entre si. E não é só uma questão de não se respeitarem. Sentem-se igualmente que se estão a afundar numa mediocridade sem perspectivas e por via disso tornam-se muito susceptíveis: quando alguém receia estar a ser medíocre, a mais leve alusão nesse sentido deixa-o à beira de uma crise de nervos.

E para além de uma persistente falta de respeito mútuo e de uma desoladora crise geral de nervos, também estão a ser vítimas de uma incómoda incontinência verbal.

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maio 28, 2004

Portugal não é pequeno, apenas mesquinho

Eça escrevia, no primeiro número das Farpas, em 1871, que, em Portugal, se quer «o prestígio da realeza e a majestade do poder; mas exige-se que el-Rei se exiba numa sege de aluguer e que Sua Majestade a Rainha não tenha mais de dois pares de botinas».

A actual polémica acerca dos vencimentos dos dois directores-gerais do fisco, estabelecidos segundo a fasquia dos privados, é apenas mais um sintoma da doença endémica do país, já caracterizada naquela frase do Eça – um coquetel de inveja, mesquinhez, maledicência, intriga e boataria.

Esta polémica é apenas um epifenómeno de uma questão de fundo – a sordidez com que se encara a remuneração dos cargos políticos. A remuneração das figuras públicas em Portugal é ridícula para a responsabilidade das funções que desempenham.

Estas baixas remunerações levaram a situações perversas. Lembremo-nos, por exemplo, da questão dos bilhetes das viagens de representação que eram trocados por outros em classe económica, para a família também poder ir. Isto nem sequer atinge a dignidade de uma fraude ... é apenas o espelho da miséria financeira e moral (porque uma produz a outra) em que vegetam os nossos representantes.

Lembremo-nos da incompetência, cada vez maior, dos nossos governantes e da dificuldade crescente em se constituírem governos minimamente capazes tecnicamente. Os grandes nomes da economia, finanças, engenharia, etc., fogem como o diabo da cruz de se deixarem arregimentar para os elencos governamentais. Para quê? Para ganharem uma miséria e serem expostos à devassa pública e à maledicência dos sus concidadãos ?

O mercado onde procurar governantes está cada vez mais exíguo: gente do aparelho partidário, incapaz de ganhar o sustento de outra maneira; gente das universidades que faz jus ao aforisma «quem sabe, faz, quem não sabe, ensina»; gente da função pública cristalizada em procedimentos obsoletos e sem visão nem estratégia; em suma, gente que não conhece o tecido produtivo do país, que não sabe, por dentro, o que é uma indústria, o que é o sistema financeiro ... gente que esconde a incompetência atrás da sua retórica.

E o mais curioso é que enquanto os portugueses exigem que os seus representantes e governantes sejam honestos, competentes e mal pagos, tentam, eles próprios, ser manhosos, incumpridores e bem pagos.

O país exige dos seus representantes e governantes rigor, competência e espírito de sacrifício, mas não quer remunerar devidamente essas qualidades. O paradoxo é que não obtém nem uma coisa, nem outra: paga mal aos seus governantes e representantes, mas estes acabam por nem isso merecerem. Ou seja, paga mal e tem como resultado o remunerar acima da produtividade dos eleitos.

O barato sai caro. De tanto porfiar nas baixas remunerações dos seus representantes e governantes e neste modelo miserabilista, o pais acabou por os estar a remunerar acima do que eles merecem.

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maio 25, 2004

Theias que os políticos tecem

O processo Theias, desde as apreciações que a classe política fez sobre o seu desempenho, até aos comentários sobre a sua demissão, são o retrato da nossa classe política.

Praticamente desde que tomou posse que Theias foi considerado uma escolha errada. Um erro de casting como lhe chamei então. Quem primeiro se deu conta disso foram os autarcas, cujos projectos e candidaturas ficaram em “banho Maria” e cujo diálogo com o ministro evidenciava um sujeito indeciso, frágil, sugerindo um dia uma coisa e outro dia outra, completamente diferente e, por vezes, contraditória. O ministro falava ao sabor dos lobbies do sector do ambiente ou das opiniões de quem falava com ele.

E os autarcas do PSD estavam entre os mais críticos, talvez por esperarem mais, talvez por se quererem adiantar aos críticos de outros quadrantes, como uma providência cautelar para minimizar as críticas dos outros. Se aquilo que autarcas de relevo do PSD diziam em reuniões com terceiros, o disseram em reuniões das estruturas do partido, então desde muito cedo que Durão Barroso deve ter-se sentido pressionado para mudar o ministro.

Segundo é público, Durão Barroso teve de intervir para apaziguar a relação do ministro do Ambiente com os seus secretários de Estado. As «gaffes do ministro» eram incómodas para o governo e para Barroso acima de tudo. Apenas os ambientalistas apoiavam o ministro, não pela sua competência, mas pela sua fragilidade. A fragilidade de um ministro do Ambiente facilita os ambientalistas pescarem em águas turvas. Quem gosta da intriga e do boato, prefere situações fluidas.

Por isso é incompreensível Durão Barroso, na despedida de Amílcar Theias, manifestar o apreço e o reconhecimento pelo trabalho desempenhado pelo antigo ministro da pasta do Ambiente, alegando que o despedia apenas porque reconhecia que aquele era o momento de mudar.

Durão Barroso deveria ter guardado "de Conrado o prudente silêncio”. Na verdade, anunciar uma demissão do Governo por volta da meia-noite não é um acto normal, não pode ser considerado «o momento de mudar», quando simultaneamente se declara ter apreço pelo trabalho desempenhado. Se se tem apreço, não se muda de ministro à meia-noite. Se Durão tem apreço pelo trabalho de Theias é porque este estaria a fazer bom trabalho, logo não deveria ser demitido ou, havendo conveniência na sua substituição, esta poderia esperar por uma remodelação mais vasta.

É normal, quando se substitui alguém, dizer algumas mundanidades. Mas neste caso aquelas afirmações mundanas de Durão não colam com o timing da demissão. Estão deslocadas.

Uma teoria sugere que o despedimento de Theias na véspera do congresso do PSD, e àquela hora, fora do horário normal de expediente, se destinou a pacificar os autarcas exasperados pela inacção do ministro, ou sectores incomodados pela vertigem do ministro em abrir a boca apenas para dar tiros no pé. Embora frágil, não se vê outra explicação com um mínimo de pertinência. Todas as outras razões apontadas não explicam o porquê daquele timing. Mas mesmo esta explicação não é favorável ao primeiro ministro. Ela prova que Theias já deveria ter sido substituído há muito e que a sua manutenção foi um erro inexplicável de Barroso.

Toda a actuação de Barroso foi de uma grande fragilidade, porquanto a sua persistência em conservar um ministro contra as críticas dos seus próprios autarcas, um ministro desacreditado perante os gestores das entidades privadas e públicas que actuam no domínio ambiental, incompatibilizado com os colegas e com os seus secretários de Estado, prometendo decidir uma coisa num dia e o inverso na semana seguinte, etc., é inexplicável por causa racional.

Diz-se que Durão Barroso o foi mantendo porque considerava Theias um homem sério. Na verdade era. Mas era também uma personalidade frágil e manipulável. Uma das causas das suas decisões contraditórias era ele ser permeável aos diferentes lobbies: o lobby das incineradoras, os lobbies ambientalistas, etc. Cada vez que falava com um, mudava de opinião. Uma pessoa séria e manipulável não oferece qualquer garantia de tomar decisões sérias. Também aqui Durão Barroso errou.

Outra comportamento paradigmático do estado da nossa vida política, foi o da oposição. Durante mais de um ano a oposição troçou da incompetência do ministro. Dirigentes da oposição disseram publicamente que o ministro era tão fraco que o governo andava «com vergonha do ministro».

Mesmo quando o ministro dava tiros no pé, a oposição associava-se aos tiros, mas guardava-se de elogiar o ministro. Os respectivos autarcas tinham um opinião de tal forma negativa da actuação do ministro, que os líderes nacionais nunca se atreveram a elogiá-lo

A oposição, comentando a demissão mas incapaz de a contestar pelas qualidades do ministro, contestou-a baseada na teoria da conspiração. O PCP considerou, imediatamente, que a exoneração do ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente evidenciava as «dificuldades e fragilidades» do Governo. Francisco Louçã afirmou que a exoneração de Amilcar Theias, é «uma manobra de recurso» de Durão Barroso, um sinal para dentro do partido e do próprio Governo. «Isto é um filme com todas as características de intriga misteriosa, é substituído um ministro repentinamente quando ele próprio tinha apresentado uma resolução do conselho de ministros sobre a privatização das águas, um dos grandes projectos de liberalização com que o Governo se comprometeu», disse. Quanto ao porta voz socialista, este deduziu que há «todos os sinais de que esta não é uma remodelação comandada no seu timing e na sua extensão pelo primeiro-ministro. Pode também ser uma remodelação contra o primeiro-ministro». «Recordo que o ministro Amílcar Theias avançou com a operação de privatização das Águas de Portugal», disse o socialista, adiantando que «a intenção do ministro Amílcar Theias de fazer acompanhar essa operação de uma remodelação na administração da empresa Águas de Portugal pode estar associada a este desenlace».

Paradoxalmente o projecto de liberalização do sector das águas, dias antes criticado duramente, era agora um «grande projecto de liberalização a que o governo se havia comprometido». A hipocrisia não podia ser maior

Apenas Alberto João Jardim, o «sátrapa da Madeira», considerou que a saída de Theias era «uma notícia alegre». «Respirei fundo, porque ele tinha encrencado tudo o que tinha pendente com a Madeira». Infelizmente, Theias tinha «encrencado» tudo, em todo o país. Apenas a hipocrisia e o receio de chamarem as coisas pelos nomes impediu os políticos «continentais» de reconhecerem o mesmo.

O caso Theias é de facto paradigmático da situação em que se encontra a política em Portugal. Foi apenas por isso que eu gastei mais tempo do que esta figura apagada mereceria.

Publicado por Joana às 07:33 PM | Comentários (9) | TrackBack

Theias que os mídia tecem

Durante mais de um ano os meios de comunicação teceram críticas à actuação do ministro Theias. Quando se falava na eventualidade de uma remodelação, Amílcar Theias aparecia sempre à cabeça. Estava na calha – seria o primeiro membro do governo a ser despedido.

Finalmente, depois de esperar tempo em demasia, Durão Barroso fez a vontade aos mídia e demitiu Theias.

