janeiro 26, 2006

A Desfeita do Palestinianos

Francamente … há coisas que não se deviam fazer e só causam empecilhos. Uma eleição que era uma festa, a decorrer dentro da legalidade, apenas com infracções menores, e os palestinianos fazem tamanha desfeita à comunidade internacional! Em 132 deputados, elegem 76 (58%) deputados do Hamas contra 43 (33%) da Fatah, tornando o Hamas uma força maioritária no parlamento palestino. Ora o Hamas foi, há mais de 10 anos, declarado uma organização terrorista pelos EUA e posteriormente pela Austrália, Canadá e, após madura e prolongada reflexão, pela própria União Europeia. Isto não se faz à UE … vejam só a incalculável quantidade de indecisões que ela vai ter que tomar nos próximos tempos em virtude destes resultados!

Mais que apoiar o terrorismo, os palestinianos votaram, fundamentalmente contra a corrupção endémica que corroía a Fatah. Quando deixou de ser politicamente incorrecto falar no assunto, soube-se da corrupção maciça que o regime de Arafat instalara na OLP e depois na Autoridade Palestiniana. Corrupção alimentada com os subsídios da União Europeia e dos contribuintes europeus.

Mas também votaram por quem lhes prometia uma sociedade mais justa, votaram de acordo com o código de violência cujo ensino lhes tem sido ministrado desde as primeiras letras e lhes promete a vingança contra as humilhações de que têm sido objecto. Surpresa? Obviamente que não. Os alemães não seriam certamente menos cultos e civilizados, e os nazis ganharam as eleições de Julho de 1932 e de Março de 1933 justamente porque lutavam contra a humilhação imposta à Alemanha pelo tratado de Versalhes e pela ocupação militar para garantir as reparações e porque personificavam, aos olhos das massas alemãs de então, uma sociedade mais sã, mais justa e mais redistributiva.

E agora? A Palestina não tem o poderio económico da Alemanha nazi e é um território que vive de subsídios do exterior. Terá certamente menos autonomia que a Alemanha para conduzir uma política agressiva; A Europa … bem, a Europa capitulou perante os nazis, e continuou a manter aquele seu jeito de capitular perante as organizações violentas, mesmo aquelas que visam, a longo prazo a sua destruição directa. Schüssel, presidente em exercício da UE, foi cauteloso. Outros líderes europeus foram também cautelosos. Ou seja … não disseram nada de concreto. Porventura o mais incisivo foi Blair, que declarou que: «É importante que o Hamas compreenda que tem que decidir entre a via da democracia e a via da violência». Mas a Grã-Bretanha foi o único país europeu que não capitulou perante o Eixo (nem fez pactos de não-agressão, como a URSS).

Bush, embora reconhecendo a legalidade das eleições, foi claro ao afirmar que a sua Administração não está disposta a negociar com o movimento radical palestiniano, que continua a ser classificado pelos EUA como uma organização terrorista.

É evidente que as eleições foram limpas e o Hamas resultou de uma escolha livre dos palestinianos. Mas Hitler também. Portanto, se se deve respeitar a vontade do povo da Palestina, deve igualmente tratar-se as novas autoridades de acordo com a ideologia que preconizam. Os palestinianos optaram pelo que julgaram melhor, de acordo com a mundividência em que foram criados e educados. Devem estar conscientes das consequências dessa decisão, e a comunidade internacional deve assumir as consequências de ter definido o Hamas como uma organização terrorista e dele vir a constituir a autoridade de um território envolvido até agora num complicado processo de paz, com o apoio da comunidade internacional.

E Israel? Bem, Israel acaba de anunciar que não negociará com uma administração palestiniana em que uma parte é constituída por uma organização terrorista armada que apela para a destruição de Israel, adiantando que «O Hamas é considerado pela maior parte da comunidade internacional como uma organização terrorista. Esta comunidade não pode admitir uma situação em que uma organização terrorista faça parte de um poder que pretende beneficiar de uma legitimidade internacional … Israel exigirá da comunidade internacional que force a Autoridade Palestiniana e o seu chefe (Mahmud Abbas, actual presidente, homem da Fatah, com quem o Hamas terá que negociar a constituição do futuro governo) a respeitar os compromissos de eliminar o Hamas enquanto organização terrorista que reclama a destruição de Israel»

É claro que esta posição Israel terá um apoio parcial dos países anglo-saxónicos, e uma posição ambígua da União Europeia. Mas o facto porventura mais relevante na política israelita será a subida da direita. Sharon tinha saído do Likud e formado um novo partido que estava bem à frente das sondagens. O fim de Sharon como factor político e a vitória do Hamas fortalecerá a posição de Benjamin Netanyahu e do Likud. Hoje, todos os líderes israelitas se afadigam a mostrar, cada um, que é mais falcão que o outro. Mas o triunfo do Hamas e o fim da liderança forte de Sharon vai fazer pender a balança para a direita, para os que são realmente falcões. O triunfo do Hamas vai ser usado para mostrar ao eleitorado israelita que os palestinianos não estão interessados na paz e que o seu objectivo é destruir o Estado de Israel e lançar o seu povo ao mar. Perante isto, os israelitas tenderão a escolher um governo que lhes garanta uma solução forte e intransigente.

Não é possível estabelecer-se um processo de paz com uma autoridade que não reconhece o direito à existência dos outros e que visa a sua destruição. Não é possível negociar com uma organização terrorista.

É evidente que podem surgir mudanças. Arafat era um terrorista e, após um percurso de vários anos conseguiu criar a imagem de pacifista, assinar os acordos de Oslo e receber um Prémio Nobel da Paz. Quem sabe se o Hamas poderá encetar semelhante percurso? Quantos anos demorará esse percurso? Quanto sofrimento sobrará para os palestinianos? Quantas mortes inocentes ocorrerão entretanto? Todavia o Hamas não terá a mesma benevolência que Arafat. Antes do 11 de Setembro muitos defendiam a existência de um terrorismo bom e de um terrorismo mau. Depois disso ninguém se atreve a defender em público (embora muitos o continuem a pensar em privado) que há um terrorismo bom e um terrorismo mau.

Dizia-se que “uma vez nazi, sempre nazi”. Quando Arafat, a seguir a um ataque suicida, tinha um discurso em inglês, de repúdio veemente, para as cadeias ocidentais, e outro, algo diferente, em árabe, para as massas palestinianas, poderia concluir-se que, “uma vez terrorista, sempre terrorista”.

Publicado por Joana às 11:27 PM | Comentários (33) | TrackBack

setembro 12, 2005

Um Prego no Caixão

Palestinianos e a jornalista de causas (e avessa a factos que contrariem as causas) Alexandra Coelho carpiram abundantemente pelo facto dos israelitas terem deixado as sinagogas em pé, quando abandonaram Gaza. A alegoria do Um prego no caixão foi repetida até à exaustão pelos palestinianos e pelos jornalistas da sua causa. A carpideira Alexandra excedeu-se até à rouquidão, derramando uma grosa de pregos, enferrujados pela salinidade das lágrimas, ao longo de uma página inteira do Público. Os palestinianos estavam inconsoláveis: Isto não se faz! Então nós, que queremos passar por civilizados e tolerantes, ficarmos na contingência de termos que destruir as sinagogas, pois a nossa intolerância e hábitos medievais não permitem que as deixemos de pé!

É excessivo dizer que Sharon foi hábil em ter deixado as sinagogas de pé. Nenhum crente de qualquer religião destrói os locais de culto. É pacífico que os locais de culto não se destroem. É de mau gosto e uma prova de intolerância, os outros fazerem-no. Encerram-se, entaipam-se, mas demoli-los é um atentado contra a tolerância e o respeito pelas religiões alheias. Portanto, Sharon pode alegar que teve a atitude normal numa sociedade civilizada e tolerante.

Quem foi extremamente inábil foi a autoridade palestiniana. Ao permitir que jovens incendiassem as sinagogas e ao começar a demoli-las com bulldozeres logo no dia seguinte à retirada dos israelitas, a AP dá uma imagem péssima do que é, do que pretende e do que se pode esperar dela.

Assim sendo, a atitude de Sharon tornou-se numa armadilha para a AP porque esta, impulsionada pelos seus instintos naturais tornou aquela decisão de Sharon numa armadilha para si própria e precipitou-se nela derramando, em simultâneo, lágrimas de crocodilo sobre o determinismo dessa sua vertigem pelo abismo e pela intolerância e sectarismo. A AP é inimputável. Se faz desmandos, a culpa é sempre dos outros, conforme sentencia ela e os jornalistas de causas que arregimenta.

Essa imagem irá influenciar principalmente os Estados Unidos. As lembranças de Hitler, da Kristalnacht e do holocausto ficarão associadas a este comportamento inábil e intolerante da AP. Quando se falar da AP, haverá imediatamente quem a associe ao nazismo e à destruição das sinagogas.

Terá menos efeito na Europa continental. A Europa continental enveredou, desde o fim da 1ª Guerra Mundial pelo capitulacionismo perante os regimes totalitários. E quando a Alemanha derrotada abraçou a democracia, também abraçou esse estado de espírito. A Europa rege-se pelo politicamente correcto: Quando alguém do 1º Mundo incendeia um local de culto diverso do nosso é xenofobia, racismo e exige-se uma punição exemplar; quando alguém do 3º Mundo destrói um local de culto diferente do dele, assobia-se para o lado e aparecem logo jornalistas de causas (mas não de factos) a declamarem alegorias sobre um prego no caixão e a criticarem os crentes, cujos locais de culto foram demolidos, por os terem deixado à mão de semear dos instintos naturais e compreensíveis (quando não louváveis) dos fanáticos intolerantes e medievais.

Publicado por Joana às 07:53 PM | Comentários (145) | TrackBack

março 20, 2005

Os Bonzos do “Bem”

Ou a Audiência Portuguesa do Tribunal sobre o Iraque

O aspecto mais caricato do folclore pseudo-cívico e pseudo-participativo é o de desenvolver-se segundo uma liturgia pré-determinada, sempre igual, imolando aos mesmos ídolos, socorrendo-se da mesma fé messiânica, indiferente a factos ou a raciocínios. Como toda a religião revelada, é maniqueísta: Os bons são sempre bons, independentemente do “bem” ser representado por ditaduras sanguinárias, por assassinos terroristas ou por aqueles que subalternizam e escravizam as mulheres, desde que se invoquem do anti-capitalismo ou do anti-americanismo. Os maus são, em qualquer circunstância, os defensores da democracia e do mercado livre.

Independentemente das razões invocadas, e eu já aqui debati a questão diversas vezes, a intervenção no Iraque saldou-se pelo fim da ditadura sanguinária de Saddam, pela possibilidade dos iraquianos exercerem o direito de voto, e pelas mudanças positivas que começaram a ocorrer na região – o abandono pela Líbia do seu programa de ADM e abertura das suas fronteiras às inspecções, avanços da democracia na Palestina, Líbano e noutros países da área, o início da retirada síria do Líbano, etc.. Estas mudanças favoráveis têm uma particularidade: terem ocorrido, desde o início da intervenção, contra as previsões dos sacerdotes dos “bons”, e, na maioria dos casos, por pressão das massas árabes.

Em 22-01-04 Rosas postulava no Público que «as forças ocupantes anglo-americanas já não podem sair do Iraque como quereriam. Ou o abandonam expeditamente e a curto prazo, não garantindo o controlo político, militar e das matérias-primas da região, .... Ou prolongam e intensificam a sua presença militar para ver se agarram alguma coisa, e arriscam-se a sair de Bagdad como um dia saíram dos terraços da embaixada de Saigão: pendurados nos helicópteros». E não era a opinião apenas do bonzo Rosas, mas a opinião generalizada de todos os politicamente correctos, de todos os prosélitos do “bem”. Hoje a esquerda americana interroga-se angustiada sobre se afinal não seria Bush que teria razão.

As eleições realizaram-se após uma campanha de descrédito promovida pelos apóstolos do “bem” que controlam a comunicação social, o que é aliás uma consequência necessária da sua missão evangelizadora – só o “bem” deve ser servido às mentalidades frágeis dos gentios. Durante semanas foram transmitidas imagens dramáticas sobre o desastre que se perspectivava nas eleições iraquianas e da certeza do seu previsível fiasco. As opiniões reportadas pelos apóstolos do “bem” eram irrefutáveis. Infelizmente para o “bem” os factos contrariaram mais uma vez as suas ladainhas apostólicas. Os iraquianos, com enorme coragem, afluíram maciçamente às urnas, excepto nas zonas sunitas, onde se concentram os apoiantes do antigo ditador. Mas mesmo entre os sunitas surgem tentativas para que a sua participação futura na democracia iraquiana, não seja menorizada pelo seu boicote eleitoral.

Mas para os bonzos do “bem” os factos são apenas incidentes irrelevantes que não deixam rasto. E assim promoveram a realização este fim de semana (de 18 a 20 de Março) a “Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque” (AP-TMI). A Assembleia Nacional Iraquiana iniciou os trabalhos a 16 de Março – isso é irrelevante para os bonzos do “bem”, a quem a democracia apenas interessa porque lhes permite atacarem os governos democráticos. Os iraquianos discutem em liberdade o futuro do país e as estratégias das diversas forças políticas – os bonzos em êxtase anti-imperialista apenas se interessam na condenação do imperialismo por “ocupar o Iraque e se apropriar ilicitamente dos recursos naturais e dos fundos financeiros iraquianos, em seu benefício, e de subverterem as bases da estrutura produtiva do país” e na execução da sentença, cominada a priori, “da retirada das forças ocupantes e a devolução integral da soberania ao povo iraquiano, condição indispensável da pacificação e democratização do país”. As eleições permitiram a eleição de 86 mulheres entre os 275 deputados, que estão decididas a lutarem pela melhoria da sua condição, mas os bonzos passam displicentemente ao lado de factos irrelevantes para as suas crenças e pretendem com esta “Audiência” mobilizar todos os bonzos para “abreviar o sofrimento do povo iraquiano”.

Quando se “julga” o “mal”, não há lugar para o contraditório. O “mal” é para ser exorcizado, não para ser confrontado. Além do que, como os bonzos afirmaram, seria duvidoso que os “visados reconhecessem os benefícios cívicos deste tribunal". Estes rituais apenas são “julgamentos” pelo rótulo que os próprios bonzos lhes atribuíram. Não são mais que autos de exorcismo do “capitalismo e do imperialismo”.

A “Audiência Portuguesa do Tribunal Mundial sobre o Iraque” não tem rigorosamente nada a ver com o povo iraquiano. Ignora olimpicamente o que lá se passa. Provavelmente até gostaria que os terroristas, a quem chama, delicadamente, militantes da resistência, causassem ainda mais sofrimento ao povo iraquiano. A AP-TMI tem apenas a ver com as crenças messiânicas dos bonzos que a integram. É um ritual litúrgico. É uma praxe catártica para drenar periodicamente os humores segregados pelos traumas da orfandade de Lenine e dos amanhãs que cantam.

É a expiação rancorosa em lausperene.

Publicado por Joana às 06:34 PM | Comentários (64) | TrackBack

fevereiro 01, 2005

Iraque Virtual

Durante as últimas semanas os nossos jornalistas transmitiram-nos imagens dramáticas sobre o desastre que se perspectivava nas eleições iraquianas. As assembleias eleitorais pareciam bunkers cuja localização, segundo os jornalistas, quase ninguém conhecia. Falava-se em centenas de atentados programados para esse dia fatídico. Era óbvio e seguro que, nesse dia, os iraquianos iriam permanecer em casa, refugiados no recôndito mais sombrio do lar, trementes de pavor, até que o sol voltasse a refulgir no dia seguinte.

Eleições realizadas sob a ameaça de actos terroristas, em assembleias de votos impenetráveis, de localização desconhecida, com uma população sublevada contra o invasor que organizara o acto eleitoral, eram ingredientes mais que suficientes para que só alguns masoquistas e traidores à pátria fossem votar. Este era o quadro que os nossos enviados nos apresentavam sobre o Iraque. Os factos apresentados pelos nossos repórteres eram irrefutáveis.

Domingo, à medida que se conheciam os resultados da afluência às urnas, a estupefacção, e a irritação, dos nossos jornalistas não cessava de aumentar. Como era possível os iraquianos terem-lhes feito tamanha desfeita? Então os iraquianos não haviam tido a delicadeza e a curiosidade de verem as reportagens que eles com tanto rigor e afã faziam diariamente? Então os iraquianos não estavam informados que as assembleias eleitorais eram impenetráveis, eriçadas de blocos de betão e vigiadas pelo ocupante? Então os iraquianos não sabiam que a localização das assembleias eleitorais era desconhecida? Então os iraquianos não sabiam que o herói da resistência ao opressor, al-Zarqawi, lhes havia ordenado que permanecessem em casa?

Tamanha indelicadeza e desrespeito pelos factos relatados pelos nossos repórteres é detestável. Será que os Iraquianos não perceberam que os nossos repórteres reportam as suas opiniões no desejo seguro que elas se tornem factos? Porque foi que os iraquianos falsificaram os factos de forma a que não coincidissem com as opiniões rigorosas dos nossos repórteres?

Tamanha falta de deontologia profissional dos reportados merece ser investigada e denunciada. Não pode ficar impune. Fere profundamente a objectividade e a liberdade de imprensa, os reportados falsificarem os factos para eles não coincidirem com a realidade das opiniões dos jornalistas.

O primeiro passo no sentido de adequar os factos às opiniões já foi dado. Daniel Oliveira demonstrou que o censo populacional iraquiano estava errado. O censo de 2001, que contabilizava 23,4 milhões de iraquianos não passa de um facto. A opinião rigorosa indica 27 milhões. O mesmo censo contabilizava 13,6 milhões como tendo 15 anos e mais. Não passa de um facto. A opinião rigorosa indica 20 milhões de adultos. Portanto os 14,2 milhões de eleitores inscritos não passava de um facto, e como tal irrelevante, pois Daniel Oliveira decretou que a pirâmide etária dos Iraquianos era igual à da Europa Ocidental. E contra opiniões rigorosas não há factos.

Portanto a percentagem de afluência superior a 60% (semelhante à portuguesa, onde só há terrorismo verbal e as assembleias eleitorais têm as portas abertas e são de localização conhecida) é apenas um facto. Daniel já provou que 8 milhões são apenas 40% da dimensão do eleitorado definida por opinião rigorosa, sem o empecilho imperialista dos factos. O próximo passo será provar que aqueles 8 milhões não existiram. Não passam de efeitos especiais criados pelos computadores do exército invasor.

Aqueles 8 milhões não passam de uma apresentação em Power Point.


Nota: Não faço previsões sobre os resultados que irão emergir destas eleições. Tudo indica que houve uma menor afluência no “triângulo” sunita e afluência maciça no resto do país. Existe portanto o espectro de um triunfo esmagador dos partidos xiitas e de uma marginalização política dos sunitas, que já de si constituem uma minoria, o que poderá traduzir-se num foco de grande conflitualidade. Terá que haver muita sensatez da parte dos diversos protagonistas da cena política iraquiana.

Uma coisa é quase segura: a enorme afluência às urnas vai fortalecer as forças que pretendem uma solução democrática e isolar aqueles que pretendem a violência e o caos, para dominarem as populações por essa via.

Publicado por Joana às 12:01 AM | Comentários (44) | TrackBack

novembro 11, 2004

A Morte de Arafat

O Fim de uma Época?

Arafat foi uma das vítimas mais notórias do 11 de Setembro de 2001. Até essa data o terrorismo poderia ser assimilado a uma forma alternativa de resistência contra a ocupação israelita, e muitos o entenderam como tal. Depois desse atentado tudo mudou. O mundo apercebeu-se que o terrorismo tinha ganho uma autonomia própria e monstruosa, e que já não era possível desculpá-lo, entendendo-o como uma forma de luta de resistência nacional.

A primeira Intifada havia sido um êxito. O mundo comoveu-se com os adolescentes palestinianos a enfrentarem com pedras os blindados israelitas. A luta determinada entre miúdos armados apenas de pedras e um exército pesadamente armado foi igualmente um factor de desmoralização para esse exército – um exército não foi mentalizado para enfrentar miúdos. Mesmo o apoio de Arafat ao Iraque aquando da invasão do Kuwait não impediu que o espírito da paz fizesse progressos e se assinassem os acordos de Oslo em 1993, que Arafat se instalasse na Palestina, no ano seguinte, e constituísse a Autoridade Palestiniana.

Essa evolução levou a que Arafat recebesse o Nobel da Paz. Diversas vezes os Prémios Nobel da Paz foram atribuídos a indivíduos que haviam estado envolvidos em acções violentas e em matanças, directa ou indirectamente. Mas prevaleceu sempre a tese do filho pródigo que regressa ao lar. Todavia a parábola do filho pródigo pressupõe que este deixe de ser pródigo, depois de acabado o conto. Está implícito na parábola. Infelizmente para Arafat, para os palestinianos e para as milhares de vítimas que se seguiram, tal não aconteceu.

O assassinato de Rabin provocou a paralisação no processo de concessão progressiva de autonomia à AP. A vitória de Ehud Barak relançou esse processo, mas Arafat não compreendeu as relações de força dentro da sociedade israelita e fez falhar a cimeira com Clinton e Barak pensando que este cederia com uma segunda Intifada.

É certo que esses acordos congelariam a ocupação de 5% da Cisjordânia por Israel e impediriam o regresso dos refugiados. Mas Israel nunca aceitará, sem ser pela força das armas, a entrada no seu território (que, descontando o deserto do Neguev, tem uma densidade demográfica de mais de 700 hab/km2) de uma população de vários milhões de pessoas que, na sua quase totalidade, já nasceu na diáspora. É óbvio que aqueles acordos seriam difíceis de justificar perante uma população embalada pelo radicalismo político. Mas seriam tanto para Arafat como para Barak junto de cada um dos seus povos. Os acordos de paz exigem cedências mútuas, a menos que uma das partes tenha sido liquidada militarmente pela outra.

Ora a segunda intifada, desencadeada semanas depois, a pretexto da visita de Sharon à esplanada das Mesquitas, falhou completamente os objectivos. Em primeiro lugar, Arafat apostou nas armas e no terror, em vez das pedras dos adolescentes. O terror liquidou de facto Ehud Barak, mas para levar ao poder Ariel Sharon. Portanto a primeira consequência da estratégia de Arafat foi a eleição de Ariel Sharon e o progressivo declínio da esquerda israelita.

