setembro 14, 2005

Katrina – Do Evento à Sequela

O Katrina vai entrar numa segunda fase. Menos mediática, mas mais sugestiva do ponto de vista económico, sociológico e político. Duas questões vão ser equacionadas: 1) A gestão da catástrofe do Katrina, ou de uma catástrofe em geral; 2) a gestão, a médio e longo prazo da reparação, ou recuperação, dos seus efeitos destrutivos. A primeira questão releva do papel do Estado (administrações federal e locais); a segunda do funcionamento da sociedade civil e do papel que as autoridades públicas pretenderem ter.

Cabe ao Estado a protecção e a defesa da sociedade. Este conceito está na génese da economia clássica (ou liberalismo económico, como depois foi apelidada) e ninguém o põe em dúvida. Sucede que, nos EUA, contrariamente à visão jacobina da Europa Continental, prevalece a tese que remonta ao pensamento dos Founding Fathers (Federalist Papers) «Como poderemos organizar as instituições políticas de forma a evitar que os governantes perniciosos ou incompetentes provoquem danos excessivos?», ou seja, a tese do check and check again, que procura controlar institucionalmente os governantes, contrabalançando os seus poderes com outros poderes – estaduais, locais e/ou judiciais, etc..

Este sistema permitiu que a revolução americana se fizesse de forma incruenta (exceptuando, como é óbvio, as baixas na guerra com a Inglaterra), respeitando o pensamento e a integridade física das diversas facções, enquanto que nas restantes revoluções tal não aconteceu, com especial relevo para a francesa, onde cada facção que subia ao poder exterminava as restantes. Esse sistema, profundamente sedimentado na sociedade americana, permitiu uma vida democrática activa e fecunda que ultrapassou as diversas vicissitudes a que esteve sujeita, sem nunca cair no totalitarismo ou na perversão dos seus valores, como aconteceu em quase todos os países europeus e por diversas vezes em cada um.

Ora essa descentralização dos EUA torna a América mais exposta às catástrofes ou a actos terroristas do que se poderia deduzir, tendo em conta o poder que dispõe e os meios que detém. No caso do Katrina, essa descentralização revelou deficiências na delimitação das esferas de competências entre os diferentes níveis da administração pública, gerou ineficiências e atrasos de actuação em todos os níveis da administração, e possibilitou que a definição de responsabilidades na protecção e resgate das vítimas pudesse ser obscurecida pela tentativa de endosso das responsabilidades das autoridades locais para as federais, potenciado pela vitimização rácica sustentada pelo facto de 70% da população de Nova Orleães ser negra (mesmo assim, numa sondagem realizada entre a população negra, 37% culparam Bush, 20% culparam o Mayor Ray Nagin e 11% culparam os próprios residentes). Esta teoria teve a divulgação normal nos meios de comunicação americanos não afectos a Bush e uma divulgação generalizada na comunicação social europeia, que havia “votado” em peso Kerry, nas últimas eleições, e que vive da nostalgia das épocas imperiais, pelando-se pelos desastres do “imperialismo americano”, numa inveja mesquinha por quem deve a liberdade.

Ora esta questão pode ter na democracia americana um efeito semelhante ao do 11 de Setembro, quando algumas liberdades foram restringidas em nome da luta contra o terrorismo e com o apoio generalizado da população. Se as autoridades federais tomarem como certo que serão sempre responsabilizadas como primeiros culpados na gestão de qualquer catástrofe que venha a ocorrer e se a população julgar que algumas das competências das autoridades locais e estaduais são despiciendas pelo facto de, em situações de emergência, não serem assumidas na prática, poderá acontecer que haja um movimento para o reforço do poder central.

Ou seja, o fenómeno Katrina pode ter uma sequela que se torne destruidora de uma das bases do pensamento dos Founding Fathers. A teoria do controlo democrático não resulta do pressuposto de que um governo de maioria é intrinsecamente justo e virtuoso, nem se baseia no pressuposto de que o poder pertence à maioria, mas sim no pressuposto que devemos considerar os diversos métodos para o controlo democrático (as eleições, um poder judicial independente, um poder local representativo e forte, etc.) como fórmulas que permitam obstar a perversões desse mesmo regime, que sejam abertas a melhoramentos e que forneçam instrumentos adequados ao seu aperfeiçoamento. O fenómeno Katrina pode pois abrir a discussão sobre a eficiência do âmbito da actual descentralização.