Título dos jornais: Durão tira Theias sem explicação. Como sem explicação? Então se os meios de comunicação andavam há mais de um ano a explicar que o Ministro Amílcar Theias era uma desgraça e deveria ser remodelado?

A demissão de Theias só pecou por tardia.

Já há mais de um ano, e neste blog, desde que ele começou, que eu venho criticando a política (ou a ausência dela) de Amílcar Theias e da sua equipa. Foi em «Com Vergonha do Ministro» onde escrevi entre outras coisas que «O ministro Theias não tem qualquer perfil para o lugar». Posteriormente, em «Mau Ambiente» fiz uma crítica acerada ao ministro e ao seu Secretário de Estado do Ambiente. Entretanto e já em 25-06-03 havia escrito no Expresso online que « Theias foi um erro de casting» muito antes desta “teoria” ter começado a circular na comunicação social.

A situação do ambiente em Portugal é péssima e é necessário alguém enérgico para tomar decisões (matéria em que o ministro Theias era absolutamente incapaz). Em primeiro lugar há dezenas de candidaturas ao Fundo de Coesão que estão completamente «encrencadas» como diria AJ Jardim, algumas ainda desde o tempo de Sócrates (o ministro, não o filósofo!). Tem que ser pacificada a relação entre os autarcas e o Ambiente, bastante degradada pelas dilações permanentes do ministério em termos de aprovação das candidaturas. Trata-se de projectos importantes a nível de abastecimento de águas e saneamento e de tratamento de resíduos sólidos. E são investimentos públicos, comparticipados a fundo perdido e com retorno financeiro, de que a economia do país tanto precisa

Em segundo lugar tem que haver coragem de dizer não ao fundamentalismo ambiental que se enquistou como um polvo em institutos e organismos públicos e que só tem causado prejuízos. O desleixo governamental de décadas deixou em autogestão uma série de institutos pagos pelo dinheiro dos contribuintes. Assim, em Portugal, começaram a ser classificadas áreas sob os mais variados pretextos: REN, rede natura, biótipo Corine, paisagem protegida, etc., etc. O país ficou todo classificado.

Quando se tentaram construir centrais eólicas, como estas têm que se situar em locais altos e menos habitados, verificou-se que não havia locais disponíveis: estavam todos classificados. Simplesmente a alternativa às centrais eólicas é o incremento da energia térmica e o não cumprimento dos protocolos de Quioto e das directivas da UE. Lá teve que ser: começaram a “desclassificar” as áreas em causa, com as dilações burocráticas e os custos que tudo isso representa.

Outra ideia peregrina foi a de que a limpeza das matas e florestas destrói a biodiversidade. Não é por acaso que muitos dos incêndios do ano passado começaram em matas nacionais e zonas protegidas. Igualmente diversos agricultores se queixaram na altura que técnicos do Estado os impediram, em devido tempo, de proceder à desmatação de matas e florestas exactamente para proteger a biodiversidade. Mas há um alibi forte: a culpa é dos outros - quem pegou fogo, a mão criminosa, falta de meios dos bombeiros, etc.. Para os ambientalistas a culpa é sempre dos outros.

A tarefa dos ambientalistas é facilitada pela ignorância do mundo rural dos nossos fazedores de opinião. Quando se falou na hipóteses de colocar o ICN, os parques naturais e as zonas protegidas, debaixo da alçada das Florestas, gritou-se que tal representaria um verdadeiro golpe de Estado no Ambiente e uma traição a trinta anos de política ambiental. Sabe-se a que os 30 anos de política ambiental conduziram. Paisagens protegidas por lei e desprotegidas pela ignorância militante de quem as deveria proteger, desde o Parque Natural de Sintra-Cascais até à Tapada de Mafra.

A situação tornou-se extremamente grave e há que tomar medidas imediatas. Os incêndios florestais não se combatem com mais bombeiros e mais meios. Um incêndio numa floresta não tratada é imparável. E quantos mais anos de ausência de ausência de tratamento se acumulam mais rápido e devastador é o fogo, no caso de se desencadear. Tem que haver uma intervenção imediata nas florestas, passando por cima do polvo ambientalista, para que não se repitam as catástrofes dos últimos anos.

Depois é fácil dizer que a culpa é dos madeireiros, de interesses imobiliários, do secretário de Estado das Florestas ser o homem das celuloses, de mão criminosa, etc. Em Portugal prefere-se encontrar bodes expiatórios mais mediáticos e de efeito seguro do que encontrar as razões das coisas e providenciar que o desleixo seja eliminado. É evidente: encontra-se um bode expiatório e os ânimos ficam calmos, enquanto que eliminar o desleixo é uma acção lenta, que bule com muitos interesses instalados em diversos sectores, pouco mediática e de efeito a longo prazo. Esquecemo-nos que encontrar um bode expiatório fictício não tem qualquer efeito, a curto, a médio e a longo prazo. É apenas o ópio das consciências.

Preferimos os boatos e a teoria da conspiração ao estudo dos problemas e ao incómodo de os resolver.

Por isso, após meia dúzia de horas de cenários conspirativos, o silêncio absoluto. Theias regressou ao nada da comunicação.

Publicado por Joana às 10:45 AM | Comentários (16) | TrackBack

maio 05, 2004

Competição Cerrada

Um dos conceitos mais queridos da esquerda era o de que Portugal tinha a direita mais estúpida da Europa. Com o descalabro financeiro e governativo de Guterres aquele conceito começou a perder operacionalidade. Não porque a esquerda deixasse de ter esse julgamento sobre as capacidades cognitivas da direita, mas porque começou a sentir que poderia estar em vias de ser considerada a esquerda mais estúpida da Europa. Pior ainda, mais estúpida e mais incompetente.

Finalmente, a esquerda e a direita portuguesas pareciam estar irmanadas num consenso sobre um conceito importante para a compreensão do país. Tinham em comum algo de exaltante: eram as mais estúpidas da Europa.

Desde então esquerda e direita têm dirimido forças na arena da estupidez política.

Ferro Rodrigues, por exemplo, tem sido incansável a carrear todos os seus trunfos para ultrapassar definitivamente a direita. Insatisfeito com os disparates que cometera no caso Casa Pia, Ferro, deu um último, inesperado e espectacular golpe que lhe asseguraria definitivamente o troféu: Escolheu para cabeça de lista à eleições europeias o homem que foi o principal artífice do défice orçamental português, o homem que após sair do governo andou a apregoar que aquele governo era o pior que tinha havido em Portugal desde os tempos de D. Maria, o homem que, enquanto Pina Moura andava às voltas a tentar remediar as contas, se entretinha em almoços mundanos a atirar-lhe chistes malevolentes e em voz alta, para que qualquer jornalista nas imediações pudesse ouvir e anotar, em suma, Sousa Franco, o homem que pela prosápia que ostenta, ainda não conseguiu perceber o buraco orçamental em que meteu o país.

Ao pé deste esforço entumecido de Ferro Rodrigues, as ladainhas facundas do Rosas no Público e os dislates desdenhosos do Louça na AR não passavam de cartas sem pintas nos trunfos da esquerda.

A direita tentava, desajeitadamente, contrapor os seus lances. O gambito Theias parecia uma jogada magistral, mas foi mal sucedido. Foi um gambito com uma peça tão insignificante que ninguém a tomou. Nem os ambientalistas deram por ela.

Manuela Ferreira Leite, o peso pesado de Durão, entrou finalmente na liça. Segundo se depreende, e após várias experiências falhadas, tudo indica que vai, mais dia menos dia, empossar Deus como Director-geral dos Impostos. Aparentemente, só ele conseguirá deter a evasão fiscal. Mas trata-se de uma jogada que, embora cheia de intenções, é claramente insuficiente face ao avanço da esquerda.

Finalmente, apareceu a jogada salvadora. Na recta final, um concorrente aparentemente menor, mas pleno de engodo, apesar da sua figura macilenta, de um pergaminho ressequido, retrato de um Nosferatu quando adolescente míope, produz-se num anúncio onde lhe escasseia a malevolência satânica, mas lhe sobeja o cretinismo tolo.

Não precisou de muito para se impor. Pouca coisa, embora absoluta, irremediavelmente pimba. Apenas:

digaomanel.com

Publicado por Joana às 08:14 PM | Comentários (14) | TrackBack

abril 19, 2004

Dislexias

O ministro da Administração Interna, Figueiredo Lopes disse, numa entrevista à Antena 1 e respondendo a uma pergunta sobre o futuro da GNR no Iraque na hipótese da situação descambar, que «Se, por hipótese, o conflito se agudizar e a GNR não tiver condições para exercer a sua missão a única coisa a fazer é retirar». Questionado sobre a possibilidade de, no caso de agravamento da situação no Iraque, substituir a GNR pelo Exército, o Figueiredo Lopes garantiu que «nem sequer está a ser equacionada a hipótese de enviar as Forças Armadas».

A força da GNR é uma força de manutenção da segurança pública, sem meios militares para se empenhar num conflito militar. Ela foi para o Iraque nessas circunstâncias e só partiu depois de ter sido assegurada a existência de condições no terreno que permitissem a sua acção.

Portanto o que Figueiredo Lopes disse foi o que consta dos acordos que possibilitaram a ida daquele contingente e do protocolo internacional, assinado pelo governo português, estabelecendo as condições em que a GNR operaria no Iraque.

Os nossos meios de comunicação pegaram naquelas declarações e verteram-nas em «comunicacioguês»: Figueiredo Lopes admite retirar a GNR do Iraque.

Figueiredo Lopes, homem tímido, de perfil baixo ... ou melhor, sem perfil para ministro ... apressou-se a desmentir aquela frase que os jornalistas tinham vertido em «comunicacioguês» e a tentar clarificar a sua posição. Debalde. A sua clarificação foi retrovertida em «comunicacioguês» assim: Figueiredo Lopes dá o dito por não dito.

Lendo melhor a frase anterior, verifica-se que ela encerra algo de verdade. De facto, Figueiredo Lopes dá o dito (o dito pela comunicação social) por não dito (ele, na verdade, não tinha dito aquilo).

Não há mesmo nada a fazer. A dislexia dos jornalistas é total e absoluta. A dislexia dos jornalistas e de Santana Lopes e Ana Gomes, os mais mediáticos dos nossos políticos que, por via disso, também foram contagiados pela dislexia mediática, embora cada um com sintomatologia diversa.

