fevereiro 02, 2006

12ª Medida Anti-burocracia

O Governo continua imparável. A 12ª medida de simplificação burocrática e administrativa já está na calha. Vai ser uma medida em que a administração fiscal irá preencher a declaração do IRS, no que respeita à lista de compras que os contribuintes fizeram durante o ano em matéria de imóveis, motos, carros, etc., "qualquer que seja o seu montante", bem como a "data de aquisição", visto que se trata de dados do conhecimento da administração pública. … Ou não serão? Aquela frase malévola "qualquer que seja o seu montante" deixa-me intrigada. Será que a administração pública terá mesmo os dados? Aquela frase tão abrangente "qualquer que seja o seu montante" faz-me recear que não. E os carros que os miúdos, espojados no chão, accionam ao som de Brrruuumm … Brrruuumm? … terão que ser declarados? Se o forem estou feita, a menos que haja linhas suficientes no formulário da declaração … umas cinquenta devem chegar.

Terei que passar pelas lojas dos chineses a pedir facturas dos carrinhos que comprei em 2005, onde conste o montante e a data. Mas tenho tempo … até Abril.

O Governo tem ainda outro problema. É que aquela obrigação não está prevista na lei. A Lei Geral Tributária refere-se a imóveis, motos, carros, etc., acima de certos montantes. A nova obrigação, "qualquer que seja o seu montante", é apenas uma "instrução superior". Isso pode complicar o impacto mediático da 12ª Medida Anti-burocracia. Combater uma burocracia instituída por uma lei exerce um fascínio público e tem um estatuto mediático, que de forma alguma são alcançados por um mero combate a uma burocracia instituída por uma "instrução superior". Até por que uma "instrução superior", que contraria a lei, transmitida a funcionários, sem se saber exactamente quem a difundiu, que obriga que milhares de contribuintes em IRS, que já haviam preenchido a declaração, tenham que fazer uma declaração de substituição, é algo mais típico de uma República das Bananas do que de um país que chegou a ter aspirações em se aproximar do pelotão da frente da Europa.

Sócrates terá todo o interesse em que esta "instrução superior" não saia do âmbito restrito das Repartições de Finanças. Que ninguém mais saiba! Depois das parcerias com a Microsoft, e do seu discurso onde fez o elogio à Microsoft, salientando que "quer o Estado quer a Microsoft têm a mesma visão de futuro", um futuro das sociedades baseadas "naquilo que é crítico para o desenvolvimento económico conhecimento, tecnologia e inovação", Bill Gates, se souber daquela "instrução superior", ficaria certamente angustiado por ter ouvido Sócrates dizer que "quer o Estado [português] quer a Microsoft têm a mesma visão de futuro", e se acreditar nele (e ele é muito convincente) pode chegar a Seattle e proceder à reestruturação imediata da empresa, nomeadamente no que toca à “visão do futuro”.

Como o Primeiro-ministro disse no Government Leaders Forum, ele acredita que "o Plano Tecnológico está a fazer o seu caminho".

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fevereiro 01, 2006

11ª Medida Anti-burocracia

O Governo não pára. A 11ª medida de simplificação burocrática e administrativa já está a ser estudada. Vai ser uma medida que acaba com a obrigatoriedade dos pensionistas com rendimentos inferiores ao salário mínimo (5.402,9 €/ano) tenham que fazer prova disso para receberem mais 15% na comparticipação nos medicamentos, obrigatoriedade que foi agora instituída pela Portaria 91/2006. Se o Governo for suficientemente ágil, é provável que a 11ª medida anti-burocracia, baseada no facto de que aqueles rendimentos já são do conhecimento da administração pública, produza efeitos anti-burocráticos, antes que aquela obrigatoriedade produza os seus efeitos burocráticos, o que está previsto aconteça até 31-Março-2006. Depois disto, segundo a mesma Portaria, a administração da saúde pode ainda requerer à administração fiscal que confirme os rendimentos de um dado pensionista. Esta medida, a 11%, pode poupar muitos milhões de euros ao Estado e aos idosos.

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outubro 04, 2005

O Sector Público foi privatizado

Nestes últimos anos temos assistido a discussões acérrimas, mesmo sanguinárias, sobre o papel do sector público e sobre a necessidade do Estado alijar dos seus ombros a responsabilidade relativa a um conjunto de actividades e serviços para os quais se tem revelado de uma enorme ineficiência. Afinal era uma discussão inútil, baseada em falsas premissas. Peço desculpa pelo tempo e pelas reservas anímicas despendidas neste blog, terçando furiosamente armas sobre aquela matéria. Alguns de nós já havíamos apercebido, ainda que confusamente, que falhava algo nos conceitos em debate. Hoje tornou-se oficial: O sector público português está privatizado há alguns anos. E quem o oficializou é uma testemunha credível visto ter sido, in illo tempore, um dos principais impulsionadores da “captura do Estado” por parte de “corporações profissionais”.

A privatização foi de tal forma profunda que pouco sobrou. Mesmo as forças armadas, antigo orgulho da Nação, esteio das nossas virtudes, sustento da nossa soberania, estão privatizadas. Pertencem às Associações dos Oficiais e Sargentos das Forças Armadas. A Educação, uma das mais nobres missões de que o Estado se investira desde o triunfo liberal, no meritório propósito de ilustrar e qualificar o nosso povo, está privatizada. Já se notara, desde há muitos anos, que havia fortes indícios que algo mudara. Agora é oficial: A Educação pertence aos Sindicatos de Professores, Auxiliares de Educação, etc..

Há dúvidas sobre o principal accionista do SNS. Uns inclinam-se para os sindicatos dos médicos, mas a maioria aposta no sindicato dos enfermeiros. Inclusivamente um órgão de soberania foi privatizado, o que traduz o pensamento neoliberal levado às últimas e imprevistas consequências e uma inovação que não deixará indiferentes as sumidades teóricas da economia, ciências políticas e sociologia: O poder judicial e a magistratura pública pertencem às respectivas associações.

O que há de inovador nesta apropriação do Estado pelas corporações profissionais, é que essas OPAs (operações políticas de apropriação) não necessitaram de qualquer dispêndio de capitais nem de uma operação bolsista. A única bolsa que tem sido activada é a bolsa do contribuinte. As corporações profissionais não despenderam 1 cêntimo na apropriação do usufruto daqueles activos públicos.

Vital Moreira refere erroneamente esta situação como “Feudalismo de Estado”. Várias razões militam contra esta tese inconsistente. Em primeiro lugar estas OPAs começaram a ser lançadas em plena época da construção do Socialismo e de uma sociedade sem classes. É preciso estar muito esquecido da teoria marxista e do Materialismo Histórico para colocar o Feudalismo de Estado como etapa posterior à via socialista. Em segundo lugar o Feudalismo implicava que a concessão do feudo se fizesse mediante uma investidura. Não houve qualquer investidura no caso vertente. As OPAs têm sido realizadas, lote após lote, no secretismo negocial dos gabinetes, entre Governos e Corporações. Em terceiro lugar a concessão do feudo implicava fidelidade e obrigações – os senhores feudais honravam os seus compromissos para com o seu suserano e punham à sua disposição os seus homens de armas sempre que havia necessidade de defender a Coroa (designação que o Estado tinha naquelas épocas distantes). É certo que, às vezes, um ou outro senhor faltava aos seus compromissos ou traia o seu suserano, mas sempre houve ovelhas negras em qualquer rebanho. Ora, no caso actual, as corporações profissionais apropriaram-se do Estado, são sustentadas pelos contribuintes e derrogaram o dever de vassalagem perante o suserano. Não prestam qualquer serviço de hoste e fossado: nós é que fossamos para as sustentar.

Como tem sucedido no caso de algumas privatizações que conduziram a empresas majestáticas, não existe mercado. É uma situação pior que num monopólio. Num monopólio o comportamento dos consumidores influencia o estabelecimento dos preços. No caso destas corporações detentoras do usufruto dos activos públicos, os preços são fixados discricionariamente através dos OE. O contribuinte paga, independentemente do serviço que lhe prestam. Paga mesmo que não lhe prestem qualquer serviço.

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setembro 22, 2005

Embrulho Surpresa

Quando o politicamente correcto e o desprezo do Estado pelas preferências dos cidadãos se unem, a mistura é mortífera. A um casal que pretenda adoptar uma criança é-lhe oferecido o mesmo painel de opções que a um miúdo que faz um furo ou adquire uma bola hermética – fica com o que lhe calhou em sorte. O casal não pode escolher a raça do filho que pretende educar. Também não pode ter acesso às análises e a outros meios de diagnóstico, se porventura os houver, sobre a situação da criança do ponto de vista da sua saúde, patologias existentes e respectiva gravidade. Para evitar dicas “por fora”, esses elementos nem sequer constam da base de dados.