Estas reflexões talvez pequem por excesso de receio pelo vigor da democracia americana. Apesar do desconto que dou à visão terceiro-mundista que a comunicação portuguesa, na esteira da europeia, tem feito passar dos EUA, provavelmente os americanos terão uma visão mais equilibrada da situação emergente do Katrina. As sondagens mostram que os americanos não poupam as autoridades locais da Louisiana. Comparam a capacidade de liderança, a firmeza e a assunção das responsabilidades, inerentes às suas competências, do Mayor Rudy Giuliani no 11 de Setembro, com a inépcia e a fuga às responsabilidades do Mayor Ray Nagin. Mas fazem-no mais numa óptica de comparação das capacidades individuais em causa, do que numa óptica de desencanto pelos próprios mecanismos institucionais que fundamentam a sua democracia. Portanto, embora seja de admitir um reforço de alguns órgãos federais de segurança interna e de defesa civil, talvez não seja de prever que uma das traves mestras da democracia americana fique fragilizada pelas sequelas do furacão.

A segunda questão tem a ver com a reconstrução de Nova Orleães. A história mostra que a sociedade americana tem um grande poder de encaixe e uma enorme capacidade em ultrapassar as vicissitudes e contrariedades com que é confrontada. Também aqui, na Europa, em sociedades que se deixaram subordinar ao Estado e que, perante qualquer infortúnio, olham para ele em vez de se perguntarem o que podem fazer por si próprias, é difícil ter uma visão clara como os americanos vão dirimir esta questão e qual vai ser a sua sequência.

Nós, na Europa, olhamos para as vítimas que nos servem na TV e julgamos que elas estão à espera que o governo trate de tudo: sancione os culpados e providencie as reparações dos prejuízos. Projectamos a nossa mundividência, a nossa subordinação e dependência do Estado-Providência no comportamento das vítimas. Provavelmente enganamo-nos. Napoleão, após a derrota dos austríacos em Marengo, justificou o desastre, afirmando: «Melas (comandante do exército austríaco) portou-se comigo, como se eu fosse Melas». É um erro julgarmos os outros por nós próprios. Manhattan está a ser restaurada, sobretudo, por promotores privados. A Câmara de Comércio de Nova Orleães já está, segundo parece, a planear a reconstrução da cidade. As colectas em diversas organizações privadas (Igrejas, fundações, etc.) já ultrapassaram os 500 milhões de dólares. A sociedade civil americana está em marcha. Certamente que a reconstrução da cidade será feita em moldes diversos e menos vulneráveis, pois ninguém quer investir num bem precário e sujeito a desaparecer num próximo furacão. Provavelmente as autoridades federais e locais irão rever as normas e regulamentos que, eventualmente, se tenham verificado serem desadequados em face de uma catástrofe desta dimensão.

Esperemos para ver como a América (não as autoridades públicas, mas os próprios americanos) irá resolver a questão da reconstrução de Nova Orleães.

Publicado por Joana às 08:45 PM | Comentários (131) | TrackBack

setembro 07, 2005

Viragem no Katrina

Foi ordenada a evacuação da cidade de Nova Orleães a bem ou a mal. Hoje, habitantes de Nova Orleães já mostravam apreensão pelo rigor da medida. Este pode ser um ponto dramático de viragem na situação. Até agora a Administração Bush tem sido vituperada por não ter sido capaz de evacuar toda a população da cidade. Imagens pungentes de mártires do furacão inundavam os nossos televisores e emocionavam os jornalistas. A partir de amanhã a Administração Bush vai ser vituperada por estar a promover a evacuação forçada de toda a população da cidade. Imagens pungentes de mártires da violência policial vão inundar os nossos televisores e emocionar os jornalistas.

Publicado por Joana às 10:50 PM | Comentários (137) | TrackBack

setembro 05, 2005

Catarse Katrina

No nosso pequeno mundo dos aspirantes a fazedores de opinião, o furacão Katrina tem servido como catarse colectiva da nossa impotência e da nossa mesquinhez. Como não sabemos, não queremos e não podemos resolver os nossos problemas, empenhamo-nos em digladiarmo-nos sobbre os problemas dos outros. Os defensores do estatismo “lêem” o filme da catástrofe tentando extrair argumentos para criticar o modelo estatal americano, fingindo esquecer que Portugal tem um Estado “quase escandinavo”, pela sua dimensão, mas “quase latino-americano” pelos serviços que presta à colectividade. Eficaz em pilhar os recursos da sociedade, mas ineficaz em lhes prestar os serviços que os contribuintes pagaram.

