novembro 04, 2005

A Intifada Francesa

A França tem as características que a tornavam no país europeu onde este fenómeno teria a máxima probabilidade de ocorrer e com maior virulência. Congrega duas características extremas: 1) é o país onde o complexo de superioridade e a arrogância perante os estrangeiros atingiu os limiares do insuportável; 2) é o país onde a intelectualidade politicamente correcta mais se empenhou na ajuda à vitimização rácica dos imigrantes não europeus e em desculpar os respectivos desmandos comportamentais, alegando a defesa de culturas permanentemente discriminadas e vítimas da opressão da cultura ocidental.

Individualmente, enquanto pessoas, os imigrantes são desprezados pelos franceses; colectivamente, enquanto entidade abstracta, os imigrantes não europeus são reverenciados e vêem ser-lhes atribuído o estatuto permanente de vítimas da malevolência do Ocidente, mesmo que cometida há 3 ou 4 séculos, Ocidente que é culpado ad aeternum sem possibilidade de redenção para além das hipóteses fugazes de penitências através da participação nas ladainhas de auto-flagelação. O francês olha desdenhosamente para o negro que varre a rua, mas assina comovido petições inflamadas em favor dos sans papiers. O francês trata arrogantemente o empregado magrebino que lhe serve o croissant, enquanto escreve um veemente artigo, de elevado rigor intelectual e sólido humanismo, verberando as injustiças e a exclusão social que vitimam os magrebinos, explicando as razões lógicas e poderosas que justificam a revolta actual, a destruição e os incêndios que, só na noite passada e na região parisiense, destruíram mais de 500 veículos.

Estão a ajudar duplamente a intifada francesa: pessoalmente, acicatam-lhe o ódio; colectivamente, absolvem-na das violências e destruições.

Jornalistas em busca do certificado de intelectuais bem pensantes asseguram que tal se deve ao facto do Estado francês ter acabado com os bairros da lata e alojado os seus habitantes em bairros de rendas sociais nos subúrbios, com infra-estruturas deficientes – transportes, creches, terrenos desportivos, dispensários, jardins, etc. É uma jornalista portuguesa que escreve isto! Por esta visão 80% da população que habita os subúrbios de Lisboa e Porto estaria duplamente revoltada e a incendiar um número proporcionalmente maior e devastador de viaturas e edifícios: além de habitar bairros com aquelas características, despendeu, ou está a despender, avultadas quantias para habitar esses apartamentos geradores de revoltas.

Um paradigma desta hipocrisia: o maire de Clichy apressou-se a ir ao funeral dos jovens insurrectos electrocutados quando fugiam à polícia, enquanto ignorou o francês que foi assassinado por gangs de delinquentes.

Nota: Ver no Blasfémias “SOBRE A "INTIFADA" FRANCESA” que é uma caricatura da via politicamente correcta para apaziguar a “revolta popular”.
Ver igualmente uma série de posts do Insurgente sobre esta matéria.

Publicado por Joana às 05:56 PM | Comentários (171) | TrackBack

setembro 15, 2005

Os intelectuais e o socialismo

Hoje resolvi dar-me férias, mas não a vocês. O texto que se segue, e com o qual eu concordo em absoluto, contém muitos conceitos que eu já desenvolvi aqui, mas sem o talento e o conhecimento de causa de quem viveu estes assuntos por dentro. Critiquem-no como se fosse eu que o tivesse escrito, porque me revejo inteiramente nele. E é exactamente por isso que, contra o que é usual neste blog, eu o transcrevo na íntegra:

Os intelectuais e o socialismo: Visto de um País Post-Comunista situado numa Europa Predominantemente Post-Democrática.

1. Parto do princípio que esta audiência conhece o levemente provocativo (porque generalizador sem piedade) mas muito poderoso e importante artigo com 56 anos de idade “ Os Intelectuais e o Socialismo “. Esta audiência também sabe certamente que o referido artigo foi escrito por F. von Hayek, e que foi publicado na confusa era pró-socialista que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, quando a crença nos benefícios da engenharia social e planeamento económico, e a descrença na liberdade do mercado estavam no seu apogeu.

Penso que muitos de nós se lembrarão da definição que Hayek fez de um intelectual (hoje em dia diríamos até intelectual público), como sendo os “negociantes de ideias em segunda mão”, que tem orgulho em não “possuir nenhum conhecimento especializado em particular”, que não tem “responsabilidade directa em assuntos de carácter prático”, e que não precisam mesmo de ser “particularmente inteligentes”, para executarem a sua “missão”. Hayek sustentou que essas pessoas se satisfazem com “serem intermediários no espalhar das ideias” dos pensadores originais para as pessoas comuns, que eles acham não serem seus iguais.

Hayek estava ciente - há mais de meio século atrás, o que significa antes da prevalência dos meios de comunicação electrónicos - do enorme poder dos intelectuais em moldar a opinião publica, e avisou-nos que “será apenas uma questão de tempo até que as opiniões dos intelectuais, se tornem uma força de governo na política”. Isto é tão válido hoje como no dia em que ele escreveu.

A questão é de saber quais são as ideias que são mais favorecidas pela escolha dos intelectuais. A questão é de saber se os intelectuais são neutros na escolha das ideias com que tem de lidar. Hayek argumentou que não são. Os intelectuais não se interessam nem tratam de espalhar todas as ideias. Têm muito claras, e de algum modo muito compreensíveis preferências em relação a algumas ideias. Preferem ideias que lhes dão empregos e dinheiro e que melhoram o seu poder e prestígio.

Desse modo procuram ideias com características específicas. Procuram ideias que ampliam o papel do estado porque é o estado o seu maior empregador, padrinho ou dador. E isto não é tudo. Segundo Hayek “o poder das ideias cresce em proporção da sua generalização, abstracção e mesmo carácter vago”.

Daí que não seja surpreendente que os intelectuais estejam prioritariamente interessados em ideias abstractas e não em ideias directamente implementáveis. Também é nesse modo de pensar que eles apresentam vantagens comparativas. Não são bons nos detalhes. Não tem a ambição de resolver um problema. Não estão interessados em lidar com os assuntos de todos os dias de um cidadão normal. Hayek disse-o claramente: “o intelectual pela sua disposição não está interessado em detalhes técnicos ou dificuldades praticas”. Está interessado em visões ou utopias e porque “o pensamento socialista deve o seu atractivo ao seu carácter visionário” (e eu acrescentaria falta de realismo e natureza utópica), o intelectual tende a tornar-se um socialista.

De um modo semelhante Raymond Aron no seu famoso ensaio “ O Ópio dos Intelectuais”, analisou a bem conhecida diferença entre a maneira de pensar revolucionária e reformista, mas também - e isto é mais relevante neste contexto - a diferença entre “prosaico” e “poético”. Enquanto “ao modo de pensar prosaico lhe falta a grandeza da utopia” (Roger Kimball), a visão socialista é - nas palavras de Aron - baseada “na poesia do desconhecido, do futuro, do absoluto”. Tal como eu o entendo é este o mundo dos intelectuais. Alguns de nós gostariam de acrescentar que “a poesia do absoluto é uma poesia inumana”.

2. Como eu disse antes, o que os intelectuais querem é fazer crescer o seu prestígio e poder. Quando nós nos países comunistas encontrámos as ideias de Hayek ou Aron, nunca tivemos problemas de entender a sua importância. Deram-nos a muito necessitada explicação da peculiar proeminência dos intelectuais na nossa própria sociedade nesse tempo. Claro que os nossos intelectuais não gostavam de ouvir isso, e não queriam reconhecê-lo porquanto a sua peculiar proeminência coexistia com a debilitante ausência de liberdade intelectual, que os intelectuais muito valorizam. Esse não era todavia o único argumento. Os políticos comunistas precisavam dos seus companheiros de caminho intelectuais. Precisavam dos seu “baralhar de ideias” do seu “formar a opinião pública”, da sua apologia de um regime inumano, irracional e ineficiente. Precisavam da sua habilidade de fornecer ideias gerais, abstractas e utópicas. Precisavam especialmente da sua aceitação em lidar com futuros hipotéticos, em vez da crítica à realidade muito menos cor de rosa.

Os intelectuais desse tempo, e já nem me refiro aos anos do terror de Estaline, não eram felizes. Estavam profundamente desapontados com o seu próprio bem estar económico. Estavam frustrados pelas inúmeras dificuldades que tinham de enfrentar e de seguir. Todavia a sua posição na sociedade comunista era relativamente elevada e, paradoxalmente, muito prestigiada (tenho em mente claramente a sua posição relativa). Os dirigentes comunistas, no seu modo arbitrário e voluntarista de lidar com as pessoas, usavam e desusavam os intelectuais como queriam. Isto pôs os intelectuais numa posição periclitante. Não eram valorizados (ou avaliados) pela mão invisível do mercado, mas pela muito visível mão dos dirigentes da sociedade. Para minha muita pena muitos intelectuais não foram capazes (ou não quiseram) entender as implicações perigosas deste arranjo.

Como resultado disto tudo, e uma vez mais isto nem foi surpresa para mim, quando o comunismo caiu, na nossa sociedade subitamente livre, quando quase todos , ou todos, os empecilhos ruíram do dia para a noite, o primeiro grupo de frustrados e abertamente protestatários foi o dos intelectuais – “jornalistas, professores, publicistas, comentadores de rádio, escritores de ficção, e artistas” (parafraseando Hayek). Estavam a protestar contra as desagradáveis dificuldades criadas pelo mercado. Descobriram muito rapidamente que as sociedades livres (e os mercados livres), podiam não precisar tanto dos seus serviços como no passado. Perceberam especialmente que a sua avaliação pelas forças impessoais da oferta e da procura, podiam ser mais desfavoráveis não só do que a sua própria auto-avaliação, (e Robert Nozick tem razão quando afirma que “os intelectuais se acham as pessoas de maior valor”), mas ainda mais desfavoráveis do que a dos políticos e burocratas do regime anterior. Tornaram-se assim os primeiros críticos visíveis e barulhentos da nossa nova sociedade livre com que andávamos a sonhar há décadas.

Na sua crítica elitista do mercado, das pouco “humanas” leis da oferta, da procura, e dos preços, que são o fruto da deliberação explícita de ninguém, eles tiveram - tenho que admitir - um sucesso relativo. Devia esclarecer que - especialmente ao princípio, mas julgo que não mudou muito agora – se tornaram mais críticos da economia de mercado (e da falta de distribuição a seu favor), do que o resto da sociedade porque - para grande surpresa deles - o nível de vida das pessoas comuns subiu, pelo menos relativamente, mais do que o deles próprios. Schumpeter tinha razão quando já em 1942 no seu livro “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, escreveu o aforismo hoje bem conhecido que “as conquistas do capitalismo não dão apenas mais meias de seda às rainhas, mas tornam-nas acessíveis às empregadas das fábricas, em retorno de um esforço cada vez menor”. Esta simples verdade é algo que os intelectuais não tem aceite.

Nós, os que estamos hoje aqui, sabemos que o mercado livre não recompensa “nem os melhores nem os mais inteligentes” ( John K. Williams), mas aqueles que - de qualquer maneira ou forma - satisfazem os gostos e preferências de outros. Concordamos com Hayek que “ninguém pode saber, sem ser através do mercado, qual o contributo de cada individuo para o produto final”. E sabemos que o sistema de mercado livre não recompensa aqueles que - nos seu próprio entender - são os mais meritórios. E porque os intelectuais se julgam a si próprios muito alto, desdenham o mercado. Os mercados avaliam-nos de um modo diferente do dos seus próprios olhos, e ainda por cima, funciona bem sem a sua supervisão. Como resultado disto os intelectuais suspeitam dos mercados livres e preferem receber do estado. Esta é mais uma razão porque estão a favor do socialismo.
Estes argumentos não são novos, mas a nossa experiência no seguimento da chamada Revolução de Veludo, foi a esse respeito mais do que instrutiva. O que aconteceu na realidade foi mais aquilo que vem nos livros, do que aquilo que esperávamos.

3. Na primeira década do século XXI não nos deveríamos concentrar exclusivamente no socialismo. Há um velho ditado que diz que não devemos lutar contra batalhas antigas que já acabaram. Acho este ponto importante embora eu não queira dizer que o socialismo está definitivamente acabado. Há pelo menos dois argumentos que nos justificam olhar para outras ideologias. O primeiro é a diferença entre a versão dura e versão macia do socialismo, e o segundo a emergência de novos “ismos” baseados em versões iliberais ou antiliberais.

No que respeita ao primeiro problema podemos provavelmente afirmar com confiança que a versão dura do socialismo, - o comunismo - acabou. Foi uma grande vitória para nós, mas essa vitória não nos devia desmotivar porque a queda do comunismo não nos dá automaticamente o sistema que gostaríamos de ter e viver. Não representa uma vitória das ideias do liberalismo clássico (ou Europeu). Tenho receio que quinze anos depois do colapso do comunismo, tenha chegado a sua versão macia (ou fraca), o social-democratismo, que se tornou - sob vários nomes como por exemplo o Estado Social ou a Soziale Marktwirtschaft – o modelo dominante do sistema económico e social da actual civilização ocidental. Este sistema está baseado num governo grande e paternalista, regulamentação extensa da actividade humana, e redistribuição da riqueza em larga escala.

Como já vimos anteriormente, tanto na Europa como na América os intelectuais adoram este sistema. Dá-lhes dinheiro e vida fácil. Dá-lhes a oportunidade de influenciar e serem ouvidos. O mundo ocidental é por enquanto ainda suficientemente rico para suportar e financiar as suas orientações impraticáveis e sem finalidade. Pode-se dar ao luxo de empregar hordas de intelectuais que usam “a poesia” para louvar os sistemas actuais, que vendem o conceito de direitos de discriminação positiva, que advogam o construtivismo da natureza humana (em vez da acção humana espontânea), para promoverem outros valores que não a liberdade.

Temos de entender esta versão contemporânea do socialismo à escala mundial, porque os nossos velhos conceitos podem até omitir algumas das características do que está à nossa volta agora. Podemos até descobrir que o uso continuado do termo socialismo pode ser enganador.

4. Isto traz-me para outro problema. Depois do descrédito completo do comunismo, e no meio de uma crise indesmentível do social-democratismo europeu, o socialismo explícito tornou-se insuficientemente atractivo para a maioria dos intelectuais. Hoje em dia é difícil encontrar - no Ocidente - um intelectual que queira estar “in” e ter influência, que se chame a si próprio um socialista. O socialismo explícito perdeu o seu atractivo e não aparece com rival das nossas ideias de hoje.

As ideias iliberais são formuladas, espalhadas e pregadas sob o nome de ideologias ou “ismos” que não tem nada que ver - pelo menos formalmente e nominalmente - com o velho socialismo explícito. Essas ideias são contudo, muito parecidas com ele. Há sempre um qualquer limitar ou constringir da liberdade humana, há sempre uma ambiciosa engenharia social, há sempre um imodesto “promover o bem à força” praticado por aqueles que foram escolhidos (T. Sowell), contra a vontade dos outros, há sempre o fugir aos meios democráticos, para procedimentos políticos alternativos, e há sempre o sentimento da superioridade dos intelectuais e das suas ambições.

Penso no ambientalismo (com o seu princípio de Primeiro a Terra, e não Primeiro a Liberdade), no humanitarismo radical (baseado - como diz de Jasey) na não distinção entre os direitos e o que está certo, a ideologia da sociedade civil (ou comunitarismo), que não é mais do que uma versão de colectivismo post-marxista, que quer privilégios para os grupos organizados e consequentemente a re-feudalização da sociedade. Também penso no multiculturalismo, feminismo, e tecnocratismo apolítico (baseado no ressentimento contra os políticos e a política), o internacionalismo (e especialmente a sua variante europeia chamada de Europeísmo) e um fenómeno de crescimento rápido chamado ONGismo.

Todos estes representam ideologias substitutas do socialismo. Todas elas dão aos intelectuais novas possibilidades, novos espaços para as suas actividades, novos nichos no mercado das ideias. Enfrentar estes novos “ismos”, revelar a sua verdadeira natureza, e ser capaz de os eliminar, pode ser mais difícil agora que no passado. Poderá ser mais complicado do que lutar contra o velho socialismo explícito. Todas a pessoas querem um ambiente saudável, todas as pessoas querem ultrapassar a solidão da fragmentada sociedade post-moderna, e participar nas actividades dos vários clubes, associações, fundações e organizações de caridade; quase todos são contra qualquer descriminação baseada na raça, religião ou sexo; muitos de nós estão contra os extensos poderes do estado, etc. Demonstrar o perigo dessas aproximações poderá ser soprar contra o vento.

5. Estas ideologias alternativas, pela sua pouco clara, instável, e ainda mal descritas sinergias, tem um sucesso especial onde não existe suficiente resistência, onde encontram solo fértil para fortalecer, onde encontram um país (ou um continente inteiro) onde a liberdade (e os mercados livres) foram prejudicados por duradouros sonhos e experiências colectivistas, e onde os intelectuais tiveram sucesso em manter uma voz e um estatuto social fortes. Claro que estou mais a pensar na Europa que na América. É na Europa que estamos a assistir à substituição da democracia pela post-democracia, onde o domínio da Comunidade Europeia substitui arranjos democráticos nos países membros, onde o “para-governo” de Hayek ligado aos interesses organizados (porque organizáveis), tem tido sucesso em conduzir a política, e onde mesmo alguns dos liberais - na sua justificável crítica do estado – não vêem os perigos do Europeísmo vazio, e de uma profunda (cada vez mais) unificação burocrática do continente europeu. Aplaudem a crescente abertura formal do continente, mas não vêem que a eliminação de algumas fronteiras sem a liberalização das actividades humanas “apenas” empurra os governos para cima, ou seja para o nível onde não há mais controlo democrático, e onde as decisões são tomadas por políticos nomeados por políticos, e não por cidadãos em eleições livres.

A Constituição Europeia foi uma tentativa de montar e consolidar esse sistema de uma forma legal. Foi uma tentativa de o constituir. É por isso importante que os referendos francês e holandês lhe tenham posto fim, que tenham interrompido o cada vez mais irreversível movimento para “uma Europa mais unida” e que tenham iniciado uma discussão que se deseja séria - na novilíngua europeia chamada de “período de reflexão”. Não estou a assumir que esta reflexão organizada de cima para baixo, vá suficientemente longe para nos revelar as causas profundas dos problemas que afligem a Europa. No entanto foi aberta uma porta. Devíamos usar essa oportunidade para lembrar aos nossos concidadãos o que é que faz a nossa sociedade ser livre, democrática e próspera.