A segunda consequência decorreu do 11 de Setembro, ocorrido um ano após o início da segunda Intifada. A partir do 11 de Setembro, a opinião pública mundial prevalecente foi a de que não havia terroristas bons, nem terroristas maus. Eram todos abomináveis. Adicionalmente a visão dos palestinianos a festejarem o derrube das torres gémeas caiu certamente muito mal entre os americanos, e não só. A partir do 11 de Setembro Arafat passou a ser, para os americanos, apenas um terrorista, e a própria União Europeia teve que aceitar as teses americanas. Diversas organizações palestinianas foram declaradas terroristas e deixaram de receber subsídios da UE. O terrorismo de Arafat passou a ser contraproducente.

Para salvar as aparências, Arafat apostou numa postura hipócrita: Falando para os meios de comunicação ocidentais condenava, em inglês, o terrorismo. Mas em árabe fazia discursos populistas inflamados que, objectivamente, incentivavam a população palestiniana para acções terroristas. Só após muitas insistências e um ultimato da administração Bush, Arafat se decidiu a fazer, em árabe, uma declaração pública de condenação do terrorismo.

Uma outra consequência foi que as autoridades europeias, em face dos escândalos de corrupção de Arafat e da AP, que entretanto começaram a ser divulgados publicamente, se viram forçadas a abandonar a sua atitude de hipocrisia sobre factos que certamente conheciam, mas que fingiam ignorar. Arafat foi compelido a aceitar, para voltar a receber os subsídios, uma comissão de inquérito sobre a origem da sua fortuna pessoal e sobre a corrupção na AP e a nomear Salaam Fayad para ministro das finanças. A 2ª intifada havia arruinado completamente a economia palestina e a AP precisa desesperadamente de auxílio internacional.

Uma outra imposição internacional foi a criação da figura de 1º Ministro, com o objectivo ilusório de neutralizar Arafat. Arafat viu-se constrangido a indigitar Abu Mazen, em Março de 2003, para ocupar o cargo. Mas Arafat deu com uma mão e tirou com a outra. Tirou o tapete debaixo dos pés de Abu Mazen e levou este a demitir-se 6 meses depois. A demissão de Abu Mazen veio sedimentar a ideia que, com Arafat, não haveria possibilidade de avançar no processo de paz.

Resta saber o que vai acontecer agora. Os líderes mundiais multiplicam-se em declarações hipócritas, elogiando as qualidades de Arafat e dizendo que agora podem estar criadas as condições para uma paz. Então, se a morte de Arafat pode criar condições para a paz, que qualidades o Nobel da Paz Arafat tinha que impediam essa paz?

As primeiras decisões são salomónicas: o radical Faruk Kaddumi, contrário aos acordos de Oslo e que quer lançar os israelitas ao mar, tornou-se o chefe da Fatah, permanecendo em Tunes. O pragmático Abu Mazen passou a chefiar a OLP e Ahmad Qorei mantém-se 1º-ministro.

Resta saber se Abu Mazen e Ahmad Qorei conseguem controlar o Hamas, a Jihad Islâmica e as Brigadas dos Mártires de Al Aqsa. Se o conseguirem colocarão Ariel Sharon numa situação em que este terá dificuldade em colocar obstáculos ao processo de paz. A direita israelita é sustentada eleitoralmente pelo terrorismo dos radicais palestinianos. Se o terrorismo acabar, as forças da sociedade israelitas mais favoráveis a cedências e ao apaziguamento emergirão e poderá haver uma oportunidade para a paz. Todavia dificilmente os palestinianos alcançarão mais do que o que esteve quase acordado em Camp David.

A táctica dos falcões israelitas poderá ser a de ir colocando alguns paus na engrenagem do processo, de forma a que os radicais palestinianos sejam tentados a retomar os actos terroristas, criando o cenário de que os novos dirigentes da AP são incapazes de governar o país e controlar o terrorismo. Mas não é fácil implementá-la. A morte de Arafat suscitou uma esperança generalizada de que haveria agora condições para a paz. O governo israelita está obrigado, por esse clima, a mostrar abertura perante o processo de paz, senão diminuirá a sua credibilidade externa e interna, podendo as próximas eleições fazer com que “as pombas” substituam os “falcões”.

A bola está do lado da AP. Se ela manobrar com habilidade pode colocar o governo israelita na contingência de fazer algumas cedências e aceitar a instauração de um Estado palestiniano com fronteiras viáveis. Se não conseguir controlar os grupos radicais as suas possibilidades de êxito serão nulas, com a agravante que terá menos capacidade que Arafat em manter a unidade palestiniana. Se a AP falhar poderemos ver o caos instalar-se em Gaza e na Cisjordânia, o que não interessa a ninguém, nem mesmo aos israelitas.

A minha opinião sobre Arafat foi mudando ao longo dos anos. Apoiei a 1ª Intifada, e até à instalação da AP considerei Arafat um homem corajoso, empenhado na paz, que havia abandonado a fase do terrorismo. Fiquei chocada com o assassinato de Rabin e detestei a política israelita do “Bibi”até à ascensão de Barak. Fiquei todavia muito decepcionada com a rejeição por Arafat da “paz dos bravos”, dos acordos de Camp David. Na altura, apenas considerei que havia sido um erro político. Depois, com o encadeamento dos factos posteriores e o começo da 2ª Intifada, apercebi-me que essa rejeição fazia parte de uma manobra política para vergar os israelitas através do terrorismo. Manobra política completamente estúpida, como se viu, e que levou Arafat e os palestinianos à situação actual. O 11 de Setembro foi outro elemento catalizador da minha rejeição da política de Arafat. O terrorismo é o mal absoluto e é um crime (ou um suicídio) pactuar com ele. Antes tal não seria claro, mas depois daquele dia passou a ser.

Publicado por Joana às 11:35 PM | Comentários (42) | TrackBack

novembro 10, 2004

Atrasado para o Funeral

Já está tudo organizado. As exéquias realizam-se no Cairo, na próxima 6ª-feira, e no sábado será enterrado em Ramallah, no seu QG de Muqata. Diversos estadistas, políticos e outras personalidades do mundo inteiro já estão convidados para aqueles dois eventos que serão retransmitidos por todo o planeta.

Percebe-se, em tudo isto, uma sólida capacidade de decisão e organização. A escolha dos locais, os convites, os lugares e a sua distribuição, sempre delicada para não ferir susceptibilidades, a parte logística, os abastecimentos, as flores, as instalações sonoras, a sequência dos cânticos, a colocação das câmaras, etc., etc..

Apenas falta uma minudência. É pequena, está mirrada, está silenciosa e está imóvel, mas deveria ser o protagonista principal daqueles eventos – Falta o cadáver de Arafat!

Mas Arafat, que sempre foi um obstinado, para o bem e para o mal, recusa-se sistematicamente a morrer. Há uma semana estava em coma; no dia seguinte foi dado em estado de morte cerebral; anteontem afirmava-se que tinha apenas algumas horas de vida. Os organizadores dos eventos roem as unhas nervosos ... toca o telefone ... acorrem pressurosos – o gajo já ... ? – pergunta-se com angústia, e a resposta é um abanar desolado da cabeça: nada ... isto está a ficar feio ... ainda temos que devolver os bilhetes ...

A mulher de Arafat, Suha, acusou anteontem a direcção palestiniana de querer "enterrar vivo" o seu marido. Julgo que Suha não está a compreender a gravidade da situação. As mulheres têm frequentemente destes desvarios: não terem a racionalidade adequada à grandeza dos acontecimentos. Vivo ou morto (de preferência morto, como diriam aqueles cartazes no Far-West), Arafat terá que comparecer, 6ª feira ao seu próprio funeral. Todos o exigem, está tudo marcado e seria de uma enorme deselegância para com todos os convidados, se Arafat não comparecesse.

A Autoridade Palestiniana assumiu compromissos e terá que os cumprir. Suha terá que se conformar. Sexta-feira, vivo ou morto, Arafat estará no Cairo como prometido.

Publicado por Joana às 11:10 PM | Comentários (25) | TrackBack

maio 03, 2004

A Vertigem da Guerra

Chegam-nos imagens de torturas físicas e morais perpetradas pelas forças da coligação no Iraque.

Escrevi em 07-Abril-2003, em Retóricas que « se a coligação, depois de ter vencido a guerra, não souber vencer a paz, é bem provável que comecem a aparecer focos de rebelião que possam dar origem a uma guerra de guerrilhas». Ora a coligação estava preparada politica e militarmente para vencer a guerra porém, o que se tem passado depois da queda do regime de Saddam, mostrou que não estava preparada para vencer a paz.

Em primeiro lugar não é possível encerrar um país num dia e recomeçá-lo no dia seguinte com nova gerência e novo pessoal. Havia uma administração pública, uma polícia e um exército que estavam dominados pelo partido Baas. Mas, num regime totalitário, o ser-se um aderente do partido do poder é, na maioria dos casos, apenas uma necessidade de sobrevivência profissional ou mesmo física, não é um vínculo ideológico profundo. Foi assim com os regimes fascistas, foi (e é) assim, em escala muito maior, com os regimes comunistas.

Ora a desbaasificação foi um erro. O Iraque ficou, de um dia para o outro, sem exército, sem polícia, sem a maior parte da administração pública. As forças da coligação não podiam suprir essas carências. Eram diminutas, eram estrangeiras e não estavam preparadas para exercerem o poder civil.

O vazio do poder institucional foi preenchido pelo poder das ruas e pelo poder do clero mais militante. Quando há um vazio do poder, este é tendencialmente tomado pelos grupos sociais com mais protagonismo, normalmente os grupos mais radicais. Sempre foi assim. E assim foi acontecendo, pouco a pouco, no Iraque.

Há tentativas recentes de inverter esta situação. Todavia já se perdeu muito tempo e já se deixou a situação degradar-se demasiado.

Em segundo lugar as forças militares teriam que estar altamente disciplinadas para enfrentar eventuais acções de resistência. Numa guerra não convencional, a “outra parte”, a resistência, não segue as mesmas regras por diversas razões: não é um exército profissional e combate com os meios de que dispõem. A própria exiguidade dos meios leva-a a não respeitar, ou a não achar respeitáveis, as normas de conduta militar.

As forças da coligação deveriam ter uma disciplina rigorosa para não caírem na tentação de aplicar a lei de talião. Faz parte da lógica deste tipo de situações, surgirem entre as forças militares, elementos que cometem excessos pela vingança de terem visto morrerem camaradas seus em circunstâncias que reputam de contrárias à ética militar, ou por escape em face do estado de tensão criado neles pelas acções dos grupos armados, ou apenas pela perversão do poder militar.

Isto é sabido e acontece sempre, a menos que uma disciplina rigorosa se mantenha nas fileiras. Tradicionalmente, actos desses, quando sucediam, eram abafados pelas hierarquias militares e políticas. Todavia vivemos, actualmente, num mundo cada vez mais mediático e numa sociedade aberta, onde seria pouco provável abafar semelhantes actos. E o que estas fotografias mostram é que a coligação também não estava preparada, militarmente, para fazer face a este tipo de guerra.

Já escrevi aqui, por diversas vezes, que uma democracia não se instala na ponta das baionetas. Também não se detêm acções de resistência com actos torcionários sobre prisioneiros. Apenas fazem aumentar a sua base social de apoio.

Mesmo apenas pontuais, a acreditar nas afirmações do comando da coligação, estes actos são muito negativos para quem quer conquistar a opinião pública iraquiana e mundial. O comando da coligação tem que ter mão firme na disciplina das suas fileiras e uma justiça firme e rápida para julgar e punir estes actos.

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abril 20, 2004

Um Pacifista Incómodo

Abu Mazen, ex-primeiro ministro da AP

Dirigente pragmático e pouco propenso aos excessos retóricos e belicistas caros à liderança palestiniana, Abu Mazen foi um dos pioneiros no estabelecimento de pontes de diálogo com Israel em meados da década de setenta, quando a OLP começou a perceber que a existência de um Estado próprio na Palestina só seria possível aceitando a convivência com Israel.

Abu Mazen coordenou nos bastidores todo o trabalho diplomático que levou à Conferência de Madrid de 30-10-1991 e que esteve na base dos acordos de Oslo, dos quais Abu Mazen é justamente considerado o verdadeiro arquitecto pelo lado palestiniano.

Quando, na sequência do 11 de Setembro e da luta anti-terrorista, os Estados Unidos começaram a apoiar os argumentos de Ariel Sharon de que a AP era responsável pelo terrorismo contra Israel, e a UE, embora condenando o belicismo de Sharon, concordou que sem profundas transformações na cúpula do poder palestiniano não poderia ser reatado o diálogo político e o processo de paz, o futuro de Arafat como chefe todo poderoso da AP tornou-se incerto.

Em 24-6-2002, George W. Bush condicionava o futuro Estado palestiniano ao afastamento de Arafat das estruturas de comando militar e político palestinianos. A UE, que não tem força para dizer que sim, nem o contrário ... embora afirmando que Arafat era um interlocutor imprescindível, foi receptiva à ideia de relegá-lo para uma presidência simbólica da AP e de concentrar o poder executivo real num primeiro ministro. Essa ideia foi também partilhada pelos países árabes moderados.

O Road Map, que entretanto foi apresentado, obrigava à criação de uma organização na Palestina que fosse um embrião de um Estado constitucional e democrático, separando as organizações políticas e as instituições autonómicas provisórias, criando um governo mais eficiente através da desconcentração e do equilíbrio de poderes.

A primeira fase do plano, elaborado e divulgado em 17-9-2002, incidia na superação da violência e na reestruturação das instituições da AP, baseadas num estado de direito e num sistema de democracia parlamentar, com a realização de eleições e a criação da figura do primeiro ministro; na segunda fase, no segundo semestre de 2003, haveria uma conferência internacional de paz para Próximo Oriente e a criação de um "Estado palestiniano independente com fronteiras provisórias e dotado de soberania"; Numa terceira fase, posterior, seriam definidos as questões em aberto, como as fronteiras definitivas, etc..

Abu Mazen (nome de guerra de Mahmoud Abbas) manteve-se em segundo plano durante este período. Todavia, teve, no início de 2003 um encontro secreto com Sharon onde se abordou a extensão do futuro Estado palestino provisório. Abu Mazen entendia que tal entidade não podia ser viável com menos de 65% da superfície de Cisjordânia, além de uma administração conjunta para Jerusalém oriental. Sharon sugeriu 53% do território cisjordano e afirmou que a questão de Jerusalém não era negociável.

Após diversas manobras dilatórias e ter conseguido desconvocar eleições legislativas, a pretexto das ocupações e ataques israelitas, Arafat não conseguiu resistir às pressões internas e externas e propôs ao Conselho Central da OLP a criação da figura de 1º Ministro e a indigitação, em 8-3-03, de Abu Mazen para ocupar o cargo.

Seguiu-se uma comédia de enganos, ou pior, uma tragédia, que retirou qualquer margem de manobra a Abu Mazen, atacado em 3 frentes: as intrigas e manobras de Arafat, que não aceitava perder peso nas decisões da AP; a impunidade com que continuaram a perpetrar atentados o Hamas, a Jihad Islâmica e as Brigadas dos Mártires de Al Aqsa; e a atitude do governo de Sharon, que não desistiu de retaliar face aos atentados e prosseguiu com a sua política de execuções extra-judiciais.

Farto da situação, em 6-09-2003, o primeiro ministro palestino Abu Mazen dirigiu-se ao Conselho Legislativo Palestino reunido em Ramallah. No fim do discurso anunciou aos deputados palestinos que tinha acabado de entregar a sua carta de demissão a Yasser Arafat. Foi uma reunião onde não foram admitidos os meios de comunicação, mas no dia seguinte o texto integral do seu discurso apareceu no Al-Ayam.

Este discurso teve pouca divulgação nos meios europeus. Inclusivamente foi passada a ideia de que Abu Mazen tinha considerado Israel o responsável pelo seu desaire. É óbvio que criticou Israel: edificação do muro, manutenção das barragens nas estradas e ruas, etc. Todavia as relações com Israel ocuparam apenas 2% do seu discurso, uma centena de palavras em 6.300. Tudo o resto foi consagrado à análise das relações de força no seio da direcção palestina.

Abu Mazen fez algumas revelações interessantes:

Contrariamente ao que aparece normalmente nos meios de comunicação, a Autoridade Palestina não se considera habilitada a negociar com Israel. A única parte habilitada a fazê-lo é a OLP. Aliás, foi enquanto Presidente da OLP que Arafat assinou os acordos de Oslo. Disse Abu Mazen: «As negociações não são assunto do governo, são assunto da OLP, que define a política, e do comité de negociações, que leva à prática essa política».

Este é um ponto de incompreensão entre israelitas e palestinos. Após os Acordos de Oslo, os Israelitas pensaram ter encontrado um parceiro para gerir os assuntos comuns. De forma alguma, disse Abu Mazen, os habitantes dos territórios, através dos seus representantes da Autoridade Palestina, não têm voto nesta matéria. A única entidade habilitada a tal é a OLP, que é uma coligação de movimentos sem qualquer legitimidade democrática, que pretende falar em nome de todos os palestinos, quer vivam nos territórios, quer em qualquer país do mundo. Assim sendo, o interesse que determina as escolhas dos negociadores não é o interesse dos habitantes dos territórios, mas o superior interesse da «libertação da Palestina».

Ora o actual representante legítimo da OLP em matéria de política estrangeira é Faruk Kaddumi, que se opôs em 1993 aos acordos de Oslo e que se mantém em Tunis, sede da OLP. É claro que em matéria de relações correntes, como com os países doadores, isso não coloca problemas práticos, porquanto sendo Arafat presidente da AP e da OLP, quando se fala com Arafat pode julgar-se que se está a falar com o Presidente da AP, quando afinal ele se porta como Presidente da OLP, ou vice-versa.

Porém em matéria de política estrangeira, desde que não se passe por Arafat, surge a questão: será o ministro dos negócios estrangeiros da AP ou Faruk Kaddumi o interlocutor? Ora esta questão não é inócua, visto a AP e a OLP em Tunis terem discursos políticos contraditórios.

A questão ganhou acuidade quando, sob pressão americana e israelita, Arafat decidiu abdicar de parte do seu poder para um governo dirigido por um 1º Ministro, como parte do «Road Map». Pensou-se que seria uma forma elegante de neutralizar Arafat. Arafat todavia fez tudo para sabotar este plano. E a primeira acção foi exactamente a manutenção de duas direcções de negócios estrangeiros – nos territórios sob controlo da AP e em Tunis. Em consequência, disse Abu Mazen, «as nossas missões diplomáticas, os nossos embaixadores e as nossas embaixadas ... não podem fazer nada».

Ora se a legitimidade estiver em Tunis isso significa que o que está em vigor, em matéria de política internacional, é o programa integral da OLP anterior aos acordos de Oslo, cujo objectivo não era o de assegurar a independência dos territórios e a coexistência dos dois Estados, mas libertar a Palestina inteiramente e liquidar a existência de Israel. Se a legitimidade estiver no ministro da AP, isso significa uma porta aberta para um compromisso histórico fundado no reconhecimento da legitimidade do Estado de Israel enquanto Estado judeu.

No que respeita à gestão interna houve algumas revelações importantes. Abu Mazen referiu-se às deduções sobre os salários dos funcionários que se haviam elevado a 15% «... pessoalmente não sei para onde vão essas deduções, mas isso não é importante, o que é importante é que essas deduções prejudicam 150.000 empregados. Tínhamos meios de as suprimir, mas alguns protestaram dizendo que assim atingiríamos a Intifada. Pergunto-me o que terá a Intifada a ver com estas deduções».

Destas declarações deduzem-se duas coisas: aquelas deduções financiam a Intifada e se o 1º Ministro ignora o seu destino é porque se destinam a actividades que Arafat controla e que escapam à acção do governo. Como os salários dos empregados da AP são pagos por fundos da UE, então 15% dos fundos concedidos pela UE servem para financiar a Intifada.

Outra questão é a dos monopólios (petróleo, tabaco, etc.). «Porquê há estes monopólios e no interesse de quem?», perguntou Abu Mazen. E aproveitou para acentuar que a abolição do monopólio do petróleo, i.e., a transferência da responsabilidade da aquisição dos produtos petrolíferos da Comissão do Petróleo para o Ministério das Finanças trouxe uma poupança de 6 milhões de dólares por mês e acrescentou «isto significa que se roubavam 72 milhões de dólares por ano» sem especificar quem eram os ladrões.

Outra questão era a forma de pagamento às forças de segurança (numerosas e por vezes paralelas e concorrentes). O Ministério das Finanças queria que, a exemplo da generalidade dos empregados da AP, aqueles fossem pagos por transferência bancária. Ora isto pôs em cólera os chefes dos serviços, habituados a receberem de Arafat envelopes com dinheiro em notas que distribuíam segundo o seu arbítrio pelos seus homens. Era um meio de manterem o controlo absoluto sobre os seus homens e um meio de Arafat assegurar a sua fidelidade. Também era um meio de realocar parte do dinheiro a outros fins, pessoais ou militares.

O argumento apresentado era que as transferências bancárias poderiam denunciar a Israel os nomes dos agentes de segurança. Mas, para Abu Mazen, esta era uma falsa questão pois após os Acordos de Oslo e de acordo com o que ficou estipulado, haviam sido entregues a Israel as listas nominativas de todo o pessoal da OLP que entrasse nos territórios. Abu Mazen não conseguiu levar a dele avante, Apenas o pessoal sob a autoridade do Ministério do Interior, i.e., do governo, passou a ser pago desta maneira (Nota: em 1-4-2004 o actual Ministro das Finanças da AP conseguiu aquele desiderato. Falta saber se tem continuidade).

Abu Mazen disse que aqueles que «beneficiavam do sistema ... organizaram 2 manifestações contra o ministério das finanças», manifestações não pacíficas: «o ministério foi assaltado e os seus bens em Gaza roubados».

