janeiro 06, 2006

Os Reis Magos

Um Remake em Technicolor

Os Reis Magos e a estrela que os teria guiado constituem questões que têm intrigado a humanidade, os investigadores e os viciados no Google, há cerca de 2 milénios. Quem eram os Reis Magos? Donde vinham? Como vinham? Porque vinham? Ao que vinham? Qual o significado da estrela? Seria mesmo uma estrela? Ou um cometa? Ou uma nave de alienígenas à procura do Quinto Elemento (também conhecido por Cavaco Silva)?

Mateus, um talentoso argumentista da Judeia, escreveu que: “eis que vieram do oriente a Jerusalém uns magos que perguntavam: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo”, mas esta narração nunca foi considerada suficiente. Se em qualquer capital aparecesse gente assim, pelas esquinas, a fazer perguntas como aquelas, além de serem esportulados do ouro, incenso e mirra, não lhes sobejaria o suficiente, nem para aguar os camelos. Aliás, outros argumentistas coevos, como Lucas, Marcos e João, não referiram, nem os Reis Magos, nem os camelos, apenas pastores e ovelhas que andavam tresmalhados nas imediações. Milhares de investigadores tentaram aclarar esta questão, mas falharam sempre.

Uma investigação deste tipo tem que assentar no estabelecimento de cenários e sua validação. Foi esta a tarefa que me propus. Comecemos pelo cenário tradicionalista, o mais conforme aos textos litúrgicos.

Neste primeiro cenário era elementar colocar a questão semântica. Um rei é, por definição, o poder executivo. Portanto, segundo este cenário, 3 chefes do poder executivo (naquela época remota, pois hoje seriam poder moderador ou, na Lusitânia, o poder banalizador) com bagagens recheadas de ouro, incenso e mirra, viajaram, em conjunto, centenas de léguas, ao ritmo lento e bamboleante de camelos escorrendo uma baba peganhenta e fétida, sujeitos a incomodativos enjoos e ao sol inclemente do deserto, perseguindo uma estrela.

Analisemos este cenário e as hipóteses a que a sua validação obriga:

1 – É óbvio que, nos reinos daqueles reis, se tinha tornado realidade o desiderato socrático-soarista de “um Rei, uma Maioria”, pois senão não haveria as indispensáveis autorizações dos respectivos poderes legislativos e financeiros para os soberanos se ausentarem dos seus estados, ainda por cima, ajoujados ao peso de tantas preciosidades;

2 – Outra hipótese necessária é a de que seriam reinos sem défice orçamental nem défice de transacções com o exterior, pois de outra forma a opinião pública e os Bancos Centrais reagiriam mal à saída, para destino incerto, atrás de uma estrela, ou sabe-se lá de quê, de tantas e tão valiosas mercadorias, sem quaisquer contrapartidas nem garantias bancárias. A menos que a Corporação dos Moedeiros, no seu relatório de Inverno, desse nota pública de que as contas estavam uma lástima, mas tal não tinha qualquer relevância.

3 – Há um facto surpreendente: os reis deslocavam-se sem escolta adequada. Os pastores, que aparecem no presépio, são obviamente figurantes locais, armados unicamente de cajados. Este dado obriga a formular ou a hipótese de um conflito institucional, todavia infirmada pela hipótese (1) ou, porventura mais verosímil, a hipótese do Ministro da Defesa ter desaparecido misteriosamente sem combate, por não ter conseguido convencer as escoltas a abandonar o solo pátrio sem ajudas de custo. Ou, talvez, a ocorrência de um orçamento rectificativo, que transferindo verbas inscritas na rubrica “forragens dos muares das quadrigas de assalto”, para a rubrica “aquisição de ouro, incenso e mirra”, impedisse encontrar cabimento orçamental para custear a escolta.

Portanto, apenas três hipóteses absurdas sustentariam este cenário: “um Rei, uma Maioria”; ausência de défice orçamental e de défice externo; ausência de escolta, etc.

Aliás, este cenário apenas foi esboçado por Mateus, muitas décadas depois, quando a memória e as faculdades do piedoso apóstolo já escasseavam. Obviamente não tinha a memória minuciosa da Filomena Mónica.

Sendo assim demonstra-se que o episódio dos Reis Magos, vindos do oriente, orientados por uma estrela, não tem poder explicativo na sua formulação tradicional. Impõe-se a formulação de um novo cenário, com fundamentação mais científica, o Cenário Neo-liberal, por muito que custe aos defensores dos sistemas estatizantes.

Assim, a minha investigação, sempre escrupulosa, baseada numa hermenêutica rigorosa e numa heurística documental precisa, buscou um novo cenário, mais sustentável e inovador.

A primeira observação é a que a palavra rei não é indissociável da soberania de um Estado. É usada habitualmente para designar especialistas numa dada disciplina ou actividade, como por exemplo: Rei dos caloteiros (título de tal forma banalizado que permitiu a concessão da realeza a uma percentagem significativa da população portuguesa, e ao próprio Estado); o rei dos analistas políticos (J A Saraiva, na opinião dele próprio, ou Marcelo de Sousa, o Velhaco Genial, na opinião dos restantes); o rei dos dislates (Jorge Coelho); o rei dos mentirosos (o primeiro-ministro Sócrates); “o Rei” tout court (Elvis Presley); etc..

Portanto, subtraí-me ao erro fatal de que foi vítima Mateus, na sua senectude, e todos os seus exegetas, inclusivamente JS Bach. Retenhamos esta primeira conclusão: rei é apenas uma pessoa com relevo numa determinada disciplina.

A segunda observação, também igualmente pertinente, resulta da resposta à pergunta: Porque é que aqueles veneráveis anciãos abandonaram as suas terras, o seu conforto familiar, obcecados por um sinal que interpretaram como uma estrela e seguiram esse sinal, léguas a fio, empoleirados em incómodas e enjoativas corcovas de camelos?

Diz-se que estavam obcecados por um sinal, pela luminosidade de uma estrela. Cinjamo-nos aos factos despidos da retórica: os “reis magos” tomaram uma sequência de decisões em face de sinais, ou de um sinal que ia variando no tempo.

Julgo que as mentes mais astutas, que me acompanharam nesta dedução rigorosa já se aperceberam que chegámos ao âmago da questão. A solução está ao virar da esquina ou, no caso em apreço, ao virar da duna. Qual é a actividade humana em que os seus especialistas tomam as decisões mais inexplicáveis, demandam os locais mais inverosímeis, têm as condutas mais excêntricas em face de sinais que só eles percepcionam e só eles julgam entender?

Quem são esses especialistas? Que sinais são aqueles que tanto os excitaram?

As respostas são doravante simples e elementares:

Quem são esses especialistas? – Economistas;

Que sinais são aqueles que tomaram como uma estrela? – Os sinais do mercado;

Porque eram reis? – porque ganharam fama, escrevendo as suas análises económicas em placas de argila de grande audiência pública;

Porque levaram tantas preciosidades? Porque as decisões de investimento são tomadas em face dos sinais do mercado e, naquela época, em que a moeda escritural ainda não tinha curso, os cartões de crédito nem sequer miragens eram no deserto dos Nabateus, a forma de se andar prevenido para investir na altura precisa era trazer permanentemente à arreata uma cáfila de camelos ajoujados ao peso de um sólido carregamento de ouro, incenso e mirra, mesmo correndo o risco de serem sucessivamente saqueados por Moabitas, Amalecitas, Amonitas, Madianitas, Amorreus, Filisteus e arrumadores de camelos.

Porque é que Mateus errou? Mateus, que tinha o apelido de Levi, era colector de impostos. É óbvio que ninguém confia num colector de impostos. Principalmente quando se transporta um carregamento de mercadorias preciosas, sem guias de transporte, sem referência ao IVA, sem pagar o ISPP relativo à água para os camelos, na mais absoluta e delituosa evasão fiscal. A Mateus foi contada uma história da carochinha em que ele acreditou piamente, segundo a declaração de liquidação que enviou aos publicanos (administração fiscal da época) e que depois foi incluída no seu evangelho. Já naquela época a administração fiscal tinha as bases de dados completamente adulteradas, não conseguindo distinguir um camelo, do buraco de uma agulha, nem uma agulha, do buraco de um camelo.

Os factos são claros e límpidos e não permitem outra explicação.

Que se passou depois? Aparentemente a Bolsa de Jerusalém teria encerrado com fortes perdas. O pessoal tinha-se endividado para comprar choupanas de colmo a 30 anos e as prendas para festejar as Saturnalias, deixando a bolsa sem liquidez. Herodes, o tetrarca, responsável pela gestão danosa que tinha levado a Bolsa à insolvência, os fariseus à ruína e os zelotas a vandalizarem a cidade, protestando contra a globalização, deu uma explicação esfarrapada aos “reis magos”, que acabaram num casebre de Belém, onde se desfizeram das mercadorias, desvalorizadas face ao crash da Bolsa de Jerusalém, trocadas ao desbarato por um suculento ensopado de borrego, acompanhado de leite de vaca ordenhado no momento.

Herodes aproveitou o crash bolsista e utilizou as «golden share» detidas nas sociedades vítimas da recessão, e mesmo nas que lhe tinham escapado, ficando com a gestão dos activos de todas elas. Os pequenos aforradores (a maioria deles com mais acções que as «golden share»), inocentes e pouco avisados, ficaram sem um óbolo. Foi este episódio que, ficcionado por historiadores menos avisados, ficou conhecido pela “matança dos inocentes”

Por isso, no regresso, os Reis Magos internaram-se na imensidão do deserto, fazendo um desvio para não voltarem a encontrar-se com Herodes, que havia arruinado a Judeia com uma política keynesiana, baseada no uso imoderado da despesa pública para financiar a reconstrução do Templo de Salomão. Levavam o burro à arreata, para o irem transformando em bifes durante o regresso a Ecbátana, e não queriam ter que o entregar como dação em pagamento das cobranças coercivas que os publicanos haviam emitido às centenas, suportadas pelas bases de dados forjados com o patriótico objectivo de angariar fundos para manter o défice público dentro dos limites do PEC imposto por Roma.

Nunca mais tentaram interpretar sinais de mercado.

Este é o único cenário sustentável e com suficiente poder explicativo.

Semiramis Rubens_The Adoration of the Magi.jpg

Publicado por Joana às 10:39 PM | Comentários (102) | TrackBack

julho 26, 2005

Maravilhas do Mercado

1 – Nos EUA (onde haveria de ser?) apareceu no mercado um spray para polvilhar de lama os jeeps e lhes dar aquele toque desportivo de terem andado por safaris africanos, entre leões e jacarés. Temos um jeep que só é lavado na véspera da ida à inspecção. A desculpa, que damos a nós próprios, é que não cabe nos sistemas automáticos. A partir de agora a situação está resolvida. Passarei a dizer às minhas amigas: Já viram o resultado do novo spray XPTO? Mandei-o vir expressamente da América. É chiquérrimo todo este enlameado. Vejam a perfeição com que imita os dejectos dos pássaros!
E elas roídas de inveja!

2 - Como fazer dinheiro sem ser na Bolsa (remake)
O Samuel era um comerciante judeu, probo, de cabedais sólidos, bem conceituado na praça.
Um dia, de manhã cedo, a caminho da sua loja, o seu olhar caiu casualmente num anel que refulgia, abandonado à sua sorte, no empedrado da calçada. Circunvagou prudentemente o olhar, a ver se algum transeunte o estaria a observar, ou pudesse ser o dono daquela preciosidade e, em face da rua deserta àquela hora tão matinal, baixou-se, apanhou o anel sorrateiramente e guardou-o.

Ao fim da tarde, quando descia os taipais e se aprestava para regressar a casa, deu de caras com o Isaac, um outro abastado judeu que tinha uma loja ao lado, e não pôde deixar de lhe dizer:
- Encontrei este anel. É belíssimo e vou oferecê-lo à Rebeca (o Samuel, para além de honesto comerciante, era um marido amantíssimo)
O Isaac observou o anel e inquiriu:
- Sabes, eu ando há semanas para oferecer qualquer coisa à Ruth (o Isaac, para além de honesto comerciante, era também um marido amantíssimo). Compro-te o anel por 200€.
A oferta era tentadora. Afinal era um anel encontrado ao acaso do trânsito. O Samuel aceitou e vendeu o anel.
Quando chegou a casa, contou a história à Rebeca, sem referir obviamente a sua intenção inicial de lhe oferecer o anel (mesmo nos melhores casamentos é imprudente contar-se tudo ao cônjuge). Enalteceu apenas o negócio que fizera. Mas a Rebeca, perspicaz, contrapôs:
- O Isaac é um negociante muito vivo e deve ter-te enganado. Esse anel vale certamente muito mais. Tu devias reavê-lo.
O Samuel nem dormiu com a tranquilidade habitual. Assim que de manhãzinha chegou à loja, foi ter com o Isaac e propôs-se comprar-lhe o anel. Falou no desgosto da Rebeca, na iminência de um processo de divórcio, etc.. O Isaac regateou, mas acabaram por se entenderem e a transacção fez-se por 250€.
Quando chegou a casa o Isaac disse para a Ruth:
- Hoje ganhei 50€. Revendi o anel ao Samuel.
Mas a Ruth, que também era perspicaz, retorquiu:
- O Samuel enganou-te. Há qualquer coisa com o anel. Esse anel vale certamente mais. Tens que reavê-lo.
Essa noite foi a vez do Isaac ficar com insónias. No dia seguinte novo regateio e nova transacção. O Isaac comprou o anel por 300€.
Não contava porém com a Rebeca. Nessa noite a Rebeca encheu os ouvidos do Samuel sobre a evidência do negócio chorudo que o Isaac fizera.
No dia seguinte, nova transacção: O Samuel comprou o anel ao Isaac por 350€.
E as desconfianças continuaram e as transacções prosseguiram:
No 5º dia o Isaac comprou o anel ao Samuel por 400€.
No 6º dia o Samuel comprou o anel ao Isaac por 450€.
No 7º dia o Isaac comprou o anel ao Samuel por 500€.
No 8º dia o Samuel comprou o anel ao Isaac por 550€.
E todos os dias um deles saía feliz da transacção com um ganho de 50€, até que o debate com a respectiva mulher lhe fazia ver que poderia ganhar mais ainda.
Estas transacções prosseguiram, até que, no enésimo dia, quem era então o detentor do anel, perdeu-o. Ainda hoje não sabe como tal infortúnio lhe pôde ter acontecido.

Nesse dia, como de costume, o outro comerciante veio ter com ele e, resolutamente, propôs-se comprar o anel outra vez. Abateu-se um silêncio de chumbo. O que tinha perdido o anel balbuciou, entre dentes:
- Sabes ... perdi-o
O outro ficou desesperado, e revoltado, gesticulando ameaçadoramente, invectivou-o:
- Como? Perdeste o anel? Tu perdeste o nosso ganha pão?!

E ambos se abraçaram comovidos. Tinha sido um rude golpe comercial. Todos os dias o Samuel e o Isaac, alternadamente, cada um deles ganhava 50€. Era um ganho seguro e sólido, e a desventura do destino tinha-lhes retirado essa fonte de rendimento.