É um sistema político que não deve ser destruído por uma interpretação post-modernista dos direitos humanos (com a sua ênfase na descriminação positiva, com a dominação dos direitos adquiridos no grupo sobre as responsabilidades e direitos individuais, e com a desnacionalização da cidadania), pelo enfraquecimento das instituições democráticas, que tem as suas raízes insubstituíveis exclusivamente no território dos estados, pelo “multiculturalismo” causador da perca da coerência necessária entre as várias entidades sociais, e pela procura em todo o continente europeu de se viver das rendas (tornada possível quando a tomada de decisão é feita a um nível muito longe dos cidadãos e onde os votos dispersos se encontram ainda mais dispersos do que nos países soberanos).

É um sistema económico, que não deverá ser estragado pela excessiva regulamentação governamental, por deficits fiscais, por controle burocrático pesado, por tentativas de aperfeiçoar os mercados com a construção de estruturas de mercado “optimizadas”, por grandes subsídios a industrias privilegiadas ou protegidas, pela rigidez do mercado de trabalho, etc.

É um sistema social, que não deve ser afundado por todos os desincentivos imagináveis, benefícios sociais mais do que generosos, redistribuição da riqueza em grande escala, e pelas muitas formas de paternalismo governamental.

É um sistema de ideias que será baseada na liberdade, responsabilidade pessoal, individualismo, preocupação natural para com os outros, e conduta de vida moral.

É um sistema de relações e relacionamento individual entre os países, que não deverá ser baseado em falso internacionalismo, organizações supranacionais, e numa errada interpretação sobre a globalização e factores externos, mas que será baseado na boa vizinhança entre nações livres e soberanas, e em pactos e tratados internacionais.

Os fundadores da mount Pelerin Society, Hayek e Friedman, como tantos outros, sempre insistiram em lutar pelo que parecia politicamente impossível. Devíamos continuar a fazer o mesmo.

Vaclav Klaus no Encontro Regional da Mount Pelerin Society, em Reykjavik, Islândia em 22 de Agosto de 2005.


Nota: Esta tradução portuguesa foi-me enviada por um leitor, a quem aproveito para agradecer aqui.

A versão inglesa, que eu já conhecia, está aqui.

Aí poderão encontrar a bibliografia, que eu não coloquei aqui porque o texto é muito longo.

Adenda: Vaclav Klaus, para quem o desconhecer, é o Presidente da República Checa.

Publicado por Joana às 11:24 PM | Comentários (103) | TrackBack

junho 15, 2005

A Perversão da Iconolatria

A classe política, a comunicação social, os meios intelectuais e mesmo a M M Guedes acotovelaram-se numa comovida homenagem pela morte do político cuja faceta de «obreiro do triunfo da liberdade sobre a ditadura», conforme sentida evocação de Sampaio, o levara a declarar, numa entrevista a uma jornalista italiana, em pleno PREC, que “jamais haveria uma democracia parlamentar em Portugal”, e cuja acutilante capacidade de previsão política ficara consubstanciada na frase: “é preciso viver muito pouco para não assistir à instauração do socialismo em Portugal”, pronunciada então durante as exéquias de um camarada de partido.

Aqui e ali, muitos adiantam alegações para encontrar explicação para a situação bizarra da democracia portuguesa decretar luto nacional por alguém que tentara, por todos os meios que teve, que ela não visse a luz do dia. É simples – os intelectuais (políticos, jornalistas e agentes culturais) sempre tiveram um fascínio intenso pelo totalitarismo ideológico, principalmente o de esquerda. Os intelectuais desconfiam da «ordem espontânea» dos regimes liberais e compreendem melhor uma ordem «construída». Uma teoria social tipo “chave na mão” fundamentada num corpo “sólido” e atractivo de doutrina sobre a necessidade e o determinismo históricos. Tudo muito bem explicado, com as peças bem encaixadas umas nas outras, e que sirva de modelo explicativo que nos tranquilize sobre o passado e nos arrebate sobre o futuro.

Os intelectuais menosprezam a «ordem espontânea» do mercado, porque esta oferece ao público o que este deseja, enquanto que eles pregam ao público o que ele deve e não deve desejar. O mercado opera dentro de um sistema de preferências e de juízos de valor desinteressante para o intelectual. Por isso, não custa muito compreender que muitos intelectuais confiem mais no Estado do que no mercado. O Estado não funciona por uma «ordem espontânea», mas primordialmente sob a influência de lobbies políticos e sociais, e aqui, os intelectuais (políticos, jornalistas e agentes culturais), e mesmo a MM Guedes, movimentam-se bem e têm uma enorme capacidade de angariar subsídios e favores.

Tudo isto concorreu para que, a partir da primeira década do século XX, os intelectuais se colocassem ao serviço do reverenciamento dos regimes estatizantes e totalitários, das paixões políticas, e se tornassem intelectuais de convicção. O século XX foi o século da organização intelectual dos ódios políticos, porque o totalitarismo ideológico subsiste pelo ódio aos que não partilham das suas convicções. Principalmente na esquerda (ler, por exemplo, as barbaridades que intelectuais com a estatura de Aragon e de Sartre escreveram, e o fascínio que o comunismo causou em gente como Martin du Gard, Gide, Malraux e outros), mas também na direita (por exemplo, Heidegger, Leni Riefenstahl e, entre nós, António Ferro).

O fascínio permaneceu e mesmo que os factos mostrassem, à evidência, os erros e os massacres cometidos por esses regimes estatizantes e totalitários e a perversão a que as respectivas doutrinas conduziram, essa estiva pútrida não foi erradicada do subconsciente colectivo e emerge, sempre que tem oportunidade, sob as mais variadas formas. E tem moldado o pensamento politicamente correcto que tem contagiado toda a nossa comunicação, social ou privada.

Foi essa subserviência perante o fascínio do totalitarismo de esquerda e o pensamento politicamente correcto que levou Sampaio a dizer barbaridades, tais como, «É um grande comandante(!!) que desaparece», «uma grande figura do século XX português», etc.

E são os mesmos que ficam preocupados quando alguns dirigentes russos elogiam Estaline ou alguns portugueses elogiam Salazar. Esquecem-se que não pode haver dois pesos e duas medidas.

Como escrevi há tempos, «a religião é o ópio do povo e a iconolatria ideológica é o ópio dos intelectuais».

Ler ainda sobre este tema:
O Traspasse de um Mito

Publicado por Joana às 02:21 PM | Comentários (136) | TrackBack

maio 12, 2005

O Desespero do Artista

Entristece-me ver tanta incompreensão em alguns quadrantes. Que possibilidades tem um jovem realizador de se afirmar no nosso país? Pelo talento? Mas se todos têm talento, reconhecido por 2 ou 3 amigos, pelo Carlos Pinto Coelho e pelo Ministério da Cultura que os subsidia! Pelas audiências? Mas se tal lhes está vedado pela sua procura da dimensão estética absoluta e da plasticidade elástica oscilando entre o mais e o mais. Mais grave: se a perversidade da fortuna lhes trouxer audiências ficam definitivamente na lista negra da Corporação dos Realizadores, que é inexorável perante a indignidade que representa o grande público gostar de uma obra de arte. Tal é uma contradição nos termos: se é Arte, o grande público necessariamente não gosta; se o grande público gosta, não é, definitivamente, Arte.

Que caminhos restam então ao Artista Realizador para se tornar conhecido e continuar Artista? Terá que ser algo com impacte mediático. A Quinta das Celebridades é impossível: ainda não é uma celebridade e ficaria irradiado da Corporação dos Artistas se fosse para lá, mesmo disfarçado de vaca. Aparecer no programa da Ana Sousa Dias? Mas se há dúvidas sobre se aquela gente existe mesmo! Para os poucos que, num zapping distraído, o vêem, são apenas ectoplasmas refractados e entediantes. Aliás, o próprio Prof. Marcelo está em vias de se tornar num ectoplasma ...só lhe faltam os espelhos que já devem ter sido encomendados.

São dolorosos e insondáveis os caminhos de um Artista Realizador para atingir o esplendor mediático. Há caminhos que trazem uma enorme notoriedade, mas infelizmente pontual: imolar-se pelo fogo, atirar-se da Ponte sobre o Tejo, ir para a bancada dos sócios do FC Porto trajando as cores e insígnias do Benfica, fumar droga em Singapura ou na Malásia, etc.

Mas, pensando melhor, esta ideia é capaz de ter potencialidades. Em toda a vasta Arábia dominada pelo fundamentalismo, existe um ponto minúsculo, invisível no mapa, que penaliza os charros mas cujo emir é um bonzão, cheio de clemência para os estrangeiros: eles que se vão drogar para a terra que os pariu, é o seu lema.

Está encontrada a solução. O Artista Realizador é detido e passa a herói e mártir público. As televisões difundem propaganda de solidariedade em prime time. O Governo garante que mantém "toda a sua atenção e determinação no acompanhamento do caso, fazendo uso de todos os meios disponíveis para apoiar aquele nacional”. É pedida a assistência consular dos parceiros comunitários. O embaixador português em Riad desloca-se ao Dubai. O Ministério dos Negócios Estrangeiros impetra um pedido de clemência ao emir e é confrontado na Assembleia da República com requerimentos pedindo explicações por parte do PCP e o Bloco de Esquerda. A Ordem dos Advogados disponibiliza-se imediatamente para garantir a defesa de Ivo Ferreira. A secretaria de Estado das Comunidades garante que a situação do cidadão português está a ser acompanhada. Todas as instituições portuguesas se mobilizaram para resolver o problema do charro.

O Artista Realizador tornou-se assim um mártir, detido por fumar um charro, um inocente acto ao alcance de qualquer aluno do nosso sistema de ensino. E o seu suplício foi agravado, de forma bizarra e tenebrosa, quando a acusação foi deduzida em árabe. O país mediático estremeceu de horror. Em árabe? O nosso compatriota torturado, gemendo lancinante enquanto assinava documentos escritos naquele idioma invertido e sem vogais. Sabe-se lá quantos dias teria passado na sala de torturas, a treinar-se a escrever da direita para a esquerda.

Todavia o clímax mediático ocorreu quando, em declarações à SIC, Ivo Ferreira disse partilhar uma cela sem electricidade com outros 18 homens. Tamanho despautério provocou a indignação pública geral e a inveja discreta de alguns. O Bloco de Esquerda organizou novenas, com preces públicas. Adivinhava-se a apresentação de um projecto de Lei autorizando o exercício da poligamia em Portugal para cidadãos do Dubai, por permuta com fumaças de charros por cidadãos portugueses no Dubai.

Finalmente o paroxismo da libertação: A longa viagem para a liberdade de Ivo Ferreira. No Aeroporto Internacional do Dubai a mole humana interroga-se "Onde está o Ivo?". O Ivo está "lá dentro", segredava-se. Segundo o embaixador António Monteiro foi o despertar de um pesadelo. As autoridades dos Emirados Árabes Unidos bem insistiam que a sua presença já não era necessária, mas o embaixador queria saborear o pesadelo até ao fim. O responsável pela diplomacia egípcia, que também participou neste memorável resgate, chorava de emoção e recitava versículos corânicos.

O Artista Realizador Ivo Ferreira, como primeira declaração pública, pronunciou-se energicamente sobre o assunto, com a veemência e a credibilidade que o seu estatuto de mártir confere: "Espero que o meu caso sirva de lição, e que quer o Ministério dos Negócios Estrangeiros quer as agências de viagem passem a disponibilizar mais informações sobre os países e as suas leis."

Portanto, a lição não é sobre oportunidade de Artistas Realizadores sorverem haxixe, pois esse é um acto necessário, patriótico e promocional. A lição é para o MNE e agências de viagem: eles é que devem disponibilizar informações sobre as acções turísticas que se podem desenvolver nos diversos países e em que circunstâncias: fumar charros, inalar cocaína, injectar heroína, praticar pedofilia, apedrejar a mulher, perpetrar homicídios, etc.

Por exemplo, nos países do Médio Oriente, desde a época em que o Velho da Montanha e os seus “bebedores de haxixe” assassinavam as figuras públicas de então (assassino vem daquele termo árabe), que os protagonistas da política olham de soslaio os “bebedores de haxixe”, que vêem como seus assassinos potenciais. O MNE tem que disponibilizar informações históricas sobre estes casos, para prevenir os turistas. Em contrapartida podem levar as esposas para as linchar lá à vontade.

Foi até agora o charro mais caro alguma vez fumado por um português.

Publicado por Joana às 02:35 PM | Comentários (42) | TrackBack

abril 29, 2005

A Relatividade de Orwell

Ou um texto imprescindível de João Miranda no Blasfémias ... que transcrevo aqui, com a devida vénia:

Relativismo e a orwellização das palavras
Ou porque é que um gato é um cão

O relativismo prevalecente nas sociedades contemporâneas manifesta-se na progressiva degradação da qualidade da discussão pública. Os conceitos, que antigmente tinham um significado preciso, foram progressivamente orwellizadas.

Por exemplo, antigamente, uma pessoa tolerante era uma que, não concordando com o comportamento X, não perseguia nem defendia a perseguição ou a ilegalização do comportamento X, mas não se coibia de criticar abertamente e sem rodeios o comportamento X do ponto de vista moral. A tolerância era uma atitude que cada um tinha em relação a comportamentos de que declaradamente não gostava.

Hoje em dia, uma pessoa que expresse o seu desagrado com o comportamento X é imediatamene declarada intolerante, mesmo que não defenda nenhum tipo de perseguição legal ou social relativamente às pessoas que têm o comportamento X. Em alguns casos extremos, uma pessoa que se limita a mostrar desagrado com o comportamento X pode mesmo ser perseguida judicial e socialmente por intolerância por pessoas que se dizem tolerantes. Ou seja, as pessoas que se limitam a manifestar a sua discordância em relação ao comportamento X são consideradas intolerantes, enquanto as pessoas que se propõem perseguir quem se limita a expressar as suas opiniões em público são consideradas os guardiões da tolerância. A palavra «tolerância» foi de tal forma redefinida, que agora significa precisamente o contrário do que significava originalmente.

PS -Aqueles crimepensantes que se limitam a reprovar o comportamento X em pensamento também não se safam. Não é por isso que os guardiões da tolerância vão deixar de presumir os seus pensamentos a partir da sua forma de vestir ou das suas origens sociais.
Joao Miranda at 10:07

Publicado por Joana às 02:07 PM | Comentários (21) | TrackBack

abril 17, 2005

Inquisição Cautelar

Nada mais repugnante que os Inquisidores que se atribuíram a missão mesquinha de velar pela manutenção da ideologia dominante. Infelizmente é um desígnio nacional que remonta há perto de 5 séculos e que se tem mantido vivaz. Nada mais repugnante de que sejam aqueles que estão refastelados nas cadeiras do poder da Comunicação Social, pagos frequentemente pelos contribuintes, que acusam vozes que, a expensas próprias, se elevam contra essa ditadura do pensamento, de terem uma “difusão privilegiada - e sem concorrência - do seu correctíssimo proselitismo ideológico”. É o farisaísmo mais repugnante.

Uma das características do farisaísmo é acusar os outros dos seus próprios vícios. Por isso, V Jorge Silva acusa hoje, com a contumaz pesporrência, as vozes que têm, pelo esforço próprio e à custa de tanto insulto e calúnia, emergido do pântano da cultura estatizante, de terem a “Arrogância, a sobranceria, a pose de infalibilidade inquisitorial“.

Todos os totalitarismos ideológicos atribuem os males mais horrendos àqueles que se lhes opõem. Os fascistas condenavam os comunistas, acusando-os de comerem criancinhas; V Jorge Silva indigna-se pelo “ódio primitivo que hoje votam a figuras emblemáticas como Sartre (que alguns chegam, sem nenhum sentido do ridículo, a comparar a Salazar!)”. Se o ridículo (de VJS) matasse ...

Na realidade, o menos laudatório que se tem escrito sobre Sartre, neste ano do centenário do seu nascimento, é o relativo à sua intervenção política (e não como escritor ou filósofo), comparando-o com Raymond Aron, que nasceu no mesmo ano e foi condiscípulo dele, sublinhando, como eu escrevi aqui há um mês, que em cada evento, Sartre esteve, quase sempre, do lado certo, de acordo com o pensamento politicamente correcto da época, mas quase sempre do lado errado, de acordo com o posterior julgamento da história enquanto Aron esteve, quase sempre, do lado errado, de acordo com esse mesmo pensamento politicamente correcto e sempre do lado certo, de acordo com o mesmo julgamento posterior.

Nada disso prefigura um ódio primitivo mas apenas análise política e histórica factual; Não li em sítio algum Sartre ser comparado a Salazar. E se tal tivesse acontecido, isso apenas constituiria ignomínia para quem o escrevesse e não para Sartre.

Por isso é normal que os arautos do actual politicamente correcto odeiem serem confrontados com exemplos de figuras que foram idolatradas sobre os acontecimentos e cujos erros emergiram e foram ganhando uma dimensão cada vez mais calamitosa, à medida que a distância temporal se ampliou. Receiam o julgamento da história. E enquanto esse julgamento não chega ... insultam os adversários.

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março 29, 2005

Os Vigilantes

Reina uma profunda preocupação entre os detentores das verdades absolutas e do politicamente correcto que, desde há décadas, parasitam a comunicação social. Esta, por duas ou três vezes, deu ultimamente a lume artigos ou dossiers sobre uma eventual crise da Direita, sobre a provável necessidade de “refundar a Direita, etc.. Para esse desiderato foram auscultados diversas figuras da direita (hesito em chamar-lhes intelectuais, porque para obterem essa categoria necessitariam situarem-se noutras áreas políticas). Foi demais! Vicente Jorge Silva verberou imediatamente no DN essa prática insolente e escreveu indignado que “as opiniões que neles [os órgãos de comunicação social] hoje prevalecem - entre directores editoriais e a maioria dos colunistas - são claramente de direita”.

Obviamente Vicente Jorge Silva exigiria que o debate sobre o futuro da direita e sobre as suas crises e refundações fosse feito por verdadeiros e robustos intelectuais, detentores das verdades absolutas, em suma, escrevinhadores da esquerda.

É um facto que este governo tem sido obsequiado com um pacto de silêncio e uma simpatia indisfarçável, enquanto que o governo de Durão Barroso foi, desde o início, objecto do terrorismo verbal mais absoluto e que o governo de Santana Lopes foi entregue pelo PR à vigilância popular logo na indigitação. É um facto que idênticas declarações contraditórias de titulares de cargos públicos, sobraçando idênticas pastas, foram trapalhadas hilariantes no governo anterior e agora deslizes irrelevantes que não beliscam craveiras de indiscutível valimento.

Mas essa aparente discrepância faz parte da natureza das coisas. Não colhe para as interpretações de Vicente Jorge Silva. Não se deve esperar equanimidade de critérios, ou mesmo misericórdia, para com os infiéis. Os infiéis vivem em pecado pela sua própria natureza. Não foram iluminados pela graça divina da verdade absoluta. Deixar que alguns despontem, ao de leve, na comunicação social é uma heresia que deve ser condenada liminarmente.