Ataca-se levianamente a alegada lentidão das autoridades americanas, esquecendo que se uma catástrofe com uma amplitude de proporções semelhantes tivesse ocorrido em Portugal, ficaríamos à mercê de nós próprios. O nosso SNS é ineficiente mesmo em situações de normalidade, atendendo, apenas e tardiamente, aqueles que não têm possibilidades de usar outros recursos; numa catástrofe teríamos que ser nós a cuidar de nós próprios e dos nossos semelhantes. A nossa polícia é ineficiente, mesmo num clima de normalidade; em caso de catástrofe teríamos que ser nós a velar pela segurança de pessoas e bens. As nossas forças armadas são quase inexistentes e já não têm serviços de engenharia; em caso de catástrofe teríamos que esperar pelo socorro de forças estrangeiras. Os incêndios, em Portugal, são apagados pelos bombeiros voluntários, que as empresas disponibilizam, e com a ajuda de meios exteriores, enquanto os profissionais estão aquartelados; em caso de catástrofe teríamos que ser nós a tratar da protecção civil, da nossa protecção.

Portugal está completamente inerme perante qualquer catástrofe que ocorra. E os adoradores do Moloch regozijam-se que a acção das autoridades americanas não foi tão lesta quanto deveria ser e que isso é fruto do reduzido peso do Estado americano (cerca de 70% do nosso) e da ideologia que tornou esse Estado tão débil, quando deveriam estar preocupados pelo facto do nosso Estado ser proporcionalmente muito maior que o americano e não ter, nem de perto nem de longe, a capacidade de actuação que as autoridades americanas tiveram.

Será que essa gente pensa no que poderia acontecer em Portugal com uma catástrofe de proporções semelhantes? O que é perverso nas discussões sobre o Katrina e o seu rescaldo é que os adoradores do Moloch apenas discutem a dimensão do Estado e a ideologia que está na base das opções que lhe estiveram subjacentes. Nenhum se questionou se estaríamos preparados para uma catástrofe idêntica. Nada. Apenas arremesso de frases sobre a “ineficiência” das autoridades americanas. Os adoradores do Moloch não estão interessados em extrair lições para a melhoria da nossa capacidade de resposta. Apenas estão interessados em defender uma concepção de Estado. Uma concepção perversa, pois que é um Estado “Social”, pela sua dimensão, mas “A-Social” ou “Anti-Social” pelo seu funcionamento.

Há 2 anos, a França, um dos paradigmas do Estado Social europeu, teve cerca de 15 mil mortos pela vaga de calor, certamente muitos mais que as vítimas do Katrina. O governo e as principais autoridades estavam de férias; não me consta que as tivessem interrompido. É certo que foram mortes pouco mediáticas, e não localizadas. É certo que, à beira da morte, as vítimas não escreveram nas janelas e nos telhados “help us”, perdão, “au secours” nem se alinharam na estrada gritando em coro a mesma frase para as câmaras de televisão. Não podiam, estavam dispersos. É certo que as câmaras de TV não puderam captar que era gente das classes mais desfavorecidas. Só puderam captar estatísticas, e as estatísticas não comovem.

A controvérsia do Katrina é Portugal (ou pelo menos o segmento social que intervém na comunicação e blogosfera) no seu pior.

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maio 04, 2005

De Neocom a Neocon

A dupla Bush-Rice irradia um poder magnetizador que me deixa perplexa. Não há couraça política que resista aos seus fluidos hipnóticos, misteriosos e provavelmente satânicos. Vimos como um político com a poderosa consistência ideológica de Freitas do Amaral baqueou perante um arrepanhar de lábios de Condoleeza Rice – não foi um sorriso ... mais parecia uma cãibra do músculo labial, mas foi o suficiente. Agora coube a vez a Massimo D’Alema de sucumbir fragorosamente. Não é um qualquer ... é o presidente da DS, o principal partido de esquerda italiano e primogénito do Partido Comunista Italiano. Não sucumbiu à socapa, num gabinete privado da Casa Branca ... sucumbiu em plena reunião da Fundação da Esquerda Reformista, com estrondo e alarido.

Freitas andou em manifs radicais, acompanhando cartazes onde escorria sangue dos dentes de Bush, um émulo de Hitler, Salazar, Franco e Pinochet. Mas face à cãibra labial de Condoleeza, Freitas já só via qualidades em Bush ... pois se ele tinha vindo à Europa! A comunicação social informou que Bush havia indicado o falcão Paul Wolfowitz para a presidência do Banco Mundial, mas aquele arrepanhar labial foi-lhe fatal ... afinal «Portugal foi um dos primeiros países europeus a reconhecer a independência dos Estados Unidos há 200 anos». A comunicação social agitou a proposta de nomeação de John Bolton como embaixador junto das Nações Unidas ... mas aquela cãibra labial constituía um apelo tão incontornável à continuidade da cooperação militar entre os dois países. Comovido, balbuciando agradecimentos emocionados, aceitou o convite para ir a Washington.