Abu Mazen explica como não era possível o governo funcionar: «cada dia recebia uma nova decisão de Arafat. As embaixadas não estão sob a nossa responsabilidade. Então para que serve o ministério dos negócios estrangeiros? Não sabemos. O trabalho dos governadores não está sob a nossa responsabilidade. Então para que serve o ministério do interior? O aeroporto não está sob a nossa responsabilidade. Então, quem é o responsável? É a OLP. O Conselho económico palestiniano para o desenvolvimento e reconstrução está sob a responsabilidade da OLP. A Comissão do serviço público está sob a responsabilidade da OLP».

A imagem que fica é a de um Estado-OLP que gere não apenas a política internacional, como a gestão corrente. E é como Presidente da OLP, uma organização sem qualquer legitimidade nem representatividade democrática, que Arafat detém as rédeas do poder.

Os meios de comunicação também não escapam ao totalitarismo de Arafat. Abu Mazen continua: «Quando me encontrei com Collin Powell, a televisão palestina obteve os direitos de transmissão da conferência de imprensa. Todas as agências de informação e todas as cadeias de televisão do mundo difundiram a nossa conferência de imprensa. O meu discurso no Conselho Legislativo foi transmitido pelo menos por 3 cadeias de televisão. Mas não foi pela nossa». Abu Mazen perguntou a razão ao seu ministro da informação. Este disse-lhe que havia recebido ordens de Arafat para «transmitir desenhos animados no momento do discurso».

Um elemento essencial do «Road Map» era a unificação dos serviços de segurança para combater o terrorismo e que esses serviços ficassem sob a autoridade do 1º ministro. Não foi conseguida nem uma coisa, nem outra. A unificação, que implicava a erradicação de organizações consideradas terroristas, foi evitada pelo próprio Abu Mazen, sob a alegação que tal poderia desencadear uma guerra civil. Quanto ao resto, três quartas partes das forças de segurança continuaram sob a autoridade de Arafat, que recusou «qualquer espécie de coordenação entre elas e o resto dos serviços».

Abu Mazen concluiu que em face de uma tensão sempre crescente, com Arafat a recusar cumprir os compromissos assumidos, «entreguei hoje ao irmão Abu Amar (Yasser Arafat) a carta de demissão do governo».

Nota 1
Por curiosidade diga-se que, apesar de ser considerado moderado, Abu Mazen fez algumas declarações, nos anos noventa, exprimindo a convicção que o nazismo não exterminou a milhões de judeus, mas apenas "algumas, poucas, centenas de milhares”. Como Abu Mazen cursou na URSS, na Escola de Estudos Orientais da Universidade Estatal de Moscovo, tendo-se doutorado com uma tese sobre alegados contactos secretos entre o movimento sionista e a Alemanha nazi, é caso para perguntar qual o valor científico da escola em questão!!

Nota 2
Ahmad Qureia, o homem que sucedeu a Abu Mazen, embora considerado moderado, esteve envolvido na gestão corrupta da OLP, pois foi chefe do Comité Económico da OLP a partir da década de 80 e é um seguidor fiel de Arafat. Todavia o seu ministro das Finanças, Salaam Fayad, imposto pelos países doadores, tem tido alguns resultados apreciáveis no sentido de uma maior transparência financeira do funcionamento das estruturas da AP, conforme escrevi há dias, no artigo «Bush, Sharon e Arafat». Mas o poder de Arafat mantém-se inatingível.

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abril 19, 2004

Bush, Sharon e Arafat

A declaração de Bush após a reunião com Sharon representa um trunfo para este e uma evidência que a estratégia política seguida por Arafat na sequência da sua cimeira com Barak e Clinton, falhou redondamente.

Em primeiro lugar deve ser salientado que a declaração de Bush não constitui uma ruptura com a anterior política americana. A renúncia ao retorno dos refugiados ao território de Israel e rectificações fronteiriças importantes e favoráveis a Israel já tinham estado na mesa da cimeira referida, com o apoio de Clinton. Por sua vez, a declaração de Bush é ambígua, porquanto se dá a Israel, aparentemente, luz verde para continuar com o muro de separação, considera que este visa apenas a protecção da população israelita contra o terrorismo, não significando de forma alguma uma fronteira definitiva, pois esta terá que ser definida no âmbito de um acordo de paz.

Na verdade, a crer nos mapas que foram divulgados sobre a implantação do muro de separação, o território da Cisjordânia seria amputado de perto de 40% da sua área e dividido em duas partes separadas por um largo corredor correspondente ao actual distrito de Jerusalém da Cisjordânia (a zona de Ramallah, Nablus e Jenin, a norte, e a de Hebron e Belém a sul). Na fronteira ocidental da Cisjordânia a punção é ligeira em termos de área e, para além de corredores de protecção a alguns colonatos (nomeadamente no distrito palestino de Salfit), visa essencialmente objectivos estratégicos e militares relacionados com a orografia do terreno.

Todavia, no lado oriental, o muro amputa a Cisjordânia dos distritos de Tubas e Jericó (que fazem fronteira com a Jordânia) e da parte oriental dos distritos de Belém e Hebron (que fazem fronteira com o Mar Morto e com o deserto do Neguev). Praticamente todo o distrito de Jerusalém, no centro da Cisjordânia (que vai da fronteira de 1949 até ao Mar Morto), é “engolido” pelo muro.

A maior parte das áreas “anexadas” é muito fracamente povoada: vale do Jordão e do Mar Morto. Todavia o mesmo não acontece com o distrito de Jerusalém. Em alguns sítios há um duplo muro, pois pequenas bolsas de áreas sob controlo palestino ficam separadas do resto dos territórios. Estes mapas foram divulgados por entidades pró-palestinianas e não há confirmação israelita. Os troços do muro que já foram construídos não são indicativos, porque estão implantados nas zonas de maior densidade demográfica, seguindo ou a linha verde, ou afastando-se dela apenas um ou dois quilómetros.

A ser verídico o traçado do muro, este inviabiliza na prática um Estado palestiniano. A Cisjordânia ficaria reduzida às 2 bolsas acima descritas e a duas ou três bolsas minúsculas encravadas no território israelita. Aliás todos os “cantões” palestinos ficariam encravados dentro de Israel. Apenas em Gaza, onde o muro acompanharia a linha verde, ficaria com fronteira com o Egipto.

A estratégia de Arafat tem falhado completamente:

Falhou quando rompeu as negociações da cimeira com Clinton e Barak, pensando que Clinton seria substituído por um líder republicano, menos susceptível à influência do lobby judaico que os democratas, e que Barak cederia com uma segunda intifada.

Ora a segunda intifada, desencadeada semanas depois, a pretexto da visita de Sharon à esplanada das Mesquitas, falhou completamente os objectivos. Em primeiro lugar, e ao contrário da primeira intifada que foi a luta de David (os jovens que atiravam pedras), contra Golias (os meios mecanizados israelitas), e que tanta simpatia despertou na Europa, atingindo o moral do exército israelita, na segunda intifada, Arafat apostou nas armas e no terror. Simplesmente as armas ligeiras dos palestinianos não são suficientes face ao poderio militar israelita e o terror liquidou de facto Ehud Barak, mas para levar ao poder Ariel Sharon.

Portanto a primeira consequência da estratégia de Arafat foi a eleição de Ariel Sharon e o progressivo declínio da esquerda israelita.

Durante muitos anos, o terrorismo palestiniano, localizado, e passando como “resistência”, não incomodou sobremaneira os líderes ocidentais. O 11 de Setembro alterou tudo isso. Deixou de haver “bons” e “maus” terroristas ... passou apenas a haver terroristas. Para além disso, as manifestações de alegria de muitos populares palestinianos nos dias seguintes ao 11 de Setembro deixaram certamente marcas no povo americano e no mundo ocidental em geral. O terrorismo de Arafat passou a ser contraproducente.

É certo que, para os meios de comunicação ocidentais, Arafat condenava, em inglês o terrorismo. Mas em árabe fazia discursos populistas inflamados que, objectivamente, incentivavam a população palestina para acções terroristas. Apenas recentemente, após um ultimato da administração Bush, Arafat se decidiu a fazer, em árabe, a primeira declaração pública de condenação do terrorismo.

Durante anos os países doadores (essencialmente a UE, a França e a Alemanha) «assobiaram para o lado» fingindo não ver a corrupção da Autoridade Palestiniana e de Yasser Arafat, enquanto subsidiavam os vencimentos dos 150.000 funcionários da AP e davam outros generosos subsídios. A desculpa era que no 3º mundo as coisas são assim... . Algumas reportagens que começaram a aparecer a partir de 1996 chamando a atenção para os desvios dos fundos destinados ao povo palestino, não tiveram sequência. Em 1997, um primeiro inquérito internacional revelou a desaparição inexplicável de mil milhões de dólares. As autoridades palestinianas atribuíram a situação à “juventude das estruturas administrativas” da AP.

Descobriu-se entretanto que fortuna de Arafat é a 6ª fortuna mundial, logo a seguir à da Isabel II, Rainha da Grã-Bretanha. Sob pressão internacional, Arafat viu-se obrigado a aceitar uma comissão de inquérito sobre a origem da sua fortuna pessoal e sobre a corrupção na AP. À frente dessa comissão encontra-se Salaam Fayad, ex-funcionário do FMI, tornado entretanto ministro das finanças palestino sob pressão internacional e das forças internas palestinianas exasperadas com a corrupção e miséria dos territórios. Arafat foi obrigado a aceitar pois seria a única forma de passar a receber novamente os subsídios. A 2ª intifada, com as consequentes retaliações israelitas, havia arruinado completamente a economia palestina e a AP precisa desesperadamente de auxílio internacional.

Em teoria o dinheiro era para o tesouro palestino. Na prática era distribuído em envelopes aos próceres palestinos que depois os distribuíam, também em envelopes, aos seus homens. O esquema funcionava de forma idêntica ao dos grupos mafiosos de Chicago dos anos 30. Salaam Fayad afirmou que Arafat pagava mensalmente 20 milhões de dólares às suas forças de segurança, em envelopes, cash. Parte do dinheiro com que fica, Arafat usa-o para reforçar a sua popularidade, distribuindo-o em propaganda, financiamento de manifestações, etc. Arafat vive modestamente, mas em contrapartida, a sua mulher Suha leva uma vida luxuosa em Paris. Suha recebe mensalmente 100 mil dólares. Os “Tunisinos” (os homens da OLP que se mantiveram em Tunis após os acordos de Oslo e que, na maioria, recusam estes acordos) levam igualmente uma vida faustosa.

Salaam Fayad revelou igualmente que havia uma rede de monopólios abarcando farinhas, cimentos, petróleos, etc.. No caso dos petróleos a Sociedade Geral do Petróleo comprava os carburantes a uma sociedade israelita e misturava-o com querosene. Os automobilistas palestinos além de pagarem preços exorbitantes, arruinavam as suas viaturas. Este monopólio foi entretanto liquidado. Quando Salaam Fayad desmembrou esta sociedade, quem a chefiava fugiu dos territórios e anda foragido. A partir daí os automobilistas passaram a pagar menos 20% na gasolina e 80% a menos no gasóleo. O conselheiro económico de Arafat (Mohamed Rachid) também desapareceu da circulação. Aparentemente começou a colaborar com os investigadores de Salaam Fayad na desmontagem de todo o esquema de corrupção e roubos da administração anterior.

Salaam Fayad tem recebido muitas ameaças, o seu escritório foi várias vezes devassado. Quando Salaam Fayad quis substituir o chefe da organização de ”Protecção”, que no fundo se dedica à extorsão da população palestina, Arafat enviou homens armados para impedir essa substituição. Mas Salaam Fayad é intocável, pois sem ele Arafat perderá os fundos internacionais, que correspondem a 60% do orçamento da AP.

Finalmente, em 1 de Abril deste ano, Salaam Fayad conseguiu impor que os pagamentos às forças de segurança fossem feitos por transferência bancária, assegurando a transparência deste processo. Descobriu-se nessa altura, por exemplo, que um dos chefes de segurança tinha 7.000 efectivos falsos na sua folha de pagamentos.

Agora, a aprovação do plano de Sharon por Bush coloca ainda mais a AP nas mãos de Israel. A UE pode emitir débeis reprovações do acordo de Bush-Sharon, mas a UE está desacreditada como mediadora, e o facto de que, dos donativos que forneceu à AP, 15% (as famosas deduções) foram para financiar o terrorismo e uma parte significativa para engrossar a fortuna de Arafat, fragiliza a sua posição perante a opinião pública israelita e perante os contribuintes europeus.

E Arafat não tem mais trunfos: as ameaças terroristas são inócuas, pois os israelitas sabem que os grupos terroristas só não fazem pior porque a vigilância e o profissionalismo dos serviços israelitas os impedem. O terrorismo para Israel tornou-se uma ameaça que é independente da forma como Israel retalia. Em qualquer dos casos os objectivos do Hamas e de outras organizações terroristas é a liquidação do Estado de Israel. Assim, este não tem outra alternativa.

As declarações de Bush são a última machadada na já cambaleante estratégia de Arafat. E Arafat não pode contar com a vitória de Kerry, pois este será sempre mais favorável a Israel que Bush. Aliás, a aprovação de Bush ao plano Sharon insere-se na necessidade daquele cativar apoios judaicos ou, pelo menos, neutralizar o eleitorado judaico, normalmente democrata.

Apesar de tudo, não vejo viabilidade do muro de separação passar a constituir fronteira. É uma punção demasiado elevada nos territórios da Cisjordânia para poder servir de base a um acordo de paz. Serve todavia de moeda de troca perante uma AP cada vez mais fragilizada, apesar da retórica inflamada de alguns dos seus líderes e dos líderes das organizações terroristas.

Publicado por Joana às 09:28 AM | Comentários (53) | TrackBack

abril 11, 2004

Reféns ao acaso

Três japoneses foram feitos reféns e um vídeo foi distribuído mostrando-os aterrorizados e ameaçados de serem queimados vivos se o Japão não retirasse as suas tropas do Iraque até hoje. Clamores empolgados de Alá é grande ouviam-se como som de fundo.

O mais espantoso deste rapto é que das vítimas, duas delas são activistas anti-guerra e anti-nuclear e a terceira está ligada a um jornal de esquerda. Admitindo que não foram os próprios a oferecerem-se como reféns, o que parece pouco crível, tudo indica que os raptores já não conseguem distinguir amigos de inimigos.

Se se tratou, de facto, de um rapto, foi um acto cobarde, porque perpetrado contra gente desarmada e inofensiva, estúpido, porque realizado sobre gente que certamente estaria no Iraque para recolher argumentos contra a actuação da coligação e não para ser vítima dos que se opõem à coligação, bárbaro, porque o video deu uma imagem de selvajaria perante a opinião pública mundial, obviamente contraproducente para a causa dos raptores, se é que estes têm alguma causa.

Entretanto os raptores anunciaram uma dilação de 24 horas no prazo da execução e, à hora em que escrevo estas linhas, há informações contraditórias sobre a situação dos reféns e sobre uma eventual libertação, a exemplo de diversos civis estrangeiros, raptados ao acaso, e que têm sido libertos.

Espera-se que os raptores aproveitem a moratória, que deram, para entretanto ganharem algum discernimento.

Publicado por Joana às 10:20 PM | Comentários (45) | TrackBack

A Tentação da Força

O excesso de força conduz à tentação do seu uso imoderado, em alternativa a soluções políticas, em teoria porventura menos prometedoras, mas na prática mais eficazes.

As relações da administração americana do Iraque com os diversos sectores étnicos e religiosos ilustram os erros a que conduz o recurso imoderado à força militar. A democracia não se impõe na ponta das baionetas. A força militar pode criar condições para facilitar o estabelecimento da democracia. Mas a democracia é, pela própria natureza, o governo do povo pelo povo. O povo tem que ser ganho para a democracia, para o seu exercício, para a compreensão das suas vantagens e das suas limitações. Baseia-se num consenso nacional que terá que ser construído. E a administração americana e as potências ocidentais, em geral, terão que aceitar uma «democracia» frágil, certamente defeituosa e insuficiente, num país, numa região, onde não há tradições democráticas, onde não há Estados laicos, onde as conquistas que o mundo ocidental fez nos últimos 3 séculos, ainda são letra morta. Não pode ter expectativas mais amplas pois não haverá condições para mais.

Na normalização do Iraque é indispensável a aliança com os xiitas que compreendem 60% da população e foi marginalizada e espezinhada durante a ditadura de Saddam Hussein. Todavia a maioria dos líderes dessa comunidade rejeita a constituição provisória recentemente promulgada porque esse texto não estabelece a sharia como única fonte direito. Os xiitas, liderados pelo ayatollah Ali Sistani, pretendem uma república islâmica. Uma minoria desta comunidade é adepta de um imã extremista, de 30 anos, Moqtada Al-Sadr que no seu jornal multiplicou os apelos à revolta contra os americanos e que constituiu uma milícia – o exército do Mahdi – poderosamente equipada. Essa milícia tem ocupado, pouco a pouco, diversas localidades onde tem feito reinar um regime de terror em nome da ordem islâmica, em tudo semelhante às acções de rua dos SA e SS na Alemanha Nazi, só que em vez de destruírem as lojas dos judeus, destroem lojas cujos produtos não estejam em sintonia com as prescrições mais medievas do fundamentalismo islâmico.

A aliança com os líderes espirituais da comunidade xiita tem portanto limites. Os americanos não podem correr o risco de verem surgir no Iraque um regime idêntico ao iraniano e aliado deste. Depois de terem armado Saddam para neutralizar o fundamentalismo iraniano e de verem Saddam tornar-se, de amigo, em inimigo, embora tivesse continuado a ser um contrapeso ao fundamentalismo xiita iraniano, seria o pior dos pesadelos para a administração Bush tornar o Iraque, para além de inimigo dos EUA, aliado do Irão.

Neste entendimento, as autoridades americanas resolveram enveredar por uma reacção musculada: o fecho do jornal de Moqtada Al-Sadr e a prisão de um seu adjunto, Mustafá Yaqubi, acusado de um homicídio de um dignitário xiita moderado, ocorrido há muitos meses. Essas acções levaram à insurreição da facção xiita radical de Moqtada Al-Sadr.

Em simultâneo, numa aparente retaliação face às cenas de selvajaria ocorridas em Fallujah dias atrás, em que 4 civis americanos, funcionários de uma empresa de segurança, foram massacrados, os seus restos incinerados, mutilados, arrastados pelo chão e pendurados para gáudio de uma populaça entusiástica, as forças americanas cercaram Fallujah e têm avançado metodicamente apesar da resistência tenaz. Mesmo durante os períodos de tréguas, os americanos apenas deixam sair da cidade mulheres, crianças e homens em «idade não militar». As forças americanas afirmam que tentam capturar os assassinos dos 4 americanos, porém, o que tudo indica, é que os americanos resolveram responder à barbárie medieval com o método medieval da punição colectiva de um bastião rebelde, como desforra das sucessivas emboscadas que têm sofrido em Fallujah e que culminaram na selvajaria de 31 de Março. A forma lenta como o cilindro militar americano rolou sobre Fallujah indicia que procurava maximizar o número de baixas entre os habitantes em «idade militar».

Estas duas acções musculadas podem alterar radicalmente o anterior enquadramento social e político iraquiano.

Os líderes moderados xiitas, Ali Sistani e o Conselho Supremo da Revolução Islâmica do Iraque (CSRII), não podem condenar, pelo menos publicamente, a insurreição de Al-Sadr. E ainda menos aprovar a contra-insurreição desencadeada pelas forças americanas. Fazê-lo poderia minar a actual posição de Ali Sistani de líder espiritual da comunidade xiita. Quer se concorde, quer se discorde, não é de boa política apoiar o ocupante estrangeiro contra facções nacionais. Por outro lado não é líquido que não seja do interesse de Ali Sistani esta prova de força contra o ocupante americano, por interposta facção. Ali Sistani poderia recolher alguns dividendos e surgir, perante os americanos, como elemento moderador e imprescindível e fazer vingar as suas teses de uma constituição «mais islâmica».

Enquanto isso os líderes moderados xiitas vão acusando os americanos de terem provocado a insurreição pela sua falta de tacto político. Os líderes xiitas estão assim a posicionar-se para os cenários emergentes da insurreição de Al-Sadr. Se os americanos reprimirem a insurreição e capturarem Al-Sadr, os líderes xiitas moderados ficam sem o labéu de colaboração com o ocupante, livram-se de um líder extremista e ficarão aos olhos dos americanos como interlocutores indispensáveis que merecem colher dividendos políticos.

Se convencerem os americanos a porem fim à sua tentativa de capturar Al-Sadr, consolidam a sua imagem entre a comunidade xiita e os iraquianos em geral e tornam-se igualmente indispensáveis para os americanos para servirem de dique às investidas dos testas de ferro da teocracia iraniana que pretende destabilizar a sociedade iraquiana de modo a não permitir a instauração de um regime tolerante e minimamente democrático.

No entretanto o afluxo de peregrinos a Kerbala para as comemorações do Arbain, festividade xiita, levou a uma trégua e ao início de negociações com Al-Sadr mediadas pelos líderes xiitas. Os americanos "reclamam a dissolução da milícia do Mahdi, o respeito pelos instituições de Estado e as leis, a retirada dos edifícios públicos e o regresso à ordem pública". Em troca, Sadr terá reclamado "a retirada das forças que se preparam para atacar Najaf, garantias sobre a anulação do mandato de captura". Se as negociações chegarem a bom termo, estaremos no segundo cenário descrito acima e será uma vitória para o CSRII. Aliás, como se escreveu acima, o desfecho desta crise será sempre, em maior ou menor grau, uma vitória para o CSRII.

Por sua vez o violento ataque a Fallujah, e as baixas iraquianas que está a causar, tem levado a uma certa aproximação entre sunitas e alguns líderes xiitas. Essa aproximação feita em nome da luta contra um inimigo comum, poderá complicar a situação das forças da coligação no Iraque que, presentemente, apenas contam com um aliado fiel: a minoria curda.

A coligação está desde o início do pós-guerra perante um dilema – flagelada por grupos minoritários, mas muito activos, se responde de forma violenta aliena as simpatias da massa da população, se responde de forma tíbia corre o risco de dar uma ideia de fragilidade e fortalecer a imagem desses grupos. Foi isso que aconteceu nas duas situações: em Fallujah ripostou com grande violência e de forma desproporcionada; no que respeita às milícias xiitas radicais deixou que elas crescessem e se armassem, tudo indica que com um forte apoio iraniano. Em ambos os casos faltou tacto político e sentido da oportunidade.