Nem todos. O neófito quando entra no aprisco é adulado como o filho pródigo da parábola bíblica. Foi o que aconteceu ao Freitas do Amaral. Mas é isso que têm em comum as verdades absolutas, quer as reveladas por reverberação divina, quer as inerentes à missão histórica que um grupo social se atribuiu, de salvar a humanidade mesmo contra vontade desta, nomeadamente quando os exemplos práticos desses salvamentos se saldaram em desastre calamitosos.

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março 15, 2005

Neoliberalismo e Intelectuais

Como já tive aqui ocasião de observar, o nosso modelo do Estado Providência perverteu toda a sociedade muito para além da simples esfera económica e social. Por exemplo, a principal razão por não haver em Portugal nem Teatro nem Cinema dignos desse nome, é porque estes apenas vivem da dependência dos subsídios. Isso fez com que não tivessem necessidade de obter o favor e a adesão do público. Aliás, desprezam-no. Os agentes culturais portugueses só produzem para os amigos verem, só sabem viver na subsídio-dependência e temem qualquer êxito comercial, que os pode deixar, em definitivo, liquidados culturalmente junto dos seus pares.

Foi um processo rápido. Inicialmente, bastava-lhes obterem os subsídios. Agora, estes tornaram-se a própria razão da sua existência. Já não podem viver sem eles, pois que o público, ignaro e desprezível, os desconhece. A sua produção é em circuito fechado, pois o público é-lhes igualmente despiciendo. Assim, em vez de promover a cultura, o Estado Providência meteu-a num asilo, com a conivência dos asilados. Para definir o nosso regime, melhor que Estado Providência, seria a designação de Estado Asilo.

O liberalismo (ou como o alcunham, o neoliberalismo) encontra uma explicação simples para este divórcio. Os intelectuais (os agentes culturais) menosprezam a actividade empresarial porque esta oferece ao público o que este deseja, enquanto que eles pregam ao público o que ele deve e não deve desejar. “O empresário opera dentro de um sistema de preferências e de juízos de valor que o intelectual pretende sempre modificar”. Por isso não é estranho que o intelectual se sinta identificado com o défice financeiro da sua actividade e pretenda o subsídio estatal para a financiar.

Os intelectuais (os agentes culturais) têm assim um especial carinho pelas instituições deficitárias, pelas institutos ou entidades financiados pela Estado, pelos centros universitários que dependem de subsídios e dotações, pelos periódicos e revistas incapazes de auto-financiar-se. E isto porque sabem por experiência própria que sempre que produzem da forma como julgam que deve ser produzido, verificam que não há coincidência entre o seu esforço e o acolhimento que têm no mercado. Como os intelectuais (os agentes culturais) se auto-incumbiram da missão de evangelizar o público sobre o que é verdadeiro e certo e dado que esse mesmo público não se reconhece nessas verdades e certezas, encontram uma total e absoluta resistência ao escoamento do seu produto o que, pelo sistema de equações que modeliza este caso, levaria o preço de mercado a ser muito inferior ao seu custo marginal. Numa economia de mercado tal situação conduziria à falência imediata do produtor.

Há pois uma explicação microeconómica para este facto. Como deixou de haver relação entre o preço (que é tendencialmente nulo) e o custo marginal, no limite o Estado Providência avoca a si a procura daqueles bens, do ponto de vista da sua transacção, remetendo o seu usufruto para o público, um público reduzido, por este processo de distanciamento, aos amigos e colegas dos produtores intelectuais.

Há aqui uma violação clara das condições estruturais da concorrência, visto o Estado se comportar como um Monopsónio, que compra aqueles bens por critérios que nem ele sabe, visto o Estado ser incompetente em matéria económica e não saber, por via disso, fazer vingar o seu poder económico de monopsonista.

Ora esta situação resulta da existência do Estado Providência. Antes dele não existiam estas violações grosseiras das condições estruturais da concorrência. Rembrandt viveu das encomendas que lhe faziam. Trabalhava para o mercado. Voltaire, Delacroix, Victor Hugo, George Sand, Camilo Castelo Branco (e em Portugal!!), Charles Dickens, Verdi, Renoir (o pintor e o cineasta), Chaplin singraram em mercados concorrenciais. A riqueza acumulada por Chaplin poderia mesmo ter constituído um insulto público, se ele não se tivesse revestido com tintas de esquerda. Houve outros que tiveram mais dificuldade em controlarem custos e prazos, como Miguel Ângelo na Capela Sixtina, mas foram acidentes de percurso. Milhares de artistas produziram as obras maravilhosas que constituem hoje o nosso enlevo. E produziram-nas para o mercado com que estavam confrontados.

Veio o Estado Providência e a cultura preferiu o asilo, reformou-se ...

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março 10, 2005

Aron e Sartre

Faz em 2005 cem anos que nasceram Raymond Aron e Jean-Paul Sartre. Têm muito em comum. Nasceram ambos em 1905; foram condiscípulos na Escola Normal Superior da Rua de Ulm; estiveram, até às suas mortes (Sartre em 1980 e Aron em 1983), empenhados em todas as grandes lutas e eventos do século. Apenas houve duas pequenas diferenças entre ambos: 1) Em cada evento, Sartre esteve, quase sempre, do lado certo, de acordo com o pensamento politicamente correcto da época; Aron esteve, quase sempre, do lado errado, de acordo com esse mesmo pensamento politicamente correcto; 2) Em cada evento, Sartre esteve, quase sempre, do lado errado, de acordo com o posterior julgamento da história; Aron esteve, sempre, do lado certo, de acordo com esse mesmo julgamento.

Sartre foi sempre o ídolo do pensamento politicamente correcto, mesmo quando se verificava, poucos anos depois, que tinha apoiado um erro – o pensamento politicamente correcto não tem memória. Aron foi sempre diabolizado pelo pensamento politicamente correcto – as injustiças da História (ou seja, os factos que tramaram o pensamento politicamente correcto) são imperdoáveis para aqueles que tomam as suas ideias como valores absolutos.

Aron pressentiu o que adviria com a ascensão do nazismo. Para ele, o dizer não a Hitler deveria ter ocorrido em Março de 1936 (ocupação militar da Renânia) e não após Munique. O espírito de Munique nascera em 1936. Pelo contrário, Sartre sempre pensou que Hitler seria um epifenómeno transitório e mesmo aquando dos acordos de Munique, não se apercebeu logo da dimensão exacta do que estava em jogo. Após a derrota, Aron foi para Londres, enquanto Sartre, saído do cativeiro, dedicou-se à escrita em Paris. Foi, segundo ele, «un écrivain qui résiste, et non un résistant qui écrit», porque resistir não pode ser uma finalidade em si. Tentaram, mais tarde, fazer dele um resistente, mas como afirmou J-C Casanova num debate recente «Si la résistance consiste à discuter dans un café, alors il y a eu beaucoup de résistants en France!».

Depois de acabada a guerra, Sartre (e os Temps Modernes, a cujo Comité Directivo, Aron também pertenceu de início) envereda pela 3ª via, nem capitalismo, nem comunismo. Mas o futuro Sartre já está prefigurado na apresentação dos Temps Modernes (lançado em Outubro de 1945): quer se queira quer não, todo o texto «possui um sentido»: «para nós o escritor não é Vestal nem Ariel – ele está “no momento”, e não importa o que faça, está marcado e comprometido mesmo no seu retiro mais remoto» ... «Cada palavra tem repercussões. Cada silêncio também» «as palavras são pistolas carregadas». Já tive ocasião de me debruçar, aqui, sobre a perversão da filosofia do “intelectual comprometido”.

E pouco a pouco, Sartre deixa-se impregnar pelo fascínio do PCF, que se apresentava como o futuro da humanidade perante os crentes, como o agente decisivo da História. Vai ser o percurso de Sartre, o da tentativa (sempre frustrada, mas sempre permanente) de reconciliar o aventureiro de origem burguesa, motivado pelo seu ego a agir, e o militante revolucionário cujo ego é motivado pela acção. O PC continua, apesar de tudo, a ser a única chave no que respeita à sua vontade de romper com a burguesia e com a «civilização da solidão» que ela traz em si e na qual foi educado. A invasão da Coreia do Sul pela tropas norte-coreanas e a intervenção americana sob o patrocínio da ONU extremou os campos. A partir daí, Sartre tornou-se um compagnon de route do movimento comunista – «Um anticomunista é um cão, persisto e persistirei em dizê-lo».

Aron ficou decididamente, no outro lado da barreira. Para ele, a influência de Estaline não parava no Elba. A força do imperialismo soviético dependia menos do seu potencial militar do que da sua irradiação ou da penetração da sua propaganda. A existência, na própria Europa Ocidental, de grandes partidos comunistas, como em França e na Itália, é descrita por Aron, em 1948, como sendo a de «quintas colunas». Sem dúvida, os milhões de eleitores que confiam nos partidos comunistas ocidentais nutrem-se de esperanças honrosas, mas isso não deve ocultar a realidade, a saber, que os dirigentes e os aparelhos desses partidos fazem a política da URSS no quadro nacional onde exercem as suas actividades.

Aos olhos de Aron, para frustrar os seus objectivos três condições se impunham: primeiramente, o restabelecimento dos grandes equilíbrios económicos, financeiros e monetários; logo - em segundo lugar - a restauração de um poder de Estado; e, em terceiro lugar, a luta decidida contra a ideologia comunista no próprio terreno das ideias e da propaganda.

E disso se encarregou Aron «Os revolucionários têm como que um ódio ao mundo e um desejo da catástrofe. Todos os regimes conhecidos são condenáveis face a um ideal abstracto de igualdade e liberdade. Apenas a Revolução, porque é uma aventura, ou um regime revolucionário, porque este consente no uso permanente da violência, parecem capazes de conjugar este objectivo sublime. O mito da Revolução serve de refúgio ao pensamento utópico, torna-se o intercessor misterioso, imprevisível, entre o real e o ideal. .... A própria violência atrai, fascina, mais que repele. O mito da Revolução converge com o culto fascista da violência

A crítica ideológica [ do intelectual de esquerda] é moralista contra uma parte do mundo e em extremo indulgente perante o movimento revolucionário. A repressão nunca é excessiva, antes pelo contrário, quando atinge a contra-revolução ou é ministrada por um movimento revolucionário. A prova da culpabilidade é sempre insatisfatória, quando ministrada pela justiça dos países ocidentais sobre «revolucionários». Quantos intelectuais aderiram aos PC’s por indignação moral e acabaram subscrevendo de facto o terrorismo soviético e a razão de Estado?

Estes escritos de 1955 tornaram Aron no “lacaio da burguesia”, encarregado de lhe «fornecer a dose de justificações capazes de permitirem a esta ter boa consciência e enfraquecer os seus adversários». E isto não foi dito por nenhum radical, mas sim por Maurice Duverger, que de esquerda nunca teve nada. Tal era o ambiente intelectual que se vivia na época.

E quando lhe objectaram que o anticomunismo conduz ao fascismo, Aron respondeu com firmeza: «Não temos qualquer credo ou qualquer doutrina a opor à doutrina e ao credo comunistas, mas isso não nos humilha, porque as religiões seculares são sempre mistificações. Elas propõem às multidões uma interpretação do drama histórico e atribuem a uma causa única as infelicidades da humanidade. Ora, a verdade é outra, não há uma causa única ... Não há Revolução que, de um golpe, possa inaugurar uma fase nova da humanidade. A religião comunista não tem rival, ela é a última dessas religiões seculares, que acumularam as ruínas e espalharam torrentes de sangue».

Enquanto isso, Sartre apressava-se a estar do lado da causa do proletariado comunista. Em 1954, de regresso de uma viagem à Rússia onde fora passeado, louvado e empanturrado, dá entrevistas onde afirma: «A liberdade de crítica é total na URSS. O contacto é tão alargado, tão aberto, tão fácil quanto possível». E avança esta predição ousada: «Por volta de 1960, antes de 1965, se a França continuar a estagnar, o nível médio de vida na URSS será 30 a 40 por cento superior ao nosso. É bem evidente, para ela e para todos os homens, que a única relação razoável é uma relação de amizade». E Sartre conhece os factos, sabe do Gulag, mas tem uma atitude dúplice, pois embora condene existência dos campos soviéticos, alerta contra a exploração que disso faz, todos os dias, a imprensa burguesa. Todavia, 2 anos depois, o esmagamento da revolta húngara era um facto demasiado evidente e demasiado público – Sartre anuncia então que quebra «as relações com os escritores soviéticos meus amigos, que não denunciaram, ou não podem denunciar, o massacre da Hungria», e descobre, finalmente, que «já passou o tempo das verdades reveladas, das palavras de evangelho: um Partido Comunista não pode viver no Ocidente se não adquirir o direito de livre exame».

Aron tinha mais uma vez acertado. Sartre precisou da brutalidade dos factos para ver, não direi claro, mas alguma ténue luz.

Foi igualmente oposta a posição deles perante o fim da IV República, incapaz de encontrar uma solução para a guerra da Argélia. Sartre preconizava uma nova Frente Popular e o combate ao gaullismo que seria a continuação da política colonial sob uma espécie de monarquia constitucional, Aron apostou no general, prevendo que ele faria uma política contrária aos militares que o tinham chamado. Mais uma vez foi Aron que acertou.

Mas Sartre encontrou outros heróis. Meses antes da crise dos mísseis, escreve «Os cubanos, é preciso repeti-lo, não são comunistas e nunca pensaram em instalar bases de foguetões russos no seu território»!! Fidel é um anjo... Fidel é «o homem para tudo e é o homem de todos os pormenores»... Fidel «é, a um tempo, a ilha, os homens, o gado, as plantas e a terra; ele é a ilha inteira»... vi Fidel no meio dos «seus» cubanos - «os cubanos tinham adormecido um após outro, mas Castro unia-os numa mesma noite branca: a noite nacional, a sua noite...»

Com a crise de Maio de 1968, Sartre abre uma nova página da sua intervenção política. Novos heróis se prefiguram diante dele: os estudantes revoltados e os grupúsculos trotskistas, maoistas e anarquistas que tentavam acaudilhar a revolta. Declara então que o PC e a CGT já não estão na corrida revolucionára: «O que está prestes a formar-se é um novo conceito de sociedade baseado na democracia plena, numa conjunção de socialismo e de liberdade»

Aron, do outro lado da barricada, declara com enorme coragem política, face ao vendaval existente, que os «estudantes franceses formulam várias reivindicações legítimas a partir de motivos de queixa autênticos. Mas uma pequena minoria entre eles, aproveitando a capitulação de muitos professores, graças à inocência política da massa estudantil e dos professores tradicionais, está prestes a conseguir levar a cabo uma operação verdadeiramente subversiva .... Dirijo-me a todos, mas em primeiro lugar aos meus colegas, de todas as correntes de opinião, aos estudantes, tanto aos dirigentes como aos manipulados. Convido todos aqueles que me lerem, e que encontrarem nos meus pontos de vista o eco das suas próprias inquietações, a escreverem-me. Talvez tenha chegado o momento, contra a conjura da lassidão e do terrorismo, de nos reagruparmos, fora de todos os sindicatos, num vasto comité de defesa e de renovação da universidade francesa

Nada mais distante das posições de Sartre que acusa com brutalidade o antigo condiscípulo: «Aposto que Raymond Aron nunca se pôs em causa e é por isso que ele é, na minha opinião, indigno de ser professor. Não é o único, evidentemente, mas vejo-me obrigado a falar dele porque, nestes últimos dias, ele escreveu muita coisa.» Contra Aron, Sartre defendia a eleição dos professores pelos estudantes e a participação dos estudantes nos júris dos exames. «Isso implica que deixemos de pensar, como Aron, que pensarmos sozinhos atrás das nossas secretárias - e pensarmos a mesma coisa há trinta anos - representa um exercício de inteligência». Todavia, esse exercício de inteligência tinha permitido ao pensamento político de Aron ser validado pela história, enquanto o de Sartre era apenas uma verdade absoluta enquanto durava cada contexto; depois ele próprio se encarregava de mudar de rumo.

Também aqui as posições de Aron se revelaram correctas. Foi perseguido e para receber um prémio universitário teve que o fazer clandestinamente, mas as eleições marcadas na sequência da crise foram um triunfo para De Gaulle e uma derrota clamorosa para os protagonistas do Maio de 68. Sartre, perante a recusa do PCF e dos sindicatos de encabeçarem o movimento, propôs a refundação da esquerda, «à esquerda» do PCF

E assim Sartre seguiu um percurso ligado ao radicalismo de esquerda. Em 1972 afirmava em entrevista que «continuava a favor da pena de morte por motivos políticos ... num país revolucionário em que a burguesia terá sido expulsa do poder, os burgueses que fomentassem um motim ou uma conspiração mereceriam a pena de morte ... um regime revolucionário deve desembaraçar-se de um certo número de indivíduos que o ameaçam e, para este caso, não vejo outro meio a não ser a morte; é sempre possível sair de uma prisão». No La Cause du Peuple, do qual ele é, desde Maio de 1970, o director titular, pode ler-se apelos a «sangrar os patrões», «esfolá-los vivos como porcos que são», a «linchar os deputados», a «catar os «pequenos chefes», a responder aos patrões sequestrados que ainda pedem «autorização para ir urinar»: «mija nas calças! Não sabes o que são umas cuecas que colam ao traseiro por causa do suor, assim, pelo menos, ficarás a saber o que é ter o cu molhado...», dos comunicados de «operários em revolução», «Vai chegar o dia em que exterminaremos toda a corja de patifes a que pertences». E outras expressões que prefiro não transcrever aqui.

A barbárie de outros textos publicados num jornal, J’accuse, na década de 70, do qual ele se mantém como director e em relação ao qual, ao que se sabe, não deixou nunca de se mostrar solidário: «quanto a esse patrão, será preciso tirar-lhe os miúdos, se eles os tiver, até que as reivindicações sejam satisfeitas...» e a imagem - que também não o parece escandalizar - de Dreyfus, nessa altura patrão da Régie Renault, em que este surge caricaturado como um cão ocupado a sodomizar outro, suposto representar a «canalha sindical» de Billancourt.

Em meados da década de 20, Aron e Sartre haviam prometido, um ao outro, que aquele que sobrevivesse escreveria o obituário do outro no Boletim dos Antigos Alunos da Escola Normal. Aron não honrou essa promessa e explicou porquê: «Demasiado tempo passou entre a intimidade de estudantes e o aperto de mão na conferência de imprensa do “Barco para o Vietname”(*), mas ficou qualquer coisa. Deixo aos outros o encargo, ingrato, mas necessário, de celebrar uma obra cuja riqueza, diversidade e amplitude confundem os contemporâneos, de pagar um justo tributo a um homem cuja generosidade e desinteresse ninguém porá em dúvida, mesmo quando se empenhou, e fê-lo por diversas vezes, em combates duvidosos»

É, de facto, preferível, no interesse da memória de Sartre – que é um filósofo importante e um escritor de mérito – esquecer o Sartre político, cuja lógica do absoluto revolucionário o levou a escrever textos que poderiam figurar em antologias de literatura fascizante. E continuarmos a ler os escritos políticos de Aron, o intelectual lúcido, que durante 40 anos se debateu com a actualidade, tentando captar-lhe o sentido, com objectividade, sem sentimentalismos nem romantismos. Um intelectual que permanece actual.