Escrito neste blog em dezembro 19, 2003
http://semiramis.weblog.com.pt/arquivo/2003/12/como_fazer_dinh.html

Publicado por Joana às 06:29 PM | Comentários (35) | TrackBack

junho 07, 2005

O Visconde Colado ao Meio

Ou o estranho caso do Freitas Séptico

Conta-se que numa horrenda batalha das inúmeras guerras balcânicas austro-turcas, um visconde foi fulminado por uma bala de canhão que o cindiu em duas metades rigorosamente iguais e simétricas. Ambas sobreviveram, mas tratadas em sítios diferentes e ignorando-se uma à outra. O visconde era um homem dotado de qualidades e defeitos, de uma mundividência multidimensional. Cada metade, porém, capturou uma parte unidimensional do visconde. Foi como o cátodo e o ânodo de uma experiência electroquímica. Freitas do Amaral, durante os anos de 1974/75 foi fulminado pelo PREC, que o fendeu em duas metades fisicamente simétricas e ideologicamente opostas. Contrariamente ao visconde, cujas metades se ignoraram mutuamente durante anos, ninguém notou nada no aspecto físico de Freitas, pois as duas metades foram imediatamente coladas. Infelizmente a informação deixou de circular entre elas, e cada metade passou a ter uma vida espiritual própria e oposta à outra, embora fisicamente ninguém se apercebesse do funesto acidente.

Uma das metades de Freitas entrou no governo de Balsemão como seu indomável suporte; a outra metade tirou o tapete debaixo dos pés de Balsemão e fez com que o partido, que a primeira metade chefiava, viesse aos trambolhões por aí abaixo, até se transformar no Partido do Táxi.

Uma das metades de Freitas andou em manifs radicais, acompanhando cartazes onde escorria sangue dos dentes de Bush, um émulo de Hitler, Salazar, Franco e Pinochet. A outra metade sucumbiu perante um arrepanhar de lábios de Gioconda Rice e foi a correr a Washington prostrar-se perante o “émulo de Hitler, Salazar, Franco e Pinochet”. A comunicação social bem agitava a nomeação do falcão Paul Wolfowitz para a presidência do Banco Mundial, por indicação de Bush , bem açulavam Freitas por causa da proposta de nomeação de John Bolton como embaixador junto das Nações Unidas … mas nada … era a outra metade e não havia comunicação entre as duas.

Relativamente ao Referendo europeu, a posição de Freitas (metade nº1) é clara e intransigente: «O referendo em Outubro é para manter». Todavia, quase em simultâneo, Freitas (metade nº2), numa conferência de imprensa conjunta com Joschka Fischer, garante: «Este tratado não funciona, vamos fazer outro».

O Visconde Cortado ao Meio rendeu celebridade a Italo Calvino. Freitas cindido e Colado ao Meio, o Freitas Séptico, está a deixar perplexos Portugal e o Mundo. Doravante, quem o ouve, ou quem se lhe dirige, ficará sempre na angustiante dúvida sobre qual a metade que é a sua interlocutora.

Sócrates terá que tomar uma decisão difícil. Mesmo tendo que recorrer a próteses ortopédicas, deverá evitar que as duas metades de Freitas andem pelos mesmos sítios dizendo coisas contraditórias entre si. Assim, de acordo com a sua estratégia política do dia, Sócrates deverá enviar apenas uma das metades de Freitas, com a respectiva prótese para o manter em equilíbrio estático e dinâmico, mantendo a outra a recato e convenientemente amordaçada. Se no dia seguinte a sua política for diferente (a política de Sócrates é de geometria variável) então enviará a outra metade, com a prótese simétrica, deixando a primeira manietada e amordaçada.

O Freitas, tal como se apresenta, com uma inesperada e falaz unidade física, é impraticável. As suas duas metades anulam-se mutuamente e criam situações embaraçosas … para os outros. Para o Freitas não, porque as duas metades, embora unidas fisicamente, têm um septo interno que não permite que a informação circule entre elas.

É o Freitas Séptico.


Nota: Ler sobre Freitas «Questão Inútil»

Publicado por Joana às 11:55 PM | Comentários (58) | TrackBack

janeiro 06, 2005

Os Reis Magos

Um Remake em Technicolor

Os Reis Magos e a estrela que os teria guiado constituem questões que têm intrigado a humanidade, os investigadores e os viciados no Google, há cerca de 2 milénios. Quem eram os Reis Magos? Donde vinham? Como vinham? Porque vinham? Ao que vinham? Qual o significado da estrela? Seria mesmo uma estrela? Ou um cometa?

Mateus, um talentoso argumentista da Judeia, escreveu que: “eis que vieram do oriente a Jerusalém uns magos que perguntavam: Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do oriente vimos a sua estrela e viemos adorá-lo”, mas esta narração nunca foi considerada suficiente. Milhares de investigadores tentaram aclarar esta questão, mas falharam sempre.

Uma investigação deste tipo tem que assentar no estabelecimento de cenários e sua validação. Foi esta a tarefa que me propus. Comecemos pelo cenário tradicionalista, o mais conforme aos textos litúrgicos.

Neste primeiro cenário era elementar colocar a questão semântica. Um rei é, por definição, o poder executivo. Portanto, segundo este cenário, 3 chefes do poder executivo (naquela época remota, pois hoje seriam poder moderador ou, na Lusitânia, o poder dissolutor) com bagagens recheadas de ouro, incenso e mirra, viajaram, em conjunto, centenas de léguas, ao ritmo lento e bamboleante de camelos escorrendo uma baba peganhenta e fétida, sujeitos a incomodativos enjoos e ao sol inclemente do deserto, perseguindo uma estrela.

Analisemos este cenário e as hipóteses a que a sua validação obriga:

1 – É óbvio que, nos reinos daqueles reis, se tinha tornado realidade o desiderato “Santanista” de “um Rei, uma Maioria”, pois senão não haveria as indispensáveis autorizações dos respectivos poderes legislativos para os soberanos se ausentarem dos seus estados, ainda por cima, ajoujados ao peso de tantas preciosidades;

2 – Outra hipótese necessária é a de que seriam reinos sem défice orçamental nem défice de transacções com o exterior, pois de outra forma a opinião pública e os Bancos Centrais reagiriam mal à saída, para destino incerto, atrás de uma estrela, ou sabe-se lá de quê, de tantas e tão valiosas mercadorias, sem quaisquer contrapartidas nem garantias bancárias.

3 – Há um facto surpreendente: os reis deslocavam-se sem escolta adequada. Os pastores, que aparecem no presépio, são obviamente figurantes locais, armados unicamente de cajados. Este dado obriga a formular ou a hipótese de um conflito institucional, todavia infirmada pela hipótese (1) ou, porventura mais verosímil, a hipótese de os Ministros da Defesa, eventualmente indicados por facções de menor expressão eleitoral, quisessem evidenciar o seu protagonismo político, não fornecendo acintosamente as escoltas. Ou, talvez, a ocorrência de um orçamento rectificativo, que transferindo verbas inscritas na rubrica “forragens dos muares das quadrigas de assalto”, para a rubrica “aquisição de ouro, incenso e mirra”, impedisse encontrar cabimento orçamental para custear a escolta.

4 – Mas o que definitivamente invalida este cenário é a inexistência de jornalistas embedded na caravana régia. Nem sequer jornalistas perdidos na imensidão do deserto, segundo os usos de um país do extremo ocidente europeu, sucessivamente saqueados por Moabitas, Amalecitas, Amonitas, Madianitas, Amorreus, Filisteus e arrumadores de camelos.

Portanto, apenas quatro hipóteses absurdas sustentariam este cenário: “um Rei, uma Maioria”; ausência de défice orçamental e de défice de transacções com o exterior; ausência de escolta; ausência de jornalistas embedded ou apenas transviados, etc.

Aliás, este cenário apenas foi esboçado por Mateus, muitas décadas depois, quando a memória e as faculdades do piedoso apóstolo já escasseavam.

Sendo assim demonstra-se que o episódio dos Reis Magos, vindos do oriente, orientados por uma estrela, não tem poder explicativo na sua formulação tradicional. Impõe-se a formulação de um novo cenário, com fundamentação mais científica, o Cenário Neo-liberal, por muito que custe aos defensores dos sistemas estatizantes.

Assim, a minha investigação, sempre escrupulosa, baseada numa hermenêutica rigorosa e numa heurística documental precisa, buscou um novo cenário, mais sustentável e inovador.

A primeira observação é a que a palavra rei não é indissociável da soberania de um Estado. É usada habitualmente para designar especialistas numa dada disciplina ou actividade, como por exemplo: Rei dos Livros (cujo território se cinge a um espaço exíguo na Baixa lisboeta; rei dos caloteiros (título de tal forma banalizado que permitiu a concessão da realeza a uma percentagem significativa da população portuguesa, e ao próprio Estado); o rei dos analistas políticos (J A Saraiva, na opinião dele próprio, ou Marcelo de Sousa, o Velhaco Genial, na opinião dos restantes); o rei dos gaffeurs (o ministro Morais Sarmento) “o Rei” tout court (Elvis Presley); etc..

Portanto, subtraí-me ao erro fatal de que foi vítima Mateus, na sua senectude, e todos os seus exegetas, inclusivamente Bach. Retenhamos esta primeira conclusão: rei é apenas uma pessoa com relevo numa determinada disciplina.

A segunda observação, também igualmente pertinente, resulta da resposta à pergunta: Porque é que aqueles veneráveis anciãos abandonaram as suas terras, o seu conforto familiar, obcecados por um sinal que interpretaram como uma estrela e seguiram esse sinal, léguas a fio, empoleirados em incómodas e enjoativas corcovas de camelos?

Diz-se que estavam obcecados por um sinal, pela luminosidade de uma estrela. Cinjamo-nos aos factos despidos da retórica: os “reis magos” tomaram uma sequência de decisões em face de sinais, ou de um sinal que ia variando no tempo.

Julgo que as mentes mais astutas, que me acompanharam nesta dedução rigorosa já se aperceberam que chegámos ao âmago da questão. A solução está ao virar da esquina ou, no caso em apreço, ao virar da duna. Qual é a actividade humana em que os seus especialistas tomam as decisões mais inexplicáveis, demandam os locais mais inverosímeis, têm as condutas mais excêntricas em face de sinais que só eles percepcionam e só eles julgam entender?

Quem são esses especialistas? Que sinais são aqueles que tanto os excitaram?

As respostas são doravante simples e elementares:

Quem são esses especialistas? – Economistas;

Que sinais são aqueles que tomaram como uma estrela? – Os sinais do mercado;

Porque levaram tantas preciosidades? Porque as decisões de investimento são tomadas em face dos sinais do mercado e, naquela época, em que a moeda escritural ainda não tinha curso, os cartões de crédito nem sequer miragens eram no deserto dos Nabateus, a forma de se andar prevenido para investir na altura precisa era trazer permanentemente à arreata uma cáfila de camelos ajoujados ao peso de um sólido carregamento de ouro, incenso e mirra.

Porque é que Mateus errou? Mateus, que tinha o apelido de Levi, era colector de impostos. É óbvio que ninguém confia num colector de impostos. Principalmente quando se transporta um carregamento de mercadorias preciosas, sem guias de transporte, sem referência ao IVA, na mais absoluta e delituosa evasão fiscal. A Mateus foi contada uma história da carochinha em que ele acreditou piamente, segundo a declaração de liquidação que enviou aos publicanos (administração fiscal da época) e que depois foi incluída no seu evangelho. Já naquela época a administração fiscal se deixava embalar com balelas.

Os factos são claros e límpidos e não permitem outra explicação.

Que se passou depois? Aparentemente a Bolsa de Jerusalém teria encerrado com fortes perdas. O pessoal tinha-se endividado para comprar as prendas para festejar as Saturnalias e a bolsa estava sem liquidez. Herodes, o tetrarca, responsável pela gestão danosa que tinha levado a Bolsa à insolvência, os fariseus à ruína e os zelotas a vandalizarem a cidade, protestando contra a globalização, deu uma explicação esfarrapada aos “reis magos”, que acabaram num casebre de Belém, onde se desfizeram das mercadorias, desvalorizadas face ao crash da Bolsa de Jerusalém, trocadas ao desbarato por um suculento ensopado de borrego, acompanhado de leite de vaca ordenhado no momento.

Herodes aproveitou o crash bolsista, suspendeu o exercício das «call-option», ignorando a CMVM, utilizou as «golden share» detidas em todas as sociedades vítimas da recessão, e ficou com os activos de todas elas. Os pequenos aforradores, os inocentes, ficaram sem um obolo. Foi este episódio que, ficcionado por historiadores menos avisados, ficou conhecido pela “matança dos inocentes”

Por isso, no regresso, os Reis Magos fizeram um desvio para não voltarem a encontrar-se com Herodes, que havia arruinado a Judeia com uma política keynesiana, baseada no uso imoderado da despesa pública e, por via disso, desvalorizado as suas mercadorias.

Nunca mais tentaram interpretar sinais de mercado.

Este é o único cenário sustentável e com suficiente poder explicativo.

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Publicado por Joana às 01:05 PM | Comentários (41) | TrackBack

dezembro 13, 2004

A Fuga das Elites

Elites Run

Subitamente o país despertou para o desaparecimento das elites. Faltam-nos elites capazes de transmitir um projecto, dizem uns; as nossas elites económicas não interiorizam princípios fundamentais (logo, são pseudo-elites) asseveram outros; artigos em semanários de referência escritos pelos seniores da república lastimam a degradação da qualidade dos agentes políticos devida ao afastamento das elites; o senior seniorum da república turbou-se de tal jeito com a má qualidade do pessoal político, que confundiu políticos com beterrabas, diagnosticando ser problema porventura tão remediável quanto uma má colheita. Há algo de obscuro, telúrico e misterioso que assombra o país e que urge investigar.

Substancialmente, trata-se de responder às perguntas clássicas: Quando fugiram? como fugiram? porque fugiram? e para onde fugiram?

O modelo teórico para este problema foi proposto há alguns anos e cenarizado, não com beterrabas, como pretendia o senior seniorum da república, mas com galinhas que, como se verificou após estudos laboriosos, têm uma capacidade de locomoção superior à das beterrabas.

A base epistemológica deste modelo é o stress provocado pela incapacidade em conseguir cumprir a quota diária de ovos que é imposta exogenamente. O modelo foi depois refinado, introduzindo um operador vectorial que transformava em empadas os elementos do conjunto em análise.

Será que as elites portuguesas foram sujeitas à obrigação de pôr ovos com um ritmo frenético e inadequado? Não conseguimos responder cabalmente a esta questão. A elite mais evidente que sobejou no panorama português, o EPC, não é uma galinha, mas um elefante branco. Ora os elefantes brancos, como diversas experiências têm demonstrado, não põem ovos, mas uma massa disforme, flácida e conspicuamente fétida. Em qualquer dos casos esta via de análise teve algum merecimento porque permitiu determinar as causas da não-fuga daquele elemento da elite: ninguém está interessado em que ele aumente o ritmo da postura.

Parece pois consensual que as elites tenham desaparecido por terem sido objecto de exigências desproporcionadas. Mas desproporcionadas relativamente a quê? O nosso modelo opera com valores finitos, logo um valor só pode ser considerado desproporcional quando comparado com um valor supostamente normal. Como é um modelo fechado, o equilíbrio interno do conjunto obriga a que essa desproporção seja quantificada em termos das contrapartidas para os seus elementos, de modo a manter o equilíbrio.

Portanto parece que houve exigências excessivas às elites portuguesas sem as adequadas contrapartidas. Retomando o modelo das galinhas, além das exigências elevadas relativamente aos ritmos da postura, não se lhes dava milho, gritava-se-lhes permanentemente chô, galinhas, chô! chô! e corria-se atrás delas com varas de marmeleiro fustigando-as sempre que cacarejavam em busca de alimento para debicar.