Enquanto Figueiredo Lopes foi vítima da dislexia jornalística, Durão Barroso foi vítima de uma crise de incontinência verbal. Durão Barroso criticou o Governo espanhol dizendo que «O novo Governo espanhol anunciou que ia retirar as tropas do Iraque e imediatamente disse que ia aumentar a presença no Afeganistão. Sentiu necessidade de o dizer, reparem nisso. Imediatamente a Al Qaeda reforçou as ameaças contra Espanha. E neste momento a situação naquele país não é de forma alguma mais segura do que em Portugal, bem pelo contrário» e, mais adiante, «há muito mais risco em Espanha do que em Portugal, apesar de o novo Governo espanhol ter dito o que disse» e que «não se compra segurança com a tentativa de ceder a qualquer forma de terrorismo».

Eu já fiz aqui acusações mais fortes a Zapatero que as que Durão formulou. Zapatero tem personalidade frágil: na altura das eleições dizia que ia retirar do Iraque; logo a seguir disse que as tropas espanholas permaneceriam a seguir a 30 de Junho, mas apenas se ficassem sob o comando da ONU; ontem, pressionado pelos parceiros radicais da coligação no poder, disse que as ia retirar imediatamente; amanhã, pressionado por Bush e Kerry, fará sabe-se lá o quê; etc.. Todavia Durão não falou na qualidade de «blogueiro». Analistas políticos têm sido severos com Zapatero. Todavia Durão Barroso não é um analista político (pelo menos por enquanto). Durão Barroso é o Primeiro Ministro de Portugal e deve ter sentido de Estado quando faz afirmações públicas sobre Primeiros Ministros de outros países.

Pior, Durão Barroso é o Primeiro Ministro de um país que não tem forças militares no Iraque e que apenas mantém nesse país um contingente insignificante de forças de segurança. Durão Barroso tem o direito de discordar da decisão de Zapatero. Todavia a insignificância da presença portuguesa no Iraque não lhe confere qualquer autoridade para emitir, publicamente, aqueles juízos de valor.

Por outro lado, Durão Barroso asseverou que a situação em Portugal é muito mais segura que em Espanha. Tem sido, é um facto. Mas o terrorismo não tem lógica e vive da surpresa. Os meios de profilaxia e combate ao terrorismo em Portugal são mínimos e, certamente, muito inferiores aos da Espanha. Nada garante que o que foi verdade até agora, continue a ser verdade. Durão Barroso teria feito bem melhor em estar calado sobre esta matéria, tecendo comparações de que poderá um dia arrepender-se.

Esperemos que tal não venha a acontecer.

Publicado por Joana às 07:52 PM | Comentários (15) | TrackBack

abril 13, 2004

Portas e a reabertura do Processo Moderna

O ocaso de Portas no mediatismo da vida política nacional tem sido desesperante. Um nome que durante os primeiros 18 meses de governo era pronunciado diariamente, que tinha sobre ele todos os holofotes da comunicação social, que um semanário de referência lhe dedicava páginas sobre páginas todas as semanas, que era objecto de colóquios, conferências, comícios, imprecações, oratórias, prédicas, gritos, soluços, suspiros, mesas redondas, quadradas, elípticas e bicudas, passou a ser ignorado de um dia para a noite. Bastou que estivesse concluído o Processo Moderna.

Reconheçamos que foi extremamente injusto. Uma carreira política que se desenhava fulgurante e cheia de potencialidades ser desvanecida por meras questões processuais ...ou pior, por ausência de questões processuais. Como é possível tanta mesquinhez? Como é transitória e vã a glória deste mundo! Sic transit gloria mundi! Actualmente, já poucos se lembram do Portas. Apenas Soares tenta promovê-lo, mas desajeitadamente. Além do que já ninguém liga ao Soares, que está completamente xexé. É preciso algo inovador.

Pela acção governamental não parece possível conseguir tal desiderato. A pasta ministerial que Portas sobraça é espinhosa. Um Ministério da Defesa sub-equipado, e sob a tutela espiritual do PR, não se presta a grandes feitos. Se tivesse as possibilidades humanas e materiais do Rumsfeld e a tutela de um Bush, outro galo lhe cantaria. Provavelmente já estaria no Deserto Sírio, na estrada de Damasco, cabelos ao vento, fácies heróico e lábios arrepanhados num rictus firme, a comandar um blitzkrieg sobre essa cidade infiel.

Mas em Portugal apenas lhe restam os submarinos. Porém, os submarinos têm uma característica profundamente antipática para um político: devem estar imersos. Ora estar imerso é, para um político, a contrariedade máxima.

E Portas tem, nesta tentativa premente de relançar a sua imagem, um aliado de peso. É que não foi apenas Porta que caiu no olvido, O Expresso está de rastos: J A Lima e J A Saraiva limitam-se a escrevinhar umas trivialidades que lançam às vorazes piranhas que infestam o on-line para as manterem entretidas a estraçalharem-lhes os parágrafos. A edição semanal está pelas ruas da amargura. Foram tentadas abordagens novas, mas sem resultados. Mesmo um figurino estilo «24 Horas» falhou, pois o «24 Horas» é inimitável.

Semiramis, sempre atenta à vida política e mundana dos tugas, conseguiu todavia desvendar algo que está a preparar na sombra e que promete bastante. Há dias, num restaurante discreto dos arredores de Lisboa, Portas, JAS e JAL tiveram um longo almoço onde delinearam uma estratégia para trazer novamente Portas para a ribalta e o Expresso para as bancas.

Semiramis, numa mesa prudentemente resguardada da curiosidade de estranhos, não conseguiu, por via disso, inteiro acesso aos planos daqueles discretos comensais, mas o facto da conta ser paga por Luís Filipe Vieira que almoçava, com Dias da Cunha, noutra mesa judiciosamente afastada, e de esta factura ser posteriormente entregue, de forma disfarçada e conspirativa, a um circunspecto JA Lima, já fornece um indício seguro de que algo se irá passar nos próximos dias na comunicação social.

Compadrio com os mídia, almoços pagos por outrem e ligações perigosas com os sórdidos meios futebolísticos são uma ementa suculenta para qualquer semanário à beira da exaustão inspirativa e para qualquer político em crise de protagonismo.

Por outro lado perspectiva-se uma reabertura do processo Moderna. Segundo pudemos observar, Portas teria fornecido, aos seus colegas de infortúnio mediático, dezenas de fotografias de um Jaguar em zonas de estacionamento proibido, em cima de passeios, relvados, e a circular a 185km/h, em contra-mão, defronte do Palácio de Belém. Segundo obviamente se depreende, este copioso acervo documental poderá ser carreado para o processo como novo elemento de prova, permitindo a sua reabertura e, em simultâneo, o recomeço da excitante e imaginativa novela jornalística. O sorriso escarninho do JAL era óbvio.

Aguardam-se novos e prometedores desenvolvimentos nesta matéria. Não podemos deixar empalidecer a estrela de Portas; não podemos deixar o Expresso resvalar para a banalidade mais insípida. Há que proteger essas duas instituições nacionais.

Todos nós precisamos de um Portas com protagonismo: são os meios de comunicação em crise de material, é a oposição em crise de causas, é o governo em crise de ideias, é o PR em crise de banalidades, é o Soares em crise de senilidade, é o défice em crise “tout court” e é o Durão absolutamente, definitivamente.

Publicado por Joana às 07:19 PM | Comentários (13) | TrackBack

março 31, 2004

Guterres Aguilhoado

Guterres, o Prometeu em versão tuga, regressou este fim de semana.

Prometeu ensinou os gregos a observar as estrelas, a cantar e a escrever; mostrou como fazer para subjugar os animais mais fortes; demonstrou-lhes como fazer barcos e velas e como poderiam navegar; ensinou-os a enfrentar os problemas quotidianos e a fazer unguentos e remédios para suas feridas. Por último, deu-lhes o dom da profecia, para o entendimento dos sonhos; mostrou-lhes o fundo da Terra e suas riquezas minerais: o cobre, a prata e o ouro e a fazer da vida algo mais confortável. Prometeu significava, literalmente, “aquele que prevê”.

Guterres anestesiou os portugueses; criou-lhes um universo paralelo e virtual onde as coisas aconteciam sem esforço nem contrapartidas; autoestradas que não eram pagas; prestações sociais de fiscalização duvidosa, mas de comparticipações seguras; empregos fáceis e abundantes na administração pública; etc., etc.. Guterres tornou-se, literalmente, “aquele que não faz a mínima ideia do futuro”.

Zeus, Deus inclemente, vingou-se de Prometeu tornando a Terra num vale de lágrimas e de dor, espalhou as doenças, silenciosas e mortíferas. E cevou a sua vingança em Prometeu, acorrentado-o a um penhasco nas montanha caucasianas em face de um abismo horrendo, com correntes inquebráveis. Zeus ainda ordenou que um abutre devorasse todos os dias o fígado do prisioneiro, que sempre se reconstituía à noite.

Guterres não precisou de Zeus. O seu universo paralelo e virtual foi destruído pelas misérias deste mundo: a falta de dinheiro, o défice excessivo, o PEC, dívidas incobráveis, etc.. Quanto à vingança sobre ele próprio, não precisou de ajuda - encarregou-se ele mesmo dela. A partir dos primeiros meses do seu governo, quando começou a verificar que o seu universo virtual não era compaginável com as duras realidades do mercado, escassez de fundos, descalabro financeiro à vista, amarrou-se ele próprio ao Cáucaso da política e criou a lamentosa imagem que lhe estavam a debicar permanentemente o fígado e o resto das vísceras: eram os barões do seu partido, era a oposição de direita, era a oposição de esquerda, era a necessidade de degustar o queijo limiano, era o povo que não o compreendia.

Guterres arrastou-se, durante a maior parte do tempo dos seus governos, como uma vítima incompreendida. Era o nosso Prometeu, o nosso Prometeu de trazer por casa.

Finalmente os Hércules da política, os eleitores, libertaram-no e permitiram-lhe um exílio tranquilo por essa Europa, longe do nosso Cáucaso escarpado.

No fim de semana passado regressou ao nosso Cáucaso, novamente como vítima, novamente a queixar-se de disfunção hepática-política.