(*)Em 1979, quando da tragédia dos “boat people” estiveram juntos para sensibilizarem o Eliseu e o povo francês a colaborarem na tentativa de salvamento das dezenas de milhares de refugiados vietnamitas que fugiam do país por mar em condições dramáticas.

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novembro 08, 2004

Politicamente Correcto

Várias vezes tenho usado o termo politicamente correcto, ou o termo “intelectuais bem pensantes”, ou seja, os intelectuais que pensam “politicamente correcto”. Embora o termo tenha sido importado, directa ou indirectamente, dos EUA, ele ganhou autonomia própria e “nacionalizou-se”. Portanto não me vou interessar pela sua génese e avatares além fronteiras.

O politicamente correcto é comportar-se e pensar de acordo com os cânones impostos pela ideologia dominante. Mas essa ideologia não é necessária e exclusivamente política. Misturam-se nela diversos conceitos – puritanismo, censura, dogmatismo, ditadura das minorias, obrigação de fazer de qualquer particularismo uma lei geral para a comunidade, eliminação do fantasma de se tornar minoritário pela subvalorização da normalidade e das decisões ou da vontade da maioria, etc.

Do ponto de vista da ditadura sobre o pensamento, o politicamente correcto é o equivalente actual da moral burguesa, só que de sinal contrário quanto aos conceitos que erige em absolutos, o que é normal, visto a ideologia dominante se ter ela própria modificado. Portanto, todos os disparates que a ditadura da moral burguesa fez viver os nossos avós, equivalem àqueles que o politicamente correcto nos tenta impingir actualmente. Com uma diferença – a moral burguesa preocupava-se mais com o comportamento que com a política ou o pensamento, enquanto o politicamente correcto é totalitário porque invade tudo, incluindo aquilo que tínhamos de mais íntimo: o pensamento.

Formalmente o politicamente correcto é o depósito de todas as virtudes: prega a igualdade entre todos, o respeito pelo outro sob qualquer forma, o anti-racismo, a tolerância para com todas as outras crenças políticas e religiosas. O politicamente correcto abre apenas uma excepção a esta tolerância universal: O politicamente incorrecto é absolutamente interdito. Sendo assim, o politicamente correcto consiste na observação da sociedade e da historia em termos maniqueístas: O politicamente correcto representa o bem e o politicamente incorrecto representa o mal.

O politicamente correcto tem portanto a característica de uma religião total, pois para além da moral e do comportamento, abrange a política, a sociologia, as ciências da comunicação, etc., etc.. Não existe no plano económico, porque os protagonistas do politicamente correcto apenas se movem nas áreas das ciências humanas onde os critérios de validade são assegurados por quem tem mais verve ... ou quem tem uma corte mais numerosa. Em economia apenas utilizam frases simples: subsidiar os menos favorecidos, aumentar o emprego, atingir a igualdade social, etc.. Como não sabem fazer contas é-lhes despiciendo o saber como isso se faz, quanto custa e quem vai pagar. O politicamente correcto não abrange portanto as ciências baseadas em números, pois os números têm uma característica incómoda – não dependem da raça, do credo ou das preferências sexuais. São uns chatos!

Assim, para o politicamente correcto só há uma verdade: a sua. O politicamente correcto defende a tolerância ... mas apenas para o que é a sua verdade.

Neste universo perfeito é exaltante ser-se politicamente correcto, pois tem-se sempre a resposta certa para tudo. Só que têm que se fazer as penitências necessárias. Por exemplo um branco, para se tornar politicamente correcto, tem que assumir a sua culpa original por ter participado, mesmo in absentia, na escravatura, nos genocídios, no extermínio das espécies e nos maus tratos aos animais, etc.. As mulheres brancas têm um nível inferior de culpa, pois embora tenham nos seus currículos aqueles pecados originais, têm a atenuante de haverem sido vítimas de três mil anos de civilização judaico-cristã. Apenas uma espécie não tem qualquer culpa: a mulher negra, de uma crença não cristã, imigrante, sem-abrigo e lésbica.

Mas mesmo uma mulher, para se manter politicamente correcta tem que ter imenso cuidado: saber se o que usa para a maquilhagem não teria sido testado em animais, nunca usar peles ou tecidos oriundos de animais, reciclar todos os sobejos das refeições até à exaustão, ou até ao divórcio por alegada tentativa de envenenamento alimentar, etc.

Todavia, para o politicamente correcto, a mulher está num nível menos elevado que a etnia. O politicamente correcto zela pela igualdade dos sexos, mas é extremamente tolerante e compreensivo para os grupos étnicos ou religiosos que degradam a vida das mulheres e fazem delas suas vítimas.

Vejamos alguns exemplos:

Não é politicamente correcto referir a origem étnica dos delinquentes. Sempre que algum órgão de comunicação não conseguia evitar essa referência (na TV há dificuldade em impedir que o telespectador veja a etnia do delinquente) aparecia uma organização, SOS Racismo, a chamar a atenção para aquele conteúdo racista. De há alguns anos a esta parte, o SOS Racismo tem aparecido muito menos, porque verificou que o resultado junto da opinião pública era exactamente o oposto. As pessoas sentiam-se injustiçadas por julgarem que haveria uma protecção especial para delinquentes de outras etnias. Eis um exemplo em como o politicamente correcto anti-xenofobia fez, para surpresa dos p.c., aumentar a xenofobia.

Não é politicamente correcto gostar de touradas ou de tudo o que envolva qualquer sofrimento público dos animais. Os animais devem ser abatidos discretamente e aparecerem nos nossos pratos disfarçados de bifes. Como o politicamente correcto é um animal urbano, ele tem dificuldade em se aperceber que existe qualquer relação entre um bife, um entrecosto grelhado e qualquer espécie animal, por isso fica tranquilo enquanto se delicia com uma galinha de cabidela. Depois das grandiosas manifestações de massas que os arautos do politicamente correcto organizaram em Barrancos, em que cerca de cem pessoas, agitando centenas de cartazes repletos de frases politicamente correctas, condenaram firmemente as touradas, nunca estas estiveram tão em voga. O entusiasmo por esse espectáculo bárbaro aumentou em flecha. Esta é, aliás, a faceta mais brilhante do politicamente correcto – Obter junto da opinião pública o efeito exactamente oposto do que pretende.

Não é politicamente correcto pretender para as outras culturas o que se exige para a nossa. Os quadrantes políticos que mais pugnam pela descriminalização do aborto, foram aqueles que conseguiram adiar, na AR, o estabelecimento de legislação que condenasse a excisão do clítoris, a pretexto de se tratarem de culturas tradicionais e que era necessário, previamente, um estudo mais aprofundado.

Há dias foi assassinado, numa rua de Amesterdão, em pleno dia, Theo van Gogh, que havia realizado um filme sobre o humilhante papel da mulher na sociedade islâmica. Já havia recebido ameaças de elementos islâmicos. O suspeito do assassínio foi descrito como tendo barba comprida, estar vestido como um muçulmano e ter nacionalidade marroquina. Qualquer descrição que ultrapassasse esta forma de adivinha poderia ser considerada racista e xenófoba. Este assassinato tem permanecido relativamente em silêncio nos meios intelectuais. É natural, o politicamente correcto tem dificuldade em lidar com europeus loiros serem assassinados por muçulmanos de barba comprida. Se fosse o contrário, toda a intelectualidade estaria a redigir proclamações e abaixo-assinados de protesto. Neste caso o politicamente correcto tem o dever de ser discreto, pois se o não fosse poderia passar por racista, xenófobo, etc..

Também em matéria de ditaduras, o politicamente correcto é extremamente exigente. Ditaduras terceiro-mundistas, ou que se invoquem do anti-capitalismo ou do anti-americanismo são ditaduras boas. Em contrapartida, qualquer regime democrático que se lhes oponha é um regime imperialista e opressor.

O politicamente correcto é insidioso porque se insinua sob diversas formas, inocentes e de fácil assimilação. Começa pela linguagem. O vocabulário politicamente correcto é o principal veículo de contágio. O politicamente correcto usa eufemismos na sua linguagem. Determinadas expressões são condenadas a serem eliminadas do vocabulário para evitar associações de tipo discriminatório. Por exemplo, já não se diz contínuo da escola, mas Auxiliar da Acção Educativa, as mulheres a dias passaram a ser empregadas domésticas, os varredores de rua a serem técnicos de limpeza e jardinagem, etc.. Há determinadas categorias para as quais já se torna difícil encontrar no léxico uma denominação adequada, como no caso dos homossexuais. Mas há sempre o recurso aos circunlóquios.

A desintoxicação é difícil, na medida em que vivemos num mundo em que os meios de comunicação adquiriram uma importância desmedida e são estes os principais agentes encarregados da contaminação maciça. O primeiro remédio consiste em tomar consciência de que o politicamente correcto existe e que circula sobretudo através do nosso vocabulário. O segundo remédio consiste em pôr em prática a renúncia a toda a terminologia politicamente correcta e às ideologias nas quais ela se apoia. Chamar as coisas pelos nomes!

Como disse acima, há necessidade de uma contínua renovação de linguagem para caracterizar um conjunto de pessoas que executem uma tarefa considerada de menor nível, ou que tenham qualquer diferença que as tornem uma minoria, pois as palavras vão-se desvalorizando com o uso. O léxico vai-se esgotando. Quando isso acontece, os eufemismos utilizam circunlóquios cada vez mais tortuosos. Cito um exemplo retirado da Wikipedia (cf “Political correctness”). A forma politicamente correcta de escrever a frase "The fireman put a ladder up against the tree, climbed it, and rescued the cat" deveria ser:

"The firefighter (who happened to be male, but could just as easily have been female) abridged the rights of the cat to determine for itself where it wanted to walk, climb, or rest, and inflicted his own value judgments in determining that it needed to be 'rescued' from its chosen perch. In callous disregard for the well-being of the environment, and this one tree in particular, he thrust the mobility disadvantaged-unfriendly means of ascent known as a 'ladder' carelessly up against the tree, marring its bark, and unfeelingly climbed it, unconcerned how his display of physical prowess might injure the self-esteem of those differently-abled. He kidnapped and unjustly restrained the innocent animal with the intention of returning it to the person who claimed to 'own' the naturally free animal."

P.S. - Estava a escrever isto e a ver na TV o Miguel Portas dizer que o facto de contas bancárias, onde se decobriu estarem depositadas muitas centenas de milhões de euros, estarem no nome de Arafat, não significava que o dinheiro era dele. O azar do Isaltino foi não ter enfiado um turbante, deixado crescer a barba, passar a chamar-se Al-Satino. Então Portas passaria também a ter fundadas dúvidas. Este é um exemplo típico do politicamente correcto, acabado de vir directamente do produtor.

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novembro 07, 2004

Intolerância Congénita

... Ou de Dreyfus a M Moore, passando por Lukacs ...

Uma parte não despicienda do espectro político da esquerda portuguesa perdeu o sentido das proporções, perdeu a noção do significado prático dos valores democráticos e perdeu o espírito de tolerância e do respeito pelas opiniões que não sejam absolutamente coincidentes com as suas.

Provavelmente estou a ser lisonjeira. Provavelmente esta esquerda a que me estou a referir nunca teve o sentido das proporções, nunca praticou os valores democráticos e sempre foi intolerante e totalitária.

Mas enquanto a esquerda foi oposição, o fragor da luta contra regimes frequentemente retrógrados, intolerantes e despóticos, obscurecia todas aquelas facetas. Quando a peleja é extremada e sem quartel, é-nos impossível, por vezes, distinguir onde acaba a bravura e começa a crueldade e a malevolência; onde há ética ou onde há apenas facciosismo. Porém, quando a situação se inverte, as dúvidas desaparecem e os que eram, de facto, bravos na época de sofrimento e opressão, revelam-se gente honrada, tolerante e sensata e os outros, os apenas cruéis e facciosos, revelam-se indignos, intolerantes e émulos dos ex-opressores.

Sempre tive, e tenho, simpatia pelos dreyfusards e pela sua luta, que tanta influência teve na História. Reconheço todavia que a maioria deles pôs, nesse combate, tanta intolerância e desdém pelos outros, como a direita militarista. Zola foi tão intolerante quanto o general Mercier. A diferença é que o Ministro da Guerra estava envolvido, embora na altura não o soubesse, numa fraude que fundamentava uma acusação falsa, enquanto Zola defendia a verdade, embora na altura não tivesse provas disso. Isso não invalida que Zola estivesse no lado certo e Mercier no lado errado.

Nessa disputa que, embora hoje esquecida, marcou a evolução futura da França, e não só, a tolerância, a racionalidade e o heroísmo estiveram na parte sã do exército francês, no coronel Picquart, um conservador, com preconceitos contra os judeus, mas que quando começou a analisar as provas que tinham levado Dreyfus à Ilha do Diabo, descobriu que o documento incriminador era forjado e pôs a verdade acima das suas convicções políticas e sociais, lutou e sofreu por essa verdade (foi expedido para a zona de combate mais perigosa do norte de África e esteve preso algum tempo) e a ele se deve o deslindar do caso, embora, se não fosse a agitação promovida pelos dreyfusards, aquele caso tivesse provavelmente caído no esquecimento e Picquart nunca fosse chamado a analisar as peças do processo Dreyfus.

Mas esta luta marcou o declínio da época da prevalência da objectividade e da racionalidade na procura da verdade. No mesmo dia (13 de Janeiro de 1898) em que era publicada no Aurore a carta aberta a Félix Faure (J’Accuse), o grupo parlamentar socialista reunia-se e a maioria decidia, a alguns meses das eleições seguintes, que não deve ir contra a opinião pública para seguir Zola, que era apenas um escritor burguês. Dias depois os deputados socialistas assinariam uma resolução distanciando-se das «duas fracções rivais da classe burguesa», de um lado «os clericais» do outro, «os capitalistas judeus». «Na luta convulsiva das duas fracções burguesas rivais, tudo é hipocrisia, tudo é mentira. Proletários, não vos envolvais em nenhum dos grupos desta guerra civil burguesa ... ». Esta posição só mudou quando Jaurés percebeu os dividendos políticos que obteria se apoiasse os dreyfusards.

O terramoto pelo qual passou a Europa, a partir do deflagrar da 1ª Guerra Mundial e da Revolução de Outubro (que hoje faz 87 anos), acelerou a degenerescência da objectividade e do racionalismo. Ao contrário do que Lukacs escreveu, a Destruição da Razão (Die Zerstörung der Vernunft) não se deu apenas no pensamento alemão que, segundo ele conduziu de Schelling e Nietzsche até Rosenberg e Hitler, deu-se igualmente pela emergência e divulgação do marxismo soviético, na sua forma estalinista, à qual aquele livro, publicado no ano anterior à morte do Pai dos Povos constituía uma respeitosa elegia. O que houve de perverso é que a verdade deixou de ser matéria objectiva, para ser matéria operacional: a verdade era a interpretação (ou mesmo a deturpação ou a invenção) dos factos que servissem os interesses da classe que tinha por missão histórica derrubar o statu quo existente, e quem faria essa exegese sobre o que era a “verdade” seria a elite política que se atribuía a si mesma a direcção daquela classe.

Aliás, já na História e Consciência de Classe (Geshichte und Klassenbewusstsein), Lukacs se havia empenhado em demonstrar que as ideologias de classe não são equivalentes e que a ideologia da classe proletária é a verdadeira, porque o proletariado, na situação que lhe impõe o capitalismo, é capaz, e só ele é capaz, de pensar a sociedade no seu desenvolvimento, na sua evolução a caminho da revolução, e portanto na sua verdade. No mundo capitalista, o proletariado, e só o proletariado, pensa a verdade do mundo, porque só ele pode pensar o futuro para lá da revolução.

A perversidade teórica de que a verdade é aquilo que serve os nossos interesses, individuais ou de classe, e que os factos não passam de meros empecilhos, agiu como um vírus que já viciara a extrema direita e contaminou toda a esquerda que foi influenciada pelo marxismo. Como a extrema direita foi posta de quarentena a seguir à 2ª Guerra Mundial, coube apenas ao marxismo, na sua forma degenerativa corrompida pela praxis político-filosófica, colonizar o pensamento da maior parte da esquerda e não só.

A responsabilidade do combatente deve sobrepor-se aos escrúpulos do intelectual. A crítica ideológica joga, com naturalidade, em 2 tabuleiros. Ela é moralista contra uma parte do mundo, aquela a que nos opomos, mesmo que seja aquela onde vivemos, e em extremo indulgente perante os movimentos que querem destruir esse mundo. A repressão nunca é excessiva, antes pelo contrário, quando atinge a “contra-revolução” ou é ministrada por um movimento radical ou revolucionário (ou terceiro-mundista, ou islamista ...). A prova da culpabilidade é sempre insatisfatória, quando ministrada pela justiça dos países ocidentais sobre aqueles que os querem destruir.

Basta citar o lamentável poema de Aragon no regresso do Congresso de Kharkov (1931), para nos apercebermos como o vírus da perversão da verdade e dos valores democráticos havia minado a base moral da nossa civilização:

O som da metralha acrescenta à paisagem
Uma alegria até então desconhecida
Estão a executar médicos e engenheiros
Morte aos que ameaçam as conquistas de Outubro
Morte aos sabotadores do plano quinquenal

A toda esta lamentável evolução se referiu então Julien Benda na La Trahison des Clercs, onde se dá conta daquela rotura. O intelectual era anteriormente o campeão do eterno, da verdade universal. «Os intelectuais de outrora afastavam-se da política pela ligação que estabeleciam com uma actividade desinteressada (Vinci, Malebranche, Goethe), ou então pregavam, em nome da humanidade ou da justiça, a favor de um princípio abstracto, superior e directamente oposto às paixões políticas (Erasmo, Kant, Renan) ... Graças a eles pode dizer-se que, durante dois mil anos, a humanidade praticava o mal, mas honrava o bem. Essa contradição era o ponto de honra da espécie humana e constituía a brecha por onde podia passar a civilização».

Para Benda, os intelectuais contemporâneos dele (e os que lhe sucederam, digo eu) colocaram-se ao serviço das paixões políticas, tornaram-se intelectuais de fórum:«O nosso século deve ser realmente o século da organização intelectual dos ódios políticos»

Esta doença degenerativa da espécie intelectual, que afectou sobretudo, no mundo ocidental, os países onde a consciência cívica estava menos disseminada por toda a sociedade: França e países do sul da Europa, criou o estatuto do intelectual comprometido, do jornalista de causas. Sartre (na apresentação dos Temps Modernes) teorizou essa degenerescência, elevada por ele a postulado teórico. Quer se queira quer não, «para nós o escritor não é Vestal nem Ariel – ele está “no momento”, e não importa o que faça, está marcado e comprometido mesmo no seu retiro mais remoto» ... «Cada palavra tem repercussões. Cada silêncio também ... as palavras são pistolas carregadas».