A força militar serve para ganhar a guerra, mas a paz tem que ser ganha pela sabedoria política. A primeira existe, mas tem havido escassez da segunda. Provavelmente porque se pensa que quem tem a força tem tudo.

Quanto a Bush, o facto de não se terem encontrado armas de destruição em massa, a não pacificação do Iraque e o não estabelecimento de uma clara estratégia política para o Iraque lançam dúvidas sobre a competência da sua administração. Se falhar o plano de transferência de soberania a 30 de Junho, quer pelo seu adiamento, quer pela eventual ocorrência do caos generalizado se o plano se mantiver, dificilmente Bush será reeleito.

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março 25, 2004

Arafat e Sharon

Enquanto a demonização de Sharon é diária, implacável e furibunda, a Arafat tem-se perdoado todas as barbaridades cometidas, como se fossem pequenos erros de um herói sitiado e não a estratégia violenta e irresponsável de um líder cego pelo ódio e sem grandeza.

Não entendo, por exemplo, que se possa julgar Sharon por crimes contra a humanidade e não se queira julgar Arafat, à mão do qual se fez executar toda sorte de crimes, indiscriminados, sem nenhuma piedade e sem tremer. Desde sempre e até hoje mesmo.

Já não se trata somente do terrorista responsável pela chacina nos Jogos Olímpicos de Munique ou que aterrorizava as linhas aéreas instaurando o conceito do terror total, senão do homem que teve várias vezes nas mãos as chaves da paz e as rechaçou todas, empurrando o seu próprio povo para um processo permanente de destruição.

Falemos do Arafat de hoje, quando diariamente são ceifadas vidas de tantos civis que vão de transportes públicos para o trabalho, ou estão sentados em cafés, homens, mulheres e crianças, indiscriminadamente, sem lógica militar, apenas para instaurar um clima de terror.

Vítimas que não existem, porque no universo jornalístico europeu temos decidido que as vítimas só são palestinas e que os judeus mortos, no melhor dos casos, são pura contingência. Fala-se do massacre de Jenin e comparando-o ao Holocausto, mas nada se disse do facto de que os combates se reduziam a um espaço de 100 metros por 100 metros e que uma ONG tão pouco suspeita como a Human Rights Watch contabilizou os mortos: 52 palestinos e 23 soldados israelitas, além de 65 feridos. Quer dizer, foi um combate e não um massacre.

Pergunta pertinente: se os 52 mortos palestinos permitem equiparar Jenin com Auschwitz, com o quê se deveria comparar o milhão de mortos no processo de islamização do Sudão, ou os 100.000 mortos do integrismo argelino ou as 20.000 vítimas trucidadas por Hafez al-Assad na sublevação islamita de Hana? E os mortos palestinos do Setembro Negro?

As denúncias de corrupção financeira de Arafat, publicadas inclusive na imprensa do Kuwait não tiveram nunca repercussão significativa na imprensa europeia. E também não se disse nada do facto de que Mohammed Atta (um dos terroristas que pilotava um dos aviões sequestrados no dia 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos e arremessado contra as Torres Gémeas do World Trade Center, em Nova York) já havia perpetrado atentados em Israel e que, encarcerado em Israel, foi libertado graças aos acordos de Oslo e graças também à pressão do governo de Clinton.

O facto real é que a informação se converteu numa arma de guerra. Inclusive nas mãos de teóricos pacifistas.

Por isso me parece pertinente explicar porque o considero um líder nefasto. Primeiro, é um líder para a guerra, única linguagem que entende e não para a paz. Foi ele que alimentou a segunda Intifada e não contra Sharon, senão contra o trabalhista Barak, depois de haver recusado as propostas de Camp David.

Arafat não somente sabotou os acordos, mas também propiciou uma cultura do ódio nas escolas e permitiu que os imãs nas mesquitas pedissem o "extermínio dos judeus" . É certo que condenou alguns atentados, mas em inglês e para os meios de comunicação ocidentais. Só há pouco mais de um ano, perante a pressão americana, condenou em árabe uma acção terrorista. Arafat expressa realismo político quando fala em inglês. Em árabe, recorre a um populismo incendiário.

Arafat é um líder da guerra. Teve diante de si líderes israelitas, falcões e pombas, e sempre optou pela mesma via - a sistemática destruição de toda via de acordo. E um profundo desprezo pela vida humana, a vida de sua própria gente. Parece-me o pior dos líderes para uma causa que deveria ter estratégias de mais altura e maior sentido de justiça. Arafat não serve à causa palestina. Arafat perverte-a.

Adicionalmente, Arafat é um político corrupto. «Um relatório interno afirmou que a corrupção, a malversação de fundos públicos e a ineficiência no governo atingia níveis preocupantes e que quase a metade dos 800 milhões de dólares do orçamento fora desperdiçada. A comissão chegou a recomendar que três ministros fossem submetidos a julgamento, porém Arafat confirmou os três na reforma do gabinete».

Um relatório do FMI, sobre as contas bancárias palestinas, entre 1997 e 2003, cita que cerca de US$ 900 milhões dos fundos da Autoridade Palestina, financiados em parte por países doadores, teriam sido desviados para contas secretas em outros lugares, por gente de Arafat. E este relatório cita também que não se têm notícias do destino dado por Arafat a US$ 74 milhões, que estavam em suas mãos. Apesar de Arafat ter negado todos esses casos de corrupção dentro da Autoridade Palestina, mais de uma centena de membros da Fatah renunciaram colectivamente, exigindo mais democracia dentro do partido e dentro da Autoridade Palestina, como também exigindo o fim da corrupção naquelas instâncias.

Recentemente a justiça francesa abriu uma investigação sobre transacções multimilionárias relativas a contas bancárias de Suha Arafat, mulher de Yasser Arafat. Membros do governo francês disseram terem sido contactados pelo Banco da França, que teria descoberto que quase US$ 1 milhão por mês estava sendo transferido da Suíça para as contas de Suha Arafat. As translações totalizariam 9 milhões de Euros e teriam sido realizadas entre Julho de 2002 e Julho de 2003.

Sharon é um falcão e um belicista. Mas foi posto no lugar que ocupa pelo voto popular e sairá desse lugar pelo mesmo voto. Arafat está há cerca de 40 anos na direcção da OLP e só sairá de lá pela acção da natureza. Arafat já passou por meia dúzia de presidentes americanos e sobreviveu a inúmeros atentados e a dirigentes históricos de Israel, como Menachem Begin e Yitzhak Rabin. E sobreviverá, certamente, a Sharon.

E o que há de perversão na nossa sociedade é que é politicamente correcto diabolizar Sharon e santificar Arafat. Ora entre os dois ... venha o diabo e escolha. E que o diabo escolha de preferência Arafat, porque, se o fizer, o eleitorado israelita se encarregará, em seguida, de mandar Sharon para o diabo. Escolhe um, fica com dois e livra o mundo de um quebra-cabeças.

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Ódio e humilhação

Inúmeras têm sido as iniciativas que promovidas em todo mundo relativamente ao conflito no Oriente Médio. Desde os “Acordo de Oslo” em l993, até ao último plano americano, o Road Map, têm havido diversas iniciativas de paz. Todas tiveram um objectivo comum: a paz. Todos tiveram um obstáculo comum: o ódio.

Enquanto isto, milhares de vidas foram perdidas nestas quase 6 décadas de conflitos e o abismo entre o avanço social e económico dos israelitas e o atraso dos palestinos foi-se aprofundando.

Apesar da maioria da população dos dois lados ser, em teoria, favorável ao diálogo, qualquer acto de violência dos suicidas palestinos bem como a ampliação dos colonatos ou construção de novos, ou o avanço do muro de contenção israelita eliminam de imediato qualquer avanço conseguido.

Nas escolas, os jovens palestinos são doutrinados no ódio aos israelitas. Basta ler os manuais escolares subsidiados pelos dinheiros da UE. Recentemente uma cadeia de TV libanesa começou a apresentar uma novela síria baseada no “Protocolos dos sábios de Sião”. O "Os Protocolos dos Sábios do Sião" é uma fraude feita na Rússia pela Okhrana (policia secreta dos Czares), com o intuito de culpar os Judeus pelos males do país. Foi publicado privadamente em 1897 e tornado público em 1905. É copiado de uma novela do século XIX e afirma que existe uma cabala secreta Judaica conspira para conquistar o mundo. A base da história foi criada por um novelista alemão anti-semita chamado Hermann Goedsche que usou o pseudónimo de Sir John Retcliffe. O seu propósito era politico: reforçar a posição do czar Nicolau II apresentando os seus oponentes como aliados de uma gigantesca conspiração para a conquista do mundo. Hitler usou este livro na sua campanha anti-semita.

Destila-se assim a forma mais letal de anti-judaísmo nas populações que deveriam estar recebendo uma orientação em prol da paz e do entendimento.

A primeira intifada recebeu as simpatias gerais no mundo ocidental e levou ao triunfo dos moderados nas eleições israelitas e aos acordos de Oslo. Mas a primeira intifada não se baseava no terrorismo e constituía de facto a imagem da luta de David contra Golias. O exército israelita sentia-se pouco à vontade a lutar contra miúdos e adolescentes que atiravam pedras. Foi o momento alto da causa palestina.

Com avanços e recuos, o processo foi avançando até Ehud Barak, mesmo com as contrariedades resultantes do assassinato de Rabin. Barak prosseguiu a política de Rabin: transferência de mais territórios para a AP; retirada do sul do Líbano (24-05-99); negociações de Camp David (15-20 Julho 2000).

Em Camp David, a proposta de Clinton previa a criação de um estado palestino com 95% da Cisjordânia e toda a Faixa de Gaza. Os palestinos também teriam soberania sobre regiões árabes de Jerusalém e parte do local conhecido pelos judeus como Esplanada das Mesquitas e pelos muçulmanos como Monte do Templo, embora Barak afirmasse que não entregaria aos palestinos toda a área do Monte do Templo, considerada sagrada tanto por judeus como por muçulmanos.

Outro entrave à aprovação da proposta norte-americana foi o destino dos refugiados palestinos. Segundo os planos de Clinton, apenas uma pequena parcela deles poderia voltar para as cidades onde viviam (eles ou os seus antepassados) antes da criação de Israel, posição contestada pela AP.

Enquanto se discutia uma maneira de retomar o diálogo, o líder do Likud (partido de direita), Ariel Sharon visitou a Esplanada das Mesquitas (28-09-00), acto considerado como uma violação de um local sagrado do islamismo, o que serviu de pretexto para a nova intifada. Esta intifada foi aproveitada por Arafat, para obter dividendos políticos. Todavia, essa estratégia redundou em fracasso.

Para começar, Arafat nunca tentou impedir a militarização do segundo levantamento. A primeira Intifada em 1987 foi um movimento popular durante o qual a violência se limitou ao lançamento de pedras contra as forças ocupantes. Foi essa a sua força, pois era uma força moral. Na segunda ocasião as pedras foram substituídas por pistolas e metralhadoras. Arafat optou por usar a violência como ferramenta de negociação, recusando as mais favoráveis condições que já haviam sido até então propostas para obter a independência palestina num contexto de paz. Todavia, apesar das armas, os combatentes palestinos não podiam fazer frente ao poderio muito superior do Exército israelita.

Adicionalmente, os movimentos radicais Hamas e Yihad e depois as Brigadas dos Mártires da Al Aqsa recorreram a outros tipos de armas, perpetrando ataques suicidas em território israelita. Com essa nova estratégia, os palestinos não apenas perderam o apoio que ainda recebiam de movimentos pacifistas como também de toda a comunidade internacional. Os palestinos perderam a força moral da primeira intifada e não tinham meios para ganharem pela força das armas.

Porquê a sua recusa? O que Arafat realmente queria? Como ele nunca declarou explicitamente o que queria, resta especular sobre algumas possibilidades:

1) Arafat não conseguiu reunir coragem ou vontade para vencer as pressões dos grupos palestinos mais radicais, que recusam a paz e a convivência com Israel. Mesmo percebendo a oportunidade, não quis arriscar o que Barak arriscou: enfrentar sua própria gente e convencê-la de que só com concessões mútuas poder-se-ia construir uma solução que fosse o início de um processo de paz verdadeiro. A partilha de Jerusalém como capital, o estabelecimento do Estado palestino, a cooperação económica, seriam o máximo de concessões exigíveis de Israel já no início do processo de convivência pacífica.

2) Arafat não quis aceitar uma solução a não ser em seus próprios termos e com a satisfação de 100% de suas exigências. Diante de uma proposta de conciliação irrecusável, as únicas alternativas são aceitá-la ou romper a negociação, exactamente para não ter de aceitá-la. A exigência de última hora de Arafat, que ele sabia muito bem não poder jamais ser aceita por Israel, foi a "volta de 3 milhões de refugiados" palestinos, não ao futuro Estado palestino, mas para dentro do Estado de Israel (Yaffo, Haifa, Tel Aviv, Bersheva, etc).

3) A AP nunca quis realmente uma paz definitiva com Israel e, na verdade, nunca teria abandonado seu objectivo estratégico de acabar com Israel como Estado judeu. Para isso, como está definido na Carta Palestina, as negociações e o Estado palestino seriam apenas uma etapa. A possibilidade de um Estado palestino com compromissos de paz e reconhecimento de Israel seria uma ameaça a esse princípio. O imigração de mais de 3 milhões de palestinos para um estado que tem 4,5 milhões de judeus e 1 milhão de palestinos seria o imediato desequilíbrio demográfico de Israel e a sua descaracterização.

Desmoralizado e sem apoios dentro do próprio partido ou dentro da coligação que o apoiava, Barak perdeu a eleição de 6 de Fevereiro de 2001 para Sharon, que fez a sua campanha atacando os acordos de Oslo. O prémio Nobel da Paz, Shimon Peres, tradicional adversário trabalhista de Sharon, aceitou ser seu ministro dos Estrangeiros num governo de coligação. Seria uma força de moderação dentro do governo, afirmou. Acabou por fazer o papel de ramo de salsa no leitão da Bairrada.

Depois dos atentados de 11 de Setembro, o primeiro-ministro Ariel Sharon tentou convencer o presidente Bush, de que a luta contra Arafat era idêntica à luta contra Osama bin Laden, passando por cima da diferença entre a resistência nacional palestina contra uma ocupação ilegal e a guerra santa declarada por um extremista muçulmano. Nesta argumentação Sharon foi ajudado pelos radicais palestinos que, pelas suas acções terroristas, ajudaram a mostrar que afinal não haveria diferenças entre eles e bin Laden. As organizações palestinas que se dedicavam a actos terroristas foram classificadas como organizações terroristas, quer pelos EUA, quer, depois, pela UE.

Após alguns sangrentos atentados palestinos, o governo norte-americano deu luz verde para uma praticamente total reocupação israelita da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, assim como o isolamento de Yasser Arafat. Com isso se desmantelou definitivamente o acordo de Oslo.

Passaram-se mais de 3 anos de conflito e foram perdidas mais de 4 mil vidas com 10 mil feridos e, entretanto, um novo ataque teve como motivo o mesmo local. Dessa vez, o pretexto para a violência foi a visita de um árabe muçulmano, o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Egipto, que viera a Israel em missão de paz. Ahmed Maher recebeu, na ocasião, a mais humilhante agressão a um árabe, segundo a tradição da região, quando dezenas de sapatos foram atirados em seu rosto enquanto iniciava suas orações na mesquita de Al Aqsa. Aos gritos de traidor, radicais palestinos atacaram o visitante que teve que ser transportado para um hospital israelita.

Este episódio demonstra quão cego e profundo é o ódio reinante nas massas palestinas. Os atacantes são moradores da Jerusalém Oriental, onde os mentores do “Acordo de Genebra” propõem instalar a capital do futuro Estado palestino. Fica difícil imaginar o avanço desta proposição nas actuais condições.

Arafat está entretanto politicamente queimado perante a comunidade internacional. Condena formalmente os actos terroristas, mas não impede na prática que eles se façam; tirou o tapete debaixo dos pés de Abu Mazen, considerado um interlocutor válido para levar o processo de paz a bom termo e levou-o à demissão.

Quanto a Sharon, foi uma criação dos radicais palestinos. É o terrorismo destes que o sustenta. Se for apeado do governo, sê-lo-á por outro mais radical, como Benjamin Netanyahu.

E assim continuaremos, enquanto a melhor oferta de uma das partes nunca for suficientemente boa para a outra.

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março 23, 2004

Israel e Palestina - A Questão dos Refugiados

As fronteiras de 1948/9 entre Israel e a Palestina decorrem da guerra que os países árabes fizeram a Israel, por não concordarem com a resolução da ONU, e na qual foram derrotados. Essa conflagração fez com que 600.000 palestinos se tornassem refugiados, como foi escrito no texto anterior.

Comparemos o problema israelo-árabe emergente da guerra de 1948, com a questão alemã resultante da derrota de 1945.

No início de 1949 estava estabelecido o estado de Israel, dentro de fronteiras aceites pelo armistício imposto pela ONU e assinado pelos estados árabes vizinhos.

Não reconhecer estas realidades tem, objectivamente, o mesmo significado que os alemães não reconhecerem a anexação da Posnânia, Silésia, Pomerânia Oriental e Prússia Oriental após a 2ª Guerra Mundial, em 1945.

Com a agravante que os alemães têm razões de queixa muito mais poderosas. Não ficou praticamente um alemão dos cerca de 10 milhões que habitavam aquelas terras, ao passo que na parte da Palestina que coube a Israel vivem hoje mais de 1 milhão de árabes.

Para além disso, houve a expulsão de 3 milhões de alemães dos Sudetas ao abrigo de uma lei promulgada por Benés, um democrata certificado pelas potências ocidentais. Os alemães dos Sudetas foram punidos em bloco, pela anexação resultante dos acordos de Munique.

Podemos discutir a legitimidade dos tratados e das leis que levaram à expulsão de 13 milhões de alemães e concluir que, hoje em dia, tal não deveria ser possível. Todavia as fronteiras actuais de Israel datam de 1948, uma data contemporânea dos tratados e leis que legitimaram o êxodo alemão e, portanto, dos conceitos que estiveram na sua base.

A diferença, na década de 40, entre os alemães e os árabes, é que aqueles auxiliaram os refugiados, aceitaram-nos, criaram-lhes empregos, integraram-nos na sociedade e permitiram que tivessem uma vida digna, enquanto os árabes mantiveram-nos, desde sempre e na maioria dos casos, em campos de refugiados, em condições sub-humanas, tentando utilizar o seu desespero como arma de “revanche”. Os refugiados palestinos são deixados pelos seus irmãos palestinos, e árabes em geral, em campos miseráveis, com o intuito de serem usados como arma contra Israel - quer como terroristas, aproveitando o seu desespero, quer para comover a opinião pública.

Várias gerações nasceram, cresceram e muitos morreram nestas condições. Em 1948 eram 600 mil e hoje estima-se que sejam cerca de 3 milhões.

O que se diria se os refugiados alemães vivessem em campos miseráveis, junto às fronteiras com a Polónia e R. Checa, desesperados e incentivados a fazerem ataques suicidas no outro lado da fronteira? Seriam apelidados de "revanchistas" e acusados de serem da extrema-direita.

Uma das chaves para a solução da questão israelo-árabe passa por encontrar uma solução alternativa ao regresso daqueles refugiados a Israel; regresso que nunca será aceite pelos israelitas pois alteraria drasticamente a demografia do estado, sem falar nas questões logísticas: Onde ficariam? que fariam? etc.. As casas dos seus antepassados já não existem, a paisagem urbana e rural alterou-se completamente.

Aliás, falar em regresso não faz sentido, porquanto a quase totalidade dos refugiados não nasceu no actual território de Israel.

Foi essa a principal razão que levou à ruptura das conversações de Ehud Barak com Arafat sob o patrocínio de Clinton. Ruptura que conduziu, directa ou indirectamente, à segunda Intifada e à espiral de horror dos últimos quatro anos. Arafat tentou pressionar Barak através da intifada, mas o que conseguiu foi o óbvio - a eleição de Ariel Sharon e a subida ao poder dos falcões israelitas.

Enquanto os refugiados forem usados como arma política, não haverá solução.

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A criação do estado de Israel

Em 1917, Lord Balfour, o secretário inglês para os Negócios Estrangeiros, fez publicar a Declaração Balfour, em que apoiava a imigração de judeus para a Palestina e o estabelecimento de um "lar nacional para o povo judeu" na região, afirmando que "nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes" (1). A Grã-Bretanha teve, obviamente, dificuldade de conciliar esta declaração com a estratégia que estava a seguir, no Médio Oriente, de uma aliança com os potentados árabes na guerra contra o Império Otomano.

Em fins do século XIX e princípios do século XX haviam começado as vagas de imigrantes judeus para a Palestina, sob os efeitos dos pogroms. A primeira vaga (1882-1903) provém sobretudo da Rússia e a segunda (1904-1914) da Rússia e Polónia. Antes dessas imigrações, a população judaica na Palestina era insignificante. O facto dessas migrações terem como destino a Palestina estava ligado ao aparecimento do movimento sionista. A expressão formal deste movimento foi o estabelecimento da Organização Sionista (1897), durante o Primeiro Congresso Sionista, reunido por Theodore Herzl em Basiléia, na Suíça. O programa deste movimento continha elementos ideológicos e práticos para a promoção do retorno dos Judeus à sua pátria histórica, onde "os Judeus não fossem perseguidos e pudessem desenvolver as suas vidas e identidade".

Em 1915, depois dessas duas vagas de imigração, viviam aproximadamente 83.000 judeus na Palestina conjuntamente com 590.000 árabes muçulmanos e cristãos. Porém em 1936 são já 400 mil, e em 1947, 600 mil. Para este aumento também concorreram as decisões da Sociedade das Nações, a seguir à Grande Guerra. Com efeito, o documento adoptado pela SDN em 24 de julho de 1922, que confiava o mandato sobre a Palestina à Grã Bretanha (2), precisava:

“O mandatário assumirá a responsabilidade de instituir no país um estado de coisas político, administrativo e económico. capaz de assegurar o estabelecimento do estado nacional para o povo judeu (art. 2).
(...) A administração da Palestina facilitará a imigração judaica em condições convenientes e de acordo com o organismo judaico mencionado no artigo 4. Estimulará o estabelecimento intensivo dos judeus nas terras do país, incluídos os domínios do Estado e as terras sem cultivar (art. 6)”.