Afinal Guterres «tinha condições para ficar no Governo, mas não tinha condições para executar o projecto em que acreditava. Era uma questão indiscutível», disse, e continuou: «Não faria qualquer sentido tentar agarrar-me a um lugar, sabendo que não existiam as condições políticas para realizar o projecto que, em minha opinião, era a única justificação para estar nesse lugar»

Houve pois um lamentável equívoco. Guterres acreditava num projecto e ia executá-lo, mas as autárquicas de finais de 2001 criaram uma «lógica política pantanosa que era preciso interromper, dando o voto e a decisão ao povo». Portanto, a acreditar no seu discurso de sábado passado, nos finais de 2001 é que Guterres iria começar a governar a sério. Entretanto havia estado 6 anos a treinar-se, a congeminar o projecto, a desbaratar as finanças e a anestesiar a população. O projecto deveria ser grandioso, pois tudo indica que a política orçamental de Guterres foi conduzida de forma genial para mostrar como é possível fazer prosperar um país após um completo descalabro financeiro. Não foi desleixo ... apenas subtileza. Um Super-herói só é possível com um Super-vilão. Foi para protagonizar o Super-herói a partir de 2002, que Guterres criou um buraco orçamental desmedido nos primeiros 6 anos de treino obstinado.

Infelizmente a manifesta má vontade dos eleitores nas autárquicas impediu, indirectamente, que esse projecto visse a luz da política e que as ciências políticas e económicas se enriquecessem com uma contribuição notável. E foi um impedimento indirecto porque a partir desse voto, Guterres ficou com o «temor de um parlamento bloqueante às propostas do Governo», apesar do parlamento continuar exactamente com a mesma composição partidária. A única coisa que mudou, foi o «temor» de Guterres.

Guterres, profissão: vítima, agora e sempre.

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março 21, 2004

Mário Soares e o Terrorismo

O ex-Presidente da República e eurodeputado socialista Mário Soares defendeu que é importante perceber os objectivos da al-Qaida e apostar no diálogo com a organização Al-Qaida para perceber os seus objectivos e combater o terrorismo, em alternativa ao uso da força. «Quais são os objectivos da al-Qaeda? O que os motiva?», questionou Mário Soares, numa conferência em Lisboa, adiantando que «há uma galáxia que não conhecemos bem e a única maneira é tentar percebê-la», sublinhando que «esmagando-os [os terroristas] não chegamos a lado nenhum»

«Para fazer a paz não vale a pena falar com os que fazem a guerra?», questionou o eurodeputado, ao intervir numa conferência sobre direitos humanos em Lisboa, na Fundação Mário Soares. Quando alguém na plateia perguntou se Mário Soares também teria defendido um diálogo com Hitler, o eurodeputado respondeu que «se fosse necessário, para evitar um ano de guerra, valia a pena».

O ex-presidente de República deu o exemplo do dirigente da Esquerda Republicana da Catalunha Josep-Lluis Carod-Rovira, que teve um encontro com elementos da ETA, numa iniciativa «a que o povo espanhol respondeu com bom senso e sabedoria», fazendo aumentar o número de deputados daquele partido de um para oito nas eleições de 14 de Março. Na minha opinião esta afirmação é o que há de mais perverso nas alegações de Soares. E é perversa porque dá uma visão perversa da democracia, quando se perdem os valores e se trocam votos por um prato de lentilhas.

Daladier quando regressava a Paris depois da assinatura dos acordos de Munique e se apercebeu da multidão que o esperava temeu o pior, julgando que iria ser linchado. Afinal a multidão vitoriava-o em delírio. O comentário de Daladier para os seus acompanhantes foi lapidar: “Estão loucos”. Daladier passou à História como um capitulacionista. Mário Soares passaria à História, tudo o indicava, como o político que nos momentos decisivos, a seguir ao derrube da ditadura, soube liderar as forças democráticas no combate às forças que tentavam instaurar um novo totalitarismo. Mas a continuar na via que encetou de há dois anos para cá a sua imagem ficará, certamente, muito degradada.

Daladier negociou com o terror nazi, mas compreendeu que apenas ganharia alguns meses de paz. Ganhou um ano, o mesmo ano pelo qual Mário Soares achou que valeria a pena dialogar com Hitler. Esqueceu-se é que não foi menos um ano de guerra, mas sim que a guerra começou um ano depois e foi certamente mais duradoura e cruenta do que se as potências ocidentais tivessem mais cedo posto cobro aos projectos de Hitler.

Himmler, num discurso para oficiais da SS em Kharkov, em 19/4/43, afirmou: «A melhor arma política é a arma do terror. A crueldade gera respeito. Podem odiar-nos, se quiserem. Não queremos que nos amem. Queremos que nos temam.».

O terror nazi era diferente do terror do fundamentalismo islâmico. Tinha mais meios e chegou a ocupar a maior parte do continente europeu. Mas em contrapartida tinha uma lógica mais inteligível e tinha rosto. Por isso o terror islâmico consegue, com muito menos vítimas (até agora), a criação de um clima de pânico proporcionalmente muito superior aos meios e efectivos de que dispõe.

Com o terror não se dialoga. Só se dialoga quando há trocas possíveis, quando há campo para fazer cedências; quando os objectivos da parte contrária não são ilimitados. Senão, não há diálogo, mas apenas capitulação. Os políticos da Europa democrática da década de trinta julgaram que estavam a dialogar e só perceberam, tarde demais, que estavam a capitular através de cedências sucessivas: o objectivo de Hitler era ilimitado.

António Barreto citando a frase de Mário Soares: «"É preciso negociar com os terroristas"!», escreveu; « Ele [Mário Soares] não disse "opositores", "adversários", "colonizados", "oprimidos" ou "resistentes". Disse "terroristas". Nunca alguém o dissera antes dele. E creio que ninguém o dirá depois.”»

Esperemos que ninguém o diga depois, pois será bom sinal.

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março 09, 2004

A Cubatura da Esfera

O governo pretende que os aumentos salariais cresçam com referência à inflação da zona euro do ano anterior, tanto para o sector privado como para a função pública.

Os sindicatos contestam afirmando que «negociar salários com base na inflação da zona euro do ano anterior representa um retrocesso de 20 anos». Atendendo a que a taxa de inflação da zona euro é menor do que em Portugal, a sua consideração por oposição à nacional, representa desvalorização salarial.

Os sindicatos têm razão quando afirmam que utilizar como referência a taxa de inflação da zona euro, em vez da taxa de inflação em Portugal, «representa uma desvalorização salarial».

Todavia esquecem-se, ou fingem esquecer-se, que a manutenção dos aumentos salariais referenciados à taxa de inflação em Portugal, equivale a manter uma inflação superior à média europeia, com reflexos nos custos das empresas e na continuada perda da sua competitividade externa. Como Portugal tem uma economia extremamente aberta ao exterior, essa perda de competitividade criará problemas a nível das exportações, com impacte negativo no saldo das nossas contas com o exterior, e na saúde económica das empresas, com consequências muito negativas no emprego.

Isto é, os sindicatos trocam benefícios ilusórios no curto prazo (ilusórios, porque imediatamente corroídos pela degradação económica e monetária) pela perspectiva a médio e longo prazo de uma economia mais sã, mais geradora de emprego e que permitisse um crescimento futuro mais sustentado.

Os sindicatos deviam abandonar uma estratégia meramente salarial e de manutenção de pretensas regalias que têm efeitos perversos no tecido económico e acaba por se virar contra os interesses dos trabalhadores, em geral, a médio e a longo prazo. A luta contra o desemprego não pode ficar circunscrita aos protestos às portas das empresas que vão fechando, pois tal não passa de retórica, para tentar extrair dividendos políticos, porque a catástrofe já aconteceu. As organizações laborais devem enveredar por uma via de defesa sustentada dos interesses dos trabalhadores: apostar na obrigatoriedade da formação nas empresas, encontrar formas de participação dos trabalhadores de maneira que estes tenham uma informação mais efectiva, na sua empresa, da evolução do mercado, da gestão que está a ser feita pelas chefias, das eventuais fragilidades da empresa, etc., que lhes permita uma intervenção com mais conhecimento de causa, propondo atempadamente soluções, ou construindo soluções em conjunto com a entidade patronal, ou exigindo que se encontrem soluções, antes que o deslizamento para a catástrofe se torne irreversível.

Há, no nosso país, um grande défice de gestão. Parte do patronato, nomeadamente nas empresas mais pequenas, ou nas indústrias tradicionais, não se apercebe das necessidades em inovação e na qualificação necessária para promover essa inovação e tem uma visão “musculada” do controlo e da eficiência laboral, isto é, julga que essa eficiência só se consegue por via repressiva. A institucionalização de uma maior participação “construtiva” dos trabalhadores incentivá-los-ia a melhorar o seu desempenho. Tem que haver controlo e disciplina mas não apenas no que toca ao trabalhador. O patronato precisa de saber que o seu desempenho também está a ser avaliado. Mas isto só poderá acontecer se essa participação for esvaziada do conceito de luta de classes e vista numa óptica de defesa comum de um activo que é indispensável a todos. Não quero com isto dizer que não deva haver conflitualidade de pontos de vista. Certamente haverá e será útil e estimulante que tal aconteça. Mas para que seja estimulante, terá que haver a percepção mútua que ambas as partes estão interessadas na prosperidade e crescimento da empresa.

Em contrapartida, o patronato também faz exigências insolúveis na presente conjuntura. Não é possível aumentar o rendimento disponível dos trabalhadores reduzindo a carga fiscal. O país tem um grave problema com a despesa com uma função pública pesada e ineficiente. Mas, por lei, tem que providenciar ao pagamento dos seus vencimentos e para isso precisa de receitas fiscais. Deverá ser exigido ao governo que reforme a administração pública e que promova acções que melhorem o seu desempenho. Mas isso demora tempo, admitindo que o governo seja capaz de o fazer.

Simplesmente, nesta matéria o governo está a enveredar pelo tipo de gestão do nosso empresário tradicionalista: discursos ad terrorem, congelamentos salariais (conjunturalmente necessários em face da situação a que se chegou, mas que terão que ser apenas conjunturais), mas nada no que respeita a reorganização e restruturação dos métodos de gestão na função pública, exceptuando algumas medidas débeis e avulsas.

É evidente que não é fácil fazer essa reorganização e restruturação. Há vícios, hábitos nocivos e interesses corporativos instalados em todos os níveis da função pública. Quando se faz uma restruturação de uma empresa têm que ser ganhas as chefias, superiores e intermédias, quadros e pessoal em geral. Toda esta gente tem que ser motivada e compreender que a restruturação é útil para a empresa, embora possa envolver alguns incómodos, mudanças de posição, perdas pontuais de benefícios nocivos para o interesse comum, etc.. Ora não vejo nada nos discursos dos responsáveis políticos que criem esta percepção.