Este vírus tem sido endémico em toda a intelectualidade e jornalismo portugueses e tem vindo a condicionar, não apenas o discurso estritamente individual do plano ético, mas ainda e de forma excessiva o debate ideológico e político. Vejamos, a propósito disso, o comportamento dos nossos intelectuais da “verdade à medida dos nossos desejos”, face às eleições americanas. Comportamento aliás que não diferiu significativamente do que sucedeu no resto do Velho Continente.

George W. Bush foi permanentemente apresentado como um imbecil, ignorante, burro, em suma, um idiota chapado. Mas não será esta imagem excessiva? Pior, não é isto que os nossos doutos intelectuais têm pensado de todos os presidentes americanos. Carter, quando apostrofou a URSS devido à intervenção no Afeganistão e promoveu o boicote às Olimpíadas de Moscovo, foi igualmente alcunhado de imbecil e idiota. E a redenção do seu QI só começou a ocorrer quando ele se dedicou a missões “politicamente correctas”. De Reagan nem vale a pena falar. Milhões de pessoas desfilaram centenas de vezes, nas avenidas do Velho Continente, protestando coléricas contra a sua política de contenção da URSS, chamando-lhe os nomes mais ofensivos que encontraram nos seus dicionários. Bush pai teve sempre a fama de débil mental, ainda era Vice-presidente. Quanto a Clinton foi objecto das maiores zombarias, pela sua vida privada, e das maiores contestações, pelas suas decisões em matéria de política internacional (ex-Jugoslávia, bombardeamentos no Sudão e Afeganistão, etc.).

E Kerry seria melhor? Jon Stewart, o apresentador do Daily Show e ferrenho anti-Bush, perguntava há meses «porque será que uma mentira de Bush parece muito menos idiota que uma verdade de Kerry?». Kerry, que ao longo da sua vida política se tem notabilizado por uma completa incoerência e pelas cambalhotas mais inesperadas, não seria tentado, se fosse eleito presidente e para mostrar a sua “virilidade presidencial”, a tomar alguma atitude mais drástica que o seu antecessor?

Michael Moore e o seu Fahrenheit 9/11 tornaram-se, até à derrota de Kerry, um ícone para a intelectualidade “de combate e de causas”. Cannes deu-lhe a Palma de Ouro, a distinção máxima. Como é possível premiar aquele acervo de manipulações grosseiras, de omissões intencionais, de colagens forjadas? Leni Riefenstahl também ganhou a medalha de ouro da Exposição Mundial de Paris (1937), mas o seu Triumph des Willens (1935) é uma obra-prima e o seu efeito propagandístico não resulta de colagens forjadas ou de manipulações grosseiras: resulta do poder das imagens e dos acordes musicais, habilmente filmados e montados. Há manipulação pela arte de obter e coordenar as imagens e não pela fraude de colagens forjadas. O Triumph des Willens continuará a ser uma obra-prima do filme propaganda, enquanto o Fahrenheit 9/11 já está no caixote do lixo da História e da arte cinematográfica. Aliás, o Fahrenheit 9/11 estará mais próximo do Der Ewige Jude (1940) que do Triumph des Willens. Aqueles que o elogiavam interrogam-se agora se o filme não teria condensado «um dos erros políticos crassos da "intelligentsia" liberal americana e também da opinião pública europeia, a desconsideração de Bush em termos do chamado "dumb factor": que o homem é ignorante, burro e por aí adiante», como escreveu hoje um dos mais façanhudos «opinativos» (Augusto M. Seabra) e paladinos da “verdade que temos que transmitir”.

E este paladino da verdade “instrumental” mostra-se apreensivo porque se «quis atacar "Fahrenheit" em termos de "verdade" quando, suponho, a questão cinematográfica e ética que se coloca em cada documentário é o modo como interpela o real, para além da mais imediata visibilidade da qual não se deduz uma "verdade" imanente». Esta frase é o grau zero da racionalidade. Mais baixo que isto não se pode descer no totalitarismo informativo. Portanto a verdade não interessa, nem deve ser a medida da validade de um «documentário» ou «exposição de um facto». O que interessa «é o modo como se interpela o real», leia-se «como se distorcem os factos», para deduzir uma «verdade imanente», leia-se «a verdade do “intelectual de causas” liberta do empecilho incómodo dos factos». É esta a gente que defende a liberdade de expressão e verbera a alegada censura dos outros.

Entre a intelectualidade europeia (e portuguesa) o tom em que se fala da derrota de Kerry é o de um desastre civilizacional, não o de um acto em que os mecanismos políticos da democracia representativa funcionaram normalmente. Os jornalistas perguntam angustiados: John Kerry tinha o apoio esmagador dos mídia, ganhou os três debates televisivos com George W. Bush e, no entanto, perdeu. Será que televisões, imprensa e rádio estão a perder influência?

A resposta é simples: a opinião dos jornalistas tem uma influência poderosa. Infelizmente, para eles, influencia sobretudo a própria opinião dos jornalistas. O comportamento do eleitorado português é disso um exemplo paradigmático: em todos os referendos votou sempre contra a opinião dominante nos meios de comunicação.

Infelizmente os paladinos da “verdade a que acham que temos direito” nunca reconhecerão isso. Só após todo o lastro do irracionalismo induzido pelas ideologias que se digladiaram no século XX for destruído, e com ele o pensamento instrumentalizador desses paladinos, é que será possível regressar ao intelectual «campeão do eterno e da verdade universal ... de um princípio abstracto, superior e directamente oposto às paixões políticas».


Ler ainda, sobre este tema:
Romanos, Gregos, Americanos e Europeus
O Falhanço dos Intelectuais Iluminados

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novembro 03, 2004

O Falhanço dos Intelectuais Iluminados

Nunca, desde F.D. Roosevelt, houvera uma tão grande mobilização eleitoral. Nunca um candidato fora tão demonizado e acirrara tantos nomes sonantes contra si: Intelectuais, agentes culturais, actores e actrizes de Hollywood, cantores e bandas musicais (até Bruce Springsteen!), apresentadores das televisões, os principais jornais de referência e quase todos os políticos e intelectuais europeus se congregaram numa campanha maciça em favor de Kerry, ou melhor, contra Bush. Os jovens foram incentivados a recensearem-se e a votarem massivamente, para evitarem a possibilidade do regresso ao serviço militar obrigatório. Introduziram-se inovações: o swing eleitoral. Desde o multimilionário Georges Soros aos deserdados e oprimidos da sociedade, todos foram municiados, ou se municiaram a si próprios, com razões poderosas para afluírem às urnas e votarem responsavelmente. Nada foi descurado. E o resultado foi óbvio: votaram mais 15 milhões de eleitores em 2004 que em 2000. O trabalho de todos esses generosos activistas teve assim um merecido êxito. Estão de parabéns!

E o triunfo do candidato diabolizado também foi óbvio. O excesso de activismo no campo de Kerry deveu-se a uma esquerda fundamentalista para a qual Bush é a incarnação do mal. A esquerda fundamentalista tem uma enorme capacidade mobilizadora: empolga-se a si própria, pelo seu alarido e por nunca abdicar de trazer toda a sua tralha conceptual a terreiro (aborto, casamentos de homossexuais, etc.), elevando-se na exibição dos seus ícones ao êxtase ideológico mais absoluto e, simultaneamente, intimida, alerta e mobiliza os pacatos cidadãos que vêm ser postos em causa, de uma forma truculenta, definitiva e irrecusável, os seus valores e a sua mundividência.

E foi assim que toda a mobilização eleitoral, fruto de tanto empenho, conduziu a que Bush contasse, quando estão escrutinados 99 por cento dos distritos eleitorais, com cerca de 3,5 milhões mais que o seu rival democrata John Kerry. Bush obteve 58.640.799 de votos (51 por cento dos sufrágios escrutinados) e Kerry 55.101.702 (48 por cento). Bush, que tinha tido menos votos que Gore em 2000, inverteu a situação de forma substancial.

Igualmente o partido republicano conseguiu eleger, até ao momento, 231 representantes (ganhando 4 lugares) e os democratas 200, no total dos 435 lugares da câmara dos representantes, reforçando a sua actual maioria (há um congressista independente e estão 3 lugares por decidir). O Partido republicano reforçou também o controlo no senado. As projecções actuais indicam que os republicanos conseguiram eleger 55 dos cem lugares no senado, mais 4 do que já tinham. Os democratas ficam pelos 44 senadores (há um senador independente). O G.O.P. ficou pois com uma maioria substancial nas duas câmaras.

E tudo isto aconteceu após um mandato que foi desempenhado de forma muito discutível. Na condução da política externa americana, Bush cometeu diversos erros. A guerra do Iraque foi apresentada como preventiva face à existência das ADM. Ora não se verificou a sua existência. Em democracia, uma guerra não se deve basear numa hipótese falsa, mesmo que essa hipótese fosse considerada, a priori, credível. Após a queda de Saddam, os EUA têm gerido a situação de forma desastrada. Poucas forças no terreno, dissolução precipitada do exército e das forças de segurança iraquianas, saques, raptos, baixas militares e civis elevadas e caos generalizado. O panorama é pouco animador e não se prevê que melhore, com o os xiitas radicais e a quase impossibilidade de se realizarem eleições livres e justas. Entrar no Iraque foi muito mais fácil do que vai ser sair de lá. A guerra do Iraque também não parece ter contribuído eficazmente para a «guerra ao terrorismo». Teve um ponto em seu favor: enviou uma mensagem clara ao mundo político islâmico sobre os riscos que corriam, se tentassem desenvolver armas de destruição maciça. E essa mensagem foi, por exemplo, entendida pela Líbia. Igualmente a política económica de Bush (admitindo que teve uma política económica) não conduziu a bons resultados: agravamento monstruoso do défice externo, desaceleração económica apesar da queda do dólar, etc.

Outro erro, embora se trate de um erro partilhado, foi a clivagem introduzida nas relações entre os EUA e a UE. Todavia, essa clivagem não pode ser apenas levada a crédito do unilateralismo da administração Bush, mas também da nostalgia de grande potência de que sofrem alguns países europeus, mormente a França, que em matéria de situações como as do Iraque, ex-Jugoslávia, etc., não fazem nem deixam fazer ... e provavelmente já nem sabem, nem são capazes de fazer.

Se Bush revelou alguma incompetência na sua política externa e interna, embora se reconheça que o seu mandato viveu uma situação muito complexa (como o ter enfrentado um brutal ataque terrorista aos EUA), que exigia grande capacidade de decisão e uma grande determinação, o opositor que os democráticos escolheram como alternativa não augurava nada de bom. Kerry revelou-se um personagem errático, incoerente, de uma patente inabilidade em fazer passar as suas mensagens e com uma absoluta inconsistência de posições sobre os mais variados assuntos. Uma campanha eleitoral não poderia circunscrever-se em martelar permanentemente Bush. A campanha não poderia ser um filme de Michael Moore. A raiva, o ódio e a zombaria não servem para motivar um eleitorado, apenas para deliciar os próprios correligionários.

Assim, vitória de Bush não foi a derrota de Kerry. Kerry foi pouco mais que um títere submerso perante a militância furiosa dos seus activistas que lhe “roubaram” a campanha. A derrota foi da esquerda fundamentalista americana que parasitou o Partido Democrático; foi de todos os intelectuais bem pensantes que sempre olharam com desdém o “estúpido” Bush, o palhaço ignorante que tinha ascendido ao cargo de presidente contra a vontade da nação e mediante batota eleitoral; foi da comunicação social (americana e europeia) que, na sua maioria, amesquinhou Bush daquela maneira vil com que os detentores das verdades absolutas tratam os ignaros mortais; foi dos políticos franceses, nostálgicos das glórias napoleónicas; foi da velha Europa, achacada de reumatismo, que julga resolver os seus problemas com os outros, acenando apenas com o rol dos seus bens e o saldo da sua conta bancária.

Pirro teve vitórias que lhe foram mais custosas que derrotas. Mas os derrotados de 2 de Novembro são insensíveis aos custos, são menos clarividentes que Pirro: a esquerda fundamentalista (americana ou outra qualquer) continuará a não saber distinguir o essencial do acessório e a espavorir o eleitorado fora do seu círculo ideológico restrito; os intelectuais bem pensantes continuarão a olhar com desdém o “estúpido” Bush, o palhaço ignorante que ascendeu ao cargo de presidente em virtude da ignorância e imbecilidade do eleitorado americano; a comunicação social (americana e europeia) amesquinhará sempre Bush porque está na natureza dos detentores das verdades absolutas tratar os mortais ignaros com desdém; os políticos franceses continuarão nostálgicos das glórias napoleónicas; e a velha Europa só piorará os seus achaques de reumatismo ... a idade não perdoa.

Portanto, a única diferença será na forma, não no conteúdo. Alguns dirão que esta vitória concederá a Bush uma legitimidade acrescida. Improvável. A anterior vitória também era legítima, ainda que discutível e penosa ... levou mais de um mês a contar e recontar votos. Mas fora legitimada pelas instituições adequadas e reconhecida pelo adversário. Apenas, em vez da batota eleitoral, alegarão agora a estupidez do eleitor americano.

Publicado por Joana às 11:28 PM | Comentários (47) | TrackBack

junho 17, 2004

As Bandeiras, o Génio e a Insuportável Deselegância dos Nativos

Portugal encheu-se de bandeiras. Flutuando nas fachadas dos edifícios, esvoaçando das janelas ou das antenas dos automóveis, afixadas nas boleias dos camiões, hasteadas nos quintais das moradias, dependuradas nos estendais da roupa, coladas nas montras das lojas, pintadas nas caras dos adeptos, etc., etc. Segundo parece, foi a resposta do país ao apelo feito pelo brasileiro que treina a selecção nacional.

Um sociólogo da nossa praça, Carlos Fortuna, que foi já presidente da Associação Portuguesa de Sociologia, apostrofou imediatamente, e os meios de comunicação deram a evidência que a qualidade do personagem e a importância das afirmações merecia, que esta onda de bandeiras nacionais, compradas a preço de saldo no hipermercado ou distribuídas com a aquisição de jornais da especialidade (da bola...) não passava de "um nacionalismo barato, imediatista e pouco consistente". "Este nacionalismo a propósito do futebol é pouco e a bandeira custa um euro. A verdade sociológica mais profunda é que este é um nacionalismo barato"

É usual entre os americanos hastearem a bandeira nos pátios das suas residências, engalanarem as janelas das suas casas, ou dos locais onde trabalham em todas as ocasiões festivas, e agitarem freneticamente bandeirinhas, nas bermas das estradas enquanto passam comitivas que querem saudar. Mas os americanos são um povo do novo mundo, que descende de gente que fugiu da Europa por não suportar o lastro do nosso elevado índice civilizacional. E Carlos Fortuna é peremptório: tal não passa de «nacionalismo barato», e Carlos Fortuna é um douto professor universitário de sociologia.

Os noruegueses quando chegam às suas casa de campo, ou melhor, de neve, a primeira coisa que fazem, depois de retirar a neve que se amontoou à porta de casa, é hastearem a sua bandeira nacional. Quem percorre as estradas alcantiladas nas encostas norueguesas apenas vê os carros, os pequenos troços limpos para permitirem o estacionamento, as bandeiras e os noruegueses estiraçados em peles, julgo que de borrego, deleitando-se ao sol primaveril. O resto é apenas a alvura da neve e do gelo. Mas trata-se, indubitavelmente, de indivíduos transviados pelas baixas temperaturas que lhes congelaram os cérebros e obstruem a fluidez dos processos cognitivos, pois o eminente sociólogo Carlos Fortuna é definitivo: tal não passa de "um nacionalismo imediatista e pouco consistente", e Carlos Fortuna é um ex- presidente da Associação Portuguesa de Sociologia.

Na passada 2ª feira percorri, ao princípio da tarde, a Rua Augusta. Do Terreiro do Paço até à Praça a Figueira e Restauradores viam-se milhares de suecos de todas as idades e géneros, todos trajando as camisolas da sua equipa nacional e usando a sua bandeira nacional por tudo quanto era sítio, incluindo as pinturas nos óculos. Milhares de suecos, e alguma centenas de búlgaros e de outras nacionalidades, todos embandeirados e repletos das insígnias e símbolos nacionais. É claro que aqueles milhares de banalizadores das respectivos símbolos nacionais não passavam de uma turbamulta alcoolizada pelo excesso de cerveja e com as meninges entorpecidas e desnorteadas pelo sol inclemente, pois o prestigiante sociólogo Carlos Fortuna é liminar: tal não passa de "um nacionalismo infantil e artificial", e Carlos Fortuna é um docente da Sociologia Coimbrã.

Os nossos doutos, eminentes e auto-prestigiantes intelectuais humanistas sempre foram unânimes, desde que se atribuíram a si próprios a exaltante missão de fazedores de opinião pública, em considerarem cavernícola, obscena e ainda pior, reaccionária, qualquer exibição, mesmo envergonhada, dos símbolos ou insígnias nacionais.

Agora foram apanhados de surpresa. Um estrangeiro a apelar à exibição dos símbolos nacionais!? Ainda se fosse o satânico Portas! Ah! ... esse era imediatamente grelhado nos micro-ondas dos mídia. Sempre que se abrisse um jornal ouvir-se-iam as risadas chasqueantes a surdirem das dobras das folhas. Mas um estrangeiro ... Zombar de estrangeiros por fazerem apelos à exibição dos símbolos nacionais seria de uma enorme inconveniência ... seria mostrar a nudez tacanha da verdade sem o manto diáfano da auto-glorificação.

Já que estrangeiros estão imunes a estas críticas, resta desfazer nos nativos:

Assim, trata-se de um nacionalismo barato pois as bandeiras foram compradas a preços de saldo em hipermercados. Os nativos deram evidentes provas de falta de elegância. Deveriam tê-las adquirido na Loja das Meias ou no Londres Salão em vez de se aviltarem pelos hipermercados ou pelas “lojas dos 300”. Não havia necessidade disso ... Alguns levaram mesmo a falta de decoro ao ponto de as obterem a custo zero, em promoções.

Também é um óbvio nacionalismo imediatista, porque os nativos mostraram pouco discernimento e muita precipitação na escolha. Não ligaram a marcas, não apalparam o tecido para avaliarem se era fino e macio ... Nada ... entraram e serviram-se.

E toda esta deselegância, precipitação e falta de charme denota a inconsistência dos nativos. Portanto, para qualquer sociólogo, humanista e intelectual, desde que patenteadamente português, impõe-se a conclusão lógica e inexorável: para além de barato e imediatista, este nacionalismo também é inconsistente.

E não se discute porque, para aquela excelência sociológica coimbrã, as afirmações que produziu representam a «verdade sociológica mais profunda».