A pergunta «Quando?» é de resposta imediata: desapareceram logo que se aperceberam que a situação no galinheiro estava num impasse.

As perguntas agora mais pertinentes são o «Como?» e o «Para onde?». Porém, quando chegámos a esta fase avançada da investigação verificou-se que o modelo das galinhas já não era suficiente e avançámos para outros modelos que tivessem, porventura, maior poder explicativo.

Um dos modelos testados foi a lei de Gresham, ultimamente em voga. Segundo este modelo, a população informe e mediana estaria a expulsar as elites da circulação. Mas expulsar, para onde? Para serem entesouradas em baús dispersos por alguns vetustos solares do país? Mas já não há solares vetustos, mas apenas casas em ruína e baús esgarçados sem capacidade de entesouramento.

Não, o modelo de Gresham não é suficientemente explicativo.

Mas subitamente fez-se luz! Se não era explicável a fuga, era porque as elites continuavam entre nós. Era evidente! E se não reparávamos nelas, era porque elas estavam disfarçadas. E então tudo se tornou claro para as centenas de bolseiros que conduziram durante anos esta investigação laboriosa, cujo relato apresento aqui e agora em primeira mão: as elites andam disfarçadas de gente medíocre, para não serem detectadas pelo resto da população e pela comunicação social. Assim, todos alinhados pela mediocridade já não há zangas, invejas, má língua, mesquinhez. O país fica tranquilo, em estabilidade política, social, económica e em serenidade emocional

Os portugueses não perdoam o sucesso, como afirmou outro dia um cientista português na diáspora, quando passava, fugidiamente, pela Portela. A solução é sermos todos medíocres.

Nota - Ler ainda
As Elites

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novembro 29, 2004

A Lei de Gresham e o Entesouramento dos Políticos

A velhinha Lei de Gresham afirma que a má moeda expulsa a boa moeda da circulação devido ao facto do ouro ser entesourado, em virtude do seu valor comercial ser superior. Explicando por miúdos, na época em que o valor do dinheiro equivalia ao seu peso em ouro ou prata, se houvesse quebra da moeda (o rei ou o governo decidisse cunhar moeda com o mesmo valor nominal, mas com menos teor em ouro ou prata), então os possuidores da moeda antiga preferiam guardá-la, porque embora o valor nominal para as transacções no mercado fosse o mesmo, ela valia intrinsecamente mais. Portanto, pouco a pouco, as transacções faziam-se usando apenas a má moeda, enquanto a boa moeda era entesourada nos baús caseiros. Segundo Cavaco Silva descobriu há dias, o mesmo fenómeno está agora a ocorrer entre os políticos.

Temos assim que os maus políticos estão a expulsar os bons políticos da circulação. Estamos portanto perante o fenómeno do entesouramento dos bons políticos. Os agentes económicos portugueses (famílias e empresas) estão a açambarcar os bons políticos, deixando os maus políticos para as trocas do dia-a-dia.

Sempre fui contra os açambarcamentos, embora reconheça que quando o mercado não funciona, os agentes económicos reagem na defensiva. Trata-se portanto de um mau funcionamento do mercado. Por razões ainda por esclarecer, mas que já deveriam estar sob a alçada da Inspecção-Geral das Actividades Económicas, estão a ser lançados no mercado políticos de qualidade medíocre. O IGAE, que vigia a oferta de produtos e serviços nos termos legalmente previstos, já deveria ter procedido à investigação e instrução dos respectivos processos por contra-ordenação.

E ao mesmo tempo o IGAE deve investigar quem açambarcou, e onde param, os bons políticos. Eu desde já asseguro que não tenho na minha posse qualquer político, quer mau, quer bom. É um bem muito sujeito a flutuações que considero arriscado transaccionar. Políticos, Pararede e BCP são coisas a evitar.

Em qualquer dos casos, ordenei hoje de manhã, ao sair, uma aspiradela rigorosa por todos os recantos da casa, não fosse o diabo tecê-las, pois hoje em dia, os jardins escolas e os primeiros ciclos do básico são locais onde se efectuam as trocas mais inesperadas.

E ao chegar a casa verifiquei que apenas haviam sido recolhidos 42 peças de puzzles da Majora, um urso de peluche, um Action Man Operation Cuba e um Tito Gusanito, que eu julgava que já tinham ido para o ecoponto, 2 Spiderman Action, 75 peças legos, 2 kgs de plasticina e 5 kgs de cotão. Políticos ... nem um.

Tenho as minhas suspeitas sobre quem açambarca os bons políticos: as empresas privadas. E açambarcam com tal proficiência que as próprias empresas públicas apenas conseguem obter maus políticos. Dos bons políticos nem um sobeja para o serviço público.

Além do que os bons políticos converteram-se num recurso muito escasso, demasiado escasso. E pelas leis do mercado, quando os recursos são escassos, o seu preço de equilíbrio aumenta vertiginosamente. Será que a situação financeira do país permite remunerar adequadamente os bons políticos?

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novembro 10, 2004

Atrasado para o Funeral

Já está tudo organizado. As exéquias realizam-se no Cairo, na próxima 6ª-feira, e no sábado será enterrado em Ramallah, no seu QG de Muqata. Diversos estadistas, políticos e outras personalidades do mundo inteiro já estão convidados para aqueles dois eventos que serão retransmitidos por todo o planeta.

Percebe-se, em tudo isto, uma sólida capacidade de decisão e organização. A escolha dos locais, os convites, os lugares e a sua distribuição, sempre delicada para não ferir susceptibilidades, a parte logística, os abastecimentos, as flores, as instalações sonoras, a sequência dos cânticos, a colocação das câmaras, etc., etc..

Apenas falta uma minudência. É pequena, está mirrada, está silenciosa e está imóvel, mas deveria ser o protagonista principal daqueles eventos – Falta o cadáver de Arafat!

Mas Arafat, que sempre foi um obstinado, para o bem e para o mal, recusa-se sistematicamente a morrer. Há uma semana estava em coma; no dia seguinte foi dado em estado de morte cerebral; anteontem afirmava-se que tinha apenas algumas horas de vida. Os organizadores dos eventos roem as unhas nervosos ... toca o telefone ... acorrem pressurosos – o gajo já ... ? – pergunta-se com angústia, e a resposta é um abanar desolado da cabeça: nada ... isto está a ficar feio ... ainda temos que devolver os bilhetes ...

A mulher de Arafat, Suha, acusou anteontem a direcção palestiniana de querer "enterrar vivo" o seu marido. Julgo que Suha não está a compreender a gravidade da situação. As mulheres têm frequentemente destes desvarios: não terem a racionalidade adequada à grandeza dos acontecimentos. Vivo ou morto (de preferência morto, como diriam aqueles cartazes no Far-West), Arafat terá que comparecer, 6ª feira ao seu próprio funeral. Todos o exigem, está tudo marcado e seria de uma enorme deselegância para com todos os convidados, se Arafat não comparecesse.

A Autoridade Palestiniana assumiu compromissos e terá que os cumprir. Suha terá que se conformar. Sexta-feira, vivo ou morto, Arafat estará no Cairo como prometido.

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Lazareto Semiramis II

Ao Luis Rainha (novembro 10, 2004 02:57 PM)

Em primeiro lugar queria reconhecer que não me apercebi das 2 notícias sobre o assassínio do Van Gogh. Elas já estavam arquivadas e eu só percorri a página principal. Sem os links que me deu agora, eu nunca chegaria lá, visto ser raríssimo eu abrir o BdE (fui lá ontem porque você teve a amabilidade de me visitar). Não é por má vontade política que eu não frequento o BdE. De forma alguma ... não veja nisto qualquer discriminação. Talvez algum elitismo cultural que eu tenho que ultrapassar, que fazer um esforço sobre mim própria. Veja que eu nem consigo abrir o 24 Horas ... nem mesmo o Correio da Manhã.

Do facto pedia-lhe imensas desculpas. Mas alego uma atenuante "p.c.": sou mulher e os 3 milénios de civilização judaico-cristã, para além da minha vida profissional, fazem com que o tempo, para mim, seja um bem muito escasso e me leve a exegeses apressadas.

Mas agora, lendo melhor aqueles dois textos (afinal teria sido preferível eu continuar com exegeses apressadas), verifico que o recato e a discrição no uso das palavras com que o BdE trata o assunto se inscrevem perfeitamente na tipologia do politicamente correcto que eu defini no meu post, exactamente no parágrafo dedicado ao assassínio do Van Gogh. Além do mais a vandalização da fachada de uma escola islâmica não será tão grave como o assassínio de um cineasta europeu e loiro por delito de opinião?

Por falar em pressas, você também leu apressadamente o meu texto. Eu não o critiquei a si “propósito de textos alheios”. Eu escrevi “Quando fui agora a Blog de Esquerda ... reparei que ... se referiram”. A 2ª pessoa do plural refere-se ao colectivo do BdE e nunca se prestaria a confusões, a menos que você, empolgado pelo seu apelido, utilize o plural majestatático “nós” para se referir a si próprio. Se for esse o caso, se você, quando se refere a si próprio, diz “nós” em vez de "eu", então peço-lhe repetidas desculpas.

Outra coisa: quando você diz que eu estou a “esconder a verdade ... por preguiça de melhor procurar”, não está a repetir, mutatis mutandis, o que o ministro Gomes da Silva disse sobre a “cabala não intencional” e que tanta galhofa desencadeou no país? Você não estará a ser colonizado mentalmente por aquele ministro. Será que os miasmas emanados do ministro são mais infecciosos que os que pairam no Semiramis?

Quanto a algumas afirmações que produz, acho-as perfeitamente naturais. Sendo você Rainha e usando “nós” como plural majestatático, é lógico que nos veja como complemento de si: a Branca de Neve e os anões. Só lhe fica bem trazer à colação uma história que deliciou as nossas infâncias, ainda por cima aceitando protagonizar o ingrato papel de vilão.

Para terminar, se pedi desculpas, foi por uma omissão involuntária, e não para lhe desfazer qualquer ideia. Aliás, julgo que mesmo depois de um tirocínio prolongado numa pedreira, aprendendo afincadamente o manejo de uma picareta, eu seria incapaz de lhe desfazer uma ideia, qualquer que ela fosse.

Todavia tenho que corrigir algo, a que aliás já me chamaram a atenção. Eu escrevi que só estava de acordo consigo numa coisa: a de estarmos ambos certos do seu enorme talento. Embora tivesse sido sem intenção, talvez por falta de esclarecimento ... as pressas ... menti-lhe descaradamente. Pois é, LR: até nisso estamos em total desacordo.

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novembro 09, 2004

O Lazareto Semiramis

Sempre me interroguei com que se pareceria este blogue. A resposta veio hoje, liminar e definitiva: Um Lazareto mental. Às vezes, é na voz dos simples (no caso, o Luís Rainha do Blogue de Esquerda) que aparecem as verdades mais inesperadas.

O Lazareto é um estabelecimento cheio de tradições: era inicialmente destinado a isolar pessoas vindas de localidades onde grassavam doenças contagiosas, em particular as chamadas moléstias pestilenciais. A par das pessoas eram isoladas as mercadorias e bagagens durante o tempo julgado suficiente em cada época, para os elementos transmissores perderem a sua capacidade de contágio. Chamava-se a isso pôr de quarentena. E quem ordenava estes internamentos eram os guardiães da saúde pública, investidos dessa suprema autoridade. Era o Lazareto físico.

A net impede o contacto físico, permitindo apenas o contacto a nível da opinião e do debate de ideias. Portanto, a designação de Lazareto mental, tão oportunamente dada por LR-BdE ao meu blog, terá que ser vista em termos de isolar as ideias mais molestas e pôr o pensamento mais contagioso de quarentena. E que bem que LR-BdE sabe assumir esse papel! Chegou aqui, ao post Intolerância Congénita, avisou de passagem um comentarista desprevenido, que estava nesta gafaria mental em risco iminente de contágio, e saiu apressadamente antes que os miasmas que flutuam insidiosamente pelo Semiramis pudessem penetrar através da poderosa couraça de betão e aço que, com vários centímetros de espessura, lhe protege o que lhe sobejou da massa encefálica.

Pois é, LR-BdE, nós aqui vivemos na mais estouvada e indecente promiscuidade mental. Temos opiniões diferentes e contrárias, expomo-las e ouvimo-las, incautamente impassíveis a contágios, arremessamos violentamente os vírus mentais mais infecciosos uns aos outros, com uma agressiva e pestilencial vontade de contagiar e corromper. Mas o mais surpreendente é que a nossa estrutura mental mantém-se praticamente incólume. Todos os dias porfiamos em contaminar os outros, e eles a nós, sem qualquer recato ou escrúpulo pelas prescrições dos guardiães da mente. Mas à força de tão prolixa troca de vírus, devemos ter criado tantos anti-corpos, que não há volta a dar. Ficamos na mesma!

Não, LR-BdE, apenas aparentemente ficamos na mesma. Em primeiro lugar aprendemos a respeitar e prezamos cada vez mais as opiniões dos outros, mesmo quando discordamos irredutivelmente delas. Em segundo lugar, as nossas próprias opiniões, mesmo quando se mantêm no essencial, temperam-se com o que nos vai chegando das opiniões dos outros – ou robustecem-se pelo exercício e força da nossa argumentação, ou transfiguram-se, em diversos dos seus aspectos, pelo reconhecimento do peso da argumentação contrária. Em qualquer dos casos, tornam-se sempre mais rigorosas e cosmopolitas.

A mente exercita-se no debate e na controvérsia, por muitos vírus que esse exercício licencioso e promíscuo transmita. Aliás, quanto mais vírus trocarmos, mais resistências ganhamos, mais robustecemos as nossas mentes e menos expostos ficamos a epidemias que por vezes surgem. Foi por não seguir este avisado conselho que Eduardo Prado Coelho se tornou, sempre, na primeira vítima de qualquer surto intelectual e cultural que assole o país (ou Paris de França). Aquele homem apanhou todas as viroses intelectuais que devastaram Paris e Portugal nos últimos sessenta anos. Não escapou a nenhuma, nem às suas mais imperceptíveis mutações. LR-BdE, pense bem! Pretende seguir este doloroso e insalubre exemplo?

Quando fui agora a Blogue de Esquerda em busca dos “links” (onde encontrei, com atónita surpresa, LR-BdE repetidamente virado para Deus), reparei que, finalmente e contrariando o que se poderia extrair do que eu havia escrito na véspera, se referiram ao assassinato de Theo van Gogh. Isto é ... apenas indirectamente ... pois o que o BdE pretendia mostrar era a sua indignação e apreensão pelo ataque a uma mesquita perpetrado por alguém com espírito de vendetta. O título é «O Assustador Presente da Holanda» e o que era assustador, era o ataque à mesquita. Objectivamente, o BdE não encontrou nada de assustador no assassinato de um agente cultural por este haver realizado um filme sobre o humilhante papel da mulher na sociedade islâmica. Quem teve a paciência de me ler até aqui, agradecia que recortasse este parágrafo e o colasse no post anterior sobre o “politicamente correcto”. É um dos paradigmas mais perfeitos dessa praga maniqueísta.