E, principalmente, a degradação da vida dos judeus na Europa Central e de Leste à seguir à guerra. Assim, em 1920, começaram novas vagas de imigração de judeus do leste da Europa para a Palestina, que se reforçam após a subida de Hitler ao poder. Além dos judeus polacos e de outros países da Europa central, a nova vaga inclui numerosos judeus alemães. Em 1936 estão instalados, na Palestina, 400.000 judeus (3), a grande maioria azkenazes (judeus de tradição cultural germânica e muitos de língua yiddish).

Nas vésperas da guerra e durante esta, a situação foi desfavorável à imigração judaica em virtude da necessidade das potências ocidentais contarem com o apoio dos estados árabes para fazer face a Hitler. Em 1939 os britânicos decidiram limitar a 75.000 a imigração judia nos cinco anos seguintes, depois dos quais cessaria totalmente. Também proibiam as vendas de terras aos judeus na maior parte do território. Enquanto isso havia uma importante imigração árabe proveniente do Egipto e da Transjordânia, regiões muito mais atrasadas e empobrecidas, por razões económicas. A administração britânica e a instalação de colonos judeus, com grande dinamismo e qualificação, tornavam a Palestina bastante mais próspera que os territórios vizinhos.

A instalação dos judeus fez-se por compra das terras, inicialmente baldios, terras desocupadas ou não cultivadas. Só a partir de 1930 começaram a incidir principalmente na aquisição de terras já cultivadas. Era relativamente fácil: os judeus pagavam bom preço por elas e os donos, que ou eram proprietários absenteístas (a maior parte – 73%) ou locais vivendo miseravelmente, aceitavam de boa vontade a transacção. O pai de Ahmed el-Shuqeiri, líder da OLP, vendeu as suas terras a troco de dinheiro.

A partir da Conferência Aliada de Potsdam, de julho de 1945, Truman, novo presidente americano, pediu a Churchill, primeiro-ministro, que levantasse as restrições à imigração judaica à Palestina.

No final da guerra, em 1945, o Partido Trabalhista ganha as eleições. Sete meses antes, durante sua Conferência Nacional, os trabalhistas haviam proposto “o levantamento das medidas que limitavam a imigração de judeus”. Todavia, a esquadra britânica continuava a tentar impedir que os barcos com imigrados judeus chegassem à Palestina, internando, os que apanhava, em Chipre. Aproximadamente 50.000 pessoas estiveram detidas, 28.000 das quais continuavam presas quando Israel declarou a independência (em 14 de Maio de 1948).

A atitude da Grã-Bretanha quer no que respeita ao “êxodo” quer no que respeita à equidade (os judeus consideravam que a administração britânica favorecia os árabes) provocou a rebelião dos judeus que teve como ponto mais negro o atentado do Hotel do Rei David. O Hotel Rei David era a sede do comando militar británico e da Secção de Investigação Criminal Britânica. O Irgún, chefiado por Menahem Begin, escolheu-o como objectivo, como retaliação ao assalto pelas tropas britânicas da Agência Judia e confisco de grandes quantidades de documentos. O saldo das baixas foi elevado: um total de 91 mortos e 45 feridos. Entre as baixas havia 15 judeus. O Conselho Nacional Judaico denunciou este atentado. Mas isso não impediria Menahem Begin de chegar, muitos anos mais tarde, a 1º Ministro (1977-83).

Incapaz de conseguir uma solução acordada entre árabes e judeus, a Grã-Bretanha transferiu a decisão para a ONU, que nomeou uma Comissão Especial para a Palestina (UNSCOP) para planear uma solução. O resultado não foi unânime: os delegados de sete países —Canadá, Checoslováquia, Guatemala, Holanda, Peru, Suécia e Uruguai— recomendaram o estabelecimento de dois estados separados, um judeu e outro árabe, ligados por uma união económica, com Jerusalém como um enclave internacional. Três países —Índia, Irão e Jugoslávia— recomendaram um estado unitário com províncias árabes e judias. A Austrália absteve-se.

Em 14 de maio de 1947, Gromiko, o delegado soviético, pronunciava-se, na tribuna da ONU, por um “estado judeu-árabe único com direitos iguais para os judeus e os árabes”, precisando todavia: “Se esta solução resultar irrealizável devido as relações cada vez mais tensas entre os judeus e os árabes (...), então teria que se estudar uma segunda solução (...) que incluísse a divisão em dois estados independentes, um estado judeu e um estado árabe”. Em 29 de Novembro de 1947 era aprovada a partilha da Palestina em 2 estados, pela resolução 181 na Assembleia Geral da ONU. A Grã Bretanha, que se absteve, anunciou que não cooperaria na aplicação desse plano e que conservaria todos os seus poderes até ao fim do mandato que fixou para 15 de Maio de 1948.

Pelos resultados da votação (4) pode verificar-se que todos os países árabes ou islâmicos votaram contra. Os países árabes declararam imediatamente que não aceitariam a decisão e que se iriam opor a ela pela violência. Entre 7 e 15 de Outubro tinha-se realizado a reunião do Conselho da Liga Árabe em Aley (Líbano) onde foi encarada pela primeira vez a possibilidade de uma intervenção militar na Palestina.

Assim começou a guerra da independência, em que o novo Estado de Israel enfrentou os exércitos do Egipto, Síria, Transjordânia, Líbano, Iraque e os próprios palestinos, muitos dos quais foram induzidos a abandonar seus lares, na expectativa de um próximo retorno com a vitória dos exércitos árabes. Azzam Pashá, Secretario Geral da Liga Árabe afirmava: «Esta será uma guerra de extermínio e de grandes massacres, da qual se falará como dos massacres mongóis e das cruzadas».

Os primeiros assaltos em grande escala começaram em 9 de Janeiro de 1948, quando 1500 voluntários do Exército de Libertação de Fawzi Al-Qawuqji penetram na Palestina. Na primeira fase da guerra, que durou de 29 de novembro de 1947 até 1 de abril de 1948, os exércitos árabes, muito melhor armados, mantiveram-se na ofensiva. Os israelitas sofreram baixas elevadas.

Em fins de Março e no seguimento do acordo estabelecido em Dezembro de 1947 e ratificado em Janeiro de 1948 em Nova Iorque por Andrei Gromyko (5) e Moshe Shertok, as primeiras armas checoslovacas chegaram aos israelitas. A ofensiva israelita irá começar com a operação Nahshon e o plano Dalet. A partir daí, e sem o empecilho das forças britânicas, entretanto retiradas, a iniciativa passará ao exército israelita.

A derrota da invasão árabe levou os países árabes a firmarem, em 1949, um armistício com Israel, imposto pelas Nações Unidas, começando pelo Egipto (24 de fevereiro), seguido pelo Líbano (23 de março), Jordânia (3 de abril) e Síria (20 de julho). O Iraque foi o único país que não estabeleceu um armistício com Israel, decidindo em vez disso retirar as suas tropas e entregar o seu sector à Legião Árabe de Jordânia. Nenhum dos estados árabes negociaria qualquer acordo de paz. As linhas do armistício, bastante mais favoráveis a Israel do que as do mapa da partilha da ONU, são as designadas por fronteiras anteriores a 1967.

A guerra de 1948 ocasionou cerca de 600.000 refugiados palestinos, quer devido aos receios da guerra, quer devido às expedições punitivas dos israelitas, quer ainda por pensarem que depois regressariam com os exércitos vitoriosos.

É esta massa de refugiados, estimados actualmente em 3 milhões espalhados nos campos do Líbano, da Jordânia e da faixa de Gaza, que constitui o problema mais espinhoso nas negociações sobre o futuro da relação entre Israel e o Estado Palestino a ser criado.


(1) A carta foi publicada no Times e dizia:
Prezado Lord Rothschild,
Tenho muito prazer em transmitir-lhe, em nome do governo de Sua Majestade, a seguinte declaração de simpatia com as aspirações sionistas que foram apresentadas ao Gabinete e aprovadas por ele:
O Governo de Sua Majestade vê com simpatia o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu e envidará seus melhores esforços para facilitar a conquista desse objectivos, ficando claramente entendido que nada será feito que possa prejudicar os direitos religiosos e civis das comunidades não judaicas existentes na Palestina ou os direitos e condições políticas usufruídas pelos judeus em qualquer outro país.
Agradeceria que o senhor levasse essa declaração ao conhecimento da Federação Sionista.
Atenciosamente,
Arthur James Balfour

(2) O crescente fértil, que até então fazia parte do Império Otomano, foi dado em mandato à Grã-Bretanha (Palestina, Transjordânia e Iraque) e à França (Líbano e Síria).

(3) Imigrantes judeus na Palestina
1919 1.806
1920 8.233
1921 8.294
1922 8.685
1923 8.175
1924 13.892
1925 34.386
1926 13.855
1927 3.034
1928 2.178
1929 5.249
1930 4.944
1931 4.075
1932 12.533
1933 37.337
1934 45.267
1935 66.472
1936 29.595
1937 10.629
1938 14.675
1939 31.195
1940 10.643
1941 4.592

(4) Resultado da votação:
Votaram a favor: 33
Austrália, Bélgica, Bolívia, Brasil, Bielorússia, Canadá, Costa Rica, Checoslováquia, Dinamarca, República Dominicana, Equador, França, Guatemala, Haiti, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Nicarágua, Noruega, Panamá, Paraguai, Peru, Filipinas, Polónia, Suécia, Ucrânia, União Sul Africana, U.S.A., U.R.S.S., Uruguai, Venezuela.
Contra: 13
Afeganistão, Cuba, Egipto, Grécia, Índia, Irão, Iraque, Líbano, Paquistão, Arábia, Saudita, Síria, Turquia, Yemen.
Abstenções: 10
Argentina, Chile, China, Colômbia, Salvador, Etiópia, Honduras, México, Reino Unido, Jugoslávia.

(5) Andrei Gromyko, delegado soviético e futuro Ministro dos Negócios Estrangeiros, declarou, no Conselho de Segurança em 29 de maio de 1948:
Esta não é a primeira vez que os estados árabes, que organizaram a invasão da Palestina, ignoraram uma decisão do Conselho de Segurança ou da Assembleia Geral. A delegação da URSS julga que é essencial que o Conselho declare a sua mais clara e firme oposição relativamente a esta atitude dos estados árabes contra as decisões do Conselho de Segurança.

Em 15 de julho, o Conselho de Segurança ameaçou acusar os governos árabes de agressão, conforme a Carta da ONU.

No conflito israelo-árabe, não foi unicamente Israel que violou as decisões da ONU. Aliás, nem foi o primeiro.

Nota - ler os restantes:
Israel e Palestina - A Questão dos Refugiados
Ódio e humilhação
Arafat e Sharon

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março 18, 2004

Uma Sondagem Incómoda

Foi recentemente realizada uma sondagem entre a população que revela resultados interessantes e contraditórias com as opiniões furibundas e apocalípticas dos kamikazes de alguma comunicação social, de diversos espectros políticos e da net.

Em primeiro lugar, a credibilidade das entidades que estiveram envolvidas na sondagem (a Oxford Research International, que a fez, e diversas estações de televisão, como a britânica BBC, a americana ABC, a alemã ARD e a japonesa NHK, que a encomendaram e certamente validaram os seus critérios) e a dimensão da amostra (2737 iraquianos com mais de 15 anos) leva a supor que a amostra tem significado estatístico, embora aqueles que querem construir os factos à medida dos seus desejos argumentarão certamente que aquela amostra deveria ter sido constituída, na totalidade, pelos tradutores, motoristas, empregados de limpeza e restante pessoal assalariado daquelas entidades.

A acreditar nessa sondagem, que aliás corrobora uma outra realizada há meses atrás, muita da argumentação dos que exigem a retirada imediata das forças de coligação do Iraque cai pela base. Bem ... talvez me tenha precipitado ao escrever a frase precedente: os kamikazes que persistem naquela argumentação, furibundos, sedentos do sangue de Bush e não só, normalmente passam, displicentes, ao largo do empecilho incómodo dos factos. Apenas seleccionam aqueles que lhes convêm.

A primeira conclusão, traumática para quem tem escutado a “pesada, furiosa e tonitruante” argumentação dos que contestam a “ocupação estrangeira” do Iraque é a de que a maioria dos iraquianos diz que a sua vida está melhor agora do que há um ano, quando Saddam ainda estava no poder e não tinha ainda começado a guerra liderada pelos Estados Unidos. Segundo o inquérito, 56 por cento dos iraquianos consideram que a sua vida está agora melhor do que há um ano (22% afirmam mesmo estar muito melhor), enquanto apenas 19 por cento dizem estar pior. Cerca de 23% afirmam que a sua vida está na mesma. São melhores as expectativas para o futuro: daqui a um ano, acreditam 70 por cento dos iraquianos, tudo vai estar ainda melhor.

Isto independentemente de gostarem ou não de verem tropas estrangeiras no solo pátrio: A maioria (51 por cento) não gosta de ter tropas estrangeiras no Iraque e mais de quatro em dez inquiridos não tem "qualquer confiança" nas forças americanas e britânicas e quase 20% dos iraquianos consideram que os ataques às tropas da coligação são justificados.

Todavia, e isto é importante para se compreender a situação, 54 por cento afirmam que a segurança no local onde vivem é, depois da invasão, melhor do que era antes da guerra. Aliás, a segurança (a primeira prioridade para 85 por cento dos iraquianos) é a justificação para o desejo de que as forças estrangeiras continuem presente no país (18 por cento), enquanto 36 por cento acham que estas devem retirar mal haja um governo iraquiano e apenas 15 por cento são de opinião de que as forças estrangeiras devem sair imediatamente do Iraque. Os restantes preferem períodos de permanência das forças da coligação que variam entre alguns meses e mais de um ano. Isto é, 85% da população iraquiana não é contra a actual presença militar da coligação e 18% acham mesmo que ela devia continuar após a existência de um governo iraquiano legitimamente eleito.

Portanto, a conclusão da sondagem é límpida: para os iraquianos, a presença das forças de coligação é um mal necessário. Para os nossos órfãos de Lenine, que adoptaram os fundamentalistas islâmicos como sucedâneo do colapso dos amanhãs que cantam, aquela presença é o mal absoluto e a providência (Al-Qaeda) encarregar-se-á de castigar os rotweilers de Bush, Blair, Sharon e, por extensão, toda a civilização ocidental, fonte desse mal absoluto. E a sua «grande imprecação diante das muralhas da cidade» não deixa quaisquer dúvidas, só que este jogo é diferente e contrário.

Esta sondagem indica ainda um dado interessante: para a população iraquiana, os líderes religiosos são os mais confiáveis, para 70 por cento dos inquiridos logo seguidos pela polícia iraquiana (68 por cento). Ora os líderes religiosos e a polícia iraquiana são as vítimas privilegiadas da sanha terrorista. Esta sondagem permite perceber porquê. O terror, no Iraque, não está interessado na libertação do povo iraquiano. Mesmo as forças da coligação são um alvo menor. Os seus alvos privilegiados são aqueles que os terroristas sentem ter a confiança da população iraquiana. O seu alvo a atingir é a estabilização e a democratização do Iraque. Não se trata de resistência ao invasor, mas de terrorismo.

Para finalizar sublinho que não está em causa a legitimidade ou a não legitimidade da intervenção militar, do ponto de vista do Direito Internacional. Não é dessa matéria que tratou a sondagem, não é dessa matéria que trata este artigo. Quem quiser saber a minha opinião sobre isso, é favor consultar textos meus da época, arquivados no mês de Outubro de 2003. Nesta sondagem, o que está em causa é a opinião dos iraquianos sobre a actual situação, criada pela intervenção e vitória militar.

Aliás, o Presidente polaco, em declarações hoje proferidas, diz que o seu país foi enganado e «levado a acreditar» na existência de armas de destruição maciça no Iraque. Todavia continuou dizendo que uma retirada das tropas polacas da coligação do Iraque não faria qualquer sentido, afirmando que «estamos em meados de Março e eu coloco a questão: se a retirada deverá significar o regresso à guerra, à limpeza étnica, à agressão contra países limítrofes, qual será então o sentido desta retirada das tropas?». E o contigente polaco é, segundo creio, sete vezes mais numeroso que o espanhol.

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fevereiro 03, 2004

O mistério das ADM

Nunca estive convicta que Saddam tivesse armas de destruição maciça (ADM) em quantidade suficiente para se tornar um perigo para o mundo, embora acreditasse que havia programas para o desenvolvimento dessas armas e não pusesse liminarmente de lado a existência eventual de arsenais de ADM. Aliás, quando os inspectores das Nações Unidas foram expulsos do Iraque em 1998 era convicção geral entre as potências mundiais que os arsenais de ADM ou armas proibidas, que não tinham sido descobertos, existiam efectivamente. Se não existissem, qual a razão para Saddam expulsar os inspectores? Como acreditar que Saddam tivesse destruído esses arsenais e tivesse impedido os inspectores de verificarem esse facto que permitiria o levantamento das sanções que tanto transtorno e sofrimento causavam à população iraquiana? A questão que então se punha era descobrir as evidências dessa existência.

Também nunca acreditei que as ADM fossem a causa principal da invasão no Iraque. Se se derem ao trabalho de lerem os artigos que escrevi na altura dos acontecimentos, poderão verificar isso. Para apoiar as sanções da ONU, os EUA e o Reino Unido tinham instalado um importante dispositivo militar no golfo, nomeadamente na Arábia Saudita, que era muito dispendioso, que implicava baixas e que causava graves problemas políticos. Basta assinalar que foi a presença maciça de militares americanos na Arábia Saudita que foi considerada por bin Laden a principal razão da guerra da Al-Qaida aos EUA e dos ataques de 11 de Setembro. Portanto, entre uma guerra de baixa intensidade que se eternizaria, e uma guerra aberta que se julgaria mais rápida e definitiva, os americanos optaram pela segunda hipótese.

O relatório de David Kay, a ser fidedigno, e espera-se pelos inquéritos ordenados pelos governos britânico e americano ao funcionamento dos respectivos serviços de informação relativamente a esta crise para conclusões mais fiáveis, retrata uma realidade surrealista, passe o paradoxo.

Aparentemente Saddam andou a fazer bluff e só parou, tarde demais, quando o dispositivo militar americano estava instalado no terreno e muito dificilmente os americanos desistiriam da intervenção. Aparentemente, e pelas informações dos próprios inspectores da ONU, os comandantes das unidades de elite iraquianas, embora afirmando não disporem das ADM, davam a entender que outras unidades poderiam possui-las.

Uma situação semelhante ocorria com os cientistas dos programas de armamento que exageravam, em muito, a importância das suas investigações para cairem nas boas graças do ditador ou, pelo menos, para evitarem a sua fúria. Adicionalmente, obtinham financiamentos para as suas investigações e experiências.

Esta postura dos cientistas e técnicos dos programas de armamento não custa a acreditar se nos lembrarmos do que ocorreu na Alemanha nazi, nos últimos tempos do regime. Hitler foi sistematicamente enganado pelos seus generais e responsáveis pela produção de armamento com o intuito de evitarem a fúria do ditador, que apenas queria ouvir coisas que lhe dessem a esperança de poder inverter o curso dos acontecimentos.

No último ano do seu regime, Hitler, vivendo numa semi-clausura, já não tinha a noção das capacidades humanas e materiais da Alemanha e deixava-se iludir por conselheiros bajuladores para os quais essa adulação representava a sua sobrevivência física ou, pelo menos, política. Hitler já só ouvia aquilo que queria ouvir, e à medida que esse distanciamento da realidade aumentava, seria cada vez mais perigoso confrontá-lo com a realidade nua e crua. Quando Goebbels e outros chefes nazis ameaçavam o mundo com armas definitivas e com a guerra total estavam provavelmente convictos que elas se encontravam em vias de se tornarem operacionais.

Não custa a crer que um fenómeno idêntico tivesse ocorrido com o ditador iraquiano e com as chefias militares iraquianas. Igualmente aqui se criaram muitas ilusões e se perdeu o sentido das realidades. Basta ver que o Ministro da Informação iraquiano também ameaçou a coligação com a guerra total numa altura em que o descalabro das forças iraquianas era visível e irreversível.

Publicado por Joana às 07:50 PM | Comentários (48) | TrackBack

fevereiro 01, 2004

A Ressaca Hutton

Depois de algumas horas de estupor perante a visão de uma mundividência estranha e contrária aos nossos costumes, os jornalistas puro sangue lusitano começaram a reagir ao relatório Hutton.

E era urgente, porquanto o próprio PR, que normalmente só diz banalidades, quinta-feira à noite afirmava peremptoriamente, no Porto, que Portugal «precisava era de um Lord Hutton». O PR teria a desculpa de estar adrenalinizado pelo caso das cartas anónimas, mas os jornalistas portugueses estavam confrontados com um péssimo exemplo, que instava erradicar antes que frutificasse.

No Público de hoje, dois nomes tão distantes como Mário Mesquita, o guru do jornalismo português, e Ana Sá Lopes, provavelmente a jornalista portuguesa em que o emaranhado das teias de aranha ideológicas que lhe sedimentaram o crânio mais distorcem a objectividade dos factos, congregaram forças e investiram contra o Relatório Hutton.

Uma das formas de viciar a objectividade dos factos é explicá-los inserindo-os numa ameaça conspirativa. E se essa ameaça for protagonizada pelas omnipotentes forças do mal (os patrões dos grandes grupos multimédia) contra as indefesas forças do bem ("serviços públicos" de televisão), então temos os condimentos necessários para empolgar os que querem ser convencidos. A prova era evidente e não escapou à mente perspicaz do nosso guru: o relatório Hutton foi noticiado, em primeira-mão, pelo tablóide "Sun", propriedade de Murdoch, através uma "fuga de informação"- eis a «prova» evidente e irrefutável da conspiração.

E o nosso guru, com um poder dedutivo potenciado pela necessidade de acudir à corporação dos jornalistas pouco escrupulosos em matéria de objectividade e de rigor ético, apercebeu-se, com limpidez, dos «bem encenados protestos de Blair e de Hutton» contra a violação do segredo de justiça que permitiu antecipar a publicitação do relatório e denuncia-os. Os factos que permitiram ao nosso guru uma dedução tão brilhante sobre a «boa encenação dos protestos», não foram aduzidos. Mas que importa, aos jornalistas puro sangue lusitano, o embaraço incómodo dos factos?