Agora foi Massimo D’Alema que se tornou um rotweiler de Bush "A ideia de exportar a democracia é um grande objectivo, um eixo fundamental para uma nova segurança internacional", afirmou no fórum da Fundação da Esquerda Reformista. E um dos chefes políticos italianos que mais tem combatido a política pró-americana de Berlusconi, e o envolvimento italiano no Iraque, foi mais longe: "Mas, para exportar a democracia com sucesso, não se pode excluir a priori o uso da força". Berlusconi apenas havia enviado tropas para manutenção de paz ... mas esse pacifismo estéril está ultrapassado. Se for preciso guerra para lhes ensinarmos a democracia, Massimo D’Alema estará na primeira linha. Massimo D’Alema está imparável ... Berlusconi que se cuide, pois pode passar a um aliado de segunda ordem.

Massimo D’Alema, num ápice, foi de neocomunista a neoconservador, de neocom a neocon. Foi traído pela homofonia.

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novembro 04, 2004

Romanos, Gregos, Americanos e Europeus

Ou o Mistério dos Casos que se Repetem

... fazendo votos para que nem todos se repitam ...

Nos tempos de Filipe, pai de Alexandre Magno, a Grécia caiu sob o domínio macedónio, após Queroneia. Quer durante o reinado de Alexandre, quer, após a sua morte, durante a dinastia macedónia que se lhe seguiu, houve revoltas frequentes contra o domínio macedónio, principalmente inspiradas por Atenas. No tempo da 2ª Guerra Púnica, com as tropas de Aníbal em Itália e Roma em riscos de sobrevivência, Filipe V da Macedónia, aliado de Cartago, encetou uma série de guerras para lhe assegurar um domínio mais absoluto sobre a Grécia e sobre a Ásia Menor e ilhas do Mediterrâneo oriental, agravando o jugo sobre os gregos.

O Senado romano via com apreensão a guerra que se ia alastrando no oriente, mas devido às feridas e às provações sofridas pelo povo romano na terrível guerra contra Aníbal, não desejava envolver-se nos negócios dos gregos e do Oriente. Todavia, as queixas dos helenos, as crueldades praticadas por Filipe contra as cidades gregas, a severa punição que este exercia sobre os vencidos, o dever de não consentir na destruição dos seus antigos aliados de Rodes e Pérgamo e do próprio Egipto, o temor natural com que via o aumento de uma potência inimiga, a Macedónia, aumento que podia ser altamente prejudicial ao comercio siciliano e itálico, foram motivos que levaram o senado a julgar necessária uma nova guerra contra Filipe. Apesar disso tudo, os romanos não quiseram precipitar-se e procederam por forma que Filipe fizesse algo que pudesse ser considerado um casus belli. E isso aconteceu com o ataque macedónio às fronteiras da Ilíria, quase em simultâneo com a liquidação do exército de Aníbal em Zama.

Depois de algumas tentativas com pouco sucesso, o comando das tropas romanas foi entregue a Tito Quintus Flaminius, que desbaratou Filipe da Macedónia em Cinoscéfalos (“Cabeças de Cão”), em 197. A falange macedónia sucumbia perante a legião romana. A Grécia estava livre do jugo macedónio e à mercê de Flaminius.

Flaminius era um homem de talento, jovem (tinha então 30 anos) e pertencia a uma geração que conjugava as virtudes patrióticas e o culto ancestral pelos seus maiores, com o sentimento da sua individualidade e o apreço pela cultura cosmopolita. Hábil diplomata, Flaminius era um apaixonado pela cultura grega e helenista. E era um «liberal». Não destronou Filipe, apesar dos protestos dos aliados gregos que reclamavam que a vitória de Cinoscéfalos era devida a eles, à semelhança dos franceses, após a 2ª guerra mundial, que se vangloriaram de terem vencido a Alemanha e merecerem o estatuto de ocupantes. Isto embora Filipe tivesse ficado reduzido às fronteiras antigas da Macedónia, e obrigado a pagar uma indemnização de 1.000 talentos (qualquer coisa como 100 a 150 milhões de euros em moeda actual) e a manter, no máximo, uma frota de 10 navios e um exército de 500 homens, não podendo fazer guerra sem “autorização” do senado romano.