LR-BdE, você não quer aparecer por aqui, de peito aberto, pulmões carentes de oxigenação, sorver em longos e profundos haustos, todos estes miasmas corruptores da mente? Todos estes vírus insidiosos que inflectem a mente e corrompem a visão totalitária? Porquê persistir na Totalidade, em vez de se abandonar, por exemplo, ao Único (e sua Propriedade), começando pelo início absoluto: «A minha causa é a causa de nada»? Mas para isso teria que aceitar a morte de Deus e abandonar o folhetim (1,2,3, 4 e só Allah, o misericordioso, sabe quando terminará) a que hoje está a dedicar todo o seu enorme talento, talento que ambos admiramos intensamente, e que é a única matéria sobre a qual estamos presentemente de acordo.

Nota - Ler a réplica:
Lazareto Semiramis II

Publicado por Joana às 07:49 PM | Comentários (31) | TrackBack

março 31, 2004

Guterres Aguilhoado

Guterres, o Prometeu em versão tuga, regressou este fim de semana.

Prometeu ensinou os gregos a observar as estrelas, a cantar e a escrever; mostrou como fazer para subjugar os animais mais fortes; demonstrou-lhes como fazer barcos e velas e como poderiam navegar; ensinou-os a enfrentar os problemas quotidianos e a fazer unguentos e remédios para suas feridas. Por último, deu-lhes o dom da profecia, para o entendimento dos sonhos; mostrou-lhes o fundo da Terra e suas riquezas minerais: o cobre, a prata e o ouro e a fazer da vida algo mais confortável. Prometeu significava, literalmente, “aquele que prevê”.

Guterres anestesiou os portugueses; criou-lhes um universo paralelo e virtual onde as coisas aconteciam sem esforço nem contrapartidas; autoestradas que não eram pagas; prestações sociais de fiscalização duvidosa, mas de comparticipações seguras; empregos fáceis e abundantes na administração pública; etc., etc.. Guterres tornou-se, literalmente, “aquele que não faz a mínima ideia do futuro”.

Zeus, Deus inclemente, vingou-se de Prometeu tornando a Terra num vale de lágrimas e de dor, espalhou as doenças, silenciosas e mortíferas. E cevou a sua vingança em Prometeu, acorrentado-o a um penhasco nas montanha caucasianas em face de um abismo horrendo, com correntes inquebráveis. Zeus ainda ordenou que um abutre devorasse todos os dias o fígado do prisioneiro, que sempre se reconstituía à noite.

Guterres não precisou de Zeus. O seu universo paralelo e virtual foi destruído pelas misérias deste mundo: a falta de dinheiro, o défice excessivo, o PEC, dívidas incobráveis, etc.. Quanto à vingança sobre ele próprio, não precisou de ajuda - encarregou-se ele mesmo dela. A partir dos primeiros meses do seu governo, quando começou a verificar que o seu universo virtual não era compaginável com as duras realidades do mercado, escassez de fundos, descalabro financeiro à vista, amarrou-se ele próprio ao Cáucaso da política e criou a lamentosa imagem que lhe estavam a debicar permanentemente o fígado e o resto das vísceras: eram os barões do seu partido, era a oposição de direita, era a oposição de esquerda, era a necessidade de degustar o queijo limiano, era o povo que não o compreendia.

Guterres arrastou-se, durante a maior parte do tempo dos seus governos, como uma vítima incompreendida. Era o nosso Prometeu, o nosso Prometeu de trazer por casa.

Finalmente os Hércules da política, os eleitores, libertaram-no e permitiram-lhe um exílio tranquilo por essa Europa, longe do nosso Cáucaso escarpado.

No fim de semana passado regressou ao nosso Cáucaso, novamente como vítima, novamente a queixar-se de disfunção hepática-política.

Afinal Guterres «tinha condições para ficar no Governo, mas não tinha condições para executar o projecto em que acreditava. Era uma questão indiscutível», disse, e continuou: «Não faria qualquer sentido tentar agarrar-me a um lugar, sabendo que não existiam as condições políticas para realizar o projecto que, em minha opinião, era a única justificação para estar nesse lugar»

Houve pois um lamentável equívoco. Guterres acreditava num projecto e ia executá-lo, mas as autárquicas de finais de 2001 criaram uma «lógica política pantanosa que era preciso interromper, dando o voto e a decisão ao povo». Portanto, a acreditar no seu discurso de sábado passado, nos finais de 2001 é que Guterres iria começar a governar a sério. Entretanto havia estado 6 anos a treinar-se, a congeminar o projecto, a desbaratar as finanças e a anestesiar a população. O projecto deveria ser grandioso, pois tudo indica que a política orçamental de Guterres foi conduzida de forma genial para mostrar como é possível fazer prosperar um país após um completo descalabro financeiro. Não foi desleixo ... apenas subtileza. Um Super-herói só é possível com um Super-vilão. Foi para protagonizar o Super-herói a partir de 2002, que Guterres criou um buraco orçamental desmedido nos primeiros 6 anos de treino obstinado.

Infelizmente a manifesta má vontade dos eleitores nas autárquicas impediu, indirectamente, que esse projecto visse a luz da política e que as ciências políticas e económicas se enriquecessem com uma contribuição notável. E foi um impedimento indirecto porque a partir desse voto, Guterres ficou com o «temor de um parlamento bloqueante às propostas do Governo», apesar do parlamento continuar exactamente com a mesma composição partidária. A única coisa que mudou, foi o «temor» de Guterres.

Guterres, profissão: vítima, agora e sempre.

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março 28, 2004

Racionalidade e Boas Maneiras

Está finalmente estabelecida uma correlação elevada entre as boas maneiras à mesa e a superioridade intelectual do Homo Sapiens Sapiens sobre as restantes espécies (bem ... nem todos ...infelizmente). Aquelas exigências draconianas que os nossos pais nos faziam sobre o nosso comportamento à mesa e que nós estamos a tentar reproduzir para os nossos filhos têm agora um fundamento científico sólido: destinam-se ao apuramento da espécie.

As outras espécies são apuradas através de cruzamentos em laboratórios zootécnicos; a nossa apura-se à mesa, através de um ritual destinado a moderar a nossa ferocidade primitiva. Por isso, enquanto as outras espécies apenas melhoram desempenhos secundários – correr mais depressa, morder mais ferozmente os intrusos, etc., a nossa tem-se tornado mais racional, inteligente e inventiva.

O que nos fez diferentes de outros primatas e nos tornou humanos? Pela primeira vez, uma equipa de cientistas (da Universidade da Pensilvânia) identificou uma mutação genética entre humanos e primatas não humanos que poderá ter sido central para a evolução do crânio dos nossos antepassados. O gene que sofreu essa mutação fez com que os humanos tivessem músculos mais pequenos nos maxilares e acabou por causar alterações enormes nos ossos aos quais estão ligados: a caixa craniana pôde então aumentar de tamanho, tal como o cérebro.

Devido a esta diferença genética, os músculos dos maxilares e os ossos aos quais estão ligados são maiores e mais poderosos nos macacos e símios do que nos humanos. Ao nível dos tecidos os músculos para mastigar e morder dos macacos são dez vezes maiores que os dos humanos.

Mas os investigadores consideram que há questões em aberto. Em que circunstâncias essa mutação genética ocorreu? Terá sido porque houve uma mudança na dieta alimentar? Ou porque, para preparar os alimentos, a dependência das mãos aumentou em relação às mandíbulas?

Mas para essas questões, aparentemente em aberto, nós temos um resposta límpida e indiscutível. Todo o nosso ritual alimentar foi estabelecido para que o processo de saciar a fome decorresse com o máximo dos vagares e, portanto, para aumentar a nossa racionalidade.

Tudo foi pensado com extrema minúcia: A exigência aparentemente absurda de só nos podermos levantar após a dona da casa o fazer, ou os nossos pais o autorizarem, destinava-se a mostrar que não tiraríamos qualquer benefício de comer com rapidez, pois estávamos reféns de terceiros. Com idêntico objectivo foram estabelecidas outras regras, igualmente subtis: não encher em demasia o prato, para nos servirmos mais vezes; não atafulhar a boca com comida; não falar com a boca cheia, o que nos obriga a fazermos pausas para responder às interpelações que nos fazem, obviamente com o intuito de nos embaraçar e retardar a refeição. Foi justamente com esse fim que se instituíram as conversas, mesmo as mais fúteis e triviais, à mesa de refeições.

A dificuldade da interpretação da função de cada um daqueles vários talheres confusos e com diferenças subtis de formato, conforme o prato ou a fase da refeição, destinava-se, afinal, a manter o nosso intelecto em permanente actividade, contrariamente ao indelicado comportamento das alimárias, quando saciam a sua fome em frente das cameras dos documentaristas da vida animal.

Tudo foi planeado para moderar a velocidade de deglutição dos sólidos e aumentar a nossa inteligência. Com esse objectivo foi também estabelecida uma sequência misteriosa de bebidas: Madeira com a sopa; Chablis com os hors d’oeuvre; branco frappé com o peixe; tinto, de preferência Borgonha, com a carne; Porto com a sobremesa; um licor “digestivo” com o café; Alka-Seltzer uma hora depois.

Associada a estas transições líquidas está o ritual de verter, sequencialmente, os preciosos néctares nos copos alinhados em frente do prato, as sucessivas degustações, inquirições, aprovações, etc., tudo entremeado com prolixa cavaqueira sobre as qualidades dos vintages e a adequabilidade das origens (rigorosamente controladas) à iguaria que vagarosamente saboreamos.

São misteriosos os desígnios da providência. O que muita gente considerava como um ritual desnecessário e absurdo, manias de gente abastada ou com pretensões, era afinal um acto necessário no caminho da racionalidade. Foi por isso que somos em extremo devedores da civilização romana, ao avanço na racionalidade que constituíam aquelas refeições nos triclínios, reclinados em leitos e limpando vagarosamente os dedos às fartas cabeleiras dos escravos. Um homem com a luminosa racionalidade de Petronius só poderia existir após conviver com Trimalcião nos seus banquetes. Uma herança inesquecível e imperecível!

Portanto, a nossa dedução, rigorosamente fundamentada, prova que a racionalidade humana se desenvolveu vertiginosamente não apenas porque, para preparar os alimentos, a dependência das mãos aumentou em relação às mandíbulas, mas porque adicionalmente aumentou a dependência aos talheres e aos pratos, cada vez mais especializados e diferenciados, e aos ritos estabelecidos para o desenrolar da refeição.

.....................
Entretanto ainda é cedo para avaliar os efeitos da expansão dos restaurantes MacDonald’s na racionalidade humana. Afinal, o primeiro só foi inaugurado em 1955 d.C., ainda nem passou meio século. Receamos todavia o pior!

Publicado por Joana às 10:40 PM | Comentários (31) | TrackBack

março 22, 2004

O Núncio da Al-Qaida

Semiramis está em condições de informar que encontrou e entrevistou Mário Soares, algures na zona montanhosa do Hindu-Kush, num local que por razões de segurança não revelamos. Trata-se de uma zona muito patrulhada pela tropa paquistanesa, pela Legião Estrangeira do general Bentegeat e por agentes da CIA, e desvendar mais pormenores poderia por em risco a preciosa vida do patriarca da nossa democracia.

Encontrámo-lo ao entardecer. O terreno era escalvado e íngreme. Uma vereda despontava a seguir a um alcantilado penhasco. Por essa vereda emergia, lentamente, uma pequena caravana. A elevada figura do Soares destacava-se dos demais. Um largo albornoz de lã grossa, em riscas pardas, orlado de franjas azuis, cobria-o até aos pés, calçados de sandálias já gastas pelos caminhos acidentados do deserto e atadas com correias; tinha um turbante branco, feito de uma longa faixa de linho enrolada, cujas pontas lhe pendiam de cada lado sobre os ombros. Debaixo dele, ajoujado ao seu peso, um camelo com beiços pendentes e resignados, ia-se arrastando, gemendo penosamente pelas escarpas.

Um macho levava as bagagens; atrás, uma figura bojuda, embrulhada num farrapo azul que já fora uma burqa refulgente, tentava desajeitadamente empoleirar-se no dorso de um camelo, praguejando ao ritmo do baloiçar da alimária. Aquela voz era indisfarçável: era ela, a destemida Ana Gomes. Por detrás do rendilhado da burqa vislumbrava-se o negro cintilar do seu olhar de velcro. Como escolta, seguia-os um talibã, velho, catarroso, com o albornoz de lã de camelo listrado de cinzento, e uma AK-47 ferrugenta toda enfeitada de borlas.

Pararam para o obrigatório recolhimento religioso. Após as preces, enquanto o talibã erguia a tenda e Ana Gomes mungia umas cabras, porquanto a caminhada tinha exacerbado o já de si pouco frugal apetite de Soares, este circunvagava o olhar por aquela paisagem agreste e desolada, entrevendo talvez o caminho pelo qual Alexandre se havia internado pelo vale do Indo, mais de 2 milénios antes. Por cima pesava um céu pardacento.

Foi então que estugando o passo por um atalho agreste, onde o meu largo albornoz se prendia aos espinhos das piteiras (evitei cuidadosamente vestuário que recortasse a minha figura e pudesse ser motivo de pensamentos pecaminosos do pessoal masculino, aliás enfraquecido pelos jejuns e orações continuadas), me abeirei do nosso patriarca da democracia. Após uns Salam Alaikum e de me ter identificado como compatriota e dona de um blog pouco respeitável e muito contestado, perguntei-lhe como tinha decorrido a viagem e que tal o diálogo com bin Laden e os outros chefes da Al-Qaida.

O nosso patriarca, com a voz pausada e irradiando uma incontida satisfação foi dizendo:

- As conversações foram um sucesso. Não há como estabelecer o diálogo e a compreensão para as questões se resolverem consensualmente, a contento de todos.

- Estremeço de júbilo por poder dar essa boa nova quase em directo, no meu blog. Quais foram os pontos de consenso?

- O mais imediato e que gerou um consenso mais rápido de ambas as partes foi que a ocupação do Iraque pelos cruzados tinha que terminar imediatamente. Depois, com muita persuasão da nossa parte, a Al-Qaida concordou nas seguintes regras gerais para a sociedade portuguesa:
· proíbe-se o trabalho fora de casa por parte das mulheres
· proíbe-se a presença fora de casa de uma mulher quando não acompanhada por um parente do sexo masculino
· proíbe-se que os homens façam a barba
· proíbe-se que os homens não usem um turbante
· proíbe-se que as mulheres usem no exterior outra coisa que não uma burqa
· proíbe-se a exposição de fotos de animais ou pessoas
· proíbe-se a audição de música
· proíbe-se que se assobie
· proíbe-se que se tirem fotografias ou se façam vídeos
É claro que tivemos de ceder ligeiramente num ponto: os israelitas serão lançados ao Mediterrâneo.

- Lançados, sem mais?

- Não, de forma alguma! Nunca aceitaríamos isso! Todos levarão uma pedra amarrada aos pés. Consegui todavia que o meu querido amigo Shimon Peres, companheiro de tantas lutas, tivesse um tratamento de favor.

- ??

- A pedra dele será da Judeia. As outras serão das pedreiras do Alto Nilo ... nada que faça lembrar a Terra Prometida.

Nesta situação embaraçosa, uma pergunta se impunha:

- A Ana Gomes não fez nenhumas objecções? Além do mais, com aquelas prescrições ela já não poderá ir para o Parlamento Europeu, ir aos debates na SIC Notícias. Aceitou de boamente todas as deliberações?

- Bem ... a minha querida correligionária Ana Gomes não pôde assistir às conversações. Mal chegámos, enfiaram-lhe aquela coisa azul ... a burqa, e esteve sempre recolhida. Só saía para ir ao estábulo mungir as cabras e as burras. Sabe que ganhou enorme destreza nessa arte?