Adoptar e educar uma criança é um assunto sério. Não é um furo que se faz e que depois, contrariado com o que coube em sorte, se deita fora o que saiu e se faz outro furo. Esta atitude das autoridades representa um desprezo pelas preferências dos cidadãos e uma capitulação absurda perante o politicamente correcto. Os principais prejudicados serão as crianças adoptadas, os pais adoptivos, se não concordarem com a “surpresa” que veio no embrulho que lhe saiu na rifa e aqueles que queriam adoptar uma criança, mas desistem face a estas circunstâncias pouco aliciantes.

Aliás, as crianças à espera de adopção são sempre as mais prejudicadas. São prejudicadas pelos prazos absurdos que a burocracia impõe aos processos de adopção (há 15.455 menores em instituições ou em famílias de acolhimento e os portugueses continuam a esperar uma média de seis anos para adoptar uma criança) e são prejudicadas pela diminuição da procura, fruto do receio de lhe sair em sorte uma criança com características não desejadas: patologias que se podem tornar num futuro calvário, etnia diferente da dos pais adoptivos, eventualmente não desejada, etc.. Os dados da Segurança Social são claros sobre a procura para adopção: há 135 candidaturas sem estudo iniciado, 11 formalizadas em 2003, 80 em 2004 e 44 em 2004.

Como tudo o que toca ao politicamente correcto ou ao papel do Estado em impor preferências aos cidadãos, é preferível varrer para debaixo do tapete os falhanços dessas perversões ideológicas. É onde estão mais de 15 mil crianças. É a cultura do depósito.

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agosto 19, 2005

Sofisma Miranda

O reputado constitucionalista Jorge Miranda provou hoje no Público como a lógica aristotélica falha lamentavelmente, mesmo quando manuseada por um distinto jurisconsulto. A sua argumentação é simples: 1) os gestores públicos são nomeados por critérios de confiança política; 2) os gestores públicos só se devem manter no lugar enquanto gozarem dessa confiança; logo 3) os gestores públicos não devem ser indemnizados quando abandonarem o cargo em virtude da mudança do ministro da tutela. A conclusão (3) estaria certa e seria rigorosa se as premissas não fossem um completo disparate. Jorge Miranda baseou-se na “aparência da coisa” (o que tem prevalecido, diz ele) e não na “essência da coisa”, i.e., no que devia ser.

Uma empresa pública é uma empresa como outra qualquer, excepto no facto do único (ou o principal) accionista ser o Estado. Como é uma empresa, ela tem que ser regida por critérios empresariais. Portanto são esses critérios que devem presidir à escolha de um gestor. Não me repugna que, quando um governo escolhe um gestor para um cargo empresarial que entretanto vagou, o faça entre gente qualificada da sua área política, ou próxima dela, desde que essa substituição não tenha efeitos negativos no desempenho da empresa.

O caso CGD é paradigmático sob este ponto de vista. Vítor Martins foi nomeado por Bagão Félix como decisão salomónica para acabar com a situação então existente, que era insustentável do ponto de vista empresarial. A actual gestão da CGD estava a decorrer satisfatoriamente, como prova o lucro de 305 milhões de euros obtido no 1º semestre deste na (mais 38% que no período idêntico de 2004). O actual ministro das Finanças, numa das suas primeiras decisões, substituiu-o. Não vou discutir as competências relativas do actual e do anterior Presidente da CGD. Só que não é normal, numa empresa, substituir o Presidente do CA quando essa empresa apresenta uma subida dos seus lucros. Nomeadamente quando o ministro da tutela acaba de chegar e ainda não pode ter uma ideia fundamentada do desempenho da empresa, para além dos seus resultados financeiros.

Aliás, o próprio ministro sublinhou o carácter político desta mudança.

Regressemos à questão das indemnizações. O princípio donde parto é absolutamente distinto do de Jorge Miranda. Em primeiro lugar a escolha de um gestor público deve reger-se por critérios primordialmente empresariais. Em segundo lugar deve assegurar-se um horizonte minimamente estável ao gestor. Na vida económica é necessário haver um horizonte estável … e na vida privada e profissional de um potencial gestor público também. Um gestor não pode estar sujeito à dança das cadeiras ministeriais, nunca sabendo se é no próximo mês, ou mesmo amanhã, que lerá nos jornais que foi substituído

A indemnização assegura assim duas coisas: 1) um horizonte definido e estável ao gestor; 2) que o governo deve medir bem as consequências das escolhas que faz, pois se se verificar que o gestor não revela competência suficiente para o cargo e tem que ser substituído por causa disso, ele terá que pagar as consequências dessa escolha (excepto se essa incompetência ou negligência puder configurar uma situação de despedimento por justa causa, caso onde não haveria lugar a qualquer indemnização).

A indemnização ainda assegura uma terceira coisa: o opróbrio público quando vem a lume o custo indemnizatório de uma substituição por critérios apenas políticos. Assegura assim que qualquer governante com um mínimo de vergonha na cara deverá reflectir maduramente antes de decidir uma substituição, durante um mandato, apenas por critérios políticos.

O regime de confiança política prevalecente, segundo Jorge Miranda, pode fazer sentido para um professor universitário, encafuado em bibliotecas e soterrado sob o saber de volumosos in-folios. É uma completa insensatez na gestão empresarial, porque empresas geridas por critérios políticos são uma contradição do ponto de vista teórico e um desastre do ponto de vista prático.

As empresas públicas, pelo seu próprio estatuto, têm dificuldade em movimentar-se no mercado e em tomar as decisões mais convenientes. Na maioria dos casos, ou somam prejuízos, ou os seus lucros resultam da protecção estatal que age como um factor de distorção dos mercados e gerador de custos sociais na economia. Isto é, directa (pelos seus resultados) ou indirectamente (pela distorção que a protecção estatal provoca na economia) geram um custo social importante.

Se a teoria do regime de confiança política vinga, então a solução é vender o mais rapidamente possível os activos empresariais ainda na posse estatal. Mesmo aqueles que não acreditam que tal possa melhorar a situação económica do país, certamente não discordarão que constituirá um poderoso factor de moralização da vida política. As empresas públicas são actualmente o filet mignon dos boys políticos. Acabar com essa fonte de imoralidade é uma decisão importante de higiene política e pública.

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agosto 17, 2005

Os Destroços do Catamarã

Quando escrevi o post de ontem, Individualismo e altruísmo, foi apenas com a singela intenção de mostrar que o individualismo e as doutrinas que defendem o primado do individual não significam, ao contrário daquilo que os servos e adoradores do Moloch pretendem fazer crer, a defesa do egoísmo despido de qualquer ética. Como escrevi então, “Individualismo, em economia e em política, não é sinónimo de egoísmo, nem se opõe ao altruísmo. Apenas se opõe ao colectivismo. O individualismo é perfeitamente compatível com o altruísmo”.

Também não pretendi denegrir os serviços públicos. Escrevi “Os meios públicos de salvamento não chegariam a tempo (o incêndio propagou-se com grande rapidez) ”, do que qualquer leitor, que não estivesse com a mente obnubilada pelo fideísmo estatal, deduziria que a rapidez da propagação do sinistro seria causa principal da falha dos meios públicos. É claro que ontem, eu ainda não sabia que «A primeira embarcação militar a chegar ao local foi uma lancha de intervenção rápida da Brigada Fiscal (BF). Num primeiro momento, os militares ainda tentaram apagar o fogo, mas recuaram ao verificar que a fibra do catamarã ardia de forma explosiva. Em vez disso, optaram por estabelecer um perímetro de segurança na zona e acompanharam de perto as operações de salvamento, feitas unicamente por embarcações particulares».

Convenhamos que é uma situação caricata: os meios de salvamento públicos ficarem a ver os meios dos voluntários privados a procederem ao resgate dos náufragos, porque «recuaram ao verificar que a fibra do catamarã ardia de forma explosiva … optaram por … acompanhar de perto as operações de salvamento». Mentes menos abertas que a minha poderiam deduzir comportamentos menos condizentes com o serviço público. Outras, mais pundonorosas, poderiam mesmo arguir aquela manobra contemplativa de cobardia. Eu não. Presumo que houve razões poderosas para a Brigada Fiscal ter tido aquele comportamento contemplativo. Além do que, é uma Brigada Fiscal, não é uma Brigada de Resgate de Náufragos de Catamarãs a Arder. A sua missão é zelar para que não haja contrabando, tráfico de droga, transporte de mercadorias sem guia de IVA, etc.. Certamente que os brigadistas estiveram diligentemente de binóculos a certificarem-se que os náufragos não transportavam mercadorias proibidas ou sem guia de transporte. E se o fizeram, cumpriram aquilo que o país esperava deles.