Flaminius, durante os Jogos Ístmicos de 196, em Corinto, proclamou que todos os povos e cidades gregas eram livres, deixavam de estarem sujeitos a guarnições e a tributos, e podiam governar-se pelas próprias leis. Os ouvintes, que estavam à espera que o jugo romano viesse substituir o jugo macedónio, ficaram atónitos ao saberem que doravante poderiam viver em paz, gozando da plena soberania como aliados naturais de Roma.

Os gregos não tiveram tempo de pôr em dúvidas as intenções de Flaminius, uma vez que ele retirou imediatamente o seu exército da Grécia. Contudo, depois de o terem saudado como libertador e salvador encontraram motivos de censura pelo facto de ele, ao retirar-se, ter levado algum espólio artístico (era, na verdade, um apaixonado pela cultura!) e de ter emancipado algumas cidades da Liga Etólia, que nela estavam contra vontade, coisa que não satisfez os gregos, que só queriam a liberdade para alguns deles.

E os gregos chamaram Antíoco, Rei dos Seleucidas (cujo centro do poder era a Síria, mas que dominava a maior parte da Ásia Menor, todo o Crescente Fértil – incluindo Babilónia – a Palestina e parte do Irão) para os libertar. Libertar de quê? Flaminius ao retirar, 6 anos antes, tinha-os deixado livres!

Pérgamo e alguns pequenos reinos, aliados tradicionais de Roma, e que estavam no caminho entre Antíoco e a Grécia, pediram então protecção a Roma. O Senado, que nunca acreditara nas experiências «progressistas e liberais» de Flaminius, enviou um exército comandado por Cipião o Africano, que em Magnésia (190) desbaratou completamente o exército muito mais numeroso de Antíoco e regressou a Roma, mas sem tocar nas cidades gregas.

Esta época de liberdade teve como resultado, para além da hostilidade e desprezo para com os seus libertadores romanos, o aumento da cizânia entre os gregos (etólios, aqueus, beócios, espartanos e atenienses). A consequência natural deste comportamento foi os romanos, logo que conheceram o estado de coisas e a gravidade da desordem administrativa, ora sangrenta, desconfiada e aleivosa, ora ridícula e ambiciosa, sentirem, em vez da anterior simpatia, uma irresistível tendência para procederem para com os gregos sem consideração de nenhuma espécie.

Todavia, durante alguns anos Roma insistiu nesta política de tolerância e respeito, muito semelhante à que os EUA praticaram com a Europa a seguir à 2ª Guerra Mundial. Só intervinha nos assuntos internos se fosse solicitada e procurava apoiar a ordem estabelecida. Por isso colhia antipatias generalizadas, de todos os descontentes, em quase todas as cidades gregas, quer da aristocracia e timocracia, quer do partido democrático.

Era óbvio que os gregos estavam cheios de razão em se sentirem humilhados e em desprezarem os romanos: A Grécia fora o berço de uma cultura extraordinária, fértil em obras filosóficas, ciência e literatura. Também foi onde nasceu o conceito de democracia e algumas das ideias a ela associadas, embora estas apenas tenham sido praticadas por um número muito reduzido de cidades-estado, de forma intermitente e por um máximo de cem anos (até à conquista macedónica de Atenas, em 338). E os romanos não passavam de gente sem capacidade e competência teóricas, apenas interessados em questões práticas e comezinhas, como construir estradas, aquedutos, conjuntos urbanos funcionais e administrar a coisa pública (leis e jurisprudência sobre contratos, propriedade, compra e venda, responsabilidade, difamação, sucessões e património, igualdade de todos os cidadãos perante a lei, bem como os procedimentos relativos à fixação da prova, etc.). Ah! ... e manter forças militares com uma organização, disciplina e eficiência, sem paralelo na história, para os meios e equipamentos de que então se dispunha.

Perseu, o descendente de Filipe, ao suceder-lhe no trono da Macedónia, tirou partido deste descontentamento e uniu-se às cidades gregas para uma guerra santa contra Roma. Perseu foi rapidamente vencido em Pidna por Paulo Emílio e os seus arquivos mostraram a dimensão da conspiração contra Roma e o papel das cidades gregas nessa conspiração. Todavia, Roma apenas prendeu e trouxe para a Itália os indivíduos envolvidos na trama. As cidades foram poupadas, embora tenham sido colocadas sob uma espécie de protectorado romano, com o objectivo de as impedir de constituírem uma potência militar capaz de incomodar o poder romano, nomeadamente através de alianças com os potentados do oriente helenista, os selêucidas em especial.