- Muito me alegra sabê-lo e vê-la ocupada em tarefas tão nobres e cuja tradição entronca nos primórdios da nossa civilização, em vez daquelas peixeiradas da SIC Notícias, pouco próprias de uma mulher avisada. E agora?

- Agora vou regressar a Portugal e dar conta aos meus concidadãos e ao meu secretário-geral destas decisões que são o paradigma do triunfo do diálogo e da tolerância, sobre o belicismo americano. Julgo que vou ter uma enorme e entusiástica recepção. O Carvalhas e o Carvalho da Silva já deram o seu assentimento. Espero a toda a hora um telefonema do Louçã. Acho que ele está com alguns problemas ... sabe ... aquela história da Ana Drago que tem o útero tutelado pelo Estado. Misturar a política com a coisa pública, ou vice-versa, é, às vezes, complicado. Mas tenho esperança.

Quanto ao Ferro, não há problemas. Com aquele buraco da Casa Pia em que está metido, não tem ânimo para nada. Se até o Louçã manda nele! Vai ser canja!


Nota: ler também Mário Soares e o Terrorismo

Publicado por Joana às 12:20 AM | Comentários (26) | TrackBack

março 08, 2004

A Revolta da Incubadora

Ana Drago deu hoje a conhecer ao mundo um facto revoltante e indecoroso: O Estado português tutela o útero da Ana Drago, e reduziu-a a uma mera incubadora.

Esta acção nociva e desmoralizante do Estado português, para além de contrariar o protocolo integrado na convenção sobre biomedicina do Conselho da Europa, o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, contraria radicalmente a promessa eleitoral do governo de «menos Estado e melhor Estado».

Acaso o Estado melhora o seu desempenho tutelando o útero da Ana Drago? Porque é que o Estado se distrai das suas tarefas fundamentais e decidiu tutelar o útero da Ana Drago? Ou será o útero da Ana Drago parte do core business do Estado?

Uma possível resposta a estas inquietações, a esta acção aparentemente insensata do Estado português, inscrever-se-ia numa tentativa desajeitada e desesperada de aumentar a taxa de natalidade e contrariar o nosso declínio demográfico e o previsional colapso do sistema de segurança social daqui a poucas décadas.

Mas porquê escolher uma socióloga debilitada por noitadas políticas, ambientes fechados e doentios e lengalengas do Miguel Portas? Porque não uma beirã, enrijada pelos ares puros da serra e cuja única lengalenga que escuta são os sadios balidos do ovelhame? Uma beirã descendente em linha recta dos heróis dos Montes Hermínios?

Aqui, tenho que reconhecer o maquiavelismo e as intenções manhosas e sinuosas do Ministro Bagão Félix, eventualmente o responsável pelo Estado português ter tomado posse administrativa do útero da socióloga Ana Drago, e a ter reduzido a uma incubadora. Educados por uma mãe assim, toda a geração produzida por aquele útero sob tutela estatal teria, após uma infância desvalida e uma adolescência problemática, uma imensa revolta contra a mãe e contra tudo o que ela representasse, e seria presa fácil da extrema-direita. Assim como os educados em colégios religiosos têm uma incontrolável tendência para se tornarem anti-clericais, os produtos da incubadora Ana Drago seriam seguramente de extrema-direita.

Portanto, o governo português pretenderia, com esta estatização contra a corrente neoliberal, ganhar em todos os tabuleiros: aumentar a natalidade e criar uma numerosa geração de direita, importante para as próximas pugnas eleitorais.

Todavia, e ao que parece, mais uma vez o governo se mostrou inábil. Como já diversos ministros afirmaram ou deixaram deduzir, o governo não atina com os instrumentos necessários para uma retoma económica. E também neste caso falhou. Julgo que os portugueses têm o direito a uma resposta a estas perguntas:

- O que é que a incubadora Ana Drago produziu, desde que o seu útero é tutelado pelo Estado? Qual a sua eficiência? Como tem sido avaliado o seu desempenho? Que ministro há-de a oposição exigir a demissão em caso de falência desta estatização contra natura? Ou será, como veio noticiado noutro matutino, que este activo tutelado figura entre o património cuja existência o Estado ignora? Neste caso seria de louvar o gesto de Ana Drago ao declarar esta tutela estatal sobre o seu útero, no mesmo dia em que se reconhece o caos em que a inventariação do património do Estado se encontra.

O país espera urgentemente uma resposta a estas perguntas. O governo prometeu «menos Estado e melhor Estado» e se a incubadora Ana Drago não tem o desempenho esperado, deve enveredar-se por um processo de privatização. O útero da Ana Drago terá que ser privatizado e o Ministério das Finanças deverá começar a tratar do assunto imediatamente, reunir-se com a CMVM, e elaborar o processo de concurso e o caderno de encargos respectivos para a oferta pública de venda.

Se a hasta pública ficar vazia, há que recomeçar, baixando o preço até a procura intersectar a oferta. Espera-se que essa intersecção não fique na zona dos preços negativos, isto é, na zona em que o Estado terá que pagar para alguém ficar com aquele activo. A avaliar pelo artigo do Público e pelo absoluto caos mental em que se debate a autora, há preocupantes e fundadas suspeitas que tal venha a acontecer.

Mas aí terás, Ana, a minha solidariedade. Estarei presente nessa OPV e não deixarei que o preço de um activo tão precioso se avilte. Assim como assim, um útero sobresselente faz sempre jeito.

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fevereiro 23, 2004

Ministros certificados

José Cesário, secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, é conhecido por o seu nome ter sido envolvido em várias polémicas e ter resistido ao "caso da cunha", que levou à demissão do seu chefe, o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Martins da Cruz, e do ministro da Ciência e Ensino Superior, Pedro Lynce. Acumula também com a posição de ser um dos membros do governo cuja demissão mais vezes tem sido pedida o que é uma façanha notável, se se tiver em conta que, exigir demissões, é a pièce de résistance do cardápio da elaborada conceptualização política em que se baseia estratégia oposicionista.

Mas José Cesário, no que respeita a cunhas relativas a acessos ao ensino superior está certificado: o seu filho (a família continua a viver em Viseu) está a repetir o 12º ano pela terceira vez porque ainda não conseguiu entrar na faculdade.

Louvemos a previdência deste prudente membro do governo e o amor filial implícito no comovente sacrifício do rapaz, que assim certificou o pai como imune a este tipo de cunhas.

Outras certificações poderão ser assim obtidas. Por exemplo, para imunidade à fuga ao imposto de sisa, uma das viroses políticas mais endémicas e mortíferas, o cenário certificador ideal será um ministro ser entrevistado no seu tugúrio, um humilde pardieiro construído penosamente com tábuas apodrecidas sobrantes das carpintarias de toscos, alcantilado num talude da zona de protecção da A1, à saída de Lisboa. Enquanto lá fora a devotada esposa do ministro monda uma pequena leira onde crescem, numa liberdade desordenada, couves portuguesas e outras hortaliças patrióticas, a voz do ministro, sobrepondo-se à zoada infrene do trânsito, insiste na excelência da localização:

- O meu motorista pára na faixa de segurança, buzina e eu saio da barraca, salto a vedação metálica e entro no carro ... são só 10 metros e é muito prático. Preparei-me desde pequeno para a política. Os meus pais e os meus sogros doaram os bens a instituições de caridade e eu construí esta choça para nossa residência permanente logo que me acenaram com um cargo político. Como este local, durante os fins de semana, com a diminuição do tráfego e dos gases de escape, tem bons ares, serve simultaneamente de residência secundária nos poucos momentos de ócio que a coisa pública me deixa.

Outra certificação importante é a relativa a esquecimentos de entregas das declarações de IRS, uma virose política com alguma frequência e sinistralidade. Neste caso, o cenário certificador ideal será o ministro, ao ser indigitado, ser entrevistado em plena função de arrumador de automóveis. Enquanto o indigitado ministro vai gesticulando desnecessariamente para um automobilista arreliado pela insistência daquela figura esquálida, explica ao jornalista:

- Preparei-me longamente para este cargo político para o qual acabo de ser indigitado. Há bem mais de 5 anos, prazo de prescrição das obrigações fiscais, que eu exerço em permanência o mister de arrumador. Para além da certificação necessária, esta actividade tem-me permitido uma relação mais íntima com a população e com o país real. Esta actividade exige enorme perseverança e capacidade de enfrentar a incompreensão e rejeição do público cuja causa servimos com tão dedicada devoção patriótica. A arenga política, treinei-a nas diatribes que lanço ao pessoal que se escusa ao óbolo. Este gesticular desenvolve o meu gesto como elemento dramatizador da oratória e serve-me de ensaio para as minhas posturas nos comícios. Tenho as certificações, as imunidades e as qualificações que o país exige de mim nesta hora crucial para o nosso futuro. É apenas o tempo de fazer a barba, tomar finalmente um banho e estarei apto para a tomada de posse.

Nestes tempos de impiedade e corrupção, onde nem os sacerdotes estão ao abrigo das viroses políticas e onde a vida pública e privada dos detentores de cargos políticos é escrutinada e devassada ao mais recôndito e íntimo pormenor, temos que procurar formas inovadoras e seguras de recrutar gente para preencher os cargos públicos. Nem a mais leve sombra de suspeição pode recair sobre essa gente. Nem uma factura de almoço sem o necessário suporte documental do pagamento pelo próprio. Neste caso, e para evitar distracções fatais, aconselha-se quem tenha projectos de vida política a comprar uma marmita e a trazê-la consigo, em permanência e cheia.

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janeiro 12, 2004

Mensageiros e Jornalistas

Uma prática corrente nos despotismos orientais era o monarca mandar decapitar o mensageiro portador de más notícias ou, pelo menos, notícias que lhe desagradavam: as suas hostes terem sido desfeiteadas numa batalha; ter eclodido uma insurreição tumultuosa numa província distante; a fuga misteriosa de uma azémola com os alforges carregados com a colecta de impostos; uma concubina mais voluptuosa ter sido apanhada em teres e haveres de carne com algum musculoso capitão dos janízaros, etc., etc..

Actualmente, e sempre que censurados por políticos, ou por outros sectores da sociedade civil, pelo conteúdo e forma das notícias que propalam, os jornalistas aparecem a protagonizarem-se, a si próprios, como os mensageiros dessas épocas despóticas face à sanguinária ambição de lhes verem as cabeças separadas dos troncos. Cada vez que surge uma crítica sobre o excesso de algumas notícias, sobre a eventualidade de estarem, desnecessariamente, a invadir a privacidade ou a menoscabar o direito ao bom nome de alguém, os jornalistas, pressurosos, em coro, clamam que o que querem é matar o mensageiro, pois eles não passam de mensageiros, que quem critica o estilo noticioso não é senão um aprendiz de déspota oriental, uma aberração do passado que resistiu à voracidade do tempo e que aparece agora em pleno século XXI, pulverulento, com o bolor dos séculos, a reproduzir costumes de épocas bárbaras.

Julgo que os senhores jornalistas exageram nessa comparação. Se, por absurdo, ela fosse verídica, todo o pessoal da TVI já estaria decapitado. Todas as noites, no horário nobre, qual Hidra de Lerna, Manuela Moura Guedes seria decapitada pelo sujeito da notícia, em travesti de Hércules. Mais macabro ainda - seria decapitada dezenas de vezes por noticiário. Haveria uma fila de Hércules à porta dos estúdios da TVI, à espera de vez (*). E o mesmo aconteceria, com maior ou menor carnificina, com os outros operadores de televisão. Não haveria lanças suficientes para enfeitar com tanta cabeça!

Quanto aos jornais, a chacina seria enorme. Nem quero pensar no que sucederia ao Expresso, esse respeitável semanário, com a cabeça do J A Lima a ser cortada semanalmente durante a fase mais mediática do processo do Caso Moderna. A própria Clara Pinto Correia, por muito que alegasse que apenas traduzia mensagens do New Yorker, veria a sua delicada cabeça ser separada do tronco e o algoz mostrá-la, triunfalmente, à populaça reunida ao redor do patíbulo.

Não, meus caros senhores jornalistas: os costumes actuais estão muito distantes dos dessas épocas bárbaras. Não asseguro se melhores, se piores, mas são, seguramente, diferentes.

Mas mesmo nessas épocas os mensageiros de então não poderiam ser equiparados aos jornalistas actuais.

Os mensageiros dessas épocas apareciam rastejando aos pés do soberano e balbuciavam, com voz tremente e suplicante, uma versão sucinta e favorecida do desastre. Depois eram escoltados até ao terreiro público onde o algoz, sob o rufar dos tambores, procedia à execução com todo o ritual da época. Decorria tudo com o máximo profissionalismo e respeito pelo direito consuetudinário.

Um jornalista actual surgiria pletórico de prosápia e descreveria a infausta ocorrência com a máxima acutilância e levando ao requinte a descrição dos pormenores mais sanguinolentos, sádicos e macabros, como é habitual nos horários nobres das TV’s. Esse jornalista dificilmente passaria da segunda frase, pois o próprio sultão, por muita indolência contraída pelo longo e fastidioso exercício do cargo, teria alento suficiente para puxar da sua cimitarra e, num golpe rápido e faiscante, decapitar logo ali o verboso jornalista. O déspota oriental não ordenaria a sua execução, antes liquidá-lo-ia imediatamente, de preferência ao incómodo de continuar a assistir à sanguinária descrição. Não lhe daria o tratamento de favor do imponente ritual de uma execução pública.

A menos que o sultão tivesse um comando à distância que apagasse o mensageiro e fizesse o zapping da imagem para o Canal Hollywood, People & Arts ou Discovery.

(*) Não é seguro que o Departamento de Marketing da TVI não se entusiasme com esta ideia e a ponha em prática, afim de aumentar as audiências e recolocar a TVI no primeiro lugar do share.

Nesse caso aviso que tenho o direito de cobrar uma quantia apropriada ao êxito da iniciativa.

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dezembro 28, 2003

Portugal é um sítio

Portugal não tem condições subjectivas para ter forças armadas, forças para-militares, forças de segurança, etc., etc.. Tem condições objectivas, visto precisar delas. Um sítio (estou com dificuldade em lhe chamar país) com uma zona marítima tão extensa, na encruzilhada dos caminhos entre o velho e o novo mundo, entre o oriente e o ocidente, deve ter forças armadas. Um sítio (continuo com dificuldade em lhe chamar país) que quer ter estabilidade social e uma economia desenvolvida tem que ter forças de segurança, pois não é possível actividade económica sem garantias de estabilidade, ordem e salvaguarda da propriedade e dos bens de cada um.

O que não existem entre nós são as condições subjectivas para suportar essas forças porquanto quando há necessidade de lhes comprar equipamentos e meios, e de orçamentar verbas para lhes pagar os vencimentos, meios de comunicação, comentadores e blogosferenses questionam acintosamente a prioridade de lhes outorgar verbas tão avultadas; quando, em contrapartida, face a ocorrências dramáticas, elas mostram as suas deficiências e carências, os mesmos meios de comunicação, comentadores e blogosferenses riem-se e troçam dessas deficiências e incapacidades. Como têm septos nos cérebros e as informações não circulam entre os diversos compartimentos da massa encefálica, não discernem o nexo de causalidade entre aquelas duas situações.