Também é evidente que fazer reformas numa empresa é mais fácil que em todo o aparelho do Estado. Não é apenas uma questão de dimensão e de diferenciação de situações. No caso da função pública os sindicatos e as forças políticas da oposição não deixarão de meter paus na roda, tentando sofismar algumas questões e explorar alguns interesses que possam vir a ser atingidos. Mas se for bem delineada, a reforma terá o apoio da maioria da população. Uma sondagem recente revelou que os sindicatos são a entidade de que os portugueses mais desconfiam. Os sindicatos estão desacreditados. Todavia a forma desajeitada e incompetente como o governo tenta dirimir esta questão está a carrear argumentos para a contestação sindical .

Resolver assim as diferenças a que se chegou entre o governo, o patronato e os sindicatos é fazer a quadratura do círculo.

Pior, como estamos a 3 dimensões será a cubatura da esfera.

Publicado por Joana às 10:12 PM | Comentários (29) | TrackBack

março 01, 2004

O Exemplo Húngaro – a nudez eleitoral

A abstenção nas eleições europeias em Portugal tem sido elevadíssima. Em 1989 foi de 49%. Em 1994 essa abstenção atingiu o valor recorde de 64,4% e em 1999, embora menor, chegou aos 60%. O eleitorado português não está motivado pelas questões europeias.

Ora é preciso motivá-lo. Temos que mostrar à Europa que estamos devotadamente com ela, não apenas no cumprimento do PEC, mas também no entusiasmo pela coisa pública europeia. Temos que inverter este processo!

Durante anos, nós fomos um aluno exemplar. Comportámo-nos com aprumo, disciplina nas aulas, atentos às lições dos professores, fazíamos os TPC e esforçávamo-nos, apesar de sermos oriundos de uma família desfavorecida, iletrada, com mau ambiente de estudo e sem apoio familiar. A Europa comovia-se com o nosso esforço e orgulhava-se dos nossos progressos.

Depois, o atavismo social fez das suas. Começámos a cabular, a chegarmos atrasados, a estarmos distraídos durante as prelecções dos mestres, a não fazermos os TPC, ... enfim, um desleixo progressivo, e começaram a chover as negativas. Ultimamente fizemos um esforço de recuperação, atabalhoado, mais com o coração que com a cabeça, o que não admira, pois quando se perde o contacto com as matérias, a recuperação é muito mais penosa. Ainda não regressámos ao estatuto de bom aluno, mas pelo menos temos alguma compreensão dos professores: se não fazemos melhor é porque nos escasseia a inteligência e o discernimento para tal ... pelo menos mostramos boa vontade.

A situação tornou-se entretanto mais grave porque uma dezena de países se acotovelam à entrada da Europa, com denodo, com fibra, cada um tentando mostrar-se mais europeísta que o outro. E absolutamente sedentos de se mostrarem alunos exemplares.

Portanto, a nossa posição no concerto europeu tornou-se mais delicada, pois temos que combater nessas duas frentes: mostrar que os tempos da cabulice já passaram e que somos novamente um aluno aplicado, e mostrar que somos mais europeístas que esses novatos que vão entrar agora cheios de motivação, alardeando uma fogosidade e devoção europeísta nunca vistas.

A Hungria já tomou uma opção de que certamente irá colher muitos e saborosos dividendos: a apresentadora de televisão Anettka Feher decidiu omitir o vestuário quando anunciou que se ia candidatar ao Parlamento Europeu. Anettka Feher considerou que o melhor traje era traje nenhum e anunciou a sua candidatura a deputada europeia sentada em cima de uma mesa, de pernas cruzadas e exibindo o seu corpo, tendo como única indumentária uma jóia discreta, um perfume francês e um sorriso. Ah! E os húngaros irão fazer-lhe a vontade, em afluência frenética às urnas.

Julgo que este exemplo terá que colher em Portugal. Não vejo outra maneira de aumentar a afluência na votação para o Parlamento Europeu. Já prefiguro os partidos aprestarem-se para reformularem as estratégias para as próximas eleições: A coligação PSD/PP indecisa entre despir Leonor Beleza ou Maria Elisa, havendo igualmente uma codiciosa ambição, por parte de muitos militantes, de despirem a Paula Teixeira da Cruz; o PS a substituir Sousa Franco que, para além de truculento, é obeso, despindo, em vez dele, a Jamila Madeira, embora alguns barões veteranos do partido pareçam estar mais desejosos em despirem a Edite Estrela; o BE a apostar na nudez da Joana Amaral Dias ... ou quiçá, na da Ana Drago ... a menos que o mediático Louçã não queira perder esta oportunidade de protagonismo, e se dispa em público, clamando, em simultâneo, o seu desprezo pelos bens materiais e as roupas de marca.

Quanto ao PCP que não haja dúvidas sobre quem despe: sempre e apenas a Odete Santos. E se os resultados eleitorais forem devastadores e algum militante exprimir quaisquer dúvidas sobre a justeza da escolha, a resposta será firme e liminar:

- Pois quê? Uma camarada com quase 50 anos de partido?

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Sousa Franco – Afinal, Roma paga a Traidores

Sousa Franco, o político que declarou que o governo de António Guterres era o pior governo jamais havido em Portugal desde os tempos de D. Maria I, o político que mimoseou o governo PS com frases como «esta política é tão medíocre que até dói» ou «é urgente pôr fim a este Inverno do nosso descontentamento», foi escolhido como cabeça de lista do PS para as eleições europeias. Todos se lembram das crispações criadas entre Sousa Franco e diversos dirigentes socialistas no tempo em que, entre 1995 e 1999, ocupou a pasta das Finanças e todos se recordam das afirmações contundentes que Sousa Franco produziu depois da sua saída, referindo-se à actuação do governo PS.

Poder-se-ia pensar que seria uma forma dourada de exílio face às diatribes com que imprecou o governo PS. Mas o exílio para Bruxelas destina-se a políticos notórios e incomodativos. Presentemente, Sousa Franco já não era nem uma coisa nem outra. Logo, não se trata de um exílio.

Será porque Sousa Franco representa a política financeira que é o paradigma que o PS irá defender?

Mas Sousa Franco lançou os alicerces para o despesismo orçamental que Pina Moura tentou, já no final do guterrismo, pôr algum controlo, o que lhe valeu o despedimento, e que tem sido o quebra cabeças do actual governo PSD/PP.

Aliás, Sousa Franco tem opiniões muito firmes sobre Pina Moura. E disse-as a alguns amigos, na época em que Pina Moura era ministro das Finanças, num restaurante famoso de Lisboa, suficientemente alto para que todos pudessem ouvir e fossem depois transcritas nos jornais. Sousa Franco disse do então ministro das Finanças algumas picardias, num estilo de má língua que o pessoal cultiva, em especial quando se é português e se está num café ou restaurante.

Há pouco tempo ainda Sousa Franco defendeu, em entrevista, o seu modelo despesista, afirmando: «eu nunca tive nenhuma obsessão pelo défice e no entanto, quando o primeiro governo do engenheiro António Guterres (...) iniciou funções, a média anual do défice era de 5,9% do PIB. Passados quatro anos era de 2,8%». «Portanto sem obsessão do défice é possível reduzir o défice. Com a obsessão do défice, é possível dar cabo da economia. É a lição que tiramos». O que Sousa Franco se esqueceu de recordar foi que aquela época coincidiu com a queda abrupta das taxas de juro, queda decorrente da adesão ao euro e do alinhamento com as taxas de juro europeias e que foi essa diminuição drástica de encargos com a dívida pública que fez descer o défice. E esqueceu-se igualmente de recordar que as grandes obras públicas feitas no sistema «faça agora e pague depois» permitiram importantes receitas fiscais enquanto se realizavam (IVA, etc.) e que as despesas que geraram só começariam a ocorrer anos depois, ou seja, originam um superavit durante os primeiros anos e agravam o défice nos anos subsequentes. E quando se esquece a matéria, a lição que tiramos está errada.

Será que o PS assume definitivamente que a sua política financeira é o despesismo e o défice crescente? E como pretende explicar isso na Europa, quando afirma que o PS é o partido mais europeísta de Portugal?

Será que Sousa Franco acompanha o PS na sua luta contra a legislação sobre a reforma da função pública? Mas se foi Sousa Franco que declarou que «ao ocupar a cadeira de ministro das Finanças pela segunda vez, a sua “maior surpresa” foi a “perda de eficiência da administração pública”. Hoje, uma decisão demora semanas a preparar, quando em 1979 bastavam dias». Ora quando uma organização perdeu eficiência de forma tão abissal, tem que ser reformada, reorganizada e introduzidos critérios de avaliação de desempenho dos serviços e dos efectivos. Mas é isto que o PS de Ferro Rodrigues pretende?

Sousa Franco entrou no governo de António Guterres ao som de fanfarras. Era o político competente e incorruptível por excelência. Era o político não-político, porque a sua imagem era de neutralidade, circunspecção e competência. Acabou afinal por ter, naquele governo, o comportamento circunspecto e neutral de um elefante numa loja de louças. Humilhou pessoalmente Guterres diversas vezes. Provavelmente não seria essa a sua intenção. Um indivíduo como Sousa Franco, que se tem num conceito tão elevado, não humilha os míseros mortais que o rodeiam. Age naturalmente do alto da sua suficiência. E se os outros se sentem humilhados por Sousa Franco é porque se julgam, ingenuamente, da mesma craveira que ele, o que é, por postulado de Sousa Franco, absolutamente impossível.

Será que Ferro Rodrigues, ao escolher Sousa Franco, pretende captar o eleitorado do centro e lançar o manto diáfano da fantasia sobre a nudez forte da verdade do facto da sua direcção ser a mais esquerdista do PS desde sempre? Será que Ferro Rodrigues pretende que o PS seja centrista em Bruxelas e esquerdista em Lisboa?

Ferro Rodrigues precisa urgentemente de uma vitória eleitoral. Neste fim de semana várias declarações de dirigentes socialistas sublinharam essa obrigação: «A opinião pública portuguesa está hoje muito descontente com o Governo. Se, mesmo assim, o resultado eleitoral do PS for negativo, isso deve constituir motivo de profunda análise. E o secretário-geral deve tirar as devidas ilações desse facto.» ... «Uma derrota terá fatalmente consequências no PS ... temos todas as condições para ganhar as europeias. Se não as ganharmos, haverá consequências ao nível da liderança»

Mas será esta a melhor via? Não me parece.