E não me esqueço de enaltecer a coragem dos bombeiros de Albufeira que acorreram ao naufrágio num semi-rígido. Infelizmente apenas posso congratular-me pela coragem, visto que com um semi-rígido não se puderam aproximar do fogo, porque senão teriam que regressar a nado, a menos que fossem resgatados pelos particulares que, no meio desta história bem portuguesa, parece terem sido os únicos a agir com rapidez, discernimento e eficiência. Não admira: para um dado objectivo, os privados conseguem sempre uma afectação de recursos mais eficiente. Vem nos manuais. Aconteceu em Albufeira.

Também não denegri as vistorias. Escrevi: «segundo testemunhos (embora nestas ocorrências tais testemunhos possam não ser fiáveis), os meios próprios de salvamento não funcionaram, apesar das inspecções estarem em dia». E escrevi isto, porque ponho sempre muitas dúvidas aos testemunhos que a comunicação social recolhe. Por duas razões: 1) a comunicação social escolhe normalmente os mais maldizentes, porque têm mais efeito sobre as audiências; 2) muitas pessoas, nestas situações, agem sem discernimento, acusando tudo e todos. É certo que tenho uma má imagem das capitanias e autoridades marítimas, pelo menos nesta zona do Algarve, e sempre ouvi contar delas histórias muito pouco abonatórias. Mas é uma zona problemática. No Verão há o turismo e no Inverno, com a pesca em retracção, muitos dedicam-se ao contrabando e o tráfico de droga. Portanto é difícil discernir o que é verdadeiro, do que é exagero e do que é falso.

Portanto, limitei-me a encarar a questão, factualmente e apenas pela positiva – realçando o comportamento humanitário dos privados que, anonimamente, sem pensar em recompensas pecuniárias ou medalhas, acorreram a salvar o próximo. E não foi uma história trágico-marítima, mas uma história cómico-costeira.

Isto foi considerado por alguns como “um exercício da mais pura demagogia”. Não é demagogia … mas reconheço que é um exercício muito enervante para os adoradores do Moloch. E o enervamento não é bom conselheiro. E quando as pessoas se enervam dizem os maiores disparates: “Ninguém diz que um rico não pode ser pessoa de bem, mas se o for - e agir como tal - provavelmente não será rico muito mais tempo”. Esta sentença é uma contradição nos termos. Indo à essência da sentença, ela significa que o rico nunca pode ser uma pessoa de bem, porque se o for deixa de ser rico. Ou seja, os ricos, pessoas de bem, são apenas um fenómeno transitório, cujas condições iniciais são não nulas (herança vultuosa ou prémio no euromilhões, porque a actividade económica é pecaminosa) mas que se esvai rapidamente pela prática do bem.

Por entre adoradores de Moloch e fradinhos Capuchos o país vai ter dificuldade em singrar no mar encapelado da economia mundial. O país é o Titanic em que as autoridades e os seus apaniguados nos dizem: vá… calma … olhem para a popa, vejam o tempo magnífico e ouçam a orquestra. Não liguem àquele insignificante bloco de gelo ali atrás.

Esperemos que particulares com as suas embarcações de recreio estejam atentos ao naufrágio …

Publicado por Joana às 06:30 PM | Comentários (74) | TrackBack

maio 25, 2005

Estado irredutível

Neste extremo ocidental da Europa há um punhado (bem ... são mais de 750 mil) de irredutíveis que resistem contra “ventos e marés”, até ao nosso colapso final. Sócrates declarou hoje na AR que não pretende reduzir o Estado, porque o país precisa do Estado Social. A seguir dois exemplos do que Sócrates julga que o país precisa, recolhidos hoje, à pressa:

1 – Transcrito da GLQL: Acompanhei esta manhã a visita do Senhor Ministro da Justiça a um dos centros de reeducação de menores, geridos pelo IRS (...não, é o outro, o Instituto de Reinserção Social).
O Centro conta com modelares instalações, nas quais não faltam piscina e picadeiro e estábulo com vários cavalos, para aulas de equitação. Nele trabalham 31 funcionários administrativos, de todas as categorias, desde director e sub-director a tratador de cavalos. Para além destes 31 administrativos, conta ainda com a indispensável colaboração de 9 professores, médico e até um sacerdote, embora estes últimos não trabalhem ali a tempo integral. Ao todo são mais de 50 (cinquenta) funcionários e prestadores de serviços que, diariamente, ali labutam de forma esforçada, em prol da reinserção social de jovens que, por uma razão ou por outra, se desviaram das normas sociais estabelecidas ou, como dirá o sacerdote, que pecaram.

Um último pormenor: estão internados neste centro 9 (nove) jovens.
Publicado por Nicodemos às 2:49 PM

Portanto há 50 funcionários e 9 a serem reinseridos. Os reinsersores custam centenas de vezes mais que os reinseridos. Na realidade há 59 asilados naquele centro.

2 – A minha mãe recebeu ontem, na Escola onde trabalha, 300 exemplares de um livro em papel couché, cheio de fotografias, editado pela Universidade de Coimbra (pública), fazendo publicidade dos cursos que tem e das suas instalações. A tiragem foi de 35.000 exemplares e várias pessoas e entidades colaboraram no livro. A escola da minha mãe é em Lisboa. Presume-se que tenham sido enviados exemplares para todo o país, Palops, etc. A minha mãe e o Director da Escola chegaram a ponderar devolver 290 exemplares, mas desistiram para não gastarem verbas na expedição de desperdícios.

Não sei quantas dezenas (ou centenas) de milhares de euros custou a edição e expedição de um livro completamente inútil, porquanto as listas de cursos nas universidades públicas (e escolas politécnicas) são fornecidas pelo ME anualmente, com todas as indicações sobre as condições de acesso – provas de ingresso, nº de vagas, etc..

Esta “campanha publicitária” custou seguramente muito mais que todas as campanhas publicitárias que as privadas costumam fazer junto das escolas.

Publicado por Joana às 04:45 PM | Comentários (16) | TrackBack

abril 06, 2005

Perguntas o que o Estado pode fazer por ti?

Errado. A pergunta é: o que devo fazer pelo Estado? O que o Estado pretende de mim? Qual a minha utilidade para o Estado?
A nossa relação com o Estado é unívoca e de sujeitos passivos, como se exemplifica em seguida:

Tribute Bactrian.jpg
1) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do IRS. A segunda figura, comerciante em nome individual, vai sob custódia, pois havia alegado ter estado desocupado durante o exercício de 2004. O último preencheu a declaração G - Incrementos patrimoniais (o camelo ficou com mais uma bossa durante o exercício de 2004).

Tribute Syrian.jpg

2) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do IRC. A segunda figura, gerente de empresa em regime simplificado vai “liquidar-se” a ele próprio porque a colecta mínima é superior ao seu volume de negócios no ano. O último é um empresário têxtil do norte; veio de Ferrari porque, após entregar o modelo 22 com situação líquida negativa (quase tão negativa quanto o estado da fábrica), certificada por um TOC da família, vai abandonar o país a grande velocidade. Tribute Ionian.jpg Daqui a uma semana estará no Brasil, usufruindo os cash-flows gerados pela contabilidade criativa que tinha implementado na firma (a única inovação que fez durante a sua gestão) e vendo as reportagens da TVI, mostrando um armazém em ruínas, com equipamentos obsoletos, vigiados por turnos de trabalhadores determinados em que nem 1 Kg de sucata saia dali.

3) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto Automóvel (IA), Imposto Sobre os Produtos Petrolíferos (ISP), IVVA. – Imposto sobre a venda de veículos automóveis. São muitos e vieram a pé, porque tiveram que vender as viaturas, ou dá-las como dação em pagamento, para pagarem os impostos.
Tribute Gandarian.jpg
4) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto de Circulação (ICI) e do Imposto de Camionagem (ICA). Um deles trouxe o zebú, para tentar obter deduções pelo mau estado da viatura. Intenção frustrada, pois atrás dele já se encontram dois agentes de intervenção fiscal, armados e municiados, de forma a não permitirem a mínima evasão - nem dele, nem do zebú.

Tribute Armenian.jpg

5) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto sobre o tabaco e do Imposto Especial sobre o Consumo de Álcool e Bebidas Alcoólicas. São poucos porque o excesso de consumo liquidou os sujeitos passivos antes deles liquidarem o Imposto. O que vai atrás, titubeante, ainda traz uma ânfora cheia do precioso néctar.

6) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto Municipal sobre Transmissões de Imóveis (IMT) e Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI). Têm todos barretes enfiados até ao pescoço para fazerem crer à Administração Fiscal que os preços das transmissões foram muito inferiores aos valores do mercado e que estão em condições de pedir uma isenção por 10 anos do Imposto Municipal sobre Imóveis.
Tribute Saka.jpg
Indian Tribute.jpg

7) Este sujeito passivo é um ingénuo sem criatividade fiscal que foi vítima de um Imposto sobre as Mais-valias nas fusões e cisões, entradas de activos e permutas de acções.

Transporta o Activo e o Passivo aos ombros, na tentativa desesperada de convencer os funcionários fiscais que o balanço está equilibrado e não foram geradas mais valias.