Carlos Fortuna, de todos os disparates que disseste só estamos de acordo, tu e eu, numa única coisa: és um génio!

Publicado por Joana às 10:53 PM | Comentários (19) | TrackBack

junho 03, 2004

Não mexam em Portugal! Haja Respeito!

Carmona Rodrigues, ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação declarou hoje que até ao final do ano será concluído o estudo preliminar de viabilidade de construção de um túnel sob o rio Tejo para transporte de passageiros em metropolitano.

Segundo elementos da Transtejo, o projecto de Carmona Rodrigues coloca à beira da extinção aquela operadora fluvial de transportes, onde o Estado tem investido largas dezenas de milhões de euros nos últimos anos para a modernização da frota, com a aquisição de diversos catamarãs de última geração.

Todos os que se sentem prejudicados com este projecto já manifestaram a esperança na intervenção do Dr. Sá Fernandes devido aos impactes ambientais, obviamente negativos, desta travessia sub-aquática.

Isto para não falar dos impactes financeiros nos actuais operadores do transporte entre as duas margens.

Ao ler estas notícias e estas imprecações, não posso deixar de me comover com a triste sorte das companhias de diligências, dos fiacres e das seges de aluguer, dos choras, das tipóias e de outros operadores de transporte de inestimável qualidade ambiental, cujo serviço permitia usufruir, com a máxima tranquilidade e todo o tempo disponível, a paisagem rural e citadina, nos seus mais ínfimos e recônditos pormenores e que faliram vítimas de um falso progresso, atentatório do ambiente e da qualidade de vida.

Foi uma infelicidade não existirem nessas épocas Sás Fernandes, ambientalistas e meios de comunicação social que lhes dessem abrigo. Perderam-se irremediavelmente meios de transporte de grande dignidade, bem integrados na paisagem urbana, que iam pelas calçadas cascalhando ferragens, numa estrupida de cadeiras que batiam, e davam a convicção segura que se chegaria algures, embora devagar, com mais solavanco ou menos solavanco, mais hora ou menos hora, conciliando a ginástica lombar, e o trabalho intenso de todos os músculos, com a leitura do jornal que, no início da corrida era o jornal do dia, e no fim, o jornal da véspera.

Foi uma época de um cientismo sórdido, em que os meios de comunicação privilegiavam a inovação, a mudança e a evolução tecnológica, em vez de, como actualmente, privilegiarem o não mexer em nada, não mudar nada, não construir nada, manter tudo estático, tornarmo-nos naquilo que a nossa história magnífica e a nossa inércia inabalável exigem como único destino possível: um museu, com os portugueses todos alinhados, mumificados, expostos em vitrinas, na penumbra, para não abalar a sua serena quietude.

E as portas do museu fechadas pela greve dos funcionários.

Publicado por Joana às 08:04 PM | Comentários (57) | TrackBack

maio 16, 2004

Abruptamente ... no presente

Tenho que confessar que detesto os pregadores de moral que condenam, com pretensa e seráfica virtude, os vícios alheios, vícios que quando são eles próprios a praticar, os ignoram candidamente, ou os justificam pelas circunstâncias, ou, quando confrontados formalmente com eles, apenas aceitam que se cometeram “exageros”.

É óbvio que os factos descritos no relatório das “sevícias” não desculpam os actos cometidos na prisão de Abu Ghraib. «O mal não pode ser comparado com outro mal. Deve ser condenado por si só». É óbvio que ir desenterrar agora aquele relatório numa tentativa de desculpabilização das sevícias de Abu Ghraib seria uma manobra canhestra.

Então porquê tanta irritação? Tanto incómodo? Tal sucede apenas porque os mais tenazes pregadores moralistas sobre as sevícias de Abu Ghraib são, politicamente, os mesmos que ignoraram o relatório das “sevícias” e que conseguiram que a comunicação social lhe desse pouco ou nenhum relevo. Pelo menos é um relatório praticamente desconhecido de quem não conviveu com essa época e também, provavelmente, de quem conviveu com ela.

No Público, Eunice Lourenço indigna-se escrevendo que foi «Assim como podiam ter ido buscar os crimes da Inquisição para contrapor à condenação das torturas feita pelo Vaticano. E a esquerda cai no erro de, entrar no jogo, justificando e até mesmo negando aquilo que foram, obviamente, os exageros da Revolução

Curiosa, esta indignação. 30 anos de distância é o período de apenas uma geração. Provavelmente mais de metade da população portuguesa actual viveu aquele período. Os crimes da Inquisição ocorreram há mais de 7 gerações. Ocorreram numa sociedade estruturada de forma diferente e com uma estrutura mental igualmente diferente. Para criticar uma comparação, obviamente inadequada, Eunice Lourenço estabelece outra comparação, completamente absurda. E ao dar conselhos à esquerda, Eunice Lourenço devia começar por os dar a si própria. E um deles é que aquilo que num caso são apenas “exageros”, porque não o serão no outro? Ou se num caso forem “sevícias bárbaras” porque não o serão no primeiro?

Quem desenterrou o relatório das “sevícias” errou, se pretendeu estabelecer uma comparação desculpabilizadora. Uma barbaridade não desculpa a outra. Se apenas pretendeu demonstrar a hipocrisia de alguns segmentos políticos portugueses, acertou em cheio. O comportamento de muitos jornalistas, “fazedores de opinião” ou simplesmente blogueiros é prova disso.

Também é curiosa a forma como muitos jornalistas e “fazedores de opinião” reagiram perante a divulgação das imagens aterradoras da decapitação do cidadão americano Nicholas Berg. Uma divulgação parcial, porque mostrar uma decapitação por vídeo, na íntegra, excede a nossa capacidade de conviver com o horror.

No Público de ontem o articulista de «O Horror Infinito», Amílcar Correia, dedica-lhe meio parágrafo e o resto do artigo às sevícias físicas e morais dos soldados americanos. Augusto Seabra faz o mesmo, este domingo, em “A Espiral Alucinante”: um curto e cauteloso parágrafo inicial, dedicado à decapitação, para depois teorizar sobre as sevícias.

As sevícias perpetradas das pelos soldados americanos em Abu Ghraib são condenáveis. A bárbara decapitação pública de Nick Berg é condenável. Ambas o são, uma independentemente da outra. Mas é profundamente hipócrita referir “en passant” uma para se poder dedicar, com mais profundidade e com a “consciência tranquilizada”, à outra.

Miguel Sousa Tavares é mais conspirativo: esta decapitação é uma ajuda prestada pela Al-Qaida a Bush, quando a popularidade deste decrescia em face dos desmandos cometidos por soldados americanos no Iraque. Saberiam aqueles ferozes decapitadores islâmicos que quando separavam a cabeça do corpo de Nick Berg, aos gritos de Alá é grande, estavam a dar uma preciosa ajuda a Bush? Está tudo explicado – aquela decapitação está integrada numa manobra mais vasta que visa o branqueamento das acções americanas no Iraque, com a cumplicidade da Al-Qaida.

Há uma coisa em que MST tem razão. Esta execução abre uma porta para aliviar a consciência da América face às fotografias das humilhações e maus tratos sofridos pelos prisioneiros americanos. Quando a barbaridade atinge tal clímax, direitos humanos, tolerância, tudo é postergado e a sociedade aceita acções que consideraria inaceitáveis normalmente.

E isto deve ser combatido. A nossa sociedade vive do primado do Direito. Também tem, no seu seio, criminosos e gente violenta. Mas as instituições funcionam, melhor ou menos bem, e o Direito, por regra, triunfa. Também neste caso terá de triunfar.

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abril 21, 2004

Esquerda, herdeira da Direita

A esquerda actual tornou-se, em matéria de intolerância, arrogância e espírito totalitário, a herdeira da direita dos fins do século XIX e primeiras décadas do século XX.

Quando me refiro quer à esquerda quer à direita, não faço a injustiça de me referir a «toda» a esquerda nem a «toda» a direita. Refiro-me, quer num caso, quer no outro, aos elementos mais ortodoxos, mais reaccionários, mais radicais, dentro de cada um daqueles campos mas que são (ou foram), infelizmente, os elementos que acabam ( ou acabaram) por ter mais visibilidade pública pela militância e protagonismo que põem (ou puseram) na defesa das suas ideias e no acinte e desdém que mostram (ou mostraram) pelas ideias dos outros.

Esta similitude, eventualmente incompreensível, pela aparente distância ideológica entre aqueles campos, tem todavia explicações simples.

Quer a «actual» esquerda, quer a «antiga» direita, são (ou eram) conservadoras e reaccionárias face a um mundo em mutação de que elas não eram agentes da mudança. A direita «antiga» lutava para manter (ou restaurar) um mundo cujo sentido das transformações abominava, cujos mecanismos de mudança lhe eram incompreensíveis e que lhe prefiguravam um novo mundo cuja dominação considerava monstruosa. Foram os anti-dreyfusards, foi a Action Française, foram os Camelots du Roi, foram os diversos partidos de direita alemães que emergiram da primeira guerra mundial e da liquidação da revolução espartaquista, foram os nazis com as suas SA e, posteriormente, com as SS, foram os «fasci di combattimenti» e os «Camise Nere» de Mussolini, e isto só para falar das principais nações ocidentais.

A esquerda «actual» herdou tudo isso. Também ela está órfã de conceitos que ruíram; também ela se agarra desesperadamente a um statu quo obsoleto; também ela luta para manter um mundo cujo sentido das transformações abomina e cujos mecanismos de mudança lhe são totalmente inexplicáveis e também ela se insurge contra a perspectiva de um novo mundo que prefigura como monstruoso.

É esse horror perante uma mudança que diaboliza, que torna a esquerda «actual» profundamente reaccionária, intolerante, argumentando de forma trauliteira, agarrando-se, no seu naufrágio, a todos os despojos que lhe sugiram a possibilidade de reversão, de barreira à mudança, pactuando com formas medievas, violentas e bárbaras de contestação à nossa sociedade e, sempre que a ocasião surge, actuando com toda a violência, vandalizando cidades inteiras em nome da «luta contra a globalização» ou por um «mundo alternativo». E, tal como a direita de há 80 anos, com a benevolência dos meios de comunicação que conseguem entrever alguns «argumentos» naquela violência bárbara e gratuita.

Mas o que há de mais perverso na esquerda «actual» é que ela continua a reclamar-se de Marx. Ora o fundamento do pensamento marxista era a análise dialéctica das condições sociais, da base material da sociedade, das relações de produção emergentes dessa base material e da forma como essa base material influencia a superestrutura. É da essência do marxismo o não ficar asilado no statu quo, o encontrar explicações adequadas para as mudanças e o devir social, ou seja, ser capaz de interpretar o mundo na sua mudança e nunca ficar atemorizado perante essa mudança, rejeitando-a liminarmente.

A esquerda «actual», todavia, na sequência da interpretação soviética do marxismo, reduziu este a chavões e depois a um mero tropo patrocinador que, prudentemente, já não é matéria para nenhum debate, não vá o diabo tecê-las.

Os filósofos (?!) soviéticos deitaram Marx no «leito de Procusta» das exigências político-ideológicas estalinistas e foi esse «Marx» desfigurado e deformado que a esquerda «actual» usa como travesti ideológico.

Neste entendimento, a esquerda «actual» é estalinista, mesmo quando se declara contrária ao estalinismo, é intolerante, é trauliteira, é totalitária, é, em tudo, o espelho fiel da direita «antiga» no que respeita ao comportamento social e tipologia argumentativa. Basta ler os fóruns da net, alguns blogues, diversos comentários a este blogue, etc.. A esquerda «actual» não tem argumentos consistentes; apenas tem intolerância, pesporrência e acinte, muito acinte.

Usa os argumentos mais soezes e acusa, paradoxalmente, a direita de trauliteira, quando foi ela que herdou essa postura argumentativa. A esquerda «actual» adoptou, por convenção, por postulado (que só essa esquerda reconhece) que a direita, quando riposta é, por definição, trauliteira, enquanto ela, a esquerda «actual», pode debitar as maiores insolências, ser da máxima truculência, do maior vazio argumentativo, que está permanentemente desculpada: a esquerda «actual» é a detentora da verdade e tudo o que a contraria é trauliteiro.

E o que é paradoxal nesta convicção da esquerda em deter a verdade absoluta é que os seus ícones e os seus mitos foram todos derrubados. Nada escapou à inclemência, à razia do devir histórico. Parafraseando Marx, tudo o que era sólido, se dissolveu no ar.

A História é feita de fluxos e refluxos. A esquerda «actual» espanta-se e impreca o «neo-liberalismo», mas este é a resposta para os indispensáveis reajustamentos estruturais necessários para equilibrar e sanear as economias e as sociedades ocidentais, para alavancar progressos na prosperidade e na riqueza dessas sociedades, que estavam a estagnar. O «neo-liberalismo» não veio para ficar. Nada na História vem para ficar. Tudo é feito de mudança. O «neo-liberalismo» veio como refluxo para inverter correntes que, sem essa inversão, teriam conduzido o mundo ocidental à ruína económica e social.

Mas o «neo-liberalismo», tendo embora os seus méritos na situação actual, quando acabar de desempenhar o seu papel histórico, a sua missão, terá esgotado o seu modelo. E sobre os seus restos erguer-se-á um modelo novo, mais aperfeiçoado, mais adequado á nova realidade. E assim sucessivamente.

Mas tudo isto, para quem cristalizou no marxismo ortorrômbico, é muito difícil de entender.

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março 02, 2004

A Opinião Pública e os Intelectuais

Durante meses o país foi inundado com afirmações, proclamações, pregões, comunicados, manifestações, veladas à porta de tribunais, criticando a actual lei sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) e exigindo a sua revogação. Em fins de Janeiro, no noticiário do Canal 2, o deputado Francisco Louçã dizia, encolerizado, que «uma minoria fanática» continua a querer que as mulheres sejam condenadas por crime de aborto. Uma petição foi posta a assinar por entre fanfarras e o júbilo popular.

E durante 6 meses, com grande cobertura mediática, com máquinas partidárias em full-time e importantes meios financeiros, pareceu a todos nós, a avaliar pelas notícias dos meios de comunicação, que o país estava, em uníssono, empenhado em despenalizar a IVG. Mesmo deputados que tiveram a ousadia de afirmar que tinham uma não-posição foram glosados em diferentes motes e vituperados na praça pública pelo(a)s «jornalistas de causas». Como é possível uma não posição? Como é possível pactuar com essa hedionda «minoria fanática» fundamentalista de que falava Louçã?

Ao fim de 2 ou 3 meses, os noticiários, empolgados, já falavam em 25.000 assinaturas; mais 2 meses, por entre um delírio de entusiasmo elevado ao rubro, tinham-se atingido as 75.000 assinaturas; e, finalmente, quando a petição para o referendo sobre o aborto foi entregue ao presidente da Assembleia República, Mota Amaral, já lá constavam 121.151 assinaturas. Um êxito! Parecia, a dar crédito aos meios de comunicação, que o país se levantara em peso para apoiar aquela causa.

Havia valido a pena tanto esforço, tanto mediatismo, tanta publicidade, tanta entrega das máquinas partidárias, tantos apelos ao direito ao nosso corpo, tanto apoio dos meios de comunicação e dos jornalistas, sempre presentes quando se trata de causas sociais justas e contrárias a «uma minoria fanática».

Ontem, um movimento que eu desconhecia, que não tinha sido divulgado pelos meios de comunicação, que não tinha despertado qualquer entusiasmo mediático, que não fez, que eu tivesse visto ou ouvido, publicado ou transmitido, proclamações, pregões, comunicados, manifestações, apelos, veladas à porta de tribunais; que não teve apoio, pelo menos que fosse visível, das máquinas partidárias, que não vituperou nem insultou quem produziu opiniões diferentes, anunciou ter já atingido as 190.635 assinaturas para uma petição sob o lema «Mais Vida, Mais Família», contra a despenalização do aborto, petição que seria entregue hoje a Mota Amaral.

E tudo isto dá que pensar.

Não vou discutir aqui e agora a questão da IVG. Já expus aqui a minha posição por diversas vezes. Eu trouxe este assunto à colação por uma razão muito diversa e que tem sido o leit-motiv de muitos dos meus escritos aqui.

Em Portugal há dois países: o país dos meios intelectuais, que está omnipresente em tudo o que é comunicação e prolixidade de ideias, e o país dos não-intelectuais, que constitui, infelizmente, a esmagadora maioria da população.

Em qualquer país evoluído o intelectual é alguém ligado ao seu povo, cuja instrução e interesse pela cultura lhe permitiu sobressair da mediania, mas que compreende e sente o povo a que pertence, os seus anseios e as suas limitações. Normalmente trabalha para ajudar a melhorar o seu país, não como um professor ou um guia elitista, mas pela sua acção e labor quotidianos, tentando que aquelas limitações sejam superadas, compreendendo as suas causas, mas suscitando igualmente a dúvida sobre se o sentimento (ou sabedoria) popular não deverá prevalecer, por vezes, sobre uma visão intelectualizada das questões, eventualmente distorcida.

Pelo contrário, o nosso intelectual, muito minoritário, que campeia pelos meios de comunicação e pelos meios políticos, não tem quaisquer dúvidas sobre si próprio e nutre um completo desdém pelo povo, essa «minoria fanática» de que falava Louçã e que derrotou os seus pontos de vista em referendo.

Para esse intelectual, o povo, o operariado e o proletariado rural aos quais se refere nos seus discursos políticos ou culturais e que diz dedicar a vida a defender, são ícones, sem espessura nem densidade … não existem. São imagens que apenas conhece pelo National Geographic Magazine. Esse intelectual, embora afirme falar pelo povo, não compreende que este possa ter opiniões contrárias à sua, encara com desdém e sobranceria essas opiniões, manifestamente ignaras, e desvaloriza-o completamente, quer em qualidade, quer em quantidade ... não passa de «uma minoria fanática», conforme foi decretado pelo deputado Francisco Louçã.

Estes intelectuais colocaram-se numa posição completamente alheia à população portuguesa, nunca terão qualquer influência na sua evolução, excepto pela negativa, e abdicaram de qualquer papel orientador ou de influência cívica e cultural.

E esses intelectuais constituem, infelizmente, a maioria nos nossos meios de comunicação e entre os nossos agentes culturais.

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fevereiro 29, 2004

Integralismo Lusitano - uma síntese

Um leitor deste blog inseriu um comentário a um texto que eu escrevi sobre António Sardinha, na data da efeméride da sua morte. Como se trata de um comentário muito extenso e com bastante interesse documental, resolvi transcrevê-lo aqui, no corpo do blog, agradecendo em simultâneo ao Rodrigo a sua inserção.

Queria ainda acrescentar que o meu texto sobre António Sardinha foi objecto de uma série de comentários com bastante interesse sobre essa notável figura que eu julgava mais esquecida do que afinal está, a avaliar pela polémica que despertou.