Afinal Roma, agora, paga a traidores. Não com prebendas e mordomias dentro dos seus muros, mas com chorudos proconsulados nas Gálias nordestinas.

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fevereiro 24, 2004

Nítido Nulo

Augusto Santos Silva foi, como dirigente político, um nítido nulo. Como Ministro da Educação entrou na ocasião propícia, quando o ano lectivo havia começado e portanto já nada havia a fazer, e saiu na altura perfeita, antes do fim do ano lectivo, pelo que ninguém se lembraria de lhe pedir responsabilidades, no início do ano lectivo seguinte, pelas lacunas ou pelo que tinha ficado por fazer. Foi perfeito. Tão perfeito que ninguém se lembra dele como ministro, para além dos compiladores das cronologias ministeriais.

Transitou para a Cultura. Carrilho tinha deixado o Ministério da Cultura num caos. Havia-se pavoneado enquanto o orçamento o permitiu e assim que as migalhas que restavam no fundo do tacho se revelaram insuficientes para cobrir o despesismo, saiu. Sasportes, o entreacto, foi apenas o inocente útil dos abutres da cultura portuguesa que debicam o erário público. Sem energia para lhes resistir, sem gosto para lhes fazer a vontade, foi um permanente derrotado. Precisava-se de uma completa nulidade para aquietar os vampiros, para que eles não se apercebessem que havia alguém à frente do ministério. Foi escolhido Santos Silva. Um homem que fala bem e não diz nada. Perfeito para a Cultura.

A sua curta actuação à frente do Ministério da Cultura foi a que se esperaria dele: a mais total discrição. Conformou-se com tudo aquilo que encontrou e nada procurou mudar, não fosse acontecer-lhe o mesmo que ao seu antecessor. A partiu da demissão de Guterres atingiu o Nirvana político: estava encontrada uma razão para continuar a não fazer nada - estava em mera gestão corrente.

Finalmente, após as mudanças eleitorais, Santos Silva encontrou a sua vocação: escrever artigos de opinião e dar entrevistas. Enquanto Paulo Pedroso esteve em prisão preventiva inundou os jornais com queixumes cruciantes sobre a injustiça da justiça portuguesa, sobre as cabalas e malevolências de que o PS era vítima. Durante meses Santos Silva dissertou abundantemente sobre a Sociologia da Cabala e a Política Portuguesa Contemporânea.

Há semanas participou num debate televisivo sobre educação. Foi, como se viu, um lamentável equívoco. Esteve sempre dessintonizado com os restantes participantes: Ministra, docentes universitários, etc. Estes nem se davam ao trabalho de comentar a retórica de Santos Silva tanto ela nada tinha a ver com a matéria em apreço. Ele botava discurso e, quando acabava, voltavam todos à matéria anterior, como se a fala de Santos Silva fosse uma página em branco, ou um intervalo publicitário.

O editor do programa, com as mãos na cabeça, relia os curricula dos intervenientes e lá estava: Santos Silva, Ministro da Educação (2000/2001), Ministro da Cultura (2001/2002), Secretário de Estado da Administração Educativa (1999/2000). Como explicar aquele desempenho? Elementar, meu caro Watson … basta ler os três primeiros parágrafos deste texto, para ver como se faz um ministro.

Ultimamente deu a lume duas teses seminais. A primeira foi a transposição do Dilema do Prisioneiro, da Teoria dos Jogos, para a Sociologia Palavrosa. A Sociologia Palavrosa é a Sociologia daquelas universidades em que a escolástica ainda não cedeu o passo à abordagem científica e onde, em vez de «mentes brilhantes», se têm palavras brilhantes e mentes vazias. Na dissertação desta palavrosa tese, Santos Silva mostrou igualmente o porquê da inanidade da sua carreira governativa: não percebeu nada do que se estava então a passar, ao escrever agora que «Faz caminho uma reavaliação positiva do ciclo guterrista: afinal, esses perseguiam um objectivo, reforçar o "social", e parece terem conseguido, no conjunto, melhores indicadores de crescimento e bem-estar». Não percebeu então, não percebe agora e é altamente improvável que venha alguma vez a perceber. Mas como dizia Douglas-Home, «Há dois tipos de problemas na minha vida. Os problemas políticos são insolúveis e os problemas económicos são incompreensíveis».

Dias depois, nova tese seminal, imorredoira, postulada sob a forma de uma entrevista: «Santana e Portas querem criar partido peronista». Esta tese teve, nos seus alicerces, obviamente, um enquadramento sintagmático baseado numa semiótica clara que permitiu postular aquela proposição, anisótropa e logoelíptica, desconstruindo a matriz lógico-verbal da indiferenciação contextual, deduzindo-a como valência ontológica de uma sólida exegese de sociologia histórica, documental e teleológica. No que tange à parte histórica o elemento imprescindível de consulta foi inequivocamente a versão em swahili do «Príncipe» de Maquiavel. Na parte documental teria uma importância não despicienda a leitura da colecção de 2003 do «Le Point». No término, uma diegese arrebatada, disseminada pelas páginas do DN.

A tese é genial e fecunda e o evento pode ocorrer já nos próximos meses. O cenário, os personagens e o argumento são o corolário deste postulado.

O cenário é evidente: a varanda de São Bento pejada de bandeiras, estandartes e insígnias, ondulando ao sabor do vento e da exaltação popular das massas justicialistas derramadas desde o Quelhas à Rua Amália.

Os personagens inevitáveis: Santana Lopes ataviado de general, em grande uniforme, farda comprida e direita com grande bordadura e dragonas em ouro, o chapéu de plumas na cabeça, ao vento, como em campo de batalha, e à sua direita, docemente apoiado no seu braço enérgico, Paulo Portas, com uma peruca loira de Catherine Deneuve, «Le Point style».

O argumento da acção é logocêntrico e axiologicamente determinado: Santana e Portas, em uníssono, a proclamarem à nação o estabelecimento da IV República. Atrás, batido pela luz dos projectores, Alberto João Jardim saracoteia-se em traje de Gonçalves Zarco, ilustrando a necessária continuidade histórica entre a IV República e a época áurea das descobertas, consolidando a imagem do Portugal perene e dos nossos egrégios avós. No meio do público arrebatado pelo entusiasmo, nas escadarias, Maradona limpa uma lágrima rebelde.

No encerramento da cerimónia, irrompe a voz de Paulo Portas, vibrante e plena de coloratura, a elevar-se, poderosa e altissonante, por sobre o coro popular em delírio, a entoar emocionada:

Don’t cry for me Portugal
The truth is I never left you
All through my wild days
My mad existence
I kept my promise
Don't keep your distance

Junto ao leão da esquerda, Santos Silva, em traje de bobo, multiplica-se em entrevistas, falando, como sempre, muito, e dizendo, como sempre, nada.

Publicado por Joana às 09:14 PM | Comentários (30) | TrackBack

fevereiro 23, 2004

Ministros certificados

José Cesário, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, é conhecido por o seu nome ter sido envolvido em várias polémicas e ter resistido ao "caso da cunha", que levou à demissão do seu chefe, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Martins da Cruz, e do ministro da Ciência e Ensino Superior, Pedro Lynce. Acumula também com a posição de ser um dos membros do governo cuja demissão mais vezes tem sido pedida o que é uma façanha notável, se se tiver em conta que, exigir demissões, é a pièce de résistance do cardápio da elaborada conceptualização política em que se baseia estratégia oposicionista.

Mas José Cesário, no que respeita a cunhas relativas a acessos ao ensino superior está certificado: o seu filho (a família continua a viver em Viseu) está a repetir o 12º ano pela terceira vez porque ainda não conseguiu entrar na faculdade.

Louvemos a previdência deste prudente membro do governo e o amor filial implícito no comovente sacrifício do rapaz, que assim certificou o pai como imune a este tipo de cunhas.

Outras certificações poderão ser assim obtidas. Por exemplo, para imunidade à fuga ao imposto de sisa, uma das viroses políticas mais endémicas e mortíferas, o cenário certificador ideal será um ministro ser entrevistado no seu tugúrio, um humilde pardieiro construído penosamente com tábuas apodrecidas sobrantes das carpintarias de toscos, alcantilado num talude da zona de protecção da A1, à saída de Lisboa. Enquanto lá fora a devotada esposa do ministro monda uma pequena leira onde crescem, numa liberdade desordenada, couves portuguesas e outras hortaliças patrióticas, a voz do ministro, sobrepondo-se à zoada infrene do trânsito, insiste na excelência da localização:

- O meu motorista pára na faixa de segurança, buzina e eu saio da barraca, salto a vedação metálica e entro no carro ... são só 10 metros e é muito prático. Preparei-me desde pequeno para a política. Os meus pais e os meus sogros doaram os bens a instituições de caridade e eu construí esta choça para nossa residência permanente logo que me acenaram com um cargo político. Como este local, durante os fins de semana, com a diminuição do tráfego e dos gases de escape, tem bons ares, serve simultaneamente de residência secundária nos poucos momentos de ócio que a coisa pública me deixa.

Outra certificação importante é a relativa a esquecimentos de entregas das declarações de IRS, uma virose política com alguma frequência e sinistralidade. Neste caso, o cenário certificador ideal será o ministro, ao ser indigitado, ser entrevistado em plena função de arrumador de automóveis. Enquanto o indigitado ministro vai gesticulando desnecessariamente para um automobilista arreliado pela insistência daquela figura esquálida, explica ao jornalista:

- Preparei-me longamente para este cargo político para o qual acabo de ser indigitado. Há bem mais de 5 anos, prazo de prescrição das obrigações fiscais, que eu exerço em permanência o mister de arrumador. Para além da certificação necessária, esta actividade tem-me permitido uma relação mais íntima com a população e com o país real. Esta actividade exige enorme perseverança e capacidade de enfrentar a incompreensão e rejeição do público cuja causa servimos com tão dedicada devoção patriótica. A arenga política, treinei-a nas diatribes que lanço ao pessoal que se escusa ao óbolo. Este gesticular desenvolve o meu gesto como elemento dramatizador da oratória e serve-me de ensaio para as minhas posturas nos comícios. Tenho as certificações, as imunidades e as qualificações que o país exige de mim nesta hora crucial para o nosso futuro. É apenas o tempo de fazer a barba, tomar finalmente um banho e estarei apto para a tomada de posse.