Na sombra, perfila-se um agente de intervenção fiscal pesadamente armado, pronto a fazer a colecta coerciva.


8) Em baixo a fila de sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto sobre o valor acrescentado (IVA). A fila é muito extensa e a imagem só captou uma ínfima parte. Atrás vem um empresário de Braga que tem conseguido, há décadas, que o imposto devido pelo sujeito passivo seja sempre muito inferior ao devido pelo Estado, recebendo chorudos reembolsos. Por isso os seus sinais exteriores de riqueza.

Tribute Babylonian.jpg

9) Os sujeitos passivos que devem proceder ao pagamento de Licenças Camarárias, Taxa de Conservação de Esgotos, etc., ainda não chegaram, pois estão retidos há vários dias nos guichets camarários à espera de atendimento para obterem as guias de pagamento. Igualmente os sujeitos passivos das taxas de farolagem e balizagem andam perdidos na costa. Os sujeitos passivos do Imposto do Jogo foram para Macau em busca de melhores ares, depois de ouvirem o Miguel Portas e o Prado Coelho fazerem prédicas moralistas sobre o pecado do jogo, quando se falou do Casino no Parque Mayer.

Todos os sujeitos passivos se apresentaram munidos de documentos de quitação, certificando que têm pago o Imposto de Selo sempre que este é devido. Todos eles estavam igualmente munidos de declarações, válidas por 6 meses, de que não tinham dívidas à Segurança Social.

É esta a nossa relação com o Estado. É uma relação praticamente de sentido único. É uma prática de 3 mil anos que reeditamos com a nossa sábia ciência milenar.

Além de sermos sujeitos, temos a canga adicional de sermos necessariamente passivos.

Publicado por Joana às 09:47 PM | Comentários (22) | TrackBack

setembro 30, 2004

Afinal era Simples

Um jovem hacker informático, meia dúzia de dias de programação, e umas horas a correr o programa e aí estão as listas de colocação de professores.

Um problema que trazia o país em suspenso há mais de 4 meses, que havia envolvido empresas topo de gama da informática, ministros, secretários de Estado e uma colecção de fósseis dos quadros do ministério que faria inveja ao Parque Jurássico, que ocupara o horário nobre de centenas de emissões de TV, que alastrara por milhares de noticiários, que parecia enorme, incomensurável, infinito, um buraco negro intergaláctico que ameaçava engolir o sistema solar e prometia sugar adicionalmente a 5 de Outubro e a 24 de Julho, foi resolvido por um jovem habilidoso em pouco mais de uma semana.

Louvemos o habilidoso informático por nos fazer saber que os problemas difíceis da administração pública se podem resolver em poucas horas e os impossíveis ... numa semana. Louvemos o habilidoso informático por nos fazer saber que a nossa administração pública não tem competência, nem diligência, nem expediente. Louvemos ainda o habilidoso informático por nos fazer saber que os gestores da coisa pública – ministros e secretários de Estado – não lhe são capazes de acrescentar qualquer valor, nem estão habilitados para ultrapassarem as suas carências.

Sobeja agora a questão dos cerca de 20% de professores que pediram destacamentos, a maioria dos quais com atestados médicos nos quais nem os ingénuos acreditam que não sejam falsos. No nordeste do país aquela percentagem atinge mesmo os 90%. É claro que os sindicatos vão fazer vista grossa. Aliás, um dos seus dirigentes sugeriu hoje que nos casos em que houvesse professores ultrapassados nas colocações e prejudicados por isso, que o ministério os deveria aceitar e, não havendo serviço docente, incumbi-los de outras tarefas pedagógicas.

Saberá este dirigente da FENPROF que há milhares de professores com horários zero? Saberá que, para além destes, há largos milhares professores efectivos sem serviço docente atribuído devido aos mais variados motivos - dificuldades de visão, de audição, de locomoção, de pensamento, etc. E sempre com atestados médicos de suporte? E não estou a falar das baixas pontuais (que às vezes se arrastam meses a fio). E saberá que são os nossos impostos que pagam todo esse desconchavo?

Saberá este dirigente sindical que Portugal é o país da Europa com menos alunos por turma, com mais professores por aluno, em que os professores, no topo da carreira, são os mais bem pagos da Europa? Saberá esse dirigente que Portugal é o país da Europa que, proporcionalmente ao PIB, mais gasta com a educação e onde os resultados são, de longe, os piores? Sabe certamente, mas finge que não sabe.

Aqueles professores estão a dar ao país e, sobretudo, aos jovens que vão ensinar, um exemplo desastroso de falta de ética, do recurso à falsidade e ao suborno para conseguirem passar à frente dos colegas. Aqueles professores estão a mostrar aos jovens que vão ensinar que o recurso à fraude, à artimanha, à habilidade dolosa, compensa. O crime afinal compensa: são os próprios professores que o provam pela sua prática fraudulenta e viciosa. Os professores e os médicos que passaram os atestados.

Mas a comunicação social procura fundamentalmente bodes expiatórios pontuais e mediáticos. Dez mil professores com atestados, em muitos dos casos, falsos, não cabem na pantalha do televisor. Não têm efeito mediático. Agora um ministro, um político do topo, esses sim – cabem no rectângulo televisivo e satisfazem o espírito de inveja nacional. Ninguém tem inveja de dez mil professores. É um número demasiado grande para a capacidade de inveja de cada um de nós.

David Justino e Abílio Morgado foram incompetentes. Pois foram. Mas foram-no também e sobretudo porque não souberam fazer agir o ministério com competência. Porém isso é de somenos importância. O que é importante foi David Justino, Abílio Morgado, e todos os governantes que se envolveram neste processo, tornarem-se no pano vermelho que a comunicação social e os sindicatos agitam perante a opinião pública para fazer desviar a sua atenção do cancro que alastra e corrói o país: a incompetência e o laxismo da função pública.

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setembro 22, 2004

A Maldição do Estado

Finalmente o Estado português tomou o caminho que a sua qualificação e o seu destino fatal lhe apontava há meses: as listas de colocação de professores vão ser elaboradas à mão.

Este regresso às origens era óbvio. O Estado português está na pré-história do conhecimento. Informáticas, novas tecnologias, qualificações e empenhamento no cumprimento dos prazos e nos objectivos de qualidade, são vícios das empresas abertas à concorrência internacional e cujo dinamismo tem mantido Portugal à tona da água. O Estado português é o guardião das nossas virtudes ancestrais – do alto da pilha das 50.000 candidaturas de professores, 9 séculos nos contemplam.

Alguns pretendem que o Estado tem-se modernizado e apontam como exemplo os flamejantes automóveis que os directores de serviço têm atribuídos, em vez de seges puxadas por muares lazarentos trotando penosamente pelas calçadas lisboetas. Puro equívoco: basta ver que os motoristas desses veículos ainda não se aperceberam da diferença entre um BMW Série 7 Berlina e uma sege ou, no caso dos directores gerais, de uma caleche. Carregam no acelerador com o mesmo denodo e sentido das responsabilidades com que chicoteariam as alimárias.

E a ministra prometeu que, com o recurso ao trabalho manual, em menos de uma semana as listas estariam prontas. O que um programa comprado com alto discernimento tecnológico, avalizado por profundas reflexões ministeriais, assessorado pela nata dos técnicos de uma empresa topo de gama da informática, fertilizado pelo suor do imenso staff asilado no Ministério da Educação, não conseguiu fazer em 7 meses, propõe-se agora a ministra fazer, à mão, em 6 dias úteis ... porque ao sétimo descansará, como o Criador.

Louvemos a providencial ministra que diz conseguir que funcionários públicos do Ministério da Educação executem, em 6 dias, aquilo que nunca conseguiram executar em menos de 4 ou 5 meses, noutras ocasiões, e anos a fio, e sem ser apenas à mão.

Será que a ministra já se apercebeu das consequências da sua decisão e das suas promessas? Se o seu desiderato for conseguido, como explicarão depois os funcionários públicos porque razão costumam executar tarefas idênticas num prazo 20 vezes mais dilatado? Estarão os funcionários em questão dispostos a subirem, pelo próprio pé, ao pelourinho da opinião pública? Estarão dispostos a darem um tiro tão certeiro ... nesse mesmo pé? Hum ... Receio que não ... receio que a ministra nos fins de Setembro ainda se veja obrigada a mendigar mais um adiamento.

E, no entanto, o caso não seria virgem. Quando se pede um documento numa conservatória, notário ou repartição, dão-nos, de imediato e com voz peremptória, um prazo de 2 ou 3 semanas. Todavia, se for municiada com um advogado conhecido, a funcionária vai lá dentro, faz uma fotocópia, rabiscam uma assinatura, põe um selo branco e entrega a certidão ... 3 a 5 minutos. A proporção é a mesma.