O caso da ida dos 120 GNR para o Iraque é o mais recente exemplo de como o sítio em que vivemos não tem condições subjectivas para suportar tamanho desafio.

Nas vésperas da GNR ir para o Iraque foi assinado um protocolo estabelecendo as condições em que a GNR operaria no Iraque. Nesse texto está tudo previsto, desde quem fornece a comida e os combustíveis até às condições em que se pode disparar a matar. E prevendo-se, por exemplo, que os militares portugueses gozem de imunidade perante as leis iraquianas.

Nas negociações, Portugal foi representado pelo adido militar em Londres, comandante Augusto Ezequiel, o homem que a comunicação social glorificou como exemplo de competência, rigor e capacidade de previsão (enfim … tudo o que escasseia no nosso sítio) durante o caso «Prestige».

Portugal e os oito países signatários do protocolo com o governo britânico colocaram diversas condições. O Ministério da Administração Interna português impôs que Portugal não faria nada contrário à Constituição portuguesa e às leis internacionais, indicando que só aceitava participar se actuassem apenas em missões de estabilização da ordem pública, protecção das populações e formação da polícia iraquiana.

Esse protocolo confidencial, aparentemente inócuo, teve ultimamente desenvolvimentos surpreendentes (bem … surpreendentes se Portugal fosse um país … mas tratando-se de um sítio …):

1 – Veio-se a saber. Era inevitável. Não é por termos jornalistas mais argutos. Foi apenas porque em Portugal os detentores de cargos da administração pública, ou parte significativa deles, não sentem quaisquer pruridos em contar aos jornalistas tudo o que lhes apraz, para satisfazerem vinganças mesquinhas, pessoais ou políticas, ou apenas a sua sede de protagonismo. Basta ver como os despachos e autos cobertos pelo segredo de justiça são conhecidos na íntegra ou em partes importantes, cá fora, ainda antes que os interessados deles tenham conhecimento. No nosso sítio a confidencialidade vende-se por um prato de lentilhas.
A próxima vez que alguma potência estrangeira assinar protocolos confidenciais com outros países e nesse grupo estiver incluído o nosso sítio, haverá 2 protocolos: um confidencial, onde nós não estaremos incluídos por manifesta incapacidade de mantermos a boca calada, e outro público, apenas assinado por nós.

2 – Os meios de comunicação, comentadores, etc. surpreendem-se estupefactos perante a extrema minúcia com que direitos, deveres, procedimentos, logística, etc., estão descritos e previstos. Trata-se evidentemente de uma circunstância altamente suspeita. No nosso sítio não suportamos semelhantes equívocos. Quando enviamos pessoal, ele vai ao “Deus dará”, como foi o caso dos jornalistas que invadiram no Iraque no encalço dos GNR. É pois natural que jornalistas e políticos fiquem desconfiados perante a alegada necessidade de tais minúcias e planeamentos e vejam com um olhar de sofisma o documento “confidencial”.

3 – O memorando foi assinado pelo Ministério da Administração Interna do Governo de Portugal pois, segundo os meios de comunicação, as divergências entre Durão Barroso e Jorge Sampaio sobre esta matéria impediram que Portugal aparecesse referenciado como um Estado, tal como surgem os oito países que assinaram conjuntamente o acordo em Inglaterra. É certo que este documento foi assinado a 6 de Outubro e a resolução 1511 da ONU é apenas de 16 de Outubro. É certo que Sampaio diz coisas divergentes dependendo do sítio onde fala: em Lisboa comove-se com a dedicação e competência dos heróicos 120 GNR’s enviados para o Iraque, em Argel refere-os como força intoleravelmente opressora, em Londres … bem, em Londres ainda não se sabe. Tudo isso é certo. Todavia, julgo que as verdadeiras razões de Portugal não ter sido “referenciado como um Estado” resultam obviamente de Portugal, como todo este caso exemplarmente demonstra, não ser um Estado, mas apenas um sítio.

4 – E tratando-se de um sítio, não há que estranhar não termos políticos com sentido de Estado. Temos, no máximo, políticos com sentido de sítio. Sampaio foi o que se viu - mudou de sítio ... mudou de discurso. Ana Gomes, ao declarar que o protocolo é “totalmente incompatível com a Constituição portuguesa e com o direito internacional a que Portugal está obrigado”, referindo a ida da GNR para o Iraque como a “participação portuguesa numa guerra” mostra que não leu, não percebeu ou não quis perceber o protocolo, a resolução 1511 da ONU, a indicação que se tratava de uma “força de manutenção da paz”, o manual de procedimentos para políticos com sentido de Estado, o manual de boas maneiras, enfim … qualquer texto posterior ao último discurso político do Grande Educador do Proletariado Arnaldo de Matos.


P.S. E nem quero referir o drama horrendo da falta do bacalhau que se vive nas cozinhas do valoroso contingente da GNR. Portugal tem-se comovido às lágrimas com a pungente tragédia glosada, em diversos tons e métricas, pelos nossos jornalistas. A GNR desmuniciada de bacalhau é presa fácil nas areias escaldantes que marginam o Eufrates. A carência do bacalhau desmoraliza os ânimos mais intrépidos, faz “fraca a forte gente”. É uma situação patética e aviltante que tem que ser superada com o pundonor que nunca escasseou na alma lusa quando estão em causa os imortais símbolos pátrios. Portugal, o nosso sítio, tem que se mobilizar para enviar bacalhau para aquelas terras inóspitas, esquecidas de Deus e do bacalhau. Podemos falhar como Estado, como país … mas como sítio amante do bacalhau não falharemos!

Já metemos uma lança em África … havemos de meter um fardo de bacalhau na Ásia!

Publicado por Joana às 07:47 PM | Comentários (20) | TrackBack

dezembro 19, 2003

Como fazer dinheiro sem ser na Bolsa

O Samuel era um comerciante judeu, probo, de cabedais sólidos, bem conceituado na praça.
Um dia, de manhã cedo, a caminho da sua loja, o seu olhar caiu casualmente num anel que refulgia, abandonado à sua sorte, no empedrado da calçada. Circunvagou prudentemente o olhar, a ver se algum transeunte o estaria a observar, ou pudesse ser o dono daquela preciosidade e, em face da rua deserta àquela hora tão matinal, baixou-se, apanhou o anel e guardou-o.

Ao fim da tarde, quando descia os taipais e se aprestava para regressar a casa, deu de caras com o Isaac, um outro abastado judeu que tinha uma loja ao lado, e não pôde deixar de lhe dizer:
- Encontrei este anel. É belíssimo e vou oferecê-lo à Rebeca (o Samuel, para além de honesto comerciante, era um marido amantíssimo)
O Isaac observou o anel e inquiriu:

- Sabes, eu ando há semanas para oferecer qualquer coisa à Ruth (o Isaac, para além de honesto comerciante, era também um marido amantíssimo). Compro-te o anel por 200€.
A oferta era tentadora. Afinal era um anel encontrado ao acaso do trânsito. O Samuel aceitou e vendeu o anel.
Quando chegou a casa, contou a história à Rebeca, sem referir obviamente a sua intenção inicial de lhe oferecer o anel (mesmo nos melhores casamentos é imprudente contar-se tudo ao cônjuge). Enalteceu apenas o negócio que fizera. Mas a Rebeca, perspicaz, contrapôs:
- O Isaac é um negociante muito vivo e deve ter-te enganado. Esse anel vale certamente muito mais. Tu devias reavê-lo.
O Samuel nem dormiu com a tranquilidade habitual. Assim que de manhãzinha chegou à loja, foi ter com o Isaac e propôs-se comprar-lhe o anel. Falou no desgosto da Rebeca, na iminência de um processo de divórcio, etc.. O Isaac regateou, mas acabaram por se entenderem e a transacção fez-se por 250€.
Quando chegou a casa o Isaac disse para a Ruth:
- Hoje ganhei 50€. Revendi o anel ao Samuel.
Mas a Ruth, que também era perspicaz, retorquiu:
- O Samuel enganou-te. Há qualquer coisa com o anel. Esse anel vale certamente mais. Tens que reavê-lo.
Essa noite foi a vez do Isaac ficar com insónias. No dia seguinte novo regateio e nova transacção. O Isaac comprou o anel por 300€.
Não contava porém com a Rebeca. Nessa noite a Rebeca encheu os ouvidos do Samuel sobre a evidência do negócio chorudo que o Isaac fizera.
No dia seguinte, nova transacção: O Samuel comprou o anel ao Isaac por 350€.
E as desconfianças continuaram e as transacções prosseguiram:
No 5º dia o Isaac comprou o anel ao Samuel por 400€.
No 6º dia o Samuel comprou o anel ao Isaac por 450€.
No 7º dia o Isaac comprou o anel ao Samuel por 500€.
No 8º dia o Samuel comprou o anel ao Isaac por 550€.
E todos os dias um deles saía feliz da transacção com um ganho de 50€, até que o debate com a respectiva mulher lhe fazia ver que poderia ganhar mais ainda.
Estas transacções prosseguiram, até que, no enésimo dia, quem era então o detentor do anel, perdeu-o. Ainda hoje não sabe como tal infortúnio lhe pôde ter acontecido.

Nesse dia, como de costume, o outro comerciante veio ter com ele e, resolutamente, propôs-se comprar o anel outra vez. Fez-se um silêncio de chumbo. O que tinha perdido o anel balbuciou, entre dentes:
- Sabes ... perdi-o
O outro ficou desesperado, e revoltado, gesticulando ameaçadoramente, invectivou-o:
- Como? Perdeste o anel? Tu perdeste o nosso ganha pão?!

E ambos se abraçaram comovidos. Tinha sido um rude golpe comercial. Todos os dias, alternadamente o Samuel e o Isaac, um deles ganhava 50€. Era um ganho seguro e sólido, e a desventura do destino tinha-lhes retirado essa fonte de rendimento.

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dezembro 17, 2003

Teses e Antíteses

O meu artigo “Nós e a nossa Negação” causou um frémito de emoção e desconforto em alguns dos meus leitores.

Alguns sentiram-se, de albornoz e turbante, transplantados para longe, nas cálidas e tranquilas noites do deserto Sírio, recolhidos nas tendas, à luz bruxuleante de uma lamparina, entretidos em fabricar, com uma paciência bem oriental, engenhos artesanais, na esperança longínqua, mas persistente, de os atirarem para debaixo de uma coluna de blindados yankees, enquanto lá fora a cáfila de camelos, que apascentavam, remoía, beiços descaídos e baba pendente, os míseros cardos que haviam colhido. De tempos a tempos o silêncio do deserto era alvorotado pelo espirrar convulsivo dos camelos, vítimas de uma persistente rinite alérgica, provocada pelo cheiro dos plásticos e restantes aditivos explosivos, e impacientes que alguém lhes comprasse um vaso constritor, em tamanho familiar, para lhes assegurar algum alívio.

Outros acorreram, céleres, a alugarem o filme de Oliver Stone sobre Fidel, “Fidel Castro - El commandante”, para se reconciliarem com o Fidel e os havanos, e para ouvirem, para seu refrigério, que "em 43 anos de revolução cubana não houve um único acto de tortura". Que consolação arrebatadora ver aquele encadeamento de planos cheios de ritmo, filmado com quatro câmaras em simultâneo! As respostas eram curtas e superficiais, mas reconfortantes.

Os mais fatalistas, cientes da irreversibilidade do destino e da ubiquidade do profeta, encetaram uma melopeia triste e pungente, entoando surahs, versículos corânicos, enquanto pensavam como iriam cumprir os ditames da Shari’a.

Mas houve também quem ficasse indignado por associações, alegadamente contra-natura, que eu teria insinuado. A esses, Joerg Haider, e garanto que não lhe pedi nada, encarregou-se de responder, ao declarar ontem que é «difícil escolher entre Bush e Saddam». «Ambos violaram o direito internacional, e ambos agiram contra os direitos humanos»

E todavia, o meu pensamento era claro. Quem nos nega, faz parte de nós. É importante para nós. É necessário ao nosso aperfeiçoamento. E quando escrevo “nosso” refiro-me aos “nós” e aos “não-nós”.

Toda a ideia tem três momentos: num primeiro momento, apresenta-se a si própria (a tese); num segundo momento, opõe-se a si mesma (a antítese); e, finalmente, regressa a si mesma superando tese e antítese (a síntese). Como então escrevi, “Hegel e Marx concordaram nisso. Quem sou eu para discordar”. E acrescentei que “é neste exercício de tentar manter e tentar destruir, que reside o segredo do nosso aperfeiçoamento, da nossa prosperidade. Construímo-nos a nós próprios lutando contra os factores da nossa destruição. Adestrámo-nos na superação dos factores de aniquilamento”.

A evolução da nossa sociedade precisa desses germes de aniquilamento. Os movimentos milenaristas que ameaçaram a sociedade feudal com insurreições sucessivas, pretendiam destruir essa sociedade, mas não tinham nada de concreto a oferecer, para além de quimeras utópicas. Todavia, embora vencidos, a sua luta ajudou ao aperfeiçoamento dessa sociedade e ao aparecimento de forças mais consistentes, capazes de liderar esse aperfeiçoamento e posterior transformação.

O sistema capitalista saído do casulo feudal como libertação das coacções económicas e sociais do Ancien régime, tornou-se rapidamente um dos regimes mais desprezados e criticados da história da humanidade. Todo o século XIX está repleto de movimentos que rejeitam e desprezam esse sistema – fourieristas, falansteristas, anarquistas, sindicalistas, comunistas. No século XX também a extrema direita, nazis e fascistas atacaram a plutocracia. A fúria purificadora de destruição do sistema capitalista foi alimentada por inúmeras correntes, conheceu muitas vicissitudes e tem-se metamorfoseado à medida que os seus conceitos têm sido invalidados pela história e pela prática.

O que há de interessante é que são precisamente os que vivem no sistema capitalista que o vituperam. Dizem que capitalismo gera pobreza e exclusão social. Ora, ao contrário, nunca nenhum sistema teve tanta preocupação com os desfavorecidos. Nunca se fizeram tantas leis, organizações e esforços para combater a pobreza e a exclusão. Foi o regime capitalista, desde que funcione de acordo com as suas concepções teóricas, que retirou as populações da situação de carência extrema em que viviam desde sempre. Hoje, só existe miséria generalizada nos países onde, por razões variadas, o sistema capitalista não funciona, ou apenas existe um arremedo ao arrepio das suas bases teóricas de funcionamento.

O sistema capitalista vigente nos países ocidentais não cria desigualdade e injustiça. A disparidade de níveis de vida, que era abissal em todos os outros sistemas, viu-se mitigada, justamente, em virtude da liberdade económica e política em que vivemos. O sistema capitalista vigente nos países ocidentais criou a classe média, que hoje constitui a esmagadora maioria das nossas sociedades e que é a base da nossa prosperidade. A grande fonte de prosperidade, tolerância e liberdade do Ocidente é a existência dessa numerosa classe média. É ela a base da democracia e do estabelecimento de consensos sociais. A disparidade actual é entre países capitalistas e não capitalistas, pois a sociedade capitalista é a mais igualitária de sempre.

É evidente que há instabilidade e alternâncias de euforia e recessão. Que a necessidade de manter a economia competitiva, para assegurar a prosperidade social, implica reajustamentos, falências, despedimentos dos menos qualificados ou com a qualificação errada. Mas, apesar de tudo isso, o capitalismo é melhor que qualquer outra alternativa que a humanidade conheceu até hoje.