Está tudo explicado. E o nosso guru acrescenta “três quartos da reportagem investigativa do jornalista Andrew Gilligan era rigorosa e exacta. A acusação do "Hutton report" centra-se num único ponto, justamente considerado muito grave. Gilligan "apimentou" a sua reportagem com extrapolações abusivas. Este procedimento é condenável, mas não contamina toda a reportagem”.

Portanto, na opinião corporativa de Mário Mesquita, o facto de 25% da reportagem estar apimentada com extrapolações abusivas e serem estas justamente o motivo da polémica, e que indirectamente estiveram no suicídio de David Kelly, não contaminava a reportagem. Pois não, Mário Mesquita, não contaminava a reportagem para aqueles que queriam acreditar nas extrapolações abusivas; não contaminava a reportagem para quem tem uma ideia pouco escrupulosa do que deve ser o rigor da informação, nomeadamente quando as extrapolações abusivas incidiam sobre as informações de David Kelly, deixando de rastos a integridade profissional do infeliz biólogo britânico.

Outra forma de viciar a objectividade dos factos é inquiná-los com alegações moralistas. E, nesta vertente, também brilhou o nosso guru. Para Mário Mesquita, as passagens do "Hutton report" relativas às causas da morte de David Kelly representam um exercício conjugado de positivismo jurídico e de psicologia de cordel, e desrespeitam a sua memória. Portanto, julgar condenável a desobediência de um funcionário ao "código de conduta" da função pública, é desrespeitar a memória do mesmo.

Mário Mesquita está redondamente enganado. A forma de respeitar a memória de David Kelly é sublinhar que foi a sua integridade e as extrapolações abusivas sobre as suas declarações que o levaram ao suicídio. Para Mário Mesquita não existem "códigos éticos", mas para a integridade profissional de David Kelly existiam. Por isso ele se suicidou; por isso Mário Mesquita não percebe porquê; por isso eu escrevi há dias que estamos perante duas civilizações diferentes.


Quanto à depoente Ana Sá Lopes não vale a pena perder tempo com ela. O seu escrito é típico da facção que julga que os fins legitimam os meios. A intervenção militar no Iraque foi, na sua opinião, uma guerra injusta e Blair deve ser condenado. Portanto, qualquer que seja a matéria sobre que esteja a ser julgado, tudo o que ilibe Blair e o governo britânico, mesmo quando não é a justeza dessa intervenção que esteja a ser julgada, como foi o caso do inquérito Hutton, é de «um maniqueísmo extremo».

A invasão do Iraque é, para Ana Sá Lopes, o pecado original de Blair. Pior, visto o pecado original poder lavado na pia baptismal, enquanto que o pecado do apóstata Blair não tem lavagem possível. A partir deste vício de julgamento, qualquer comportamento de Blair sobre qualquer matéria ou objecto, está condenado à partida – pois quê, então ele não invadiu injustamente o Iraque?

Delenda Blair

Publicado por Joana às 11:50 PM | Comentários (33) | TrackBack

janeiro 29, 2004

Choque de civilizações

A forma como no Reino Unido foi dirimida a questão David Kelly mostrou que o UK está muitas dezenas de anos afastado do nosso país em matéria civilizacional. Eu não queria afirmar se esse afastamento será um avanço ou um atraso. A mim parece-me um avanço e muito significativo. Mas para não polemizar, fiquemos no “afastamento”.

E isto porque:

1 – O Sr. David Kelly era uma homem que prezava a sua honorabilidade, sabia que devia lealdade à instituição de que era funcionário e apercebeu-se que as suas eventuais declarações a Andrew Gilligan, bastante amplificadas segundo se depreende das afirmações que produziu no parlamento no âmbito da sua audição e agora pelos resultados do inquérito, o colocavam numa posição com a qual a sua honra, e o respeito que devia a si próprio, não podiam continuar a conviver.

Em Portugal, os detentores de cargos da Administração Pública, ou parte significativa deles, não sentem quaisquer pruridos em contar aos jornalistas tudo o que lhes apraz, satisfazerem vinganças mesquinhas, pessoais ou políticas, ou apenas a sua sede de protagonismo. Basta ver como os despachos e autos cobertos pelo segredo de justiça são conhecidos na íntegra ou em partes importantes, cá fora, ainda antes que os interessados deles tenham conhecimento. E isto é mais grave que um atropelo de ética – é uma violação grosseira e impune da lei.

2 – O Parlamento Britânico foi firme perante as fugas de informação e fez uma audição em que as questões relativas à obrigação de lealdade do servidor público prevaleceram sobre disputas partidárias ou opiniões divergentes sobre a questão das razões da guerra. O Parlamento Britânico sabe separar as instâncias e as situações em que se devem discutir uma e outra questão e que as eventuais razões, ou ausência delas, numa, não justificam o comportamento na outra.

Os parlamentares portugueses, ou parte significativa deles, não têm nem coragem política, nem autoridade moral para tomar uma atitude idêntica. Aliás, mesmo que alguns o quisessem fazer, e ao invés do acontecido no Parlamento Britânico, as querelas partidárias prevaleceriam sobre questões éticas e o debate afundar-se-ia na esterilidade sem futuro em que decorre a nossa vida política.

3 – A BBC, pode ter feito um mau jornalismo mas, em face da situação que se gerou, soube assumir as suas responsabilidades:

Em primeiro lugar, revelou a sua fonte.

Depois, admitindo que a sua actuação poderia não ter sido apropriada, sujeitou-se a um inquérito dirigido por um juiz.

Finalmente, em face dos resultados do inquérito, reconheceu imediatamente que eram falsas algumas alegações-chave avançadas pelo jornalista Andrew Gilligan sobre o dossier do armamento iraquiano que serviu para justificar a entrada dos britânicos na guerra.

E fez algo estarrecedor e incompreensível para os costumes lusos: pediu desculpas públicas.

Pior e mais enigmático para os puro sangue lusitanos, o Presidente da BBC demitiu-se!

Em Portugal, os meios de comunicação portugueses não fariam declarações públicas, como as que a BBC fez, revelando a sua fonte. Para os jornalistas portugueses, ou parte significativa deles, a sua liberdade informativa está acima das instituições e sobrepõe-se a quaisquer questões de ética, respeito pela dignidade e privacidade da pessoa humana, atropelos à lei, etc..

Por exemplo, no caso das Cartas anónimas anexas ao processo Casa Pia, estas foram tornadas públicas pelo JN, violando a deontologia profissional, comentadas, segundo o JN, por alegados especialistas de Direito Penal, o que era obviamente falso, visto que verdadeiros especialistas não diriam os disparates que o JN inseriu como tais e, em face dos protestos que choveram, entre eles do PR, o JN nem pediu desculpas, nem admitiu qualquer conduta menos própria.

Em Portugal, Gavyn Davies estaria esta noite a ser entrevistado em horário nobre, para todos os canais, explicando com convicção, firmeza e determinação que apenas tinha cumprido o seu dever indeclinável de informar o público e como esse era o valor mais elevado a que ele se sentia vinculado.

Ou Portugal ou o UK, um deles, tem muito, mas mesmo muito, que aprender (ou desaprender).

Publicado por Joana às 08:53 PM | Comentários (19) | TrackBack

janeiro 22, 2004

Rosas atravessa o Lethes a meio de um artigo

Uma interessante faceta de alguns intelectuais da nossa praça é a de serem capazes de fazerem, sobre um dado tema, uma afirmação e a sua negação de forma peremptória, conclusiva e sem margens para dúvidas, quer quando afirmam, quer quando negam.

Esse fenómeno quase-hegeliano pode suceder quer em escritos espaçados no tempo – quem se afadiga a escrever nem sempre se lembra do que havia escrito dias ou meses antes – quer num único e contraditório escrito.

Rosas postulava ontem no Público mais uma definitiva tese sobre o envolvimento americano no Iraque. Nesse artigo seminal, para demonstrar como a posição americana estava irremediavelmente comprometida, Rosas afirmava que « as forças ocupantes anglo-americanas já não podem sair do Iraque como quereriam. Ou o abandonam expeditamente e a curto prazo, não garantindo o controlo político, militar e das matérias-primas da região, ainda por cima com o risco de deixar no governo uma reedição xiita dos "ayatollahs" iranianos que lhes fará ter saudades do cooperante Saddam de outros tempos e isso será o reconhecimento público de uma grave derrota da estratégia da "guerra infinita". Ou prolongam e intensificam a sua presença militar para ver se agarram alguma coisa, e arriscam-se a sair de Bagdad como um dia saíram dos terraços da embaixada de Saigão: pendurados nos helicópteros

Portanto, Rosas é claro: quer os americanos, quer os iraquianos estão «entalados». Os primeiros porque qualquer solução é uma derrota, os segundos porque, se os ocupantes coloniais e imperialistas retirarem, vão ficar à mercê dos "ayatollahs" iranianos, dos independentistas curdos no norte, da resistência armada dos apoiantes do Baas e do terrorismo islamista.

Um caos horrível, pavoroso, pior que o pior dos noticiários da TVI. Eu já me dispunha a fazer um zapping misericordioso para outro artigo, quando me lembrei que o Rosas é um intelectual cheio de recursos e deixei-me ler o resto. E o resto era uma mensagem de felicidade.

E era uma mensagem de felicidade, porque Rosas pretendia fazer um apelo à comparência na «segunda grande manifestação internacional contra a guerra que vai ter lugar no próximo dia 20 de Março». Agora, escreve ele, «é urgente que a possamos repetir para esconjurar a injustiça e a desumanidade resultantes de a não termos conseguido impedir

Mas como é possível convencer o pessoal a ir a uma manifestação para apelar à instalação do caos no Iraque, segundo os sábios e iniciais parágrafos do preclaro ensaísta e historiador?

Simples (e cito): «a despeito do caos, da destruição e da violação de direitos que a invasão do Iraque originou, só há uma solução possível para o problema: a retirada incondicional das tropas ocupantes; a instituição no terreno de uma entidade internacional reconhecida por todas as partes que viabilize a autodeterminação democrática e a independência nacional do povo iraquiano»

A varinha mágica de Rosas viabiliza, no seu último parágrafo, aquilo que tinha inviabilizado nos primeiros.

É que, ao entrar nesse último e salvador parágrafo, Rosas atravessou o Rio Lethes, o rio do eterno esquecimento. Com a sua memória «limpa» Rosas escreve « Continuo a surpreender-me com os "realistas", que dizem que uma solução deste tipo precipitará o país no caos».

Rosas post-Lethes surpreende-se com o Rosas anterior à travessia desse rio fatal.

É normal: os génios não param de se surpreenderem a si próprios!

Publicado por Joana às 09:37 PM | Comentários (19) | TrackBack

janeiro 20, 2004

A comunidade internacional e o Iraque

A propósito da cimeira que se realizou ontem sob os auspícios da ONU e que terminou inconclusiva, queria tecer algumas considerações.

A forma com a questão iraquiana está a ser encarada no mundo ocidental não é mais que a velha querela dos limites da nossa civilização, da nossa relação com os outros e da nossa relação com nós próprios.

Criámos uma civilização tolerante, democrática e próspera. Mas ao fazê-lo, relacionámo-nos com os restantes de uma forma paternalista, discriminadora, mesmo desdenhosa. Embora muitos de nós não o reconheçam e acreditem sinceramente o contrário, consideramo-los inferiores.

Mas a nossa tolerância e democracia também criou dentro de nós o oposto: aqueles que teorizam, em diversos matizes, que “se é branco e rico, é culpado, se é de cor e pobre, é inocente”, de que há sempre desculpa para o ditadorzeco que rouba os seus concidadãos e reclama em Fóruns Sociais Internacionais indemnizações pelo tráfico de escravos de há mais de 150 anos e de que nós teremos que estar sempre com “má consciência” perante o terceiro mundo.

Essa conflitualidade que, em certa medida, impediu a convergência entre os EUA e o eixo franco-alemão, tem prejudicado em muito o apressar de uma solução para o Iraque e o combate ao terrorismo.

A administração Bush não parece ter avaliado todas as consequências da intervenção no Iraque tal como foi feita. Não a vitória militar que, excepto entre os tiffosi anti-americanos, nunca esteve em dúvida, mas a possibilidade de gestação rápida de um Iraque democrático.

O eixo franco-alemão apostou na rotura com as posições americanas convencido que os americanos não dispensariam o seu apoio e que a sua atitude lhes traria dividendos no xadrez do Médio Oriente. Foi um equívoco total. A França acabou por ter que contratar gestores de imagem para melhorar a sua imagem nos States e os dividendos foram para quem tem dinheiro e força política e militar, não para os tíbios e para quem mendiga as boas graças. Quando os governos francês e britânico cediam perante Hitler para esmolar a sua boa vontade, apenas obtiveram o seu desprezo e o prosseguimento da sua política belicista. Julgaram comprar a paz pelo preço da honra e perderam a paz e a honra. E quem ascendeu ao poder e guiou a Grã-Bretanha à vitória foi Churchill, antes considerado belicista.

Para que exista convergência, a administração americana terá que se aperceber que o unilateralismo das suas acções, mesmo que militarmente possa impor-se, tem limites na fase subsequente ao conflito. A democracia não se impõe na ponta das baionetas. Baseia-se num consenso nacional que terá que ser construído. E as potências ocidentais terão que aceitar uma «democracia» frágil, certamente defeituosa e insuficiente, num país, numa região, onde não há tradições democráticas, onde não há Estados laicos, onde as conquistas que o mundo ocidental fez nos últimos 3 séculos, ainda são letra morta. Não pode esperar muito mais.

Por sua vez a Europa terá que se aperceber que o combate ao terrorismo e à intolerância em nome da religião não se pode fazer pactuando com os mentores directos ou indirectos desse terrorismo e dessa intolerância e tentando cair-lhes nas boas graças. Uma política de cedências só conduz à necessidade de mais cedências, até se ficar encurralado.

O objectivo é tentar encontrar uma solução que tenha o apoio da comunidade internacional, convencendo a Administração Bush que essa solução terá que ser encontrada fora do quadro do unilateralismo americano vigente, mas que não será nem uma solução anti-americana, nem uma solução pantanosa, sem operacionalidade.

Nessa medida, esta cimeira deveria ter sido mais consistente nas suas conclusões. A ONU não parece empenhada em regressar ao terreno, não parece haver condições para eleições democráticas no calendário desenhado pelos americanos e a situação continua muito fluida, com o segmento social iraquiano mais forte numericamente a tentar fazer valer a sua força e a sua visão do mundo.

Parece óbvio que a comunidade internacional terá que aceitar uma «pseudo-democracia», pois não haverá condições para mais. Julgo todavia que deverá ficar com os instrumentos que lhe permitam evitar que essa «pseudo-democracia» resvale para uma teocracia populista dominada pelos xiitas. Senão, teria sido em vão todo o esforço feito, os mortos, os incapacitados, os que sofreram.

Publicado por Joana às 11:05 PM | Comentários (29) | TrackBack

dezembro 21, 2003

Armas de destruição maciça finalmente descobertas … na Líbia

Foi anunciado ontem que a Líbia havia aceitado desmantelar o seu programa de armas químicas, biológicas e nucleares, cuja existência nunca tinha admitido. O anúncio foi feito por Tony Blair, primeiro, e George Bush, minutos depois, os quais revelaram que a Líbia também havia aceitado a realização de inspecções internacionais, imediatas e incondicionais, às suas instalações militares, as quais deverão agora de ser coordenadas com as organizações internacionais.

Além do programa de armas de destruição maciça — cuja dimensão não é conhecida —, a Líbia aceitaria igualmente destruir os seus mísseis de longo alcance, mantendo apenas os que tenham um raio de acção inferior a 300 quilómetros.

Aparentemente foram emissários de Kadhafi que, há cerca de 9 meses, haviam contactado os governos britânico e americano, comunicando-lhes a disponibilidade da Líbia para renunciar ao uso destas armas. O dossiê, cujo acordo foi ontem anunciado, começou então a ser negociado.

Nos meses que se seguiram, a Líbia forneceu informações detalhadas, sobre os seus arsenais, a peritos britânicos e norte-americanos. A Líbia admitiu que estava a trabalhar no desenvolvimento de uma bomba nuclear e que tinha em seu poder "quantidades significativas de um agente químico".

Muhammar Kadhafi deu o seu aval ao acordo tripartido, renunciando ao uso de todas as armas não convencionais e aceitando assinar os tratados internacionais sobre armamento nuclear, químico e biológico.

Esta notícia constitui uma enorme vitória para Bush e Blair e representa um poderoso argumento para a sua política “musculada” de lidar com estas questões.

De acordo com as declarações, os líbios começaram as negociações dias antes do desencadear do conflito iraquiano, quando já todo o dispositivo militar americano estava no Golfo Pérsico e não havia quaisquer dúvidas sobre o ataque da coligação anglo-americana ao Iraque de Saddam Hussein.

Portanto, é lógico deduzir que os líbios fizeram uma análise benefício-custo sobre a posse e o desenvolvimento das suas armas de destruição maciça e escolheram destruí-las, por considerem porventura que os custos da sua detenção poderiam revelar-se muito superiores aos seus benefícios.

Pondo a questão em termos de um jogo de soma não nula, a Líbia tinha 2 estratégias alternativas: manter o seu programa de armas maciças ou acabar com ele. Acabando com ele ganha respeitabilidade internacional e as perdas seriam mínimas, pois dificilmente a Líbia alguma vez poderia usar aquele armamento, em vista do risco de retaliação que corria.

Se continuasse com o programa, arriscava-se a que ele viesse a ser descoberto e a Líbia envolvida num conflito semelhante ao do Iraque. A política musculada de Bush fez com que esta estratégia possa ter um custo muito elevado. Kadhafi examinou a matriz pay-off com os novos dados emergentes da política de Bush face ao Iraque e concluiu que a estratégia que lhe minimizava os prejuízos (minimax) era confessar o seu próprio programa de armamento de destruição maciço e acabar com ele.

É o dilema do prisioneiro aplicado à política internacional: quando uma dada estratégia se começa a revelar como podendo comportar custos catastróficos, ela é abandonada, pois os ganhos previsionais, na eventualidade do adversário não a contestar, não compensam os custos insuportáveis, no caso do adversário a contestar.

A questão, na Teoria dos Jogos e na política internacional, é que o adversário esteja certo que há estratégias que comportam custos catastróficos.

Outra conclusão é a de que afinal sempre se descobriram armas de destruição maciça ... mas na Líbia.

Como hoje é dia de caça, poderemos dizer que Bush atirou a um coelho e acertou noutro ...

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dezembro 14, 2003

A captura de Saddam

A captura de Saddam é um passo importante na estratégia americana de estabilização do Iraque e do Médio Oriente em geral, mas de forma alguma decisivo.

A captura de Saddam vai debilitar a guerrilha, principalmente a facção conduzida pelos seus apoiantes. Saddam era um símbolo. O facto de permanecer na clandestinidade apesar do poderio americano e o carisma que teria perante os seus fiéis, agia como um poderoso estímulo. A sua captura, o vídeo da sua observação pelos médicos da coligação, reduziram-no, de líder místico, à sua condição humana.

Uma guerrilha para funcionar tem que ter um vasto suporte popular. Precisa do suporte logístico de parte da população. Esse suporte pode basear-se no apoio popular ou no medo. Saddam, mesmo na clandestinidade, infundia terror à população iraquiana. A captura de Saddam vai reduzir em muito aquele apoio logístico. É certo que a captura de Saddam mostrou um homem refugiado numa toca miserável, aparentemente sem grandes possibilidades de uma direcção efectiva da resistência. Todavia ele era o símbolo da resistência, independentemente da situação em que se encontrava na altura da captura.

Durante a guerra, a realidade mostrou que, para além dos elementos mais próximos do regime e dos kamikazes importados dos países islâmicos vizinhos, os iraquianos não combateram ou, quando o fizeram, fizeram-no porque foram obrigados. Aliás, Saïd Al-Sahaf, o mediático Ministro da Informação de Saddam, fez várias declarações públicas ameaçando os soldados iraquianos pela sua fraca determinação. Na primeira oportunidade, dissolviam-se no ambiente que os rodeava.

O regime de Saddam era um regime despótico e sangrento que se impôs pelo terror. Poucos teriam vontade de o defender, embora muitos tenham sido obrigados a isso.

Sendo assim, a guerrilha estará ser conduzida pelos seus apoiantes mais indefectíveis e por algumas bolsas isoladas dos kamikazes islâmicos e de milícias fanáticas, embora nestes últimos casos guerrilha não seja a palavra adequada, mas sim terrorismo. É provável que a captura de Saddam faça com que a capacidade dos seus apoiantes diminua substancialmente a médio prazo, embora no imediato possam surgir algumas tentativas de mostrar que a resistência está viva.

Restam os fundamentalistas, a Al-Kaeda, etc.. Mas estes precisam de algum suporte popular. Esse suporte pode ser obtido pelo apoio político ou religioso, ou pelo terror. Entra aqui a componente política. Um combate destes tem uma forte componente política. Tem que ser estabelecido um clima de segurança e haver uma retoma económica que permita a melhoria das condições de vida das populações. Aliás, estes objectivos estão interligados. É difícil estabelecer um bom clima económico num país em que os bandoleiros agem impunemente. A segurança de pessoas e bens é indispensável ao funcionamento económico.

Foram cometidos muitos erros, nomeadamente após a vitória militar. A coligação, depois de ter vencido a guerra, tem que saber vencer a paz, pois se não o souber fazer, é bem provável que continuem a ocorrer acções terroristas e que, inclusivamente, apareçam focos de rebelião que possam dar origem a uma guerra de guerrilhas conjugada com acções terroristas.

Uma palavra sobre os dirigentes políticos que se demarcaram ou contestaram violentamente a intervenção no Iraque. Podem haver dúvidas ou certezas sobre a legitimidade dessa intervenção perante o Direito Internacional(*). Todavia, posteriormente, a resolução a 1511 da ONU legitimou a situação actual e, indirectamente, a própria intervenção.