Mas a ministra terá que ser prudente, porquanto a responsável será sempre ela. Os trabalhadores nunca têm qualquer responsabilidade. Quando pairou o boato que a primeira cabeça a rolar seria a de Joana Orvalho, directora-geral dos Recursos Humanos do Ministério da Educação, logo os sindicalistas se empenharam, com os olhos orvalhados pelas lágrimas, em entoar cânticos de louvor àquela dedicada funcionária que estava a gozar merecidas férias enquanto outros, dia e noite, andavam às marteladas ao programa para ver se punham aquilo a funcionar.

Não ... os trabalhadores do Estado nunca têm qualquer culpa dos maus desempenhos do aparelho do Estado: é sempre culpa dos ministros e secretários de Estado (e de algum assessor nomeado por aqueles). Isto é um postulado inatacável que só neoliberais empedernidos questionam. Os governos mudam e o mau desempenho continua – de quem é a culpa? Do governo ... do próximo governo ... do seguinte ... etc.. (e de todos os anteriores)

E de facto têm razão ... mas por motivos contrários: os sucessivos governos têm a culpa do péssimo desempenho da função pública porque sempre lhes escasseou a coragem de criarem mecanismos que a obrigassem a um desempenho melhor. Também têm a culpa de ela estar mal gerida, mas não por a gerirem mal: quem a gere é ela própria, através dos seus quadros superiores, mas por nunca terem tido a coragem de criarem mecanismos para promoverem os melhores gestores e implementarem os procedimentos para aqueles estarem obrigados a gerirem-na com eficiência.

Publicado por Joana às 10:38 PM | Comentários (38) | TrackBack

abril 02, 2004

As barbas de molho

As eleições francesas, como as eleições parciais que tem havido na Alemanha, deveriam constituir matéria de reflexão para a actual coligação no poder em Portugal. E igualmente as eleições espanholas, embora o seu enquadramento tenha sido diferente e houvesse factores exógenos que não terão sido despiciendos nas escolhas do eleitorado.

O modelo social europeu está em crise. Mesmo nos países em que a administração pública tem um nível apreciável de eficiência, esse sistema social está financeiramente em falência.

Há diversas razões para que tal aconteça e não me vou alongar sobre cada uma delas, visto constituírem matéria para uma debate bastante extenso. Sumariamente dir-se-á que o modelo foi criado numa época em que a pirâmide etária e a relação entre a população activa e a reformada permitia que as contribuições da primeira subsidiassem as reformas da segunda mais as prestações relativas à maternidade e à educação dos jovens, isto para além de outras transferências sociais vultuosas: saúde, defesa, justiça, etc..

Nas últimas décadas tem havido uma modificação progressiva das proporções entre os diversos segmentos etários e as previsões indicam que a situação se continuará a agravar: cada vez a percentagem dos contribuintes será menor no contexto da população total. Por outro lado, não é possível aumentar as contribuições de quem trabalha, e das empresas, mais que um certo limiar, pois o Estado-Providência já obriga a uma fiscalidade elevada.

Ora sucede que cada vez mais a Europa concorre com os «tigres» asiáticos, com encargos sociais muito reduzidos ou nulos e com baixo nível de fiscalidade. A própria juventude dessa população ajuda a baixar esses níveis de transferências sociais, já de si reduzidos. Concorrendo com empresas com custos muito menores, as empresas europeias perdem competitividade

Como é possível lutar contra essa situação? Uma das formas é aumentar a produtividade. E, neste caso, esse aumento terá que passar por produzir bens ou serviços com elevado valor acrescentado e cuja concorrência se faça mais pela qualidade do que pelo preço. A Europa tem que apostar na inovação tecnológica e na diferenciação dos bens e serviços.

Mas esse eixo de luta não é suficiente, pelo menos a curto prazo. Passa pela iniciativa privada, por incentivos do Estado para a motivar e pela melhoria do sistema educativo, nomeadamente o ensino profissional e a investigação. Os seus resultados, admitindo que essa política seja conduzida de forma eficiente, só se irá traduzir em resultados palpáveis a médio e a longo prazo.

O outro eixo de luta é a reforma do Estado-Providência. Em primeiro lugar torná-lo mais eficiente. Durante anos curou-se de debater a justiça da gratuitidade da prestação de serviços públicos, descuidando quer a eficiência desses serviços - a sua relação qualidade-preço – quer o facto de que eles são na realidade pagos através das nossas contribuições, quer ainda a sua insuficiência em matérias como a pobreza e exclusão social.

Tomemos o caso da Educação. As despesas públicas em educação em Portugal (5,7% do PIB) superam a média europeia (5%) e estão muito próximas, por exemplo, da Finlândia (6%), um dos países com melhores níveis de desempenho em todos os indicadores. Mas quando se fala na política de educação e da necessidade de melhorar os seus resultados, quer relativamente a este governo, quer a outro qualquer, é mais dinheiro que se exige. E, todavia, Portugal consegue ser o país que mais gasta com a educação e pior desempenho tem neste domínio.

E o mesmo sucede noutras áreas da administração pública, nomeadamente na saúde, talvez o maior sorvedouro do dinheiro que nós, contribuintes, entregamos ao Estado. Também aqui o dinheiro que se gasta não tem qualquer comparação com a qualidade do serviço que é retribuído aos utentes. E quando se propõe qualquer reforma no intuito de tornar o seu desempenho mais eficiente aparece, demagogicamente, o fantasma do «serviço público», como se serviço público fosse sinónimo de gastar sem peso, conta e medida.

Outra reforma que dificilmente deixará de ter que se fazer, a menos que o declínio demográfico se inverta e a imigração supra algumas das carências, é a do prolongamento do período de vida útil. Na Europa central este assunto está na ordem do dia e tem sido objecto de protestos maciços. Em Portugal, onde a situação demográfica não é tão grave (embora a maior ineficiência da máquina estatal a torne financeiramente quase tão grave) tem-se ensaiado timidamente alguns passos.

Portanto, a questão da reforma da administração pública é urgente e inadiável. Aqui, porém, entramos num domínio difícil, que os políticos e os sindicatos têm preferido ignorar, mesmo quando - ou até sobretudo quando – a discutem.

A deterioração da imagem do serviço público, ligada à lentidão e à ineficiência exige que a reforma do Estado se centre em três pontos fulcrais: a busca permanente do aumento de eficiência da máquina pública, por intermédio da racionalização e do incremento da produtividade; a melhoria continuada da qualidade na prestação dos serviços públicos, visando atender aos requisitos da sociedade no que diz respeito à satisfação das suas necessidades sociais básicas e o resgate do serviço público como instrumento de expressão da cidadania e fórum de aprendizado social.

Todavia tem que se ter em conta que a obrigação de obter resultados eficientes na modernização do sector público necessita que os responsáveis pelas diversas unidades deste sector se tornem protagonistas relevantes dessa mudança. Ora a burocracia estatal e autárquica estabelece uma relação de interdependência com os demais grupos da sociedade. Essa interdependência é frequentemente caracterizada como clientelismo. Mas o desenvolvimento dessas relações é contraditório e conflituoso, pois o poder não se exerce de forma monolítica, apresentando clivagens que consolidam diferentes interesses, embora sejam sempre apresentados como “interesse público’.

Portanto, a modernização do aparelho do Estado deve contemplar a mudança no entendimento do significado do “interesse público” que não pode ser confundido com o interesse do próprio Estado, ou dos interesses corporativos dos grupos no interior desse aparelho.

Torna-se então claramente perceptível o estreito vínculo que existe entre o processo de modernização do aparelho do Estado e uma gestão inovadora dos recursos humanos desse mesmo Estado. A mudança da cultura burocrática é o fulcro da transformação, e a questão da qualificação profissional ganha então um novo significado. A valorização do funcionário representa a base do processo de construção colectiva do novo paradigma orientado para o cidadão e realizado pelo conjunto do funcionalismo de forma participativa. Isto não significa, necessariamente, mudar sistemas, organizações e legislação, mas sim criar as condições objectivas de desenvolvimento das pessoas que conduzirão e realizarão as reformas.

Para tanto, necessita-se requalificar a força de trabalho. É preciso que a nova estrutura se apoie no conhecimento humano. Assim, os trabalhadores devem ser capazes de mudar o seu enfoque de uma tarefa para outra de acordo com as prioridades e com as mudanças impostas exogenamente. Precisam habituar-se à mobilidade laboral, quer ao nível das tarefas, quer ao nível do local. Por isso, um dos aspectos mais importantes para o alcance de um bom nível de eficiência, é a questão da qualificação dos membros da organização. Essa qualificação permite que as pessoas enfrentem, de forma menos traumática, os desafios profissionais.

Cabe ainda salientar que esse processo de mudança não deve ser visto como a busca por um modelo definitivo, mas a procura de uma forma de estrutura organizacional menos rígida, mais ágil, constantemente adaptável a modificações contínuas.