E é a melhor porque tem sabido aperfeiçoar-se, ao defender-se dos seus germes de destruição. E soube-se defender conseguindo manter os mecanismos de mercado e a liberalização da vida económica, indispensáveis ao aumento da sua prosperidade e mitigar, simultaneamente, o darwinismo social que esses mecanismos provocavam.

Mas esse aperfeiçoamento tem exigido, e continuará a exigir, que ele seja criticado, que os seus germes de destruição continuem activos. Todavia, é a própria lógica de funcionamento do sistema, a sua tolerância, a sua liberdade, que permite a actividade desses forças de destruição. Isto é, a própria lógica do funcionamento capitalista cria as condições do seu próprio aperfeiçoamento.

Para Hegel existe uma "astúcia da razão", que utiliza a humanidade, imbuída que está, regra geral, da sede do poder, da glória, da ambição, da justiça social, para através destes objectivos, uns egoístas, outros altruistas, trazer para a humanidade uma liberdade maior, um estado superior de civilização. Hegel foi o filósofo do liberalismo triunfante, assim como Adam Smith, o economista do capitalismo nascente. A “mão invisível” que gera, independentemente das vontades de cada um dos agentes económicos, equilíbrios nos mercados dos bens e do trabalho, tem algo a ver com a "astúcia da razão" que faz com que haja o aperfeiçoamento do espírito e da sociedade a caminho de uma liberdade cada vez mais plena.

Sabe-se que Marx criticou a concepção de Hegel sobre o motor daquela transformação, que em Hegel seria a Ideia, a Razão, e em Marx as forças produtivas e as relações de produção. Mas não vou repetir o que escrevi atrás, no artigo “Hegel e Marx”.

Portanto, a todos os que ficaram irritados pelo facto de se sentirem incluídos em algumas das categorias que eu estabeleci no artigo “Nós e a nossa negação”, venho aqui trazer uma (muitas!) palavra abonatória. Vocês são uma porção imprescindível do todo que somos “Nós e a nossa negação”, porção igualmente indispensável ao aperfeiçoamento de todos nós e da nossa sociedade.

Sem vocês, o sistema cairia, pouco a pouco, no marasmo, sem incentivos para se aperfeiçoar.

Em nome da Sociedade Ocidental, os meus agradecimentos.

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novembro 22, 2003

As Vacas Sagradas

A nossa agricultura está estagnada. A nossa pecuária vai sobrevivendo precariamente. Mas há uma espécie que tem proliferado de forma inusitada no nosso país: a espécie das Vacas Sagradas.

Contrariamente ao humilde e dessacralizado gado bovino, que rumina pelos campos, as Vacas Sagradas são uma espécie urbana cuja manjedoura é a comunicação social que a alimenta a opíparas rações de artigos de opinião, entrevistas, declarações, proclamações, elegias, ditirambos, odes, soluços, etc., etc..

Enquanto que nas outras espécies, o Criador providenciou que o acto de geração fosse acompanhado de um intenso prazer, para incentivar a procriação, as Vacas Sagradas geram-se num acto de desprazer. Uma crítica, uma insistência na necessidade de melhoria do desempenho, em suma, qualquer pretensão de melhorar, mudar qualquer coisa, expressa publicamente, que cause desprazer num dado segmento social, torna-o uma Vaca Sagrada.

Se um ministro refere que os bombeiros não têm formação adequada para combater os incêndios florestais, os bombeiros tornam-se, por geração imediata num acto de desprazer, Vacas Sagradas, mesmo que estudos de consultores estrangeiros venham confirmar as palavras do ministro. As Vacas Sagradas geram-se apenas com sémen nacional.

O ICN, que alberga as mais sábias incompetências em matéria de conservação da natureza, sábias porque leram os livros e revistas de outras sábias incompetências, incompetentes, porque só conhecem a natureza que vem naqueles livros, tornou-se uma Vaca Sagrada logo que se falou na possibilidade das suas (in)competências transitarem para outro ministério.

Cada vez que se fala em reformar a administração pública, em estabelecer procedimentos para melhorar o seu desempenho, a administração pública como um todo, ou o segmento em causa, torna-se imediatamente uma Vaca Sagrada.

Às vezes ocorrem conflitos entre Vacas Sagradas. A justiça e a magistratura constituíam Vacas Sagradas. Mas também as virtudes de Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso eram Vacas Sagradas para os próprios e para os seus apoiantes mais dilectos. O processo da Casa Pia tem feito com que estas Vacas Sagradas se tentem dessacralizar mutuamente. É uma refrega de resultados ainda imprevisíveis.

O que surpreende mais na procriação desta espécie é que, historicamente, décadas sucessivas, era a esquerda que fazia o papel de iconoclasta e a direita que gerava e apascentava as Vacas Sagradas. Porém, na actualidade, nas últimas décadas, a principal e única geradora de Vacas Sagradas é a esquerda, a esquerda alegadamente “radical”. A esquerda passou da iconoclasia à iconolatria. A esquerda iconólatra apenas se mantém esquerda no sentido geométrico do termo. Politicamente tornou-se conservadora. Como reconhecia, há dias, o Barnabé, “a esquerda nem sempre consegue … abandonar a sua arqueologia”. Portanto, a própria esquerda, a esquerda que existe presentemente, reconhece que está em risco de se tornar numa peça do museu das ideologias.

Actualmente a Vaca Sagrada de tetas mais úberes que retouça pelos prados da comunicação social, é o inefável Boaventura Sousa Santos, cujas regurgitações fazem as delícias dos adoradores desta espécie.

Sob o ruminar desta ubérrima Vaca Sagrada têm proliferado vacas menos evidentes mas que se sacralizam imediatamente na primeira oportunidade. São as milhares de organizações constituídas por “democratas participativos”, que se afadigam e desdobram (eles são em menor número que as suas organizações) na manutenção e visibilidade pública dessas inúmeras organizações.

A sacralização destas vacas tem um ritual próprio. Por postulado que teorizaram, elas protagonizam a participação dos cidadãos na vida pública. São elas próprias que postularam para si a representação dos 99,99% da população que as desconhecem mas que, pelos postulados dessa teoria revelada, não podem ser representados por aqueles em quem votaram, pois enganam-se sempre ao votarem. Os únicos que estão certos são, por definição, os “democratas participativos”.

Também nestes casos, qualquer dúvida que se emita sobre a representatividade destas organizações, sobre a consistência das afirmações que produzem, sobre o porquê da perenidade das suas chefias, sobre a inexistência de democracia interna, produz um acto de desprazer tão intensamente repulsivo, que torna essas organizações, imediatamente, em Vacas Sagradas.

Na Índia, as vacas sagradas quando se deitam nas rodovias ou nas ferrovias, impedem o tráfego. As Vacas Sagradas portuguesas impedem o progresso. Não têm a visibilidade ridícula de uma vaca indiana espojada nos carris ferroviários, mas têm o insustentável peso da “arqueologia” ideológica.

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outubro 23, 2003

O Oráculo de Belém

Nos tempos heróicos, a Pitonisa de Delfos, posta em transe pelos vapores telúricos, talvez com a mesma essência básica do suave aroma acanelado dos pastéis de Belém, debitava frases que serviam de referência a políticos, generais, mercadores de azeite, pastores e até a atletas que demandavam os Jogos Olímpicos, psicologicamente carenciados. A sua reputação era célebre. Os meios de comunicação da época asseguram que salvou a Grécia quando, instada por um Temístocles temeroso perante a inumerável hoste persa, o avisou para confiar nas suas muralhas de madeira.

Nem todos reverenciavam esta figura pública. O arconte de uma ilha perdida nos confins do Egeu apelidava aquelas alocuções de … banalidades. Mas tratava-se de um bárbaro ignaro, que vivia a expensas do tesouro da anfictionia e cuja proximidade da Ásia lhe dava mais a aparência de um sátrapa do que a de um dirigente de uma pólis.

Em Belém também se instalou uma pitonisa que, sobre os grandes (e pequenos) temas da política nacional, emite proposições que nunca são decifráveis em menos de 50 ou 100 interpretações diferentes e contraditórias. É uma pitonisa filosoficamente mais avançada, pois contém em si todos os momentos da dialéctica hegeliana (teses, antíteses, a afirmação e a sua negação) excepto as sínteses.

Felizmente para Temístocles, as difíceis comunicações da época impediram-no de demandar Belém, senão nunca teria havido Salamina e a história teria sido dramaticamente diferente. A trirreme de Temístocles estaria algures no Mediterrâneo, navegando em círculos, com os soldados no convés gritando teorias todas diferentes e contraditórias sobre a rota a traçar e, na coberta, a chusma de remadores, num alarido infernal, agitando perigosamente os remos e discutindo com o homem do tambor sobre o ritmo e direcção das remadas.

Sucede que surgem de repente, inopinadamente, frases com significado. Sampaio sentencia que houve uma “criminosa e despudorada violação do segredo de Justiça”. A frase em si continua banal. Há muitos meses que há criminosas e despudoradas violações do segredo de Justiça. A frase é banal, porque se refere a um assunto que a falta de ética de uma sociedade banalizou.

O que não é banal na frase é o PR a lançar apenas agora. Então o PR não tem convivido com violações do segredo de justiça nestes últimos meses? Então o PR, nos dias que antecederam a detenção de Paulo Pedroso, não soube de factos que eram, em si mesmo, uma violação do segredo de justiça? Foi apenas agora, que o seu nome aparece, embora indirectamente, envolvido, e a pressão sobre os seus amigos políticos se acentua dramaticamente, que o PR profere aquela frase?

No exercício das suas funções, o Presidente da República está, como referiu, “na posição singular de ter direito a toda a informação necessária e legítima e de, nessa posição, se relacionar com todos os órgãos do Estado e seus titulares”. Mas será legítimo receber informação que está sob segredo de justiça? E tê-la-á recebido?

O PR não esclareceu estas questões, nem o seu papel de oráculo da Grécia Clássica nos levaria a supor que ele o faria, mas carreou munições para a abertura da caça ao PGR.

O primeiro caçador que se lançou em campo foi o Bastonário da Ordem dos Advogados. O primeiro tiro foi … no pé. Infelicidades do dia da abertura da caça, ainda sem se ter traquejo nem treino. Aparecer agora a vituperar as escutas quando elas o indiciam como tendo "omitido" a sua alegada conversa com António Costa é de uma grande hipocrisia e de uma enorme fragilidade argumentativa, que mesmo a sua posição de bastonário não terá peso suficiente para resistir à contradita se a comunicação social quiser pegar no assunto.

E sabe-se como a comunicação social gosta de cozinhar em fogo lento aqueles que lhe caiem sob a alçada.

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outubro 10, 2003

JAL, … perdão … a teus pés!

José António Lima, quem está a teus pés, implorando perdão, é a Joana, relapsa e contumaz, que te referiu como “o paradigma de um homem azedo, amargurado e sem sentido de ética”, que insinuou que quando, além do teu actual corrector ortográfico, te instalarem um corrector de ideias … “não sei o que vai acontecer … provavelmente, teremos que passar sem o JAL”, que … e …eu sei lá!

JAL, alguém, incredulo, pôs ultimamente a correr que eu, inclusivamente, te punha “os cornos”. Se o fiz, JAL, desde já te afirmo que foi sem intenção. Pelo menos sem boa intenção! Também dessa imperdoável colocação (refiro-me aos “cornos”) te suplico o perdão.

Mas JAL, abri agora o teu sítio do Senado e tu não merecias isto! Está intransitável ... são montes de preservativos espalhados por tudo quanto é sítio, e fui eu, naquela série irreflectida de escritos, tenho que o reconhecer, que abri a Caixa de Pandora!

JAL, perdoa-me ter aberto essa caixa. E eu, que estava ingenuamente convencida que era apenas uma singela caixa onde a minha tetravó guardava as jóias da família. Mas não … era aquela caixa fatal!

E nada fazia prever tão catastrófico desenlace. Tinhas escrito um artigo sobre o Senado, lugar privilegiado onde os pares da república (ou do reino), as “venerandas figuras na reserva da Nação” (as da equipa principal foram jogar para o estrangeiro) discorrem e deliberam, com a nobreza que a sua proveniência e a excelência do cargo exigem, sobre problemas da maior importância para o país e para o mundo.

Depois de o escreveres, colocaste-o no Expresso online, esperando ansiosamente que os comentadores do fórum, cientes do superior problema que tinham entre mãos (ou entre teclas) o debatessem com a perspicácia e a elevação que o tema exigia e vertessem ideias capazes de figurarem na tua “bolsa de ideias” para futuras utilizações em situações de menor inspiração e sem ter Portas a jeito de malhar.

Mas, JAL … e permite que te dê um abraço comovido e partilhe contigo a dor que te trespassa a alma e dilacera o espírito, abrir o teu sítio do “Senado” e vê-lo pejado de preservativos é uma punhalada aleivosa e imerecida no teu ego e no agora menos que provável Senado da Nação. É uma lança celerada que trespassa uma carreira votada à formação e desinformação de várias gerações de portugueses. JAL! Tamanha quantidade de preservativos nem por detrás do sombrio arvoredo de Monsanto, nem no relvado mais recôndito do Parque Eduardo VII, nem em casa do embaixador ***, nem … em sítio algum!

JAL, eu sei que não acreditas em mim. Sei que me desmereci na credibilidade perante ti. Sei que quando o paquete da redacção for para Timor, serás tu que terás que ir passear a Besta à rua. Sei que te tenho envenenado a tua vida jornalística. Sei que tenho sido a tua Némesis! Sei isso tudo, JAL!

Mas JAL … é a teus pés, com o rosto lavado em lágrimas que, neste soluço comovido, protesto a minha inocência. JAL! Não tenho nada a ver com esta avalanche de preservativos que se abateu sobre o teu Senado. Estou inocente do teu infortúnio. Rogo-te que acredites. Nem um único preservativo arremessei para o teu Senado, nem diafragmas, nem pílulas, … nada!

E não apenas inocente. Partilho, do meu coração, a angústia que alanceia a tua alma e tortura a tua mente. Tens o meu ombro para chorares à vontade. Tens mesmo os dois ombros! Chora, JAL, quanto mais as lágrimas forem copiosas, melhor será o meu desempenho, logo à noite, no concurso de Miss T-Shirt molhada! Nestes momentos supremos, chorar alivia o espírito e lubrifica a função ocular. E sei que bem precisas de uma coisa e da outra, pois a tua visão política não tem andado nada bem.

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outubro 06, 2003

Estou perturbada

Fiquei perturbada. Vi a sessão dos “Prós e Contras” sobre o Casino de Lisboa e nunca mais me reencontrei. O meu ego, que tanta exaltação tem provocado, ficou espalhado pela sala, os meus conceitos dispersos e subvertidos. Socorrendo-me de Marx, estou em plena umwältzung!

Vi o Presidente da CML, que quando Secretário de Estado da Cultura confundia violinos com pianos e o Chopin sabe-se lá com quem, ser incensado até às lágrimas pelos mais distintos actores e actrizes da nossa terra, agradecendo-lhe penhorados e comovidos o projecto para um casino no Parque Mayer, como alavanca para uma revitalização sustentável das salas de espectáculo naquele antigo espaço lúdico lisboeta.

Ao seu lado, Assis Ferreira que, a ter em conta alguns textos do Expresso, seria o futuro sinistro representante, no coração de Lisboa, das tríades macaenses, essa figura nefasta, atrás do qual se perfilaria a sombra ominosa de Stanley Ho, era idolatrado pelos mesmos artistas, de olhos humedecidos por lágrimas rebeldes, como um mecenas empenhado na manutenção da vida teatral, dos seus empregos, enfim ... a sua tábua de salvação no desespero de uma actividade sem segurança nem compensação financeira. Pior! Era certificado como uma figura ímpar no panorama cultural português! Um desespero!