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Integralismo Lusitano — uma síntese
Por José Manuel Alves Quintas

1. A formação, 1913-16
A expressão "Integralismo Lusitano" foi usada pela primeira vez por Luís de Almeida Braga na revista Alma Portuguesa (Gand, 1913) designando um projecto de regeneração de Portugal.

Em 1913, Almeida Braga exprimia-se em termos religiosos e filosófico-estéticos, se bem que com evidente intencionalidade político-cultural, reagindo ao Saudosismo gnóstico de Teixeira de Pascoaes (O Espírito Lusitano ou o Saudosismo, 1912) e ao movimento da "Nova Renascença" (criado pelo grupo de republicanos portuenses da revista A Águia). Na vertente político-religiosa, estes defendiam que o regime republicano abria novas possibilidades de regeneração para Portugal, mas que esta só se concretizaria se fossem quebrados definitivamente os laços com a Igreja Católica; Almeida Braga, interpretando o recém-implantado regime republicano como uma nova etapa no processo de decadência, advogava que a regeneração só seria possível através de um retorno à integralidade do espírito católico que fizera Portugal.

Esta era uma visão partilhada por um grupo de jovens estudantes monárquicos, exilados na sequência da sua participação nas incursões da Galiza comandadas por Paiva Couceiro – entre os quais se contava também Simeão Pinto de Mesquita e Francisco Rolão Preto —, que contestavam, afinal, no plano religioso e filosófico-estético, uma das expressões culturais da ofensiva anti-clerical republicana.

O projecto integralista lusitano, porém, depressa transbordou para o plano político. Em 1914, na revista Nação Portuguesa, sob a direcção de Alberto de Monsaraz, a expressão "Integralismo Lusitano" designava já um índice de soluções sob o título "monarquia tradicional, orgânica, anti-parlamentar". Tanto quanto promover o renascimento do espírito católico na alma dos portugueses, criar uma nova literatura e uma nova arte despojada do espírito romântico do século anterior, havia agora que trazer de novo à luz do dia os princípios políticos da antiga Monarquia portuguesa.

Para os integralistas, não haveria uma verdadeira regeneração portuguesa sem o retomar das suas antigas tradições políticas. A Monarquia do absolutismo Iluminista (introduzida em Portugal pelo Marquês de Pombal no século XVIII), bem como a sucedânea Monarquia da Carta (importada pelos liberais de novecentos), tinham sido estrangeirismos descaracterizadores, responsáveis pela subversão dos princípios democráticos e populares da antiga Monarquia.

Se bem que os integralistas recuperassem o espírito dos Vencidos da Vida ao defenderem o imperativo regeneracionista de um "reaportuguesamento de Portugal", iam agora mais fundo: era necessário recuperar o antigo pensamento político português que, do mesmo passo, reconhecera os foros e liberdades da República (das comunas urbanas, dos concelhos rurais, etc.), estabelecera as regras da sua representação em Cortes e definira o conteúdo dos pactos que os Reis, sob pena de Deposição, juravam respeitar.

E foi em torno desse princípio orientador - "reaportuguesar Portugal" - que um grupo de jovens monárquicos, que não se reconheciam na Monarquia deposta — como Hipólito Raposo, Luís de Almeida Braga, José Pequito Rebelo —, se reuniu com um grupo de republicanos entretanto convertidos ao monarquismo por se não reconhecerem na República recém-implantada — António Sardinha, João do Amaral, Domingos Garcia Pulido, entre outros.

Em 1914, os integralistas apresentaram um índice de soluções politicas e afirmaram obediência a D. Manuel II. O seu propósito, no entanto, ainda não visava uma intervenção política na direcção da conquista do poder. Antes de mais, havia que lembrar aos próprios monárquicos o que fora a antiga Monarquia portuguesa; era necessário voltar a semear as ideias do pensamento político português, ler de novo autores como Álvaro Pais, Frei António de Beja, Jerónimo Osório, Diogo de Paiva, Frei Manuel dos Anjos, Frei Jacinto de Deus, Sousa de Macedo, Pinto Ribeiro, Velasco de Gouveia…

A primeira reacção dos políticos que defendiam os regimes constitucionais modernos, tanto monárquicos como republicanos, foi a de se fazerem desentendidos, acusando os integralistas de cópia de um movimento político neo-monárquico que, naquela época, fazia furor em Paris — a Action française. Bem diversa foi a reacção do velho "Vencido da Vida” Ramalho Ortigão que, na Carta de um Velho a um Novo (1914), depôs as suas armas perante aquela “nova ala de namorados”, explicando em que consistia a sua “incontestável superioridade”: estes tinham “admiravelmente pressentido a necessidade culminante da reeducação integral do povo português” («Filhos de Ramires» - a herança de «Os Vencidos da Vida»).

Em 1915, na vaga de crescente activismo monárquico, os integralistas acabaram sendo catapultados a um lugar de destaque entre os manuelistas, apesar do seu programa contrastar vivamente com o modernismo político da maioria. Ao realizarem um ciclo de conferências na Liga Naval de Lisboa, alertando para o perigo de uma absorção pelo Reino de Espanha, o seu violento desfecho — as instalações da Liga Naval foram assaltadas e destruídas, sem que Luís de Almeida Braga tivesse apresentado A Lição dos Factos — acabou por projectá-los para a ribalta política.


2. A esperança restauracionista, 1916-19
Com a entrada de Portugal na Grande Guerra, em Abril de 1916, os integralistas lusitanos decidem anunciar a sua transformação em organização política. No Manifesto subscrito pela Junta Central recém-constituída, reafirmaram obediência a D. Manuel II e a sua confiança na aliança luso-britânica, chamando os restantes monárquicos a cerrar fileiras em torno da Pátria em guerra.

Com a chegada ao poder de Sidónio Pais, os integralistas colaboraram activamente na situação presidencialista que se esboçou. O propósito Sidonista de acolher uma representação socioprofissional no Senado tinha para eles profundo significado político: pôr fim ao monopólio da representação por intermédio de partidos ideológicos (regime parlamentar), permitindo a representação dos municípios, dos sindicatos operários, dos grémios profissionais e patronais, etc., era dar um primeiro passo no sentido do restabelecimento da democracia orgânica da antiga Monarquia portuguesa.

Na sequência do assassínio de Sidónio Pais, os integralistas entenderam que soara a hora da restauração do Trono. Face à imediata reacção dos partidos, que de novo se arrimaram ao poder com o intuito de restabelecer o parlamentarismo, os integralistas vêm a desempenhar activo papel no desencadear do pronunciamento restauracionista de Janeiro de 1919 (ver Os combates pela bandeira azul e branca, 1910-1919), no Porto e em Lisboa (Monsanto). A Restauração declarou em vigor a Carta Constitucional, mas isso não impediu que os integralistas manifestassem aceitar a nova ordem. Primum vivere, deinde philosophare era o princípio que adoptavam; agarravam “a parte prática e positiva" da obra restauradora.


3. Redefinição estratégica, 1919-22.
Durante a denominada "Monarquia do Norte", houve destacados monárquicos, como Alfredo Pimenta, que só souberam dos acontecimentos através dos jornais. Os integralistas, directamente envolvidos nas acções político-militares que rodearam os pronunciamentos, retirarão graves conclusões da derrota, procedendo a uma completa reavaliação da sua posição, tanto na questão dinástica, como na questão política.

Na questão dinástica, interpretando o imobilismo de D. Manuel II, no decurso dos acontecimentos, como um sinal de incapacidade e fraqueza, decidem desligar-se da sua obediência, declarando colocar “o interesse nacional acima da Pessoa do Rei”.

Na questão política, desfeita a aliança com os manuelistas, resolvem assumir a integralidade do seu ideário. Em 1919, ficara definitivamente enterrada a Monarquia da Carta. A resolução do problema nacional teria doravante que passar por um Pacto a estabelecer entre “o Rei, os municípios, e os trabalhadores de todas as classes e profissões organizados corporativamente”.

Estabelecidas negociações com o ramo legitimista da Casa de Bragança vem então a obter-se o Acordo de Bronnbach (1920), pelo qual a Junta Central do Integralismo Lusitano e o Partido Legitimista fizeram o reconhecimento conjunto do neto do Rei D. Miguel I, D. Duarte Nuno de Bragança.

Perto de 2 anos depois, o pacto dinástico de Paris ainda veio colher de surpresa os partidários de D. Duarte Nuno. Porém, e enquanto os manuelistas rejubilavam com os termos do acordo, no dia imediato, os Integralistas Lusitanos e os Legitimistas recusaram-se a reconhecê-lo e a acatá-lo.

A questão criada pelo Pacto de Paris só ficou definitivamente resolvida em 1926, quando a Tutora de D. Duarte Nuno, D. Aldegundes de Bragança, o repudiou formalmente, mas, para os integralistas, havia um equívoco maior que, mais tarde ou mais cedo, acabaria também por ceder: o de se alicerçar um regime nas clientelas partidárias, fossem elas monárquicas ou republicanas. A 1ª República, ao reproduzir o modelo parlamentar da Monarquia deposta, organizando-se por hierarquias de políticos e de caciques, acabaria também por ruir. Para os integralistas, era decerto necessário continuar a promover o princípio monárquico, mas era agora absolutamente imprescindível refazer as corporações, os sindicatos, e organizar uma acção nacional paramilitar com forças voluntárias e audazes. Deixava de bastar uma simples restauração do Trono. A luta a travar não se podia cingir ao plano estritamente político. Estava aberta a via que vem a desembocar no Movimento Nacional-Sindicalista: Alberto de Monsaraz reedita a Cartilha do Operário e Francisco Rolão Preto é cooptado para a Junta Central do Integralismo Lusitano (1922).

4. Os esfacelamentos, 1922-34.
Durante os anos 20 os integralistas vêm a alimentar muitas esperanças e a sofrer não menos contrariedades e decepções.

Em 1925, a morte de António Sardinha, quando tinha apenas 37 anos, foi sentida como uma grande perda. A Junta Central ficava sem aquele que, dada a força mística do seu Verbo, e apesar do ascendente de Hipólito Raposo, muitos consideravam ser o líder dos integralistas.

De imediato, o Integralismo Lusitano desempenhará papel de relevo nas movimentações político-militares que levaram ao derrube do regime parlamentarista, em 28 de Maio de 1926. Pouco depois do general Gomes da Costa ter sido afastado da direcção da Ditadura Militar, porém, a Junta Central integralista ("Primeira Geração") começou a fazer sentir as suas reservas acerca da evolução da situação política. As prevenções e cautelas que estes faziam sentir junto da sua hoste acabaram por não encontrar acolhimento. Muitos persistiram colaborando com a Ditadura, sucedendo-se as dissidências e cisões: em 1927, desvincularam-se José Maria Ribeiro da Silva, Pedro Teotónio Pereira, Manuel Múrias, Rodrigues Cavalheiro, Marcelo Caetano, Pedro de Moura e Sá; em 1928, Manuel Múrias consumou a sua dissidência; em 1929, deu-se a ruptura definitiva de Teotónio Pereira e Marcelo Caetano, dissolvendo o Instituto António Sardinha; em 1930, deu-se a dissidência de João do Amaral.


Consumada definitivamente a ruptura entre os mestres do Integralismo Lusitano e a Ditadura, em 1931, e perante a referida sucessão de dissidências e deserções, Alberto de Monsaraz e Rolão Preto, in extremis, ainda tentaram recuperar alguma influencia no curso dos acontecimentos, suspendendo a reivindicação do Trono e autonomizando o Movimento Nacional-Sindicalista. O insucesso foi total. Ao tentarem aliciar as juventudes influenciadas pelos fascismos, recorrendo a métodos similares de organização e de propaganda, acabaram por ser confundidos com os próprios fascistas. E se não deixavam de denunciar os princípios políticos dos fascismos, por modernistas ou retintamente jacobinos — “totalitarismos divinizadores do Estado”, foi a expressão usada por Rolão Preto em entrevista à United Press —, a verdade é que a natureza comunitária e personalista do ideário Nacional-Sindicalista acabou por confundir e desiludir mais do que atrair.

Tal como acontecera com a "Segunda Geração" integralista, também a juventude atraída para o Nacional-Sindicalismo, que os integralistas pretendiam manter no campo do sindicalismo orgânico e das liberdades, acabou por se transferir para o campo estatista-autoritário do salazarismo emergente que, além do mais, oferecia melhores garantias de realização para ambições profissionais e pessoais.

Em 1932 o Integralismo Lusitano estava já em completa desagregação, impotente para influenciar o curso dos acontecimentos políticos, quando D. Manuel II morreu sem descendência. A par dos restantes organismos monárquicos, acabou por se dissolver para integrar a Causa constituída em torno de D. Duarte Nuno. Uma profunda diferença, no entanto, vai persistir entre o comportamento dos integralistas lusitanos e o dos restantes monárquicos: enquanto a maioria dos antigos apoiantes de D. Manuel II, cedendo ao convite de Salazar, passou a colaborar com o Estado Novo em formação, os integralistas decidiram passar ao combate contra essa nova face do modernismo político português — a “Salazarquia” (expressão de Hipólito Raposo).


5. Sob a «Salazarquia», 1934-74.
Entre os anos 30 e 50, dissolvido o Integralismo Lusitano enquanto organismo político, e desfeita a experiência negativa do Nacional-Sindicalismo, os integralistas da primeira geração não deixaram de denunciar o falso monarquismo de Salazar e a natureza modernista e autocrática do regime do Estado Novo. Entre os restantes monárquicos, porém, a indiferença foi geral, apesar dos sobressaltos: Rui Ulrich, embaixador em Londres, em 1936, foi forçado a demitir-se por ter convidado, para almoçar na Embaixada, D. Duarte Nuno de Bragança; Afonso Lucas foi demitido do Tribunal de Contas, na sequência da publicação de um artigo publicado em A Voz; em 1940, Hipólito Raposo foi preso e desterrado para os Açores, por ter publicado o livro Amar e Servir, onde denunciava a "Salazarquia".

As 3ª e 4ª Gerações do Integralismo Lusitano, porém, vão sendo reunidas e endoutrinadas em torno de revistas como a Gil Vicente (Manuel Alves de Oliveira), jornais como o Aléo (Fernão Pacheco de Castro), editoras como a GAMA (Leão Ramos Ascensão, Centeno Castanho, Fernando Amado), criando-se mesmo, em 1944-45, o Centro Nacional de Cultura.

Em meados dos anos 40, os integralistas espreitam oportunidades de colaboração com o chamado "reviralho": Francisco Rolão Preto vem a ressurgir politicamente através do Movimento de Unidade Democrática; em 1947, Vasco de Carvalho está a conspirar ao lado de Mendes Cabeçadas; dois anos depois, na eleição dos deputados da Assembleia Nacional, é a vez de Pequito Rebelo entrar em concertação com o republicano Cunha Leal, desafiando as candidaturas da União Nacional, respectivamente em Portalegre e Castelo Branco.


Em 1950, os jovens estão já em condições de receber o legado integralista através de uma reactualização doutrinária intitulada "Portugal Restaurado pela Monarquia". Pela mesma altura, surgiram novas publicações, como a revista Cidade Nova (José Carlos Amado, Afonso Botelho, Henrique Barrilaro Ruas) ou jornais como O Debate (António Jacinto Ferreira, Mário Saraiva).

O movimento dos chamados "monárquicos independentes", reunindo grande parte das novas gerações formadas junto dos Mestres do Integralismo Lusitano, apresenta o seu manifesto em 1957. No ano seguinte, Almeida Braga e Rolão Preto surgem a apoiar a candidatura de Humberto Delgado à presidência da República. Terminavam ali os "anos de chumbo do Estado Novo" (expressão de Fernando Rosas), com os integralistas em melhores circunstâncias para atrair os monárquicos desiludidos.

Até ao derrube do regime do "Estado Novo", em Abril de 1974, sucedem-se as iniciativas com a crescente responsabilidade das novas gerações integralistas, como a Comissão Eleitoral Monárquica, o Movimento da Renovação Portuguesa, ou a editora "Biblioteca do Pensamento Político", promovida por Mário Saraiva. Em 1970, é ainda por intermédio de Mário Saraiva que o ideário integralista vem a obter significativo acolhimento no seio da Causa Monárquica: o livro Razões Reais, no qual ficou sucintamente exposta a sua doutrina política neo-integralista, vem a obter aprovação e adopção pela Comissão Doutrinária da Causa.

7 de Abril de 2000

Inserido por:
Rodrigo
rodrigalfreitas@hotmail.com

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fevereiro 09, 2004

A pegada do dinossauro Silva Melo

O realizador, encenador e actor Jorge Silva Melo recusou um prémio de 25 mil euros, que lhe fora atribuído por um organismo do Ministério da Cultura.

Na altura declarou: «Não gosto de prémios do Estado, porque acredito que o artista é por natureza um traidor ao poder instituído». Ou seja, o artista, o verdadeiro artista, desenvolve a sua arte contra o Estado. Sendo assim, só pode ser apreciado e reconhecido por uma assembleia de traidores ao poder instituído do mesmo tipo de traição: a comunidade dos verdadeiros artistas.

Além do seu desejo de serem considerados traidores ao Estado, os verdadeiros artistas têm, na sua indiscutível opinião, o estatuto de monumentos nacionais. Também eles se libertaram da lei da morte e desdenham serem avaliados pelo seu desempenho. Estaremos em condições, nós, efémeros mortais, de dar um prémio ao Mosteiro dos Jerónimos pelo seu desempenho na forma excepcionalmente garbosa como tem albergado as cinzas de Vasco da Gama? Ou Camões? Ou, quiçá, Amália? E se esse gesto insensato se produzisse, como reagiria o Mosteiro, na sua frieza marmórea?

Mas cinco séculos são segundos face à idade provecta da pegada do dinossauro. Seria lícito avaliar o desempenho daquela pegada, distraidamente deixada por um dinossauro em busca sabe-se lá do quê ... provavelmente da imortalidade.

Não, definitivamente, não.

Os verdadeiros artistas, assim como os monumentos, desdenham prémios, desdenham êxitos comerciais, desdenham o público, estão acima das pequenas misérias deste mundo, mesmo do jurássico.

Todavia, os verdadeiros artistas, assim como os monumentos, sabem que a sociedade está em permanente dívida para com eles. A sociedade não está em condições de avaliar o seu desempenho, mas tem a obrigação moral e material de prover ao seu sustento e manutenção.

Assim, quando se sabe que Silva Melo e a sua companhia vivem do Estado, de que receberam, em 2003, 450 mil euros, só podemos louvar, quer o Estado pela sua dedicação posta na manutenção do nosso património, quer Silva Melo e a sua companhia, por se deixarem subsidiar sem pruridos de passarem por cúmplices de alguma traição. Foi sábia essa aceitação de Silva Melo. Imaginemos que o Mosteiro dos Jerónimos, sentindo-se desconsiderado pela presença hostil do CCB, oficiava o Estado recusando qualquer subsídio e enviava cartas de protesto para os jornais. Quem reabilitaria as suas fachadas e coberturas? Como poderia a Gulbenkian produzir sessões musicais no seu refeitório? Provavelmente, apenas sessões gastronómicas.