Portanto, a reforma do aparelho do Estado passa pela adesão dos funcionários a essa reforma e por eles sentirem a sua necessidade em face dos anseios da sociedade civil. Não pode ser posta como uma política contra eles, mas sim com eles.

É óbvio que numa reforma da administração pública haverá gente que terá que ser reafectada a outras tarefas e, eventualmente, dispensada. Mas este último caso será a excepção. Uma organização deve reestruturar-se e reorganizar-se com as pessoas que tem. Criar uma organização com seres ideais entra no domínio da ficção. Deve gerir-se o material humano que se dispõe e não seres ideais, perfeitos e inexistentes.

Nada disto está a ser feito ou sequer planeado, ao que julgo saber, em Portugal. O Governo, em face da situação lamentável que encontrou, está apenas a atacar alguns sintomas. A administração é dispendiosa? Congelam-se os vencimentos e as admissões. E fazem-se declarações ad terrorem que servem para lançar o pânico no funcionalismo público, mas não têm qualquer efeito positivo. Pelo contrário, declarações desse tipo têm normalmente como consequência uma diminuição de produtividade.

E têm outra consequência: o governo não reforma a administração pública, não implementa medidas que, em alguns segmentos, seriam impopulares, mas fica com o ónus de algo que não fez, mas apenas ameaçou. O governo continua a não conseguir controlar a despesa pública, mas fica com o ónus do congelamento salarial. Este governo pode muito bem vir a ter uma punição idêntica ao governo de Raffarin, em França. E se a tiver terá que se culpar, em primeiro lugar, a si próprio.

Poderá alegar que a oposição tem sido demagógica. Mas essa é, frequentemente, a política da oposição. Por isso é que o governo deveria ter agido com competência e determinação, reformando e explicando a necessidade e o alcance das reformas.

É claro que as reformas terão que ser feitas e quanto mais tarde o forem, mais custosas serão e mais sacrifícios exigirão. E têm que ser feitas porque ao estarmos no sistema monetário europeu temos que cumprir, obrigatoriamente certas regras. Não podemos usar a política monetária e a desvalorização cambial para diminuir a despesa real, como acontecia antigamente.

Se não for este governo que as faça, o próximo será obrigado a fazê-las. Se o não conseguir, será o que lhe suceder. Entretanto o país estagnará economicamente e chegará a um limiar em que o eleitorado deixará de se iludir com promessas de vida fácil e resignar-se-á à inevitabilidade das reformas.

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fevereiro 02, 2004

Incompetências e ilegalidades

A burocracia é a forma capciosa de que se serve a administração pública para transferir o ónus da sua incompetência para o cidadão.

Não sabendo ou não sendo capaz de exercer uma fiscalização sobre a forma como as empresas, as famílias ou os cidadãos em geral cumprem as leis, a administração pública, ou melhor, os legisladores e fazedores de portarias, quer da administração central, quer da administração autárquica, estão permanentemente a criarem formas enviesadas de controlo, aumentando e complicando as papeladas a preencher no intuito de conseguirem por essa via o que não conseguem pela sua acção competente.

O reverso desta acção persecutória é a recusa da sociedade civil em cumprir a lei e o incremento da economia paralela. É sabido, por exemplo, que a maioria das obras é clandestina porque as pessoas não querem passar pelas complicações burocráticas do licenciamento camarário das obras.

Um caso extremamente aberrante e perverso está a acontecer agora com a legalização dos imigrantes. Para um imigrante se legalizar, a empresa que o emprega tem que apresentar, na Inspecção-Geral do Trabalho, o contrato de trabalho em triplicado, a prova do pagamento do imposto de selo, o comprovativo da autorização de funcionamento do estabelecimento, certidões das obrigações fiscais e de contribuições à Segurança Social, prova de que tem serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho e, por último, cópia autenticada de título profissional válido.

Resultado: dos 31 500 brasileiros que se registaram para se legalizarem ao abrigo do acordo entre Portugal e Brasil, apenas 1466 processos entraram na Inspecção-Geral do Trabalho, dos quais apenas obtiveram provimento (foram legalizados) 118 brasileiros.

E isto porquê? Porque as empresas recuam perante a sanha controladora da IGT. Aparentemente, a menos que haja uma explicação melhor (*), o Governo aproveitou esta oportunidade para obter receitas e fiscalizar as empresas sobre matérias que é incapaz de fiscalizar de outra forma. E quem fica prejudicado? Em primeiro lugar, os imigrantes que continuam ilegais, com o risco e a insegurança que tal acarreta. Em segundo lugar, as empresas e famílias (no caso do trabalho doméstico) que se arriscam a pagar coimas em caso de se descobrirem ilegais a trabalharem para elas.

Mas neste último caso, como em muitos outros no relacionamento do cidadão com a administração pública, compensa o crime de não cumprir a lei, face aos custos e aborrecimentos em cumpri-la.

Este fim de semana, no DN, António Pires de Lima fez uma exposição moralista sobre as virtualidades da nova lei. Aparentemente esqueceu-se de uma coisa: ela foi feita para não ser cumprida. Quem a fez ou é hipócrita, ou não percebe os mecanismos pelos quais as leis em Portugal não são cumpridas. Quer num caso quer noutro, não devia estar em situação de legislar. Legislar não é nem para hipócritas, nem para ignorantes. Só pondo gente de bem e competente a legislar se pode exigir que os cidadãos se comportem como gente de bem.

À falta disso, resta-nos ir para os meios de comunicação fazer discursos moralistas e estéreis. Não servem para nada, mas mostram boas intenções. E mostram como se mantém válido o aforismo popular «de boas intenções, está o inferno cheio».


(*) A explicação relativa à falta do registo criminal é perfeitamente ridícula em face da diferença abissal entre os que pretendem a legalização, e os que a obtiveram (0,3%). Será que os restantes 99,7% são cadastrados?

Publicado por Joana às 07:35 PM | Comentários (14) | TrackBack

janeiro 30, 2004

O Estado e os veados

Ou como estas duas espécies protegidas só causam transtornos

Uma proprietária absentista de um pequeno monte alentejano (absentista porque precisa de um bom emprego em Lisboa para custear as despesas de manutenção do monte), tem veados na sua propriedade.

Eles foram para lá contra vontade dela. Provavelmente eles próprios também não teriam manifestado qualquer interesse em viver naquele monte, numa planura cálida e desarborizada, rodeados por uma vedação alta e intransponível. Igualmente não se sabe se entre as alegações do processo divórcio movido pela proprietária em questão, figurava a teimosia do ex-marido em ter comprado os veados. São assuntos passados e não interessam para esta história.

Os veados não são propriamente animais domésticos. O caseiro da proprietária, homem destemido e afeito à bicharada, alardeando a convicção segura que eles o conheciam perfeitamente, visto ser ele que lhes dá a ração diária, entrou um dia no cercado, de peito feito, para mostrar como os veados lhe eram afeiçoados. Saiu de peito desfeito para o hospital distrital, onde esteve vários dias internado a recuperar de uma marrada. Nem a eventualidade de ficarem sem o serviço de cattering levou os veados a uma postura mais civilizada.

A proprietária vivia a lamentar-se junto das amigas. Como são animais protegidos e com alvará, não é fácil vendê-los. Aliás, já nem se punha a questão de os vender. A proprietária estava de tal forma desesperada que os daria a quem os quisesse. Passou-lhe mesmo pelo pensamento a ideia de lhes facilitar a fuga, pela calada da noite, mas soube depois que poderia ter problemas, visto que seria fácil verificar a sua proveniência, quando fossem capturados. E o mais grave era que, contrariamente aos hábitos dos restantes alentejanos, os veados em questão evidenciavam uma forte taxa de natalidade.

Alguns de vocês, menos ligados à defesa dos animais, perguntarão: e porque não comê-los e dizer que morreram de paragem cardíaca?

Julgo que houve uma ou duas tentativas, mas não era fácil. Tem que se contratar alguém para os abater a tiro e pessoal para os esfolar e esquartejar, e tudo isto rodeado do máximo sigilo, em plena clandestinidade. Corre-se o risco, no mínimo, de uma coima elevada e os matadores e esfoladores ficam com mais de metade da carcaça. Julgo, todavia, que uns bifes de veado que comi, há uns anos, na casa paterna, devem ter sido provenientes de algum acidente com arma de fogo, misteriosamente ocorrido naquele monte.

Até que, finalmente, as preocupações da proprietária absentista pareceram que iriam findar. Uma colega dela, familiar de um técnico dos quadros da Tapada de Mafra, ouviu este lamentar-se que, com os recentes fogos, tinham sido dizimados os veados da Tapada. E lembrou-se da desastrosa situação da amiga.

Estava tudo resolvido: a tapada, deficitária de veados, poderia colmatar esse défice. A proprietária absentista, farta dos veados, ver-se-ia livre deles.