Ah! Como então segui a torrente argumentativa do Miguel Portas, as variações que ele foi executando sobre o tema do pecado do jogo, variações que começaram em ré e que, à medida que aumentava a hostilidade dos artistas da plateia (ó como compreendo ser o lugar dos artistas no palco e nunca na plateia!!), foram andando de nota em nota até acabar num perfeito dó, menos que sustenido. E reconheçamos quanto os artistas foram injustos, porquanto os argumentos do M Portas eram intelectualmente elevados e só não colheram porque os artistas estavam demasiado preocupados com as pequenas misérias deste mundo: exercer a sua profissão, pagar a renda de casa, comer um bife de quando em vez, ... enfim ... coisas materiais mesquinhas.

Estava siderada! Pois quê? Os artistas a beatificarem um play-boy de direita e um intelectual de esquerda a exorcizar o pecado? Estaria eu no Universo Anti-matéria?

Mas perder uma batalha não é perder a guerra e eu esperava, fremente de ansiedade, pelo último e definitivo argumento: o do espectro da abertura da Caixa de Pandora; e quem melhor para o brandir esse instrumento escatológico-cultural do que o Eduardo Prado Coelho, o paradigma do intelectual português, o elefante branco da nossa cultura.

Assim, esperei tranquilamente que EPC pusesse cobro a tal destempero. Já antegozava EPC chamar em seu, em nosso, auxílio Wedekind, Alban Berg, Pabst ,... dar-nos a dramática e telúrica visão de Lisboa, no último acto, subindo lentamente a escada, um punhal alvejando na sombra, e Lisboa, cambaleando, esvaindo-se estripada pelo infame Stanley Ho, em travesti de Assis Ferreira, num cenário claro escuro do expressionismo alemão (sim, eu sei que Pabst não era nem exactamente alemão, nem exactamente expressionista, mas o meu pretensiosismo não resiste a este arroubo linguistico).

E a cena terminar apoteoticamente com a entrada do Exército de Salvação, Santana Lopes escapulindo-se silenciosamente numa viela escura, ainda não recuperada pela DMCRU, Graça Dias a rufar os tambores e a distribuir sopa aos artistas e o Miguel Portas a glosar estrofes sobre os pecados do jogo e da agiotagem nos parques de estacionamento dos casinos. Estrofes legendadas apenas em alemão, para tranquilidade do nosso espírito e sossego da nossa mente.

Fora do alcance das câmaras, JA Lima esmolava junto dos transeuntes, para a meritória obra do Expresso, a de eliminar quem não está de acordo com as suas concepções político-culturais. As câmaras evitavam-no discretamente para que, nesse momento de suprema exaltação anti-pecaminosa, ninguém pudesse reparar que, com o azedume que o caracteriza,, quando algum transeunte recalcitrante não deixava cair o seu obulo no regaço do JAL, era objecto das mais tonitruantes sevícias verbais e escritas.

Mas quê, quando todos pensávamos sorver dos lábios do nosso elefante branco a salvação da nossa culturazinha, no momento supremo em que o nosso “intelectual way of life” estava à beira do abismo mais definitivo, sabe-se, por um descuido (seria?) lamentável de um daqueles artistas tresmalhados na plateia, que EPC também colaborava nos espectáculos de Assis Ferreira.

É verdade, EPC colocava todo o seu imenso talento, talento que todos nós lhe reconhecemos e ele o reconhece, mais que todos nós, ao serviço de Assis Ferreira, de Stanley Ho, do pecado, do jogo, da agiotagem, dos parques de estacionamento, dos arrumadores, das tríades de Macau em Lisboa. Pelo caminho um rasto de sangue: Lulu, Lisboa, os gatos vadios do Parque Mayer, as brisas transversais do Jardim Botânico, o nosso meio intelectual, tão pequenino, tão deliciosamente acanhado.

Fiquei desfeita e, como certamente se percebe, foi em estado de perfeita subversão conceptual que, com o único dedo que ainda me restou, teclei estas linhas.

J
Escrito em 23-12-2002

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outubro 04, 2003

P Portas e os Desportos Radicais

Portas, Barrancos e Desportos Radicais

Portas tem sido alcandorado, pela generalidade dos meios de comunicação, e pelos líderes de uma esquerda completamente vazia de ideias, em elemento imprescindível de qualquer governo, actual ou futuro.

A partir de agora, qualquer político, de qualquer quadrante, após um triunfo nas legislativas, com ou sem maioria absoluta, ponderará na necessidade de um “seguro” político, de uma providência cautelar contra a mais que certa contestação política: correrá a oferecer a Portas a pasta de Ministro de Estado com uma pasta adicional – Defesa, ou Juventude e Desportos, ou mesmo pastas inovadoras, como a Senectude e Bisca nos bancos de jardim, ou Cultura, Feiras, Romarias e música pimba, ou … … etc., etc. (qualquer serve).

Ter Portas no governo é sinónimo de tranquilidade para o restante elenco governativo e, principalmente, para o 1º Ministro. Portas é o “bouc émissaire” de todo o mal da governação: real, virtual, imaginado ou inventado.

Aproveitando as Festas de Barrancos sugere-se a nova teoria política do “Quite governativo”: o 1º Ministro deixa que se agite o capote (o Ministro Portas, já se vê) e a toirama (meios de comunicação e líderes da oposição, está claro!), raspando furiosamente os cascos no chão da arena política, investe, com a luminosa inteligência bovina, na direcção obsessiva do capote, enquanto o diestro (o 1º Ministro, como é evidente), após o passe, cumprimenta com uma vénia os aficcionados, olhando sobranceiro o percurso da alimária que sem um derrote, empurrada pela inércia da arremetida e pela baixa produção de ideias de um cérebro mais vocacionado para a omelete de mioleira, do que para conceptualizações políticas, que continua perseguindo uma realidade virtual e inexistente, até se enfeixar nas tábuas.

Reparo agora que estou a ser injusta para com a toirama. O toiro, após a lide, é conduzido ao seu destino final. A sua actuação foi a primeira e a última de uma curta e intensa carreira artística. Ninguém se atreveria a fazê-lo correr outra vez, não se desse o caso de ele se ter apercebido que deveria ter marrado, de preferência, no toureiro. São animais que aprendem com a experiência!

Enquanto isso, meios de comunicação e líderes da oposição são imunes a aprender com a experiência. Todavia, surpreende menos a falta de ideias do que a dureza do revestimento craniano. Depois de tantas arremetidas a finalizarem enfeixados nas tábuas, os nossos “artistas” da política e dos mídia revelam uma notável capacidade de regeneração do revestimento craniano. Então o José António Lima é notável!

Escrito em 1-Setembro-2003

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outubro 03, 2003

O adereço Ferro Rodrigues

Meios de comunicação escrevem que, segundo consta do processo “Casa Pia”, Ferro Rodrigues esteve presente em sessões pedófilas, mas não teve relações pedófilas.

O processo está, embora não pareça, em segredo de justiça. Como esse sigilo fatal me impede, a mim, desventurada mortal, sem ligações aos omniscientes meios políticos e da comunicação social, conhecer factualmente o porquê daquele aparente paradoxo, vou tentar, aqui, em diálogo com o meu teclado e sob o olhar circunspecto do meu monitor, deduzir razões sólidas que expliquem esta embrulhada.

Estaria como espectador? Não é possível. O horror público que Ferro Rodrigues manifestou por tais actos impedi-lo-ia de assistir a eles, por muito baratos que fossem os bilhetes e confortáveis as poltronas da plateia.

Seria como encenador? Como produtor? Como arrumador? Nunca, pois então estaria indiciado como acusado de lenocínio e sujeito a uma caução.

Então em que circunstâncias Ferro Rodrigues esteve presente? A resposta é liminar: apenas circunstâncias em que ele desempenhasse um papel absolutamente passivo.

Não restam assim dúvidas. A crer no que os meios de comunicação escrevem e no que alguns líderes socialistas temem, Ferro Rodrigues só poderia estar presente como adereço. Não há outra alternativa possível.

Mas que adereço? Um líder da principal força da Oposição não pode ser um adereço qualquer: um jarro com algumas flores murchas, um preservativo abandonado ao acaso da acção, um cigarro que aliciadoramente se estende a uma mão juvenil …

Ferro Rodrigues teria que ser um adereço com um protagonismo à altura do seu estatuto e que tivesse em conta os seus atributos físicos.

O adereço Ferro Rodrigues, com o protagonismo que a sua posição exige e a função que a sua carantonha impõe, só podia ter um uso: o de meter medo aos miúdos.

Está explicado: Ferro Rodrigues foi usado como adereço em sessões sado-masoquistas!

P.S. Comentário a mim própria:
Alguns dos que se derem ao trabalho de ler-me (incluindo eu própria!) poderão achar estas deduções pouco sólidas e porventura cruéis. Estamos no nosso direito. Todavia, depois de um fim de semana de manchetes do Expresso e do CM que violam a ética jornalística (se é que ela existe em Portugal), de sucessivas declarações fluidas do PGR e da “água metida” por alguns dirigentes socialistas, com declarações que são uma pressão inqualificável sobre a justiça e as testemunhas (na sua maioria menores), julgo que as minhas deduções não menoscabam a solidez e a crueldade com que esta questão está a ser tratada pelos meios de comunicação, pelo PGR e por alguns dirigentes socialistas.

26-05-2003 20:45:00

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outubro 02, 2003

Uma carreira política injustamente em risco!

Este fim de semana, após a leitura do Expresso, a minha carreira política, que me aprestava para encetar, ruiu fragorosa e irrevogavelmente, sem sequer ter começado.

Fiz uma análise retrospectiva a alguns momentos da minha vida e tenho de vos confessar que sou uma criminosa, pior, uma criminosa contumaz, relapsa!

Não foram, nem dois, mas vários almoços e jantares que, aproveitando-se da minha débil condição feminina e da minha inexperiência no mundo do crime, me foram pagos por outrem. Estiveram envolvidos nesta série de crimes hediondos empresas diversas, bancos (até o BEI ... ah! Aqueles jantares no Luxemburgo devem ter custado fortunas, mais do que a factura justamente denunciada esta 6ªfeira) e mesmo, pasmem!, uma ou outra autarquia (não!, não assaquem este crime ao Isaltino porque desta co-autoria está ele livre!).

Como fui trouxa! Mais que o Portas! Quando eu, no fim de cada uma daquelas malfadadas refeições, me aprestava para pagar a minha parte, havia sempre um cavalheiro solícito que, sorridente e peremptório, me dizia: nem pense nisso! Homessa! Tinha mais que ver!

E eu, sorridente, tomava aquilo por cavalheirismo, talvez algo anacrónico, quando afinal se tratava de uma manobra sórdida e funesta para comprometer o meu futuro político!

Reparem que é um crime que está ao alcance de qualquer um. Não é uma fraude apenas passível de ser realizada por um banqueiro, um patrão de indústria, um autarca, enfim!

Qualquer um de nós, à mais leve negligência, pode cometer este crime hediondo. Por não ser suficientemente rápida a chamar o empregado, já entrei, por diversas vezes, na delinquência, quando um comensal mais pressuroso se adianta e pede a conta.

No desespero de evitar resvalar para o crime, por duas ou três vezes, naqueles momentos de angústia, pisquei o olho ao empregado, mas ele interpretava mal o sinal e entregava a conta ao meu acompanhante e a mim, discretamente, um papel com um número de telefone.

O país tem que se mobilizar para resistir a esta criminalidade que invade o nosso país e corrói todo o tecido social.

Se um membro do governo sujeito a esta suspeita não se redime dela é o descalabro moral do país.

27-Abril-2003

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O Crepúsculo dos Zeuses

Obrigado Zeus! Sei que me fez o maior elogio de que é capaz! Extasiado pela minha “superior cultura”, como diz, não podendo conceber que o nível cultural não esteja total e directamente correlacionado com o nível de testosterona no sangue, olha-me com sublime admiração e exclama: És homem! Tens que ser homem!

Celeste Cardona, a mulher que com férrea determinação subiu a pulso na vida, arrisca-se, no próximo Congresso do PP, a ser interpelada pelo nosso Zeus, com a veneração que ela lhe merece: Cardono! Vieste hoje com traje escocês? O kilt vai-te lindamente! Esse padrão é de algum Imortal? E a Cardona a sorrir-lhe, embaraçada, com aquele arrepanhar de lábios que parece uma cãibra.

E Paulo Portas a levar um abraço, bem possante, e a ser-lhe sussurrado ao ouvido: Paulo, és o máximo! Como está a tua testosterona? Toma atenção, menino!

Porque Zeus, por detrás das novas tecnologias, nets, etc., no que respeita à condição feminina parou no tempo e no espaço em que as sécias, abanando nervosamente os leques, açafatadas nos canapés, chilreavam brejeirices em surdina enquanto os peraltas das redondezas glosavam algum mote galante. E Zeus, de rosto fechado e indiferente a galanteios, vaidoso na sua casaca enchouriçada na gola e fina de abas, com sapato de fivela de latão, areada tão a preceito que parecia de prata.

Lembra-se, Zeus, de acompanhar o Manique a inspeccionar as damas às portas dos templos, avaliando se a cava dianteira descobria o peito a mais, se as pregas da saia deixavam adivinhar a conjunção voluptuosa de qualquer perna e se a fímbria se erguia do solo mais de um ou dois palmos e consentia a ostentação do tornozelo acima dos sapatinhos. E confesse que deve ter ajudado à redacção da circular que intimava as modistas a “não confeiçoarem os trajes femininos com a concisão lacónica que os figurinos indicavam, e que fazia que muitas damas se apresentassem em pública quase nuas”. Tanto a visão dos nossos tornozelos alvejando por baixo da fímbria, lascivamente subida, intimidava o Intendente!

Mas o seu momento de glória aconteceu quando, ao saber que Mme Entremeuse, presa por suspeita de contrabando, se havia queixado com veemência ao camarista do príncipe regente, você lançou as bases de uma teoria alternativa dos caracteres sexuais secundários. Você foi então peremptório: Uma mulher não ousaria nunca tomar semelhante expediente! A vida do regente corre perigo! Não é uma mulher; é um homem!

E o Manique, para lhe sossegar a consciência, lá a mandou prender novamente e determinou que o corregedor do Bairro Alto, acompanhado de um escrivão e de um físico examinassem a recalcitrante francesa para certificar o seu sexo.

Como vê, Zeus, não foi a primeira vez que você aplicou os seus conceitos sobre os caracteres secundários de diferenciação sexual!

Mas onde Manique sobretudo o apreciava era nas paradas, no seu posto de sargento-mor, à frente dos ordenanças, uniforme coçado pelos anos, peruca desbotada ao vento, agitando o bicórneo, bradando, com o seu poderoso vozeirão, vivas ao trono e ao altar, e dardejando imprecações tonitruantes à pedreirada que começava a levantar a cabeça com as ideias que vinham da França. Quantas vezes Manique lhe havia elogiado a postura: portugueses desta têmpera, é o que precisamos!

Pois é Zeus, você, nestas matérias, já era um anacronismo no fim do século XVIII.

21-Abril-2003

Publicado por Joana às 08:41 PM | Comentários (3) | TrackBack