Neste intermédio pontificava, em Roma, Marco Pórcio Catão, um político com o instinto moralizador de Bush, que zelava pelos bons costumes e pela destruição do eixo do mal, na altura reduzido a uma Cartago já desmuniciada de ADM, mas ainda vigorosa na actividade comercial. Terminava os seus discursos no senado exclamando Delenda est Carthago que significava Cartago deve ser destruída. Muitos consideram que esta obsessão de Catão pela intervenção militar em África, se destinava a desviar as atenções dos romanos do Oriente, e da Grécia em particular, onde a corrupção dos costumes poderia vir a constituir um exemplo péssimo para a simplicidade, a frugalidade e a austeridade da vida romana. Da Roma profunda, como diriam agora ... ou da Roma rural, como alguns amantes das “contradições nos termos” usam também dizer, quando analisam resultados eleitorais.

Quando deflagrou a 3ª guerra púnica, os gregos julgaram ter uma oportunidade e reconstituíram a Liga Aqueia para promover a libertação da Grécia. Mas Roma já tinha poderio suficiente para combater em 2 frentes. As legiões romanas tomaram, saquearam e destruíram Corinto e venderam os seus habitantes (os que ficaram, porque a maioria tinha entretanto fugido) como escravos, em 146 (curiosamente o mesmo ano em que Cartago era destruída e o Estado cartaginês aniquilado definitivamente). A Grécia e a Macedónia foram reunidas numa única província com um governador romano. Apenas Atenas e Esparta ficaram com alguma autonomia.

Todavia, os gregos foram tratados com mais benignidade que a maioria dos outros povos conquistados. Sob o ponto de vista do direito público, as municipalidades gregas conservaram intacta a propriedade de bens e terras e, posteriormente, tiveram também o direito de administração e competência jurídica, não sofrendo nenhuma modificação as disposições, leis e costumes existentes, perdendo apenas o direito de fazerem política própria, de resolveram por si a paz ou a guerra e de se despedaçarem umas às outras em lutas internas. Atenas manteve inclusivamente o direito de cunhar moeda até à época da ditadura de Sila (cerca de 7 décadas depois).

Se não foi possível uma colaboração entre Roma e as cidades gregas livres, mas sempre descontentes, passou a haver uma colaboração a outro nível: a exportação de “cérebros” (muitos na condição de escravos) da Grécia para Roma. Os gregos que, como um povo livre, desdenharam colaborar com os romanos, foram, como escravos ou libertos, preceptores ou mestres de várias gerações de romanos em matérias como retórica, filosofia, teatro, literatura, etc.

Foi o tipo de colaboração que escolheram.

E Catão, que morreu octogenário no ano anterior ao da destruição de Cartago e Corinto, afinal teve razão: Graecia capta ferum victorem cepit (a Grécia capturada conquistou o bárbaro vencedor). Políbio, o historiador, um dos cérebros que naqueles anos emigrou para Roma, retratou esta ainda com costumes sóbrios, austeros, quase monásticos, o que muito o surpreendeu, vindo ele donde vinha. E Políbio considerou esse Roman way of life a base do poderio da república e da sua invencibilidade. No século que se seguiu, toda a sobriedade e austeridade romanas foram desaparecendo. A república desapareceu pouco depois, substituída por um império semi-republicano, que não solucionou a crise, e finalmente por um império despótico, uma imitação dos despotismos orientais que Roma havia liquidado facilmente 3 séculos antes.

Publicado por Joana às 10:58 PM | Comentários (33) | TrackBack

abril 26, 2004

A Tia Artrítica e os Irredutíveis

Finalmente havia-se encontrado uma solução para a situação incómoda em que se encontrava a ilha de Chipre. Em 1974 o norte de Chipre foi invadido pelas tropas turcas, numa acção coordenada entre a Turquia, EUA e Grã-Bretanha (cf . Henri Kissinger - Years of Upheaval). Tudo gente amiga da União Europeia. As tropas turcas ocuparam cerca de 40% do território (3.355 km2 num total de 9.250 km2), apesar da população turca constituir menos de 18% da população. Muitos milhares de cipriotas gregos foram expulsos do norte da ilha. Uma centena de milhares de colonos turcos, provenientes da Anatólia, foram ocupando esse vazio. Os turcos proclamaram a RTNC (República Turca do Norte de Chipre), apenas reconhecida pela própria Turquia.