Estava configurado o cenário ideal para se resolver um problema com a administração pública:
Alguém (a proprietária absentista) entregava, a título gracioso, algo (os veados) ao Estado (Tapada de Mafra);
O Estado (representado por amigos e familiares da doadora) aceitava a dádiva;
Passava-se tudo entre amigos, naquele compadrio inocente, que é, em Portugal, a única forma garantida de resolver as questões entre o cidadão e o Estado.

A Tapada de Mafra ficou de tratar da papelada, da guia de transporte e de outras questões logísticas e a proprietária, do bolso dela, pagou a um veterinário para passar um certificado que assegurava que os veados estavam bons de saúde, desejavam ardentemente conhecer a Tapada de Mafra e ver as vistas do Convento e revelavam um forte instinto de sobrevivência em caso de fogos florestais.

Estava tudo a postos, quando telefonam da Tapada de Mafra: não tinha sido possível em tempo útil transferir o alvará da proprietária para a Tapada!

Um drama! As guias de transporte tinham uma validade de apenas um ou dois dias e o certificado do veterinário só era válido por 48 horas, o que se compreende: os veados têm uma constituição frágil, constipam-se com qualquer corrente de ar e são muito volúveis em matéria de opinião, logo, um certificado veterinário tem que ter um período de validade muito reduzido.

Portanto, todo o processo da obtenção da papelada terá que recomeçar de novo. A proprietária da nossa história será obrigada a chamar novamente um veterinário para observar os veados, etc., etc.. Nem estando em causa uma dádiva, nem usando o mais descarado compadrio, a burocracia estatal se compadece.

É mais fácil divorciar-se de um marido, que de uma manada de veados.

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janeiro 29, 2004

Choque de civilizações

A forma como no Reino Unido foi dirimida a questão David Kelly mostrou que o UK está muitas dezenas de anos afastado do nosso país em matéria civilizacional. Eu não queria afirmar se esse afastamento será um avanço ou um atraso. A mim parece-me um avanço e muito significativo. Mas para não polemizar, fiquemos no “afastamento”.

E isto porque:

1 – O Sr. David Kelly era uma homem que prezava a sua honorabilidade, sabia que devia lealdade à instituição de que era funcionário e apercebeu-se que as suas eventuais declarações a Andrew Gilligan, bastante amplificadas segundo se depreende das afirmações que produziu no parlamento no âmbito da sua audição e agora pelos resultados do inquérito, o colocavam numa posição com a qual a sua honra, e o respeito que devia a si próprio, não podiam continuar a conviver.

Em Portugal, os detentores de cargos da Administração Pública, ou parte significativa deles, não sentem quaisquer pruridos em contar aos jornalistas tudo o que lhes apraz, satisfazerem vinganças mesquinhas, pessoais ou políticas, ou apenas a sua sede de protagonismo. Basta ver como os despachos e autos cobertos pelo segredo de justiça são conhecidos na íntegra ou em partes importantes, cá fora, ainda antes que os interessados deles tenham conhecimento. E isto é mais grave que um atropelo de ética – é uma violação grosseira e impune da lei.

2 – O Parlamento Britânico foi firme perante as fugas de informação e fez uma audição em que as questões relativas à obrigação de lealdade do servidor público prevaleceram sobre disputas partidárias ou opiniões divergentes sobre a questão das razões da guerra. O Parlamento Britânico sabe separar as instâncias e as situações em que se devem discutir uma e outra questão e que as eventuais razões, ou ausência delas, numa, não justificam o comportamento na outra.

Os parlamentares portugueses, ou parte significativa deles, não têm nem coragem política, nem autoridade moral para tomar uma atitude idêntica. Aliás, mesmo que alguns o quisessem fazer, e ao invés do acontecido no Parlamento Britânico, as querelas partidárias prevaleceriam sobre questões éticas e o debate afundar-se-ia na esterilidade sem futuro em que decorre a nossa vida política.

3 – A BBC, pode ter feito um mau jornalismo mas, em face da situação que se gerou, soube assumir as suas responsabilidades:

Em primeiro lugar, revelou a sua fonte.

Depois, admitindo que a sua actuação poderia não ter sido apropriada, sujeitou-se a um inquérito dirigido por um juiz.

Finalmente, em face dos resultados do inquérito, reconheceu imediatamente que eram falsas algumas alegações-chave avançadas pelo jornalista Andrew Gilligan sobre o dossier do armamento iraquiano que serviu para justificar a entrada dos britânicos na guerra.

E fez algo estarrecedor e incompreensível para os costumes lusos: pediu desculpas públicas.

Pior e mais enigmático para os puro sangue lusitanos, o Presidente da BBC demitiu-se!

Em Portugal, os meios de comunicação portugueses não fariam declarações públicas, como as que a BBC fez, revelando a sua fonte. Para os jornalistas portugueses, ou parte significativa deles, a sua liberdade informativa está acima das instituições e sobrepõe-se a quaisquer questões de ética, respeito pela dignidade e privacidade da pessoa humana, atropelos à lei, etc..

Por exemplo, no caso das Cartas anónimas anexas ao processo Casa Pia, estas foram tornadas públicas pelo JN, violando a deontologia profissional, comentadas, segundo o JN, por alegados especialistas de Direito Penal, o que era obviamente falso, visto que verdadeiros especialistas não diriam os disparates que o JN inseriu como tais e, em face dos protestos que choveram, entre eles do PR, o JN nem pediu desculpas, nem admitiu qualquer conduta menos própria.

Em Portugal, Gavyn Davies estaria esta noite a ser entrevistado em horário nobre, para todos os canais, explicando com convicção, firmeza e determinação que apenas tinha cumprido o seu dever indeclinável de informar o público e como esse era o valor mais elevado a que ele se sentia vinculado.

Ou Portugal ou o UK, um deles, tem muito, mas mesmo muito, que aprender (ou desaprender).

Publicado por Joana às 08:53 PM | Comentários (19) | TrackBack

janeiro 28, 2004

Vampiros desmiolados ou o país do incrível

O país acordou ontem alarmado. O Ministério da Justiça tinha, na douta opinião do eminente fiscalista Saldanha Sanches, que tem aliás uma pendência em tribunal com a ministra, “cometido um crime fiscal, pura e simplesmente”. E isto porque, como escreveria hoje, algo precipitadamente, F Madrinha, “o ministério da Justiça guardou no cofre as contribuições para a Segurança Social de meio milhar de funcionários, os quais viram o seu dinheiro descontado ao longo do ano, mas ficaram impedidos de receber os benefícios a que tinham direito”.

Imediatamente o país foi alertada para o facto de que a lei prevê pena de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias nos casos em que as entidades empregadoras, efectuados os descontos aos trabalhadores, não entreguem total ou parcialmente as contribuições devidas à Segurança Social. Todos os noticiários falavam em crime fiscal. O julgamento estava feito. Faltava a execução sumária.

Ontem glosei aqui este tema como julgo que ele merecia. E glosei-o em duas vertentes:

Uma, que era a que deveria preocupar mais as pessoas, a incapacidade da burocracia do Estado de resolver em tempo oportuno uma situação em que, tudo o indicava, os ministros envolvidos estariam de acordo. Culpa da burocracia do Estado e da pouca imaginação e/ou clarividência dos governantes envolvidos. Por isso, durante um ano os funcionários da justiça em causa estiveram em situação irregular.

Outra, metendo a ridículo a teoria da alegada burla do Estado cometida relativamente ao próprio Estado.

Porque era evidente desde o princípio que o único problema, e não era pequeno, era o da estúpida burocracia e do pouco empenho ou clarividência governativa em encontrar uma solução. Os restantes decorriam deste e não constituiam problema, pois a sua solução seria automática quando aquele problema fosse resolvido.

Mas não. Os meios de comunicação e os kamikazes da net estão ansiosos por sangue. Nem pensam nem ponderam as questões. Há crime, dizem eles!

Nem pensaram que se tratava da CGA e não da Segurança Social. Nem puseram a si próprios a questão de saber se, estando os trabalhadores em situação irregular, sem quadro definido, seria possível a entrega dos montantes retidos e sob que forma. Nada! Quando os vampiros estão sequiosos de sangue, não pensam. Cravam os dentes no que aparece, mesmo se depois se verificar que se trata de um líquido muito menos suculento, azedo e indigesto. É que os vampiros da natureza agem movidos pelo instinto; os vampiros a que me refiro, agem movidos pelo cretinismo político.

Porque:

Não houve crime fiscal pois o Estado não se apropriou ilicitamente de algo de outrem, porque não houve transferência do património do Estado para outrem ou de outrem para o Estado;

O vínculo contratual de um trabalhador a uma empresa só tem uma moldura contributiva (e para a Segurança Social) enquanto que no Estado pode haver enquadramentos diversos com molduras contributivas diferenciadas, o que faz com que não se possam comparar as situações;

O valor retido estava provisoriamente à disposição da DGT, não saiu do Estado nem foi usado para outros fins;

Os funcionários abrangidos «não» perderam durante esse período regalias sociais a que tinham direito; ficaram apenas durante algum tempo sem receber abono de família e subsídios equiparados que, ao que foi dito, irão receber agora, que a situação está regularizada, retroactivamente;

E o que é mais espantoso é que não se ouviu nenhum dos funcionários abrangidos queixar-se de nenhum destes problemas referidos acima. Queixavam-se, sim, e com toda a razão, da situação de indefinição contratual em que se encontravam.