Nestes tempos de impiedade e corrupção, onde nem os sacerdotes estão ao abrigo das viroses políticas e onde a vida pública e privada dos detentores de cargos políticos é escrutinada e devassada ao mais recôndito e íntimo pormenor, temos que procurar formas inovadoras e seguras de recrutar gente para preencher os cargos públicos. Nem a mais leve sombra de suspeição pode recair sobre essa gente. Nem uma factura de almoço sem o necessário suporte documental do pagamento pelo próprio. Neste caso, e para evitar distracções fatais, aconselha-se quem tenha projectos de vida política a comprar uma marmita e a trazê-la consigo, em permanência e cheia.

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fevereiro 12, 2004

O Regresso do Sisa Ligeiro

O actual presidente da Agência Portuguesa para o Investimento e antigo ministro das Finanças do governo de Cavaco Silva continua igual a ele próprio.

Cadilhe tem uma enorme confiança em si mesmo e no que faz, e é extremamente céptico relativamente ao resto. Quando Medina Carreira, sempre curioso, perguntou como é que a DGCI ia apurar o rendimento real dos contribuintes, após a reforma fiscal de 1989, Cadilhe respondeu-lhe convincente e confiante: “cruzam-se os dados com a informática, e pronto!”. O “pronto”, 15 anos e diversos ministros das Finanças depois, ainda não chegou.

O seu comportamento perante as obrigações fiscais, como a sisa, ficaram célebres. Mais notável foi a forma como, durante o seu ministério, foi alterando o regime da sisa, e das respectivas isenções, ao sabor das suas próprias transacções imobiliárias: compras, vendas, permutas, etc..

Esta sua actuação valeu-lhe o cognome de Sisa Ligeiro, por comparação com o seu conterrâneo Siza Vieira.

Recentemente declarou que Portugal não tinha meios para projectos como a Expo'98, o Porto Capital da Cultura e o Euro 2004. Ora é de um extremo mau gosto um detentor de um cargo público produzir afirmações destas sobre eventos já passados ou à beira de ocorrerem, com os investimentos já realizados. E de um gosto ainda mais duvidoso, no caso de Cadilhe, que deu o seu beneplácito à obra que, depois de Santa Engrácia, é o mais lídimo símbolo da dificuldade portuguesa de planear obras públicas e executá-las dentro dos prazos e custos orçamentados: o CCB.

O CCB foi feito da forma mais atrabiliária, sem respeito por planeamentos e controlo de custos, e constituiu provavelmente a maior derrapagem de custos vista em obras públicas portuguesas.

Em contrapartida a Expo'98, e refiro-me apenas à área de intervenção do Departamento da Construção, realizou-se nos prazos previstos e sem derrapagem orçamental significativa. Os excessos orçamentais no âmbito da Expo'98 referem-se à Gare do Oriente, gerida autonomamente, (derrapagens provocadas principalmente pelas indecisões e incompetência da CP e por se ter escolhido uma prima-dona como arquitecto, o Calatrava) e aos eventos, alugueres de barcos, etc., geridos por uma caterva de boys (e girls) postos lá por compadrio político.

O Porto Capital da Cultura era um evento necessário. O que ocorreu foi o que é habitual actualmente na região do Porto. Os seus líderes são muito unidos a pedirem fundos mas, após os receberem, desentendem-se, cada um tem uma ideia diferente e contraditória, entram em guerras uns com os outros e não é possível, com essa postura, fazer uma obra respeitando prazos e custos. Há inúmeros exemplos de situações destas que poderia citar. Mas esta é uma questão de líderes que cabe às gentes do Porto resolver e estou certa que, mais ano menos ano, resolverão.

O Euro 2004 pode ter sido uma opção errada, quando foi lançada a candidatura. Mas foi uma opção tomada há alguns anos e não é agora altura de a pôr em dúvida. Agora, o que há a fazer é tentar extrair desse evento os maiores benefícios possíveis. E os benefícios de um evento como o Euro 2004 não podem ser medidos apenas pelas receitas directas. Essas interessam aos promotores. No caso do Estado, parte substancial dos fundos que entregou, recebeu-os de volta através do IVA. Existem todavia muitos outros benefícios, as chamadas externalidades, que se dirigem a toda a comunidade: turismo, restauração, maior conhecimento do país com reflexos futuros em torná-lo atractivo em diversas vertentes, etc.. Cabe à sociedade civil organizar-se para as aproveitar, mas cabe igualmente ao Estado um papel importante, criando as melhores condições para que tal ocorra.

E por falar no papel do Estado, continuo extremamente curiosa sobre o que é que a Agência Portuguesa para o Investimento tem feito para atrair o investimento para o nosso país e para proporcionar à sociedade civil um enquadramento que favoreça o investimento nacional. Até agora não vi nada. E foi para gerir essa Agência que Cadilhe foi convidado e não para ser profeta da desgraça ou para proferir publicamente dislates que apenas visam aumentar a confusão em que o país vive.

Quando a Agência Portuguesa para o Investimento foi criada e a sua sede posta no Porto por exigência de Cadilhe, diversos investidores estrangeiros queixaram-se que pôr a API fora de Lisboa não seria o mais adequado. Espero sinceramente que a acção (ou a inacção) do ex-ministro Cadilhe não venha a dar razão a esses investidores. Embora neste caso, não será a localização no Porto que estará em causa, mas a gestão do ex-ministro Cadilhe.

Mas se actuação do ex-ministro Cadilhe a chefiar a API tem sido decepcionante e apagada, outro tanto não se dirá da sua intervenção pública. Cadilhe não fala sobre as tarefas de que foi encarregado, mas fala muito e é de uma total incontinência verbal sobre as outras matérias. Agora pretende que a Agência Europeia de Segurança Marítima, atribuída a Portugal pela União Europeia, deva ficar fora de Lisboa, noutra cidade costeira que tenha um porto e uma universidade.

Se for para lhe acontecer o mesmo que à API, não me parece, obviamente, uma boa ideia. Já há um precedente até agora muito negativo. E esse precedente foi justamente criado pelo ex-ministro Cadilhe.

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fevereiro 10, 2004

O Nosso Homem em Bruxelas

António Vitorino é, sem margem para dúvidas, um homem brilhante, competente e tem tido um óptimo desempenho no cargo de comissário europeu.

Surge agora a hipótese de António Vitorino poder ser o sucessor de Romano Prodi na Presidência da Comissão Europeia. É uma hipótese ténue, porquanto estará dependente da vontade dos principais países da UE e terá contra ela a oposição do bloco de direita, porventura maioritário no Parlamento Europeu quando for a votação para a sucessão de Prodi. Mas é uma hipótese que o governo português deve explorar com empenho e firmeza.

Quando foi a escolha do novo secretário-geral da NATO, aventou-se o nome de Vitorino. Todavia era uma hipótese claramente sem viabilidade face à situação internacional e à correlação de forças dentro da NATO, apesar das declarações cheias de fé dos nossos meios de comunicação e da classe política. Os socialistas europeus, e principalmente os ibéricos, fizeram declarações públicas extremamente críticas contra a guerra e, principalmente, contra a política americana. Dificilmente o governo americano aceitaria um nome oriundo do agrupamento político que tanto o criticava.

Presentemente, e se as eleições para o Parlamento Europeu derem a maioria à direita, dificilmente Vitorino poderá suceder a Prodi. Mas isto é uma guerra que o governo português deverá travar com obstinação, independentemente das dificuldades que enfrentar. E se o desfecho não nos for favorável, não cairmos em acusações mútuas estéreis, ou lamentos improfícuos: termos um português na Presidência da Comissão Europeia é apenas uma questão de prestígio; a prosperidade e o bem estar do país não depende disso, mas apenas de nós próprios.

Porém, e é uma mensagem frequentemente passada para a opinião pública, se Vitorino não suceder a Prodi, deverá ser reconduzido no cargo de comissário europeu.

Esta exigência é absolutamente sem sentido. A menos que na distribuição dos futuros pelouros dos comissários europeus calhe a Portugal o mesmo pelouro que actualmente é sobraçado por Vitorino, não há qualquer razão para Vitorino ser reconduzido.

Imaginemos que calhava a Portugal o pelouro do Comércio, e se inquiria:
- Que nome Portugal indica?
- António Vitorino! – resposta imediata e obrigatória.
- Mas que currículo essa pessoa tem nesta área?
- Excelente! Apesar das suas dimensões reduzidas, tem sido visto com grande frequência em Centros Comerciais onde tem demonstrado uma elevada capacidade de escolha e decisão. Além disso há uma exigência nacional que Vitorino seja o nosso homem em Bruxelas.

Imaginemos que se resolvia atribuir a Portugal o pelouro da Agricultura e se sondava:
- Que nome Portugal indica?
- António Vitorino! – resposta liminar e intransigente.
- Mas que currículo essa pessoa tem nesta área?
- Admirável! Embora nunca tenha tido actividade neste domínio, sabe-se que, nas suas deslocações periódicas a Portugal, costuma sobrevoar os nossos campos e adquiriu com isso uma visão muito abrangente e uma perspectiva perfeitamente vertical dos problemas campestres. Além disso há uma exigência nacional que Vitorino seja o nosso homem em Bruxelas.

Imaginemos que Portugal ficava com o pelouro da Concorrência e se questionava:
- Que nome Portugal indica?
- António Vitorino! – resposta límpida e irrefutável.
- Mas que currículo essa pessoa tem nesta área?
- Perfeito! Nunca praticou, mas tem concorrido com pertinácia a diversos cargos e a sua percentagem de êxitos nesta área é elevada. Tem um elevado espírito competitivo. Além disso há uma exigência nacional que Vitorino seja o nosso homem em Bruxelas.

Não, António Vitorino não é o nosso homem em Bruxelas. António Vitorino é apenas, e já é muito no nosso panorama político medíocre, um homem brilhante, competente e muito capaz.

Um político suficientemente brilhante e competente para fazer temer a actual liderança incapaz do PS, que o quer ver em Bruxelas, a fazer seja o que for, desde que esteja afastado das controvérsias locais.

Publicado por Joana às 08:00 PM | Comentários (21) | TrackBack

janeiro 19, 2004

Dissenso consensual

Este fim de semana Durão Barroso e Marques Mendes fizeram um repto ao PS para um consenso nacional sobre a questão das finanças públicas, correspondendo ao apelo constante na mensagem que Jorge Sampaio enviou à Assembleia da República, na passada semana.