Passaram-se 30 anos. A parte sul de Chipre, tornou-se a pequena Suíça do Mediterrâneo. O Chipre que vai aderir à UE a 1 de Maio é uma pequena nação com um grande dinamismo económico, com um PIB e com um nível educacional superiores aos nossos. Chipre superou o seu passado de colónia britânica e as destruições e as vagas de refugiados provocadas pela invasão turca.

Se para a maioria dos países candidatos à UE a questão económica é que tem pesado, no caso de Chipre sempre se tratou de uma necessidade geoestratégica para a proteger da Turquia. Provavelmente o cidadão cipriota grego será mais um «contribuinte» que um «beneficiário» dos fundos europeus.

A UE e a ONU cozinharam um plano de união para resolver esse problema incómodo. Koffi Annan disse que o seu plano era complexo porque foi elaborado com o principal objectivo de garantir a segurança dos cipriotas de ambos os lados da ilha. Garantia a segurança de cristalizar e reconhecer a ocupação de quase todo o norte da ilha pelos turcos (apenas 7% era retirada); garantia a segurança de que «alguns colonos» turcos seriam repatriados, sabe-se lá quando e quantos; garantia a segurança de que a força ocupante de 30.000 soldados turcos se iria retirar num prazo longo, lentamente, lá para as calendas «cipriotas». E os cipriotas turcos e a maior parte dos colonos tornavam-se cidadãos europeus de direito.

A UE, os EUA, a Grécia, a Turquia e a ONU pediram aos cipriotas gregos para não deixarem escapar esta oportunidade de resolver um conflito de décadas. Bastava desistirem do que era deles por direito. Aos pedidos seguiram-se mais garantias. A estas seguiram-se ameaças de isolamento internacional e ostracização em Bruxelas. A tia, velha e artrítica, não gosta de problemas difíceis de resolver. Os cipriotas que fossem bons alunos!

Mas os cipriotas gregos não quiseram ser bons alunos. Quanto mais os ameaçavam, mais eles ficavam relutantes em aceitarem o plano. As pressões americanas, interessados que a Turquia, uma aliada imprescindível, angariasse um visto para a Europa, caíram muito mal em Chipre. Nem os EUA, nem a Grã-Bretanha, antiga potência colonial, conseguiram convencer os cipriotas gregos que aquelas pressões eram apenas uma prova de amizade e não tinham nada a ver com uma atitude pró-turca. Ninguém os conseguiu convencer porque razão representando os cipriotas turcos perto de 18% da população, tinham que ficar com mais de 30% da superfície da ilha. Ninguém os conseguiu convencer que as garantias que agora lhes davam eram mais firmes que as anteriores resoluções da ONU que ficaram todas no papel.

No sábado, os cipriotas gregos recusaram o plano apresentado pelo secretário-geral da ONU por cerca de 76% dos votos, uma votação maciça. Os cipriotas turcos, apesar da campanha de alguns dos seus dirigentes pelo não, aprovaram o plano com perto de 65% dos votos.

Estes resultados acabaram com as esperanças de que toda a ilha de Chipre pudesse entrar na União Europeia, a 1 de Maio. Estes resultado implicam a manutenção da divisão da ilha, e apenas legitima a adesão à União Europeia, no próximo dia 1 de Maio, da República de Chipre, a "parte grega" da ilha internacionalmente reconhecida.

A União Europeia, a tia velha e artrítica, ficou «consternada». Como é possível, numa pequena ilha do leste do Mediterrâneo, um povo, cercado por 30.000 soldados turcos, cujas únicas armas que tem é a sua férrea vontade de não ceder e a sua capacidade de subir na prosperidade a pulso, sem fundos alheios, fazer uma desfeita destas?

Como é que a tia velha e artrítica vai dirimir esta herança, um imbroglio territorial em que parte do seu território vai ficar ocupada por um exército invasor, ilegalmente? E receber no seu seio, no dia 1 de Maio, um país de irredutíveis, ainda por cima com direito de veto? Que aborrecimento! A União Europeia não merecia isto!

Já se fala em Bruxelas em retaliações. Com toda a razão. Uma a tia velha e artrítica tem mais facilidade em engrossar a voz com um pequeno povo de 600 mil habitantes que com uma potência regional de 70 milhões de habitantes de quem os EUA necessitam, principalmente agora, com a crise iraquiana.