Não. Silva Melo conhece os deveres do Estado na manutenção do nosso património e os deveres do nosso património em se deixar manter pelo Estado. Subsidiar o nosso património não se discute. É o que têm em comum a Pátria e o património: não se discutem.

Silva Melo sabe igualmente que subsidiar a manutenção do nosso património deve obrigatoriamente ser independente do êxito deste junto do público. A comunidade dos verdadeiros artistas produz-se unicamente para ela própria, porque apenas os verdadeiros artistas têm estatura cultural para entenderem essa produção. Quanto menor for o êxito junto do público, quanto menos afluência a sua produção tiver, mais perto se encontra da arte absoluta e imortal.

Também os monumentos foram construídos com total desprezo pela opinião dos vindouros. Acaso Keops, quando mandou construir a pirâmide, estava preocupado com a futura opinião dos turistas japoneses e das suas máquinas Nikon? O público é despiciendo: um conjunto de ignaros cuja afluência apenas pode ser sinónimo de má qualidade artística e de descrédito intelectual do autor. Acaso interessa que as gravuras de Fozcoa tenham uma audiência ínfima? Audiência que custou muitas dezenas de milhões de contos ao país. Ao pé disto, o que são uns míseros 90 mil contos anuais atribuídos a Silva Melo?

Premiar Silva Melo, as gravuras de Fozcoa, a pegada do dinossauro e outros monumentos do nosso património rebaixava-os à classe das obras efémeras, transitórias. Não podemos pactuar com tamanho desvario: Exegi monumentum aere perennius.

No caso de Silva Melo, esse desvario assume contornos mais clamorosos, visto Silva Melo ser mais versado na comunicação que a pegada do dinossauro, embora provavelmente menos inteligível. Se o prémio tivesse sido atribuído à pegada do dinossauro, esta permaneceria atónita, mas muda. Silva Melo protesta no Público, assegurando que foi violado. E o ominoso violador seria o Instituto das Artes, impondo a sua lasciva vontade nas relações com os artistas.

Silva Melo confessa-se, pois, vítima de monumentofilia, perversão inconfessável, de contornos ainda pouco claros, provavelmente à espera de uma moldura penal definida, mas que poderá vir a tornar-se um futuro entretenimento das noites televisivas, quando o caso Casa Pia desaparecer das manchetes. O arguido seria agora o Instituto das Artes, colocado sob prisão preventiva, e as vítimas os artistas, mas com uma diferença: a atracção dos artistas pelo protagonismo mediático faria com que estes aparecessem, dando o rosto, sem máscaras, nem vozes entarameladas, contando com pormenores requintados as peripécias escabrosas das horríveis violações.

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dezembro 17, 2003

Teses e Antíteses

O meu artigo “Nós e a nossa Negação” causou um frémito de emoção e desconforto em alguns dos meus leitores.

Alguns sentiram-se, de albornoz e turbante, transplantados para longe, nas cálidas e tranquilas noites do deserto Sírio, recolhidos nas tendas, à luz bruxuleante de uma lamparina, entretidos em fabricar, com uma paciência bem oriental, engenhos artesanais, na esperança longínqua, mas persistente, de os atirarem para debaixo de uma coluna de blindados yankees, enquanto lá fora a cáfila de camelos, que apascentavam, remoía, beiços descaídos e baba pendente, os míseros cardos que haviam colhido. De tempos a tempos o silêncio do deserto era alvorotado pelo espirrar convulsivo dos camelos, vítimas de uma persistente rinite alérgica, provocada pelo cheiro dos plásticos e restantes aditivos explosivos, e impacientes que alguém lhes comprasse um vaso constritor, em tamanho familiar, para lhes assegurar algum alívio.

Outros acorreram, céleres, a alugarem o filme de Oliver Stone sobre Fidel, “Fidel Castro - El commandante”, para se reconciliarem com o Fidel e os havanos, e para ouvirem, para seu refrigério, que "em 43 anos de revolução cubana não houve um único acto de tortura". Que consolação arrebatadora ver aquele encadeamento de planos cheios de ritmo, filmado com quatro câmaras em simultâneo! As respostas eram curtas e superficiais, mas reconfortantes.

Os mais fatalistas, cientes da irreversibilidade do destino e da ubiquidade do profeta, encetaram uma melopeia triste e pungente, entoando surahs, versículos corânicos, enquanto pensavam como iriam cumprir os ditames da Shari’a.

Mas houve também quem ficasse indignado por associações, alegadamente contra-natura, que eu teria insinuado. A esses, Joerg Haider, e garanto que não lhe pedi nada, encarregou-se de responder, ao declarar ontem que é «difícil escolher entre Bush e Saddam». «Ambos violaram o direito internacional, e ambos agiram contra os direitos humanos»

E todavia, o meu pensamento era claro. Quem nos nega, faz parte de nós. É importante para nós. É necessário ao nosso aperfeiçoamento. E quando escrevo “nosso” refiro-me aos “nós” e aos “não-nós”.

Toda a ideia tem três momentos: num primeiro momento, apresenta-se a si própria (a tese); num segundo momento, opõe-se a si mesma (a antítese); e, finalmente, regressa a si mesma superando tese e antítese (a síntese). Como então escrevi, “Hegel e Marx concordaram nisso. Quem sou eu para discordar”. E acrescentei que “é neste exercício de tentar manter e tentar destruir, que reside o segredo do nosso aperfeiçoamento, da nossa prosperidade. Construímo-nos a nós próprios lutando contra os factores da nossa destruição. Adestrámo-nos na superação dos factores de aniquilamento”.

A evolução da nossa sociedade precisa desses germes de aniquilamento. Os movimentos milenaristas que ameaçaram a sociedade feudal com insurreições sucessivas, pretendiam destruir essa sociedade, mas não tinham nada de concreto a oferecer, para além de quimeras utópicas. Todavia, embora vencidos, a sua luta ajudou ao aperfeiçoamento dessa sociedade e ao aparecimento de forças mais consistentes, capazes de liderar esse aperfeiçoamento e posterior transformação.

O sistema capitalista saído do casulo feudal como libertação das coacções económicas e sociais do Ancien régime, tornou-se rapidamente um dos regimes mais desprezados e criticados da história da humanidade. Todo o século XIX está repleto de movimentos que rejeitam e desprezam esse sistema – fourieristas, falansteristas, anarquistas, sindicalistas, comunistas. No século XX também a extrema direita, nazis e fascistas atacaram a plutocracia. A fúria purificadora de destruição do sistema capitalista foi alimentada por inúmeras correntes, conheceu muitas vicissitudes e tem-se metamorfoseado à medida que os seus conceitos têm sido invalidados pela história e pela prática.

O que há de interessante é que são precisamente os que vivem no sistema capitalista que o vituperam. Dizem que capitalismo gera pobreza e exclusão social. Ora, ao contrário, nunca nenhum sistema teve tanta preocupação com os desfavorecidos. Nunca se fizeram tantas leis, organizações e esforços para combater a pobreza e a exclusão. Foi o regime capitalista, desde que funcione de acordo com as suas concepções teóricas, que retirou as populações da situação de carência extrema em que viviam desde sempre. Hoje, só existe miséria generalizada nos países onde, por razões variadas, o sistema capitalista não funciona, ou apenas existe um arremedo ao arrepio das suas bases teóricas de funcionamento.

O sistema capitalista vigente nos países ocidentais não cria desigualdade e injustiça. A disparidade de níveis de vida, que era abissal em todos os outros sistemas, viu-se mitigada, justamente, em virtude da liberdade económica e política em que vivemos. O sistema capitalista vigente nos países ocidentais criou a classe média, que hoje constitui a esmagadora maioria das nossas sociedades e que é a base da nossa prosperidade. A grande fonte de prosperidade, tolerância e liberdade do Ocidente é a existência dessa numerosa classe média. É ela a base da democracia e do estabelecimento de consensos sociais. A disparidade actual é entre países capitalistas e não capitalistas, pois a sociedade capitalista é a mais igualitária de sempre.

É evidente que há instabilidade e alternâncias de euforia e recessão. Que a necessidade de manter a economia competitiva, para assegurar a prosperidade social, implica reajustamentos, falências, despedimentos dos menos qualificados ou com a qualificação errada. Mas, apesar de tudo isso, o capitalismo é melhor que qualquer outra alternativa que a humanidade conheceu até hoje.

E é a melhor porque tem sabido aperfeiçoar-se, ao defender-se dos seus germes de destruição. E soube-se defender conseguindo manter os mecanismos de mercado e a liberalização da vida económica, indispensáveis ao aumento da sua prosperidade e mitigar, simultaneamente, o darwinismo social que esses mecanismos provocavam.

Mas esse aperfeiçoamento tem exigido, e continuará a exigir, que ele seja criticado, que os seus germes de destruição continuem activos. Todavia, é a própria lógica de funcionamento do sistema, a sua tolerância, a sua liberdade, que permite a actividade desses forças de destruição. Isto é, a própria lógica do funcionamento capitalista cria as condições do seu próprio aperfeiçoamento.

Para Hegel existe uma "astúcia da razão", que utiliza a humanidade, imbuída que está, regra geral, da sede do poder, da glória, da ambição, da justiça social, para através destes objectivos, uns egoístas, outros altruistas, trazer para a humanidade uma liberdade maior, um estado superior de civilização. Hegel foi o filósofo do liberalismo triunfante, assim como Adam Smith, o economista do capitalismo nascente. A “mão invisível” que gera, independentemente das vontades de cada um dos agentes económicos, equilíbrios nos mercados dos bens e do trabalho, tem algo a ver com a "astúcia da razão" que faz com que haja o aperfeiçoamento do espírito e da sociedade a caminho de uma liberdade cada vez mais plena.

Sabe-se que Marx criticou a concepção de Hegel sobre o motor daquela transformação, que em Hegel seria a Ideia, a Razão, e em Marx as forças produtivas e as relações de produção. Mas não vou repetir o que escrevi atrás, no artigo “Hegel e Marx”.

Portanto, a todos os que ficaram irritados pelo facto de se sentirem incluídos em algumas das categorias que eu estabeleci no artigo “Nós e a nossa negação”, venho aqui trazer uma (muitas!) palavra abonatória. Vocês são uma porção imprescindível do todo que somos “Nós e a nossa negação”, porção igualmente indispensável ao aperfeiçoamento de todos nós e da nossa sociedade.

Sem vocês, o sistema cairia, pouco a pouco, no marasmo, sem incentivos para se aperfeiçoar.

Em nome da Sociedade Ocidental, os meus agradecimentos.

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dezembro 15, 2003

Nós e a nossa Negação

Há um espectro que assombra a nossa civilização: o espectro da sua negação, da negação dos seus valores.

Todos os grupos e facções radicais de esquerda e de direita, extensas áreas da esquerda alegadamente não radical, democratas participativos, adeptos da antiglobalização, altermundialistas , estalinistas, trotsquistas, comunistas, ex-comunistas e comunistas "renovadores", ecologistas anticapitalistas, socialistas Ana Gomesistas, Ferristas e Santos Silvistas, adeptos de José Bové e da Confédération paysanne, vítimas masoquistas da dieta assassina dos MacDonalds, etc., etc., se aliaram na protagonização deste espectro e no fornecimento dos respectivos adereços – os lençóis, os 2 tenebrosos orifícios oculares, as correntes de ferro fundido arrastando-se no empedrado, os sons lúgrubes, as paredes de granito sulcadas pela erosão dos séculos, os uivos lamentosos, etc., etc..

A negação dos nossos valores, o vilipêndio da nossa cultura tem tomado expressão, desde longa data, no apoio aos ditadores terceiro-mundistas desde que eles se proclamem, na sua retórica, como anti-imperialistas ou, ultimamente, antiglobalização. Esse apoio compreende a sua justificação, a sua desculpabilização e, inclusivamente, o enaltecimento dos seus valores culturais, face à nossa cultura colonialista, imperialista e globalizadora. Só os ditadores patrocinados pelos USA são diabolizados e execrados. Os outros, se aparecerem nos Fóruns Mundiais Sociais, a fumarem havanos, bramando contra o imperialismo norteamericano, são aclamados como libertadores e têm lugares de honra nas tribunas.

Sharon tem feito uma política belicista e condenável. Mas Sharon foi eleito, em eleições livres, embora seja lícito pensar que a vontade dos eleitores israelitas foi influenciada pelo medo provocado pelo ressurgimento de uma intifada mais vocacionada para o terrorismo indiscriminado do que para o protesto cívico. Todavia, Sharon pode não ser reeleito, está sujeito às regras democráticas. Arafat está à frente da OLP há mais de 3 décadas, tem uma fortuna pessoal, estimada entre 800 e 3.000 milhões de dólares, parte depositada em bancos israelitas, obtida através dos monopólios que detém de importação para os territórios ocupados, é líder, tudo indica que vitalício, de um regime corrupto. Ele e o seu regime são responsáveis por inúmeras acções terroristas que mataram milhares de civis inocentes.

Todavia, Arafat é dos bons e Sharon é o diabo. Nas manifestações que constituem a parte lúdica dos Fóruns Mundiais Sociais, Sharon aparece em travesti de Belzebú e Arafat como vítima. Que aconteceria, nesses fóruns democráticos e participativos, se algum manifestante suicida aparecesse com um cartaz elogiando Sharon e execrando Arafat? Ou, ao lado dos cartazes do Bush com um ricto maléfico, escorrendo-lhe sangue dos dentes e agitando na mão algo intermédio entre um supositório e uma bomba nuclear, esse manifestante aparecesse a agitar um cartaz vitoriando Bush? Seriam mesmo actos suicidas!

Estas personagens ao criticarem assim os USA, Israel, ou a Europa, omitindo ou desculpando os actos de terror e a perturbadora filosofia deste culto da morte e suas consequências futuras, demonstram uma terrível e perigosa deformação moral. Os fins não justificam os meios e há tácticas que não são aceitáveis ou moralmente legítimas. O intelectual que passa ao lado deste mandamento torna-se cúmplice daqueles que rejeitam este baluarte civilizacional. É o intelectual sem consciência. É o intelectual que, no fundo, deixou de pensar. Que o deixou de ser.

A reacção dos apologistas da negação dos nossos valores teve um largo campo de expansão no caso do Iraque. Nunca afirmaram claramente que Saddam fosse um libertador anti-imperialista, mas atribuíram-lhe o papel de vítima dos acontecimentos. Mostraram claramente preferir um ditador como Saddam, carniceiro do seu próprio povo, a um Bush, por muito incapaz que este seja.

Dizer isto não implica defender a guerra que foi feita contra o Iraque de Saddam Hussein, ao arrepio das leis internacionais. Uma das razões da força das nossas sociedades é a da prevalência do direito, mesmo quando lidamos com monstros sanguinários. É, por exemplo, a de ter dentro de nós gente que apoia ou justifica esses monstros sanguinários, e desdenha dos valores que permitem a essa mesma gente ter e defender publicamente essas opiniões.

Todavia implica, em face da situação entretanto criada, termos o dever, não por subserviência com os EUA, mas por necessidade de sobrevivência própria, de apoiar os EUA, lutando para que se encontrem as melhores soluções. Essa necessidade foi reconhecida pela própria ONU através da sua resolução a 1511.

No Médio Oriente, a luta é contra concepções que já no fim da Idade Média tinham sido abolidas da Europa. É uma luta da sociedade laica contra sociedades teocráticas; é uma luta de uma sociedade que respeita direitos, liberdades e garantias, contra sociedades que desconhecem esses conceitos, assentes numa relação sexual de dominação total dos homens sobre as mulheres; é a luta da tolerância contra a intolerância e, o que é mais grave, contra uma intolerância que se afirma como valor universal e que pretende impor os seus valores ao resto do mundo. A intolerância do fundamentalismo islâmico é a actual frente de resistência contra a democracia, contra o Estado laico. A vontade por parte dos homens de manter uma opressão social das mulheres é, provavelmente, um dos factores mais poderosos de resistência do mundo islâmico a qualquer modernidade.

Os apologistas da negação dos nossos valores vaticinaram a derrota das forças da coligação face à resistência patriótica e anti-imperialista dos soldados de Saddam; vibraram emocionados com as informações de Saïd al Sahhed, o impagável Ministro da Propaganda que falava de um Iraque que só existia na imaginação dele; comoveram-se, excitados, com a retórica das chefias iraquianas e islâmicas; quando a resistência militar iraquiana começou a esboroar-se, multiplicaram-se em imprecações, lançando apelos lancinantes à resistência dos iraquianos e à guerrilha; após a queda de Saddam, e passados alguns momentos de piedoso recolhimento, têm exultado com cada soldado da coligação que é morto.

Alguns nicks da net mudaram para patronímicos árabes, tal como Saulo fez, na Estrada de Damasco, quando renegou as suas anteriores convicções e se tornou Paulo, o novo apóstolo de Cristo. A sede de apostasia era total. Eram os arautos de uma nova civilização. Infelizmente de uma civilização onde não quereriam viver e onde dificilmente sobreviveriam muito tempo. Dificilmente os estou a ver a exigirem que namoradas ou esposas andassem de véu ou burka ou, sendo do sexo feminino, a vestirem aqueles trajes e a viverem sob a opressão masculina.

Este ritual da negação não vai parar apenas pelo facto de Saddam ter sido capturado em traje de arrumador de automóveis da Grande Lisboa. Ele vai continuar enquanto houver ditadores com retórica anti-imperialista ou antiglobalização que enfrentem corajosamente os USA, embora precisem do sistema imperialista para terem as suas pingues contas bancárias a cevar tranquilamente; vai continuar enquanto os fundamentalistas e os terroristas da Al-Qaeda continuarem a ameaçar o ocidente com o apocalipse.

E vai continuar porque faz parte da nossa cultura. Toda a formação social contém em si a negação da sua existência (a negação ou as negações). Hegel e Marx concordaram nisso. Quem sou eu para discordar. E é neste exercício de tentar manter e tentar destruir, que reside o segredo do nosso aperfeiçoamento, da nossa prosperidade. Construímo-nos a nós próprios lutando contra os factores da nossa destruição. Adestrámo-nos na superação dos factores de aniquilamento. Nos momentos decisivos, ganhámos. Fizemos uma revolução que libertou o mundo da servidão feudal, e salvámo-la no Thermidor, quando parecia irreversível que ela iria tombar na barbárie e no totalitarismo; derrotámos o nazismo, quando a Europa jazia inerme, destinada a mergulhar nas trevas das ditaduras fascistas; derrubámos o totalitarismo comunista, quando se julgava que o seu rolo compressor continuaria a subjugar povos, rumo ao universo orwelliano do 1984.

E havemos de triunfar do fundamentalismo islâmico, a actual frente de resistência contra a democracia e contra a tolerância.

Publicado por Joana às 10:25 PM | Comentários (73) | TrackBack