Não se compreende portanto que dirigentes políticos com responsabilidades se congratulem com a captura do ditador iraquiano sublinhando todavia que continuam a discordar da intervenção. Como era possível uma sem a outra? Se não houvesse intervenção não teria sido possível a actual captura e as congratulações desses dirigentes. Eles não podem congratular-se com algo que decorre de uma acção com a qual discordam.

Reconhece-se que esses dirigentes estão numa situação embaraçosa. Não podem deixar de mostrar a sua satisfação, perante a opinião pública, pela captura de um ditador cruel e sanguinário. Por outro lado foram, e continuam a ser, veementemente contra a intervenção que permitiu agora essa captura ... só os políticos têm este talento infindo para resolverem o problema milenar da quadratura do círculo!

(*) Ver os meus textos em arquivo sobre estas questões

Publicado por Joana às 11:48 PM | Comentários (56) | TrackBack

novembro 18, 2003

Nicolau Santos, Missed in Action

É incontestável que a administração Bush avaliou mal as consequências da estratégia que decidiu seguir relativamente a Saddam Hussein. Não me refiro à condução da guerra em si, que avaliou correctamente, mas sim à gestão do Iraque após o conflito, acerca da qual fez uma avaliação desastrada. Simplesmente não era possível separar uma coisa da outra: a guerra e a gestão após a guerra.

A posição de alguns países importantes da UE, o chamado Grupo dos 4, também foi desastrada. Em vez de uma política de apoio condicional a Washington, a única política sensata face à determinação americana e aos meios à disposição da Europa, o eixo franco-alemão, com o apoio da Rússia, adoptou uma política intransigente face às posições americanas que tiveram as seguintes consequências:

- Saddam e a clique militar e política iraquianas optaram por resistir até ao limite, sempre convencidos que vetos salvadores da França ou da Rússia entravariam a acção americana. Toda a política francesa de então poderia levar a concluir isso. Todavia, eu própria na altura escrevi que tal era uma hipótese a descartar, pois a Rússia vender-se-ia por um prato de lentilhas e a França não tinha força para protagonizar o nostálgico papel de grande potência, como se viu depois. Aliás teve que contratar o Woody Allen e outros para melhorarem a sua imagem nos States, o que diz do ridículo da posição francesa.

- A administração Bush passou a considerar aqueles países como “países inamistosos”, com os quais nem valeria a pena dialogar. Blair ficou assim isolado, sem capacidade de influenciar a administração Bush numa estratégia mais flexível.

Em política nunca se sabe se as alternativas conduziriam a melhores resultados. Não se sabe se Saddam abandonaria voluntariamente o poder, nem se sabe se, na sua “entourage” não poderia aparecer um núcleo de personalidades que, ajudadas pelo exterior, pudessem obrigar a uma solução negociada.

Em qualquer dos casos, todas estas hipóteses foram eliminadas pela forma desastrada como a administração Bush e o eixo franco-alemão se comportaram nos preliminares à eclosão do conflito.

Um parênteses aqui para uma referência àqueles que falam da “sabedoria” europeia perante estes conflitos. A Europa, na última década, assistiu inerme ao genocídio perpetrado pelos sérvios, primeiro nas zonas das minorias sérvias da Croácia, depois na Bósnia e finalmente no Kossovo. Quando os sérvios bombardeavam diariamente Dubrovnik, património mundial, um ministro francês propôs realizar um espectáculo cultural em Dubrovnik de solidariedade com os martirizados croatas. Estes recusaram indignados. Celebrações dessas fazem-se em face de calamidades naturais. Às bombas responde-se com bombas. A Europa foi então de uma absoluta hipocrisia e, em todos aqueles conflitos, tiveram que ser os americanos a resolver aquilo que a “sabedoria” europeia não era capaz resolver.

Os que referem actualmente a “sensatez” e a “sabedoria” da tibieza da Europa face à actual situação do Médio Oriente ou são desmemoriados, ou trouxas, ou ambas as coisas. Isto na melhor das hipóteses. Provavelmente serão hipócritas. Isto não significa que o cabedal de experiência que a Europa adquiriu, ao longo de séculos de vivência diplomática, não seja utilizado. O que não se deve é confundir experiência diplomática com tibieza e cobardia e justificar estas com aquela.

Regressando ao Iraque, chegámos à situação actual, em que as forças anglo-americanas, e as que se lhe uniram, enfrentam quer a resistência de elementos pró-Saddam, quer terroristas kamikazes iraquianos ou vindos doutros países árabes, quer bandoleiros que em face do vazio da autoridade resultante do fim do regime Baas e dos erros dos americanos, que não souberam trazer para o seu lado uma parte significativa dos aderentes do partido Baas que o eram apenas por obrigação, aterrorizam a população e jornalistas incautos e inexperientes.

Esta situação era previsível. Em Portugal, a seguir às guerras liberais, e durante mais de 2 décadas, agiram, praticamente às claras, inúmeros bandos de salteadores, tendo alguns até entrado na história, e só pouco a pouco, com a consolidação do regime e da autoridade do Estado, foram sendo eliminados. Eram apenas bandoleiros, embora muitos deles usassem referências políticas como alibi, mas absolutamente destituídas de significado.

Nesta situação, o dever da Europa, não por subserviência com os EUA, mas por necessidade de sobrevivência própria, é o de apoiar “condicionalmente” os EUA, ajudando a encontrarem uma saída para esta questão com o melhor rácio benefício-custo. Definir um faseamento racional da implementação das novas instituições iraquianas e da retirada progressiva e o mais rápida possível dos efectivos militares estrangeiros, de forma a dar força, credibilidade interna e confiança aos elementos democráticos da sociedade iraquiana. Por enquanto, a acreditar na sondagem Gallup, a maioria da população iraquiana deseja a continuidade da presença da coligação militar internacional até à estabilização, não por “amar” os americanos, mas porque sabe que sem eles, agora, seria o caos social.

Portanto, quaisquer que sejam as considerações que façamos sobre as razões ou as não razões que até aqui assistiram aos diversos protagonistas deste conflito, a situação actual diz respeito a todos nós, europeus e americanos e deve ser analisada em conjunto com sensatez e ponderação.

É à luz deste intróito que deve ser examinado o texto publicado ontem, 17-11-03, no Expresso online, da autoria de Nicolau Santos.

É um texto catastrofista, insensato, apelando à emoção irracional e terceiro-mundista, cujo estilo está muito mais próximo do estro de um radical de esquerda adolescente, escrevinhador nos fóruns da net, que de um jornalista de um semanário considerado de referência.

A frase “o que se estão agora a preparar para fazer é tão rasteiro, tão baixo, com tanta falta de dignidade que só pode conduzir a que aumente o ódio e a falta de respeito pela administração americana em todo o mundo” é paradigmática do que escrevi acima. Não é possível a substituição dos soldados dos EUA pelos capacetes azuis, como NS escreve, ao imaginar Bush de joelhos, de olhos orvalhados pela emoção, a implorar capacetes azuis à ONU. Os capacetes azuis não têm qualquer capacidade operacional. Poderão ajudar as forças americanas e britânicas. Nunca substituí-las. Quem faz afirmações destas não deve estar na completa posse das suas faculdades cognitivas.

O Iraque não é o Vietname do Sul. Não tem os santuários, nem um Vietname do Norte na retaguarda a dar-lhe apoio logístico em meios humanos e materiais, nem o chamado “mundo socialista” igualmente a fornecer apoio logístico.

Por outro lado uma capitulação do mundo ocidental no Iraque teria efeitos absolutamente diversos do que sucedeu no Vietname. No Vietname havia gente com convicções, que lutava com determinação e sacrifícios inexcedíveis pela independência e reunificação do seu país, mas que apenas desejava isso. Poderiam ter convicções políticas diferentes de muitos de nós … mas eram da nossa civilização, pelo menos em muitos dos seus valores mais fundamentais. Era gente previsível.

No Médio Oriente, a luta é contra concepções que já no fim da Idade Média tinham sido abolidas da Europa. É uma luta da sociedade laica contra sociedades teocráticas; é uma luta de uma sociedade que respeita direitos, liberdades e garantias, contra sociedades que desconhecem esses conceitos na sua vivência mais comezinha; é a luta da tolerância contra a intolerância e, o que é mais grave, contra uma intolerância que se afirma como valor universal e que pretende impor os seus valores ao resto do mundo.

Isto não quer dizer que a nossa sociedade não cometa erros, não seja, às vezes intolerante, não atente, às vezes, contra a liberdade dos outros. Mas, e isso é o fundamental, a nossa sociedade, pelo seu processo de funcionamento, é capaz de se aperceber desses erros e corrigi-los rapidamente. É uma sociedade que tem em si a capacidade do seu próprio aperfeiçoamento. É uma sociedade que é capaz de se regular a si própria no caminho do progresso e da prosperidade, mesmo que nem sempre o faça de forma linear.

O último helicóptero, Nicolau Santos, não sairá de Bagdad. Se acontecesse a sua visão calamitosa o último helicóptero sairia de uma das últimas capitais europeias na direcção de alguma ilha perdida no Pacífico.

Mas você, Nicolau, ficaria aqui, de turbante e albornoz puídos a substituírem o decadente lacinho, resquício desnecessário de uma civilização moribunda, integrando uma cáfila de camelos remoendo cardos, de beiços pendentes e bamboleando as corcovas ao ritmo da melopeia do Balsemão, que entoaria versículos corânicos enquanto você, com o seu laptop em 6ª mão, comprado a um mercador arménio no Kasbah lisboeta, tentava acertar nas teclas, mas inutilmente, pois já não teria clientela para os seus escritos, dado os kamikazes do fórum do Expresso, os sobreviventes, terem sido todos conduzidos ao deserto do Hedjaz para serem reciclados e reeducados segundo os ensinamentos do profeta.

Publicado por Joana às 06:15 PM | Comentários (24) | TrackBack

novembro 13, 2003

O tratador tratado … perdão … tragado

Há profissões azaradas.

O José António Lima, do Expresso, esteve dois anos a alimentar e a multiplicar as piranhas, a nacos de Portas, no tanque do Expresso online.

Agora, uma pirueta inesperada, um passo em falso (*) e ei-lo que escorrega e se precipita no tanque.

Os redemoinhos, o borbotão superficial das águas tumultuosas e o agitar das caudas e mandíbulas vorazes das piranhas são prenúncio fatal da tragédia que ocorre sob esse cachão sinistro que se desfralda em ondas alucinadas, concêntricas, rojando-se raivosas nas beiras do tanque do online.

Quando chegarmos à dentada 500 (perdão, comentário 500) esperemos que se consigam recuperar os óculos.

Pois é, José António Lima ... na próxima encarnação, dedica-te à criação de animais mais aptos na hierarquia racional. Pelo menos, capazes de distinguir o tratador ...


(*) O artigo de hoje, 2003-11-13, “Iraque e profetas da desgraça” no Expresso online

Publicado por Joana às 07:56 PM | Comentários (8) | TrackBack

novembro 05, 2003

Rotweilers de Wilson e Órfãos de Lenine

Actualmente, com o pano de fundo do conflito iraquiano, deixou de haver qualquer espaço de manobra entre os rotweilers de Wilson e os órfãos de Lenine. As posições extremaram-se de tal forma que quem não está com uns, estará necessariamente com os outros.

Os seguidores musculados de Wilson querem impor regimes democráticos socorrendo-se da força. É uma tarefa difícil. Foi possível na Alemanha e no Japão no pós-guerra, mas eram regimes completamente desacreditados que não tinham qualquer apoio em mais nenhum país e que, no interior das potências aliadas, não havia vozes discordantes, ou melhor, vozes discordantes que houvesse estavam prudentemente caladas.

A situação actual é diferente. Os regimes em causam estavam (alguns ainda estão) completamente desacreditados face aos valores da nossa sociedade democrática e tolerante. Têm todavia muitos países a defendê-los, quer abertamente por questões de identidade religiosa, quer, na totalidade dos casos, de forma aberta ou encapotada, porque são igualmente regimes não democráticos, que atentam contra os mais elementares direitos, liberdades e garantias. A quase totalidade dos países do terceiro mundo tem regimes não democráticos ou mesmo totalitários. Defender, aberta ou envergonhadamente, Saddam e outros, é defenderem-se a si próprios.

Por acréscimo, dentro da nossa sociedade democrática e tolerante pululam os órfãos de Lenine, espécie que durante décadas acreditou no paraíso do regime comunista, nos amanhãs que cantam. O “incompreensível” desabar desse mundo deixou-lhes traumas profundos para cuja terapia precisam destas sessões de choque: corpos de marines exangues, helicópteros Chinook a arder no solo, tanques calcinados com corpos americanos mutilados no interior, etc.. Rejubilam com estas sessões de terapia e voltam acreditar que talvez tudo venha a ser novamente possível. É uma espécie de vingança póstuma.

Os órfãos de Lenine não se circunscrevem aos apoiantes do regime soviético. Abarcam igualmente aqueles que navegam nas mesmas águas ideológicas, com uma diferença: como nunca foram capazes de construir qualquer sociedade em que vingassem as suas teorias, por muito perversa que essa sociedade fosse, debitam ideias com a irresponsabilidade de quem sabe que, no fundo, elas nunca terão qualquer validação prática. Estão para a política, como as crianças para os humanos, mas sem a desculpa de terem, por imposição biológica, uma idade mental inferior.

As crianças, na sua ingenuidade, descobrem, às vezes, que o “Rei vai nu”. A esquerda radical tem como axioma que o “Rei vai nu”. O problema é que, de tanto o repetirem, quando ele vai mesmo nu … só eles próprios acreditam.

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novembro 04, 2003

Derrube de um helicóptero ou dos EUA?

O derrube de um helicóptero de transporte norte-americano e a morte de 16 soldados tem feito as delícias dos órfãos de Lenine dos fóruns da net.

Desde os brados de regozijo pelas baixas americanas, às loas aos regimes ditatoriais e sanguinolentos que foram derrubados, à explanação dos conceitos “civilizacionais” que justificam o terrorismo, ao apoio explícito ou envergonhado a esse mesmo terrorismo e à celebração de regimes onde certamente os celebrantes seriam executados se lá vivessem e se comportassem da forma como se portam na tolerante civilização ocidental que “desdenham”, tudo é arremessado numa orgia pletórica potenciada pelo ódio recalcado pela lamentável ocorrência do devir social ter feito desabar o mundo que as suas convicções tinham postulado ser o melhor dos mundos.

Escrevi em Março, dias antes do início das hostilidades, que:
A administração Bush foi incapaz de analisar, com objectividade, o sentimento da comunidade internacional, agastada com a sua sobranceria e sem compreender a sua política errática e sem coerência. Vítima do seu unilateralismo, a administração Bush avançou para uma guerra sem se aperceber que teria muita dificuldade em promover uma coligação alargada, nas condições em que actuou.
A partir de uma certa altura, Bush, na via por onde tinha enveredado, já não tinha alternativa para a guerra, a menos que retirasse e deixasse Saddam a vangloriar-se que havia derrotado o Grande Satã e numa posição política muito mais forte que anteriormente.
… e, mais adiante, que:
Quando digo que as consequências são imprevisíveis não me refiro ao resultado militar imediato … … Refiro-me à “gestão” do Iraque no após-guerra com o vazio de poder e 3 grandes grupos étnicos a digladiarem-se entre si, com a Turquia à espreita, no que toca ao Curdistão, e o Irão à espreita, no que toca aos shiitas.”
… e em Abril, quando a guerra estava quase no fim:
Todavia, se a coligação, depois de ter vencido a guerra, não souber vencer a paz, é bem provável que comecem a aparecer focos de rebelião que possam dar origem a uma guerra de guerrilhas.

A questão, que actualmente se coloca, é que houve a guerra e o derrube de Saddam e que hoje estamos perante novos dados. Não temos uma máquina do tempo para regressarmos à época que precedeu a fixação de Bush em Saddam e o envio da parafernália militar americana para o Golfo Pérsico. Estamos agora, em Novembro de 2003, um ano depois. O nosso objectivo é tentar encontrar uma solução que tenha o apoio da comunidade internacional e convencer a Administração Bush que essa solução terá que ser encontrada fora do quadro do unilateralismo americano vigente, mas que tal solução não será nem anti-americana, nem uma solução pantanosa, sem operacionalidade.

As sondagens mostram que os iraquianos estão maioritariamente interessados numa democracia representativa respeitadora dos diferentes credos e etnias. Mas terão que ter garantias claras que a sua soberania não vai ser posta em causa, que haverá um calendário para o faseamento da implementação das estruturas políticas, sociais e económicas do novo Iraque e que a recuperação da sua soberania não será postergada para as calendas gregas. Senão serão progressivamente arrastados para acções de resistência ao “ocupante”.

Bill Clinton declarou em Madrid, no domingo passado, que “Seja qual for a nossa posição, todos nós jogamos alguma coisa no Iraque é preciso não desistir de um maior envolvimento da ONU, é preciso que os EUA e a Europa voltem a estar do mesmo lado, é preciso que os americanos não se retirem depressa de mais do Iraque”.

A retirada americana agora seria o caos. Sondagens Gallup mostram que os iraquianos não estão interessados numa retirada imediata americana. Não será certamente por gostarem de estar sobre a administração americana, mas por saberem que qualquer outra alternativa, agora, seria o caos, poderia constituir uma catástrofe de contornos imprevisíveis.

A Europa deverá desempenhar, nesta questão, um papel chave. Mas resta saber se estará à altura desse papel. Nos meses que precederam a guerra não o soube desempenhar. Também não o soube desempenhar durante a guerra e no imediato pós-guerra. Neste último caso, não ajudou nada a posição de sobranceria da América vitoriosa e do seu sentimento de vingança face a uma parte da Europa que teve, antes do conflito, posições decididamente contra a política iraquiana da Administração Bush e que deram a Saddam a esperança que poderia ainda cantar vitória, convencido que o exercício do direito de veto inviabilizaria o desencadear do conflito.

A relação actual, desde a última guerra, da Europa com os USA lembra, mutatis mutandis, a relação dos gregos (os gregos da época da decadência) com o Império Romano. Arrogavam-se da sua história anterior e de uma cultura superior, troçavam do utilitarismo e de uma certa puerilidade dos romanos, mas viviam, embora desdenhosamente, sob a sua protecção.

A Europa não pode continuar com tal política. A Europa terá que construir umas forças armadas próprias e operacionais e ter uma política estrangeira comum e coerente. Mas isso não será fácil. A nostalgia de grande potência da França, a satelitização do Reino Unido pelos EUA, as derivas incoerentes e erráticas da Alemanha e da Itália, quer queiramos, quer não, as principais potências europeias e que serão a base de qualquer construção futura, não permitem pensar que aqueles desideratos estarão próximos de serem alcançados.

Mas quer depois de serem alcançados, quer na actualidade, a Europa não pode esquecer que está ligada indissoluvelmente aos EUA. Os valores básicos que defendemos e que moldaram a nossa cultura são os mesmos. Temos que fazer uma caminhada comum.

Quanto maior forem o poder, a prosperidade e a capacidade de ter uma política externa comum e coerente da Europa, maior será a capacidade da Europa influenciar as decisões americanas. É preciso um Europa forte para melhorar os EUA, não para servir de contrapoder aos EUA.

Publicado por Joana às 08:19 PM | Comentários (51) | TrackBack

outubro 02, 2003

Mongóis, iraquianos, marines e barbárie

Em Fevereiro de 1258 os Mongóis tomaram e saquearam Bagdade, massacraram centenas de milhares de habitantes e o último califa abássida e, mais grave do que isso, durante os anos em que Hulagu Khan dominou aquela região, todo o sistema de canais, açudes e redes de irrigação que haviam sido construídos e desenvolvidos ao longo de vários milénios foi vandalizado e destruído, eliminando a capacidade de sobrevivência da população existente e arrastando um enorme declínio populacional.

Em 2003, o Museu de Bagdade foi pilhado e vandalizado e a Biblioteca Nacional foi incendiada. Testemunhos de civilizações milenárias de uma região que foi o berço da nossa civilização foram liquidados em poucos minutos.

Bagdade tinha sido capturada pelo exército americano, mas foram elementos da população iraquiana que pilharam e vandalizaram museus, bibliotecas, hospitais, para além de ministérios, edifícios governamentais e casas particulares.

O exército americano, que havia tomado a cidade seria, em teoria, o responsável pela ordem e segurança dentro dela. Terá a desculpa da rapidez do descalabro iraquiano, dos seus reduzidos efectivos, da continuação de bolsas de resistência e da surpresa, do inesperado e da rapidez das pilhagens do Museu e da Biblioteca. Mas a sua incapacidade de assumir as responsabilidades que a sua vitória militar o obrigava será uma mancha que a história recordará muito para além de qualquer outra ocorrência desta guerra.

Mais revoltante é o comportamento dos vândalos de Bagdade. A inutilidade do saque e destruição é incompreensível. Quem destrói peças de museu e incendeia bibliotecas não terá qualificação para roubar peças de arte para seu desfrute pessoal ou para vender a coleccionadores endinheirados. Foi puro prazer destrutivo que levou à pilhagem e vandalismo.

Os iraquianos podem desculpar-se que não passou de uma minoria não significativa e que se tratava de uma sociedade vivendo sob uma ditadura opressiva e feroz cuja queda criou um vazio de poder e a quebra das cadeias de comando das estruturas administrativas. Mas muito mal vai um povo que não tem, dentro de si, forças sãs que imponham um mínimo de respeito cívico. Em 1910 e em 1974, o poder em Portugal caiu na rua, e não houve pilhagens ou latrocínios. Em 1910, populares guardavam os bancos e outros locais para evitar tentações. Diversos países da Europa foram ocupados e libertados durante o último conflito. Não me lembro de algum museu ou biblioteca assaltada durante a ausência dos poderes institucionais.
Os nazis destruíram livros, mas foi uma destruição organizada, perpetrada por um regime que odiava a cultura cosmopolita.

Em situações de grande instabilidade acontecem assaltos e pilhagens a estabelecimentos de artigos de consumo. Acontecem no Ruanda e acontecem nos USA. Assaltar, pilhar e vandalizar museus e incendiar bibliotecas é porém o sintoma do estado de degradação económica, social e civilizacional a que chegou um povo submetido décadas a uma tirania totalitária, omnipresente e atrofiante.