Este fim de semana o secretário-geral socialista, Ferro Rodrigues, reafirmou que o Governo não pode contar com o PS para o apoiar nas políticas financeiras, económicas e sociais em nome de "uma unidade nacional" porque tais políticas são erradas, sublinhando que o Governo não tinha entendido a mensagem de Jorge Sampaio.

Finalmente, o Governo e a oposição estão de acordo: cada um entendeu perfeitamente a mensagem do PR e cada um tem a firme e definitiva convicção que o outro não entendeu o pungente apelo do PR.

Aliás, no que se refere a mensagens e discursos do PR toda a classe política está absolutamente de acordo: cada político entende perfeitamente o que o PR diz ou escreve, regozija-se pelo apoio iniludível que a mensagem ou discurso constitui para as suas convicções políticas e felicita o PR pela importância dessas palavras para a continuidade da política em que está empenhado. E isto acontece, quaisquer que sejam as suas convicções políticas e quaisquer que sejam as políticas em que está empenhado.

Todo este dissenso consensual ocorre apenas na classe política. Na sociedade não política, nos restantes 99,99% dos portugueses, ninguém percebe nada do que o PR diz, não entende aonde ele quer chegar e olha-o como um bibelô sem utilidade prática, mas também sem nenhuma perigosidade, que pode estar à mão de uma qualquer inocente e indefesa criança, sem que daí lhe possa advir dano algum.

É o pressentir que o que o PR diz é insosso, incolor, inodoro e inócuo que o tem catapultado para níveis elevados nas sondagens. Desconfiados como são os portugueses, no que tange à classe política, a existência de algo inócuo é um bálsamo que tempera as preocupações da população sobre o que é que os políticos andarão a tramar.

Publicado por Joana às 07:32 PM | Comentários (22) | TrackBack

janeiro 09, 2004

Ana Gomes vítima de Poderes Ocultos

Ontem, em Leiria, numa inusitada e surpreendente crise de lucidez, Ana Gomes declarou que «há uma clara falta de nível na política que se faz em Portugal». Ana Gomes caiu em si e reconheceu, finalmente, que a sua «produção política» nos últimos meses tem tido uma clara falta de nível.

Todavia aduziu que «o papel perverso dos media», atrás dos quais estão muitas vezes «poderes ocultos», determina também o comportamento de muitos agentes políticos.

Ana Gomes, estás desculpada! Retiro o que tenho dito sobre a tua incontinência verbal. Vou imediatamente oficiar ao José Lamego, para ele apagar as declarações em que afirmou que «Ana Gomes está a destruir a credibilidade que o PS acumulou em matéria de política externa nos quase 30 anos que levamos de vida democrática» e que «O PS merece melhor e diferente». Mais, vou pedir-lhe para ele se retratar de ter dito que as afirmações de Ana Gomes constituíam "insinuações reles" e "impropério grosseiro".

Ana Gomes é apenas uma pobre, indefesa e instrumentalizada vítima do «o papel perverso dos media» e dos ominosos «poderes ocultos» que se perfilam por detrás desses instrumentos de perversão. Mídias que, conforme os próprios asseveram, não são mais do que meros instrumentos de forças ocultas, como escreveu Madrinha anteontem no Expresso.

Quando Ana Gomes, em diatribes incendiárias, se fez eco de boatos postos a correr por uma revista francesa meses atrás, estava apenas a ser uma vítima inocente desse «o papel perverso dos media». Ana Gomes não passa de um títere cujos engonços são manipulados pelos mídia malvados. Por sua vez, continuando a seguir o pensamento escatológico de Ana Gomes, aquela revista também estaria a ser instrumento de «poderes ocultos».

Resta saber quais as alegações dos «poderes ocultos» para agirem assim. Provavelmente também agem determinados por forças malignas ainda mais ocultas, que por sua vez …etc. … É uma cadeia de forças ocultas que se instrumentalizam numa série cujo início nos transcende. Onde se encontra o privilegiado deus ex machina de todas estas maquinações e instrumentalizações que ele mesmo engendra para usufruto dos amantes de sensações fortes das rábulas mediáticas? Onde mora a prima ratio de todos estes desconchavos?

Que força estranha é esta que está a mover o mundo de Ana Gomes e a transformou numa marioneta insensata e ridícula?

Publicado por Joana às 09:29 PM | Comentários (28) | TrackBack

janeiro 05, 2004

O Charme Discreto do Poder, ou os avatares do BE

A esquerda radical tem como ideário de base a teoria de que todas as formas de governo são opressivas e indesejáveis e devem ser abolidas; a resistência activa contra o Estado e a rejeição de todas as formas coercivas de controlo e da autoridade. Para ela, o despotismo não reside somente na forma do Estado, mas no próprio princípio do Estado e do poder político. "A novidade da política vindoura é que ela não será mais uma luta para a conquista ou o poder do Estado, mas uma luta entre o Estado e o não-Estado (humanidade)...". É questionando os fundamentos do sistema e abrindo horizontes alternativos que é possível criar a relação de forças que dá consistência à batalha anticapitalista.

Estas teorias são sólidas, para quem acredita nelas. Todavia, como asseverou Marx, é o ser social que determina a consciência social, primeiro, e, depois, a expressão ideológica dessa consciência. A partir daí as antigas teorias, mesmo as mais sólidas, podem ser derrogadas, por transformação do ser social, mesmo que continuem a serem exibidas, tais trajes de cerimónia, apenas usadas em recepções mundanas e oficiais. Basta observar a curiosa trajectória que Louçã e os líderes bloquistas têm descrito, desde que Ferro Rodrigues assumiu a liderança do PS e, mais nitidamente, desde que este começou a ficar fragilizado com o desenvolvimento do processo Casa Pia.

Sendo o PS um partido da área do poder, cujos dirigentes têm, ao sabor da alternância democrática, gerido o Estado, estando por isso implicados em “formas de governo que são opressivas e indesejáveis e que devem ser abolidas”, comprometidos com “formas coercivas de controlo e da autoridade”, que devem ser rejeitadas e enredados no “próprio princípio do Estado e do poder político” onde reside o despotismo, os seus políticos são, por este postulado teórico incontestável, opressores indesejáveis, déspotas, gestores da exploração dos trabalhadores, logo potencialmente ladrões e corruptos. Sendo assim, os políticos (PS e restantes da área do poder) estarão permanentemente sujeitos, de acordo com este sólido postulado, ao “prejuízo da dúvida” – isto é, são culpados até provas irrefutáveis em contrário, e obviamente, a menos que provem o contrário, objecto permanente de enxovalho público.

Durante anos toda a esquerda radical, antes e depois do nascimento do BE, se indignou face à inacção da justiça perante a malversação da coisa pública, a corrupção dos políticos e os roubos e fraudes dos detentores do poder económico.

Mas isso foi antes do BE ter entrevisto a miragem de se tornar um partido da área do poder. Agora é a justiça, que alegadamente persegue os políticos opressores indesejáveis, déspotas e gestores da exploração dos trabalhadores, que está na mira do BE. O Bloco de Esquerda não está satisfeito com os comunicados produzidos pela Procuradoria-Geral da República e quer levar o assunto à Assembleia da República. Luís Fazenda afirmou que Souto Moura "deve mais explicações ao país" sobre a razão que explica a permanência de cartas anónimas irrelevantes no processo da Casa Pia. "Após as notícias vindas a público, esperava-se uma declaração clarificadora e não foi isso que aconteceu", resumiu o deputado.
De acordo com Luís Fazenda, a situação é "grave" e "tem que haver algum grau de responsabilização na estrutura da Procuradoria". O Bloco de Esquerda critica o facto de "sem qualquer finalidade visível ou utilidade para o processo, diferentes personalidades são salpicadas de lama". Por isso mesmo acrescenta que é "na Assembleia da República que este debate vai ocorrer".

Portanto, na sua actual metamorfose, o BE recusa liminarmente qualquer lama lançada sobre os políticos (entenda-se, os políticos amigos que o BE julga que o vão levar ao colo até ao ambicionado poder). Enquanto a justiça não perseguiu os poderosos, o BE repreendeu-a por não ser capaz de pôr a grilheta no pé aos políticos obviamente culpados. Quando a justiça começou a agir e se prefigurou o risco da grilheta no tornozelo de políticos, o BE tornou-se tão descrente da justiça, como anteriormente o era dos políticos. Se críticas faz, são críticas à justiça: “entendemos que há gente de mais a comentar, juízes a comentarem decisões de outros juízes” discreteava Louçã, quando há meses era questionado sobre os “erros de Ferro Rodrigues na gestão deste processo da Casa Pia”, adiantando que compreendia bem a “emotividade” do Ferro amigo, face à prisão e ao regresso de Paulo Pedroso à AR…

Uma das críticas da Esquerda Radical ao marxismo é a de que as lutas sociais já não estão dominadas pela luta entre o proletariado e o capitalismo. Há uma série de novos espaços de dominação e novas áreas de antagonismo - racismo, discriminação sexual, minorias étnicas e sexuais, etc. - que não cabem na categoria marxista de luta de classes e que geram novos movimentos sociais e identidades. Isto é, as classes em luta já não são caracterizadas pela posição que ocupam face aos meios de produção e pelas relações de produção daí decorrentes.

Todavia, o que é curioso neste processo de aproximação do BE ao “poder” é que ele está a decorrer em simultaneidade com a mudança de discurso. Ou seja, a transfiguração do BE comprova a tese marxista que é o ser social que determina a consciência social (tese da qual deriva toda a teoria da luta de classes entre proletariado e burguesia no capitalismo). Logo, o BE está a agir, “determinado” pela concepção marxista do devir histórico, cuja validade contesta. O BE mudou o discurso porque entreviu a possibilidade de ser um partido da área do poder, em vez de ser, como até há pouco tempo, um partido anti-poder.

Recordo, para terminar, uma das mais belas frases de Marx (e/ou Engels) do Manifesto, quando se referia à desregulamentação de todo o edifício feudal durante a génese do capitalismo: “Tudo o que é sólido se dissolve no ar”. O que hoje parece “sólido” – o PS estar politicamente refém do BE – dissolver-se-á no ar quando o PS sair desta crise de identidade em que se debate, agravada pelas posições insensatas do seu actual líder e as tontices da Ana Gomes, e a inexorável lógica de poder, de um partido da área do governo, vier ao de cima e se impuser entre as suas chefias.

Publicado por Joana às 07:06 PM | Comentários (30) | TrackBack