O problema é que estes irredutíveis não precisam de dinheiro. Isso já mostraram que sabem fazer. O que eles querem é protecção e não ficar à mercê da gulodice turca. Ora a Europa apenas sabe dirimir os problemas dando ou retirando dinheiros. Uma a tia velha e artrítica apenas se impõe aos sobrinhos-netos pela chantagem das dádivas. Se há um sobrinho-neto imune ao vil metal lá se vai a força da tia. Ele quer protecção? Mas se a tia está cheia de achaques e mal se consegue mover no sofá! Uma tia que quando tem que se mostrar militarmente forte, precisa de bajular o parente americano.

E a Turquia, que tão prestimosa tem sido em alguns lugares da cena internacional, a troco das potências ocidentais fecharem os olhos sobre a situação dos direitos humanos, da minoria curda, etc., que se vai encontrar, a partir de 1 de Maio próximo, na desconfortável posição de ocupar parte do território europeu, pela força das armas e ilegalmente? E ainda por cima uma Turquia que se apresenta como candidata à adesão?

Dava tanto jeito varrer este problema para debaixo do tapete … Bruxelas está mesmo muito aborrecida!

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outubro 02, 2003

O Grupo dos 4

A atitude do grupo dos 4 faz lembrar, pela esterilidade da proposta, o pessoal que, nos fóruns da net, lança imprecações angustiantes contra os “américas” e clama exaltado por uma Europa, ali ... ao virar da esquina, poderosa e capaz de enfrentar os EUA.

Escreve-se:
“Todos sabemos que temos grandes cientistas só que por falta de meios ou vontade dos responsáveis estão todos no estrangeiro porque não repatriá-los dar-lhes condições”
Resposta: Faça-se! Mas note-se que isto não se faz nem num ano, nem numa década, mesmo que se comece já! E serão os EUA que têm culpa de não se ter começado a fazer? Não ... somos nós.

Escreve-se:
“Porque razão sendo Europeus não temos o direito a ter uma força dissuasora inteiramente Europeia?”
Resposta: Têm. Mas quando chega a altura de se discutirem os orçamentos para a defesa todos se cortam. Os que agora clamam aqui pela defesa europeia e contra a superpotência americana, são os mesmos que, quando se fala em comprar equipamento militar, ridicularizam os governos e vociferam contra o despesismo inútil. E serão os EUA que têm culpa de não estarmos equipados militarmente? Não ... somos nós.

Todavia, para se fazer tudo isto, é preciso dinheiro, é precisa uma economia forte. Ora o PIB dos 15 da UE é 20% menor que dos EUA e a capitação do PIB europeu é 65% da do PIB dos EUA.

Os EUA dominam a maioria dos nós das fileiras de produção onde a inovação e o efeito motor sobre o restante tecido económico maior importância têm: Informática, electrónica, comunicações, etc. Ao longo dos anos muitos têm vaticinado a ultrapassagem da economia americana pela japonesa, alemã, etc. Todavia isso nunca acabou por acontecer. A indústria destes países não domina os nós vitais do tecido industrial nem tem a capacidade de inovação para ocupar novos nós que entretanto se vão criando..

É por isso que, contrariamente ao vaticínio de alguns economistas apressados, a economia americana ultrapassa as crises com grande vitalidade, gerando emprego com grande rapidez e versatilidade, ao contrário da europeia, pesada e lenta a modificar-se. É claro que isto também terá a ver com a regulamentação do mercado de trabalho, mas não só.

Isto não é ser anti-europeia. São factos. É estéril varrer os factos para debaixo da alcatifa e aparecer de peito feito a bradar pela Europa. Temos é que ver porque é que a Europa está assim e trabalhar para que ela possa ser alternativa aos EUA. Mas isso não se consegue com retórica. O seu canhoneio verbal contra os EUA não leva a nada.

Esta atitude dos “4” está inserida na desastrada política francesa de se pôr em bicos de pés, nostálgica de anteriores glórias, e que tenta arrastar parte da Europa para lhe dar peso face aos EUA. É uma manobra divisionista na Europa, porque qualquer líder europeu sensato sabe que, nem agora, nem num futuro próximo, a Europa poderá ser alternativa aos EUA, mesmo que comecemos já a trabalhar para o ser.

Para tal temos que melhorar a performance económica, que modernizar e dotar de tecnologia avançada as nossas forças armadas e criar condições para os cérebros europeus regressem.

É inútil carpir, soltar lamentos e enxovalhar os EUA. Não conduz a nada. Quanto muito melhorará a função hepática dos mais exaltados. Temos é que fazer melhor que eles.

28-Abril-2003

Publicado por Joana às 10:12 PM | Comentários (1) | TrackBack