Nestas situações de grande calamidade, a sociedade civil tem, com grande frequência, capacidade de gerar consensos e de tomar nas suas mãos a condução do seu próprio destino. Espera-se que, passado o estupor pela queda de um regime que não deixava saída e se ameaçava eternizar, a sociedade civil iraquiana seja capaz de reconstruir um país mais justo e mais moderno.

13-Abril-2003

Publicado por Joana às 06:18 PM | Comentários (0) | TrackBack

Retóricas

A resistência iraquiana está a esboroar-se, ninguém sabe onde pára os 350.000 homens do exército regular nem a guarda republicana, provavelmente dizimada e/ou dissolvida no ambiente, etc. Só lutam alguns kamikazes islâmicos, vindos do exterior, mas sem competência militar.

O impagável Ministro da Propaganda continua a falar de um Iraque que só existe na sua imaginação e a promover visitas guiadas aos hospitais para mostrar crianças, mulheres e idosos feridos que constituiriam, na sua imaginação delirante, 95% dos feridos.

Saïd al Sahhed espera, como Goebbels, pelo Milagre da Casa do Brandeburg, neste caso, pelo cansaço da opinião pública internacional face às imagens televisivas da suas visitas guiadas. Mas Saïd al Sahhed não tem à sua disposição, como Goebbels em Berlim, as Waffen SS, fanáticas, mas competentes, que retardaram semanas a fio a avalanche do Exército Vermelho. Aliás, Saïd al Sahhed não passa de uma paródia terceiro-mundista de Goebbels.

Nunca acreditei na retórica das chefias iraquianas e islâmicas. Fiquei vacinada durante a 1ª Guerra do Golfo, jovem e crédula estudante universitária, quando verifiquei, com o desenrolar dos acontecimentos, que a realidade era absolutamente contrária às expectativas geradas em mim pela retórica dos dirigentes iraquianos.

Nelson, antes do início da Batalha de Trafalgar, fez a seguinte proclamação:

“A Inglaterra espera que cada um de vós cumpra o seu dever”.

Esta frase singela e determinada, despida de floreados e retórica, constitui, para mim, o mais belo exemplo do apelo ao patriotismo e ao pundonor. Nem louvaminhas pomposas à sua nação, nem injúrias desdenhosas à nação contrária.

Independente das razões morais e do Direito Internacional desta guerra (aliás, sobre ela exprimi a minha opinião dias antes de ter começado) há virtudes de outros povos que deveriam servir de exemplo para nós. A determinação, a objectividade, a perseverança e o patriotismo sereno e firme dos anglo-saxónicos deveriam constituir um exemplo para nós, para a nossa retórica patrioteira e estéril.

Eça escrevia que a nossa verborreia patriótica era a das frases delicodoces que na noite anterior se teria dito a “uma andaluza barata”. Mutatis mutandis, a situação hoje não é, infelizmente, muito diferente.

Nota: Há muitas imprecações nos fóruns da net e em meios de comunicação, lançando apelos lancinantes à resistência dos iraquianos e à guerrilha.

Trata-se obviamente de gente que acredita na retórica de Mohammed Saïd Al-Sahaf e na existência do Iraque virtual que ele, desde há semanas, se afadiga a construir.

Também é fácil, teclando tranquilamente frente ao monitor, exigir bravura, determinação e ferocidade para punir e liquidar a malvada América. Não se corre qualquer risco.

Porém, a realidade tem mostrado que, para além dos elementos mais próximos do regime e dos kamikazes importados dos países islâmicos vizinhos, os iraquianos não têm combatido ou, quando o fazem, fazem-no porque são obrigados. Aliás, Saïd Al-Sahaf já fez mais que uma declaração pública ameaçando os soldados iraquianos pela sua fraca determinação. Aparentemente, na primeira oportunidade, dissolvem-se no ambiente que os rodeia.

O regime de Saddam é um regime despótico e sangrento que se impôs pelo terror. Poucos terão vontade de o defender, embora muitos tenham sido obrigados a isso. É pouco provável que, para além de algumas bolsas isoladas dos kamikazes islâmicos e de milícias fanáticas, mais alguém o defenda. Não me parece que, num futuro imediato surjam guerrilhas.

Todavia, se a coligação, depois de ter vencido a guerra, não souber vencer a paz, é bem provável que comecem a aparecer focos de rebelião que possam dar origem a uma guerra de guerrilhas.

07-Abril-2003

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A lei do mais forte

O artigo “A lei do mais forte”, de F. Madrinha do Expresso, é de um grande farisaísmo. A única intervenção militar que foi aprovada pela ONU, segundo me parece, foi a da Guerra da Coreia e isso deveu-se à ausência temporária da URSS do Conselho de Segurança, e, em certa medida, a primeira guerra do Golfo.

Todas as outras intervenções militares foram feitas sem o aval da ONU e, quanto muito, baseadas em resoluções anteriores de interpretação controversa.

Quantas tentativas de solução de conflito foram vetadas, quer pela URSS (cerca de metade dos vetos expressos), quer pelos USA, nomeadamente as resoluções que pretendiam obrigar Israel a cumprir as determinações internacionais, quer pelos outros membros permanentes?

É esta “a ONU tal como a conhecemos desde 1945” e não a que você mitificou. A que “se tem revelado um forum precioso para esbater e dirimir conflitos” mas não “para os … resolver pela força, quando absolutamente necessário”, porque tal nunca aconteceu.

Alguns líderes socialistas têm dito que não é possível estabelecer comparação com o Kossovo, porquanto neste caso se trataria de uma intervenção humanitária. Humanitária? Bombardear maciçamente a Sérvia e destruir-lhe a infra-estrutura económica e a capacidade de subsistência é uma acção humanitária?

Milosevic era um ditador e genocida. Mas seria pior que Saddam? Não há quaisquer diferenças, do ponto de vista do Direito Internacional, entre a intervenção no Kossovo e no Iraque, excepto o menor apoio actual da comunidade internacional, nomeadamente da europeia.

Todas as intervenções militares, quer as que tinham “boas” intenções, impedindo genocídios, atentados continuados à liberdade ou aos direitos dos povos, quer as que tinham “más” intenções, as de exterminar os movimentos de libertação ou de emancipação: Vietname, Afeganistão, Checoeslováquia, etc., foram feitas ao absoluto arrepio da ONU. E a ONU sobreviveu. E sobreviveu porque é sempre preferível haver uma ONU do que haver um vazio.

Não sou do tempo (excepto a intervenção soviética no Afeganistão) em que as intervenções mais graves aconteceram. Certamente muitos piedosos articulistas deveram então ter composto epitáfios para a ONU, carpindo sobre o “golpe fatal para a instituição”. Mas ela resistiu e fortaleceu-se.

A ONU não tem capacidade, actualmente, para impor as liberdades, direitos e garantias individuais em toda a orbe. Ainda existe a lei do mais forte, mas cada vez mais temperada pela consciência colectiva.

No caso do Iraque, os USA já se aperceberam, apesar da retórica da ala dos falcões, das suas limitações, embora sejam, actualmente, a única super-potência, com um poderio bélico sem comparação com os restantes países.

Será o fortalecimento da consciência colectiva que irá, progressivamente, mais lentamente do que muitos de nós desejaríamos, robustecer a ONU.

E numa ONU robustecida e actuante não haverá lugar para este tipo de intervenções, não só pela intervenção em si, como porque nunca seria permitida que emergisse e actuasse na impunidade uma figura sinistra como Saddam, ou como Milosevic, ou como outros que ainda estão no poder nos respectivos países.

Mas para isso temos que aprender a ser tolerantes e democratas, a respeitar as opiniões dos outros, não interpretarmos as querelas políticas como lutas clubistas e lembramo-nos que votar numa eleição, num dado partido, é apenas a expressão de uma opinião transitória face a uma dada conjuntura política, económica e social, e que poderá ser mudada na eleição seguinte, e nunca um ferrete que colocamos a nós próprios e que nos impede de raciocinar com clarividência.

19-Março-2003

Publicado por Joana às 01:06 PM | Comentários (6) | TrackBack

A descida do Maelstrom

A descida do Maelstrom - Bush
Actualmente, o mundo faz lembrar a forma irreversível como as potências europeias, incapazes de dirimir os seus interesses com prudência e ponderação, foram conduzidas para a terrível conflagração da 1ª Guerra Mundial, embora a situação seja, quantitativamente, muito distante e se espere que os seus efeitos sejam muito menos devastadores.

A administração Bush foi incapaz de analisar, com objectividade, o sentimento da comunidade internacional, agastada com a sua sobranceria e sem compreender a sua política errática e sem coerência. Vítima do seu unilateralismo, a administração Bush avançou para uma guerra sem se aperceber que teria muita dificuldade em promover uma coligação alargada, nas condições em que actuou.

A partir de uma certa altura, Bush, na via por onde tinha enveredado, já não tinha alternativa para a guerra, a menos que retirasse e deixasse Saddam a vangloriar-se que havia derrotado o Grande Satã e numa posição política muito mais forte que anteriormente.

A descida do Maelstrom - Saddam
Saddam fiou-se em demasia no patrocínio da França e da Rússia, contando com os avultados interesses económicos que aquelas 2 potências tinham no Iraque. Durante 12 anos fez gato-sapato da comunidade internacional, não se desarmando e mantendo ou ampliando, porventura, o seu arsenal bélico. Apenas nos últimos meses, com Bush “ad portas”, começou a aceitar as inspecções e o desarmamento a conta-gotas, negando a existência de armas, para reconhecer a sua existência tempos depois, e assim sucessivamente.

Mas mesmo assim, Saddam não se demite. Saddam está, como os dirigentes nazis nos últimos meses da guerra, à espera do “Milagre da Casa de Brandenburg”, que permitiu a Frederico o Grande, da Prússia, salvar-se de uma coligação mortífera da Áustria, Rússia e França, por rotura imprevisível dessa mesma coligação, numa altura em que a posição de Frederico era desesperada. Quando Roosevelt morreu, Goebbels viu aí um sinal de que esse milagre estaria próximo o que, felizmente, não veio a acontecer.

Do mesmo modo Saddam agarra-se à esperança que algo aconteça que trave a máquina militar americana – pressão francesa e russa; efeitos “colaterais” reais ou empolados, que aumentem a hostilidade da opinião pública mundial e, principalmente, americana e que tornem insustentável a posição de Bush; etc..

A descida do Maelstrom – Chirac e Putine
A França e a Rússia, na defesa dos seus interesses petrolíferos no Iraque, seguiram durante os últimos anos uma política concertada de apoio a Saddam, ajudando ao enfraquecimento progressivo das inspecções e facilitando, mesmo que essa não fosse, porventura, a sua intenção, a manutenção da política dissimulada do ditador iraquiano.

Mais recentemente, a França, pela sua declaração peremptória e definitiva sobre o uso do veto, ficou sem possibilidade de recuar, sem perder a face e, simultaneamente, deu alento a Saddam na sua obstinação.

E assim, mercê de uma incapacidade em dirimir uma situação no interesse geral da comunidade internacional, o mundo vai ser arrastado para uma guerra cujas consequências são imprevisíveis.

A descida do Maelstrom – Que consequências ?
Quando digo que as consequências são imprevisíveis não me refiro ao resultado militar imediato, embora o prolongar da guerra possa trazer muitas complicações aos anglo-americanos, devido ao aumento da hostilidade da opinião pública.

Refiro-me à eventual escassez de crude, se não for possível evitar o incêndio dos poços de petróleo, e à consequente degradação da situação económica mundial e em Portugal, em particular.

Refiro-me à “gestão” do Iraque no após-guerra com o vazio de poder e 3 grandes grupos étnicos a digladiarem-se entre si, com a Turquia à espreita, no que toca ao Curdistão, e o Irão à espreita, no que toca aos shiitas.

Refiro-me às eventuais novas linhas de força que possam emergir na Arábia Saudita, etc., etc..

O pai Bush, para ter algum apoio dos países árabes, prometeu uma nova via para a questão palestiniana. Foram dados passos interessantes na direcção certa. Todavia, o assassinato de Rabin fez inverter o processo e, hoje em dia, o falcão Sharon e o corrupto Arafat estão num impasse cuja principal vítima é o povo palestiniano, mas em que o povo israelita também é seriamente fustigado.

É vital sair desse atoleiro e retomar o processo de paz e seria importante que a administração Bush se apercebesse disso e agisse em conformidade, visto serem os USA que sustentam militarmente, e não só, o Estado de Israel.

Nas Lages fez-se menção à viabilização de um Estado Palestiniano. Veremos se é apenas retórica ou se se trata de algo consistente.


18-Março-2003

Publicado por Joana às 12:31 PM | Comentários (1) | TrackBack

Dilemas sem solução

A política da Administração Bush conduziu os USA a uma situação em que qualquer escolha é má:

Se não fazem a guerra, Saddam vai vangloriar-se de ser o herói que fez dobrar a cerviz aos USA, que derrotou os americanos e tornar-se num líder carismático para as massas árabes humilhadas pelo conflito israelo-árabe. Seria um cenário absolutamente insuportável para os USA.

Se fazem a guerra, terão que enfrentar uma opinião pública hostil e cuja hostilidade crescerá exponencialmente à medida que as televisões começarem a dar imagens de cadáveres chamuscados, crianças mutiladas, etc., etc. Uma guerra na qual os USA não podem expor-se a que dure mais que alguns dias, pois se se eternizar, tal terá repercussões imprevisíveis sobre o comportamento da opinião pública internacional e mesmo americana. Será um cenário de consequências imperscrutáveis, mas que tudo indica que será o considerado “menos mau” pelos USA.

Por sua vez Chirac conduziu a União Europeia a uma situação em que será sempre perdedora. A UE, para ter uma voz credível, teria que ter uma política externa coerente e apoiada por uma força militar com operacionalidade capaz de fazer valer essa política. Até agora a UE nem sequer tem sabido gerir as questões europeias, como no caso da ex-Jugoeslávia, onde foram os americanos que, por diversas vezes, tiveram de vir resolver os problemas que a UE se mostrava incapaz de o fazer, quer por falta de força militar, quer por falta de unidade de acção.

Uma UE nesta situação não se pode dar ao luxo de tomar posições tão “drásticas” como Chirac e Schröder tomaram. Poderá pressionar, com alguma discrição, a Administração Bush a inflectir a sua política. Tomar atitudes mais abertamente definitivas é entrar numa via que desemboca num beco sem saída. Contar com a Rússia é errado, pois esta não é uma aliada fiável. Não seria a primeira vez que os USA a comprariam por um prato de lentilhas.

Na situação actual, se a França usar o direito de veto irá criar graves complicações de relacionamento com os USA e dividir a UE. Se o não fizer, perderá credibilidade internacional e será acusada de se ter deixado amarrar ao carro de triunfo americano. E com a perda de credibilidade da França e Alemanha, é também a UE que perde credibilidade.

A UE deveria repensar toda a sua estratégia ao nível de defesa e de política externa comum para não se deixar cair numa armadilha destas. Os europeus têm vivido sob a protecção militar americana. Ao deixarem chegar as suas forças militares ao nível irrisório de operacionalidade em que se encontram (excepto as britânicas), os europeus aceitaram, tacitamente, viverem na dependência militar americana. Esqueceram-se que essa política tinha um custo: o de se verem na contingência de aceitarem as decisões da política externa americana com a margem de manobra que os dirigentes dos USA houverem por bem determinar.

Presentemente, qualquer que seja o desfecho, este será mau para a UE. Pior, irá diminuir a sua já pequena capacidade de influenciar as decisões americanas.

Resta-nos as discussões bizantinas das comadres zangadas: a de saber quem desuniu mais a UE: se a decisão “de grande potência”, do eixo Paris-Berlim, de se opor à política americana, se o manifesto do grupo que definiu como prioritária, acima de tudo, a aliança com os USA.

O Dilema Português
Falando agora sobre a posição portuguesa, eu queria sublinhar o seguinte:
Há os diversos dados que nos são exógenos:
A Administração Bush conduziu a política externa americana para um beco cuja única saída é a guerra. Qualquer outra opção, na situação a que se chegou, é pior para o governo americano que não fazer guerra.
Que não haja quaisquer dúvidas, os USA irão mover todas as influências e gastar o que for necessário, para obter a maioria no Conselho de Segurança.
Se obtiverem a maioria, mesmo que haja vetos, eles farão a guerra escudados na existência de uma maioria viciada por vetos injustos e minoritários.
Se verificarem que não vão conseguir maioria, o que não acredito, não se arriscarão a propor qualquer moção e farão a guerra baseados na moção anteriormente aprovada, com a argumentação que irão desenvolver consoante o relatório Blix
O novo relatório Blix será, como de costume, passível de várias leituras e dará argumentos quer àqueles que querem continuar com as inspecções, quer aos que querem ir já para a guerra.

Portanto:
Como, à luz do Direito Internacional, não há fundamentação para a guerra, nós não a devemos apoiar, se não houver aval da UN. Portanto, o governo português tem andado mal em apoiar ostensivamente, e sem condições, a intervenção americana no Iraque.

Os USA vão fazer a guerra, e isso é um dado. Logo Portugal não pode, na defesa dos seus interesses estratégicos, tomar uma atitude de confronto relativamente aos USA. Não evita a guerra e complica o seu relacionamento internacional. Seria uma atitude puramente quixotesca. A França não é uma aliada fiável e não sei se, em face da votação no Conselho de Segurança, não irá desistir, à última hora, do direito de veto. Portanto o Presidente da República andou mal ao condenar ostensivamente a mais que provável intervenção americana no Iraque. E logo ele, que quando fala, costumava dizer coisas que podem ser interpretadas de centenas de maneiras diferentes e contraditórias!

Parece-me que Portugal deve manter um perfil baixo neste jogo diplomático, e evitar tomar posições claras e definitivas sobre esta matéria, não descurando a aliança americana mas não se comprometendo em demasia.

Durante séculos, desde a Restauração, os sucessivos governos portugueses souberam manter o equilíbrio das relações externas, agradando (ou não contrariando) gregos e troianos. Só falharam perante a impaciência excessiva de Napoleão. Mesmo assim aguentaram a questão durante algum tempo. Durante a 2ª Guerra Mundial, Salazar conseguiu manobrar de forma a manter o país fora do conflito e, adicionalmente, convencer Franco a não entrar na guerra ao lado dos alemães, o que era vital para Portugal, pois com a Espanha ao lado dos alemães, Portugal teria que escolher entre aliar-se aos alemães ou ser ocupado pela Espanha e Alemanha, como durante a invasão de Junot, quando foi ocupado pelas tropas francesas e espanholas.

É esse sentido de equilíbrio e de proporções que precisamos neste momento.

10-Março-2003

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outubro 01, 2003

Unilateralismo e poder

Em primeiro lugar queria confessar-vos uma coisa: G W Bush, juntamente com Groucho Marx, são as minhas figuras preferidas no que toca ao non-sense. Ambos esgrimem com mestria essa figura de retórica, mas o primeiro tem aquele toque divino de quem o faz sem se aperceber da genialidade que acabou de produzir. Enquanto há artistas incompreendidos, Bush é um artista que não se compreende a si próprio, senão teria abandonado o petróleo para se dedicar à comédia.

Em segundo lugar considero que quaisquer acções militares contra o Iraque (ou contra quem quer que sejam) deveriam ter a concordância da ONU.

Não é que eu considere o Conselho de Segurança depositário de uma ordem internacional justa. A Rússia, que tem direito de veto, conseguiu protelar a resolução da questão jugoeslava e se não fosse a sua dependência económica, ainda teríamos situações coloniais absurdas nos Balcãs. Em contrapartida, os USA poderão comprar a abstenção ou o apoio da Rússia e China com o fechar de olhos sobre Tchetchénias e Tibetes para apoiar uma intervenção no Iraque, sem que para tal possa haver razões jurídicas consistentes.

Aliás, a Europa assistiu de braços cruzados à tentativa do 5º exército mais forte da Europa em manter pela força a Croácia, a Bósnia e depois o Kossovo, dada a sua fraqueza militar e os seus fantasmas históricos - a França ainda via a Sérvia como a sua antiga aliada da 1ª Guerra Mundial e os croatas como aliados dos nazis na 2ª Guerra Mundial. Ora os croatas fizeram o que os palestinianos têm feito. Desesperados pela opressão, sem ajudas da comunidade internacional, arranjaram ligações perigosas na miragem de sobreviver: os croatas em 1940-5 com os nazis, os palestinianos com os terroristas e, na Guerra do Golfo, com Saddam, etc.

Foram os States que, como na 2ª Guerra Mundial (e em menor grau na 1ª G G), vieram resolver o problema. Como o resolveram na questão da invasão do Koweit e como ajudaram a resolver na questão de Timor. Onde estava a Europa então?

Há uma grande incompreensão na Europa (refiro-me aos intelectuais bem pensantes “politicamente correctos” que dominam os meios de comunicação) pela realidade americana. Talvez maior que a incompreensão dos americanos pela Europa. Basta comparar os comentários do bored in the US, com outros comentários. Parecem pessoas de planetas diferentes.

A relação da Europa com os USA lembra, mutatis mutandis, a relação dos gregos (os gregos da época da decadência) com o Império Romano. Arrogavam-se da sua história anterior e de uma cultura superior, troçavam do utilitarismo e de uma certa puerilidade dos romanos, mas viviam, embora desdenhosamente, sob a sua protecção. Mas enquanto Roma deixou uma herança liguística, jurídica e administrativa notável, a Grécia, para além da sua herança filosófica (vastíssima, mas toda ela anterior ao período romano), não deixou mais nada.

Nota: Relativamente à questão palestiniana, considero que os USA, pressionados pelo lobby judeu, têm desenvolvido uma político de apoio incondicional a Israel que não é correcta do ponto de vista do Direito Internacional e que fragiliza o Ocidente perante a opinião pública árabe. Os países islâmicos têm que fazer a mesma evolução que a Europa fez nos séculos XVIII e XIX, no caminho da sociedade laica. Ora a política americana fomenta o populismo fundamentalista e fragiliza os movimentos renovadores. Nós estamos a armar ideologicamente os fundamentalistas, da mesma forma como a França, a seguir à 1ª Guerra Mundial, com a sua política chauvinista de exigência absurda de reparações e ocupação da Renânia para as garantir, armou ideologicamente o movimento nazi e promoveu a ascensão de Hitler ao poder.

23-Janeiro-2003

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