Todos os hediondos crimes assinalados não passaram de uma tempestade que só ocorreu nos crânios de alguns políticos, meios de comunicação social e kamikazes da net.

Publicado por Joana às 09:08 PM | Comentários (35) | TrackBack

janeiro 27, 2004

Uma História Curiosa

O Estado (Ministério da Justiça) queria manter ao serviço 582 funcionários eventuais, cujos contratos terminavam a 31 de Dezembro de 2002. Para isso, elaborou contratos a termo certo e despachou nesse sentido.

O Estado (Ministério das Finanças) não despachou aquele despacho do Estado (Ministério da Justiça).

O Estado (Ministério da Justiça) manteve esses funcionários, ignorando a falta de vontade manifestada pelo Estado (Ministério das Finanças).

Como o Estado (Ministério da Justiça) não obteve despacho do Estado (Ministério das Finanças) sobre aquela matéria que já tinha despachado, não entregou os descontos ao Estado (Segurança Social), sobre os vencimentos de funcionários que, obviamente, não tinham existência para o Estado (Ministério das Finanças).

Ao fazê-lo o Estado (Ministério da Justiça) burlou o Estado (Segurança Social) em 670 mil euros e abusou da confiança do Estado (Ministério das Finanças), mantendo aqueles funcionários, inexistentes para o Estado (Ministério das Finanças), ao serviço.

Para Saldanha Sanches, douto especialista em Direito Fiscal "foi cometido um crime, pura e simplesmente", opinião partilhada por técnicos de várias consultoras ouvidas pelo "Jornal de Negócios".

A lei prevê pena de prisão de um a cinco anos para os casos em que as entidades empregadoras, efectuados os descontos aos trabalhadores, não entreguem total ou parcialmente as contribuições devidas à Segurança Social.

Portanto, o Estado (Ministério da Justiça) está na iminência de ser preso por aquela infracção. Resta saber qual a moldura penal para o crime de abuso de confiança no que concerne ao abuso de manter funcionários ao serviço, ignorando o não-despacho do Estado (Ministério das Finanças).

Como o Estado (Ministério da Justiça) contém em si (tutela) os estabelecimentos prisionais, irá, após pedir a comparência da comunicação social, dar voz de prisão a si próprio, conduzir-se aos estabelecimentos prisionais mais próximos, abrir as grades das prisões e encerrar-se lá dentro.

Contudo, sabe-se que o Estado (Ministério das Finanças) resolveu recentemente o assunto daquele despacho do Estado (Ministério da Justiça), despachando favoravelmente. Se despachou agora favoravelmente e antes não, e tendo em conta que essa situação irregular esteve na base da burla em questão, o Estado (Ministério das Finanças) é conivente na burla.

Por sua vez, os 582 funcionários eventuais só na véspera da assinatura do despacho favorável denunciaram a situação. Logo, durante um ano foram coniventes com a criminosa burla.
Portanto, quando o Estado (Ministério da Justiça) se encerrar nas masmorras, deverá levar consigo o Estado (Ministério das Finanças) e os 582 funcionários eventuais.

Resta saber o que fará às chaves.

Se estivéssemos na década de 30, esta curiosa história daria um bom argumento para um filme dos Irmãos Marx.

Publicado por Joana às 08:10 PM | Comentários (32) | TrackBack

janeiro 25, 2004

Vício original

Na abertura do Ano Judicial os responsáveis pela justiça portuguesa foram unânimes em avisarem: a justiça precisa de mais dinheiro; sem mais dinheiro nós não teremos uma justiça a funcionar em condições.

Os portugueses andam há séculos a pagar uma administração pública. Há séculos que essa administração pública funciona com grandes deficiências ou, pura e simplesmente, não funciona.

Mas quem tem a culpa da justiça e da restante administração pública funcionar mal, não cumprir as suas responsabilidades e não satisfazer a sociedade e os cidadãos?

A culpa é nossa.

Mas, é nossa a culpa, porquê? Não lhe damos dinheiro?

Claro que damos. Uma parte muito significativa do valor acrescentado que produzimos é para pagar à administração pública.

Então o que é preciso mais?

É preciso mais dinheiro. A administração pública não custa caro, não desperdiça recursos, não tem nenhum desses vícios de funcionamento que levam as empresas privadas à falência e as famílias à penhora e ao despejo. Nada disso, a administração pública está escorreita, aprumada, impaciente para arrancar imparável e resolver todos os nossos problemas de aplicação de justiça, de assistência médica, de ministro da instrução pública, etc.. Está ali, na linha de partida, à espera, músculos retesados, aguardando ... aguardando o quê? Mais dinheiro!

A administração pública não precisa de dinheiro. Precisa de mais dinheiro.

Como a culpa das insuficiências da administração pública, da péssima prestação que fornece à população, nunca é da própria, mas sim dos outros, dos políticos e dos que precisam de se servir dela - as vítimas, os doentes, os alunos, etc., ela não é reformável. Uma organização só é reformável quando tem consciência que presta serviços insuficientes, que desperdiça recursos, que é cara.

Por isso os recursos financeiros orçamentados e os investimentos previstos para a administração pública serão sempre manifestamente insuficientes. Por isso pede permanentemente que os governos e a sociedade, que são, como se viu, os culpados do seu mau funcionamento, lhes dêem mais recursos.

É por isso que precisa sempre de mais dinheiro. E quando tiver mais dinheiro, precisará ainda de mais.

Não é um pecado original, é um vício original.

Publicado por Joana às 11:33 PM | Comentários (14) | TrackBack

outubro 03, 2003

A questão David Kelly não é da nossa civilização

A questão David Kelly é claramente matéria que não nos diz respeito:

1 – O Sr. David Kelly era uma homem que prezava a sua honorabilidade, sabia que devia lealdade à instituição de que era funcionário e apercebeu-se que as suas eventuais declarações a Andrew Gilligan, bastante amplificadas segundo se depreende das afirmações que produziu no parlamento no âmbito da sua audição, o colocavam numa posição com a qual a sua honra, e o respeito que devia a si próprio, não podiam continuar a conviver.

Em Portugal, os detentores de cargos da Administração Pública, ou parte significativa deles, não sentem quaisquer pruridos em contar aos jornalistas tudo o que lhes apraz, satisfazerem vinganças mesquinhas, pessoais ou políticas, ou apenas a sua sede de protagonismo. Basta ver como os despachos e autos cobertos pelo segredo de justiça são conhecidos na íntegra ou em partes importantes, cá fora, ainda antes que os interessados deles tenham conhecimento. E isto é mais grave que um atropelo de ética – é uma violação grosseira da lei.

2 – A BBC, pode ter feito um mau jornalismo mas, em face da situação que se gerou, soube assumir as suas responsabilidades e revelar a sua fonte.

Em Portugal, os meios de comunicação portugueses não fariam declarações públicas, como as que a BBC fez, revelando a sua fonte. Para os jornalistas portugueses, ou parte significativa deles, a sua liberdade informativa está acima das instituições e sobrepõe-se a quaisquer questões de ética, respeito pela dignidade e privacidade da pessoa humana, atropelos à lei, etc.

3 – O Parlamento Britânico foi firme perante as fugas de informação e fez uma audição em que as questões relativas à obrigação de lealdade do servidor público prevaleceram sobre disputas partidárias ou opiniões divergentes sobre a questão das razões da guerra. O Parlamento Britânico sabe separar as instâncias e as situações em que se devem discutir uma e outra questão e que as eventuais razões, ou ausência delas, numa, não justificam o comportamento na outra.

Os parlamentares portugueses, ou parte significativa deles, não têm nem coragem política, nem autoridade moral para tomar uma atitude idêntica. Aliás, mesmo que alguns o quisessem fazer, e ao invés do acontecido no Parlamento Britânico, as querelas partidárias prevaleceriam sobre questões éticas e o debate afundar-se-ia na esterilidade sem futuro em que decorre a nossa vida política.

21-Julho-2003

Publicado por Joana às 10:00 AM | Comentários (1) | TrackBack

outubro 01, 2003

Não generalizemos

Não generalizemos e não sejamos maniqueístas.
Há na Administração Pública muita coisa a funcionar e alguma a funcionar bem. O Instituto Hidrográfico não tem mostrado competência e dedicação? Não há muitos professores dedicados e competentes? Nos serviços de saúde não há pessoal com brio e saber?
A questão é que a máquina estatal, como entidade em geral, funciona com grande ineficiência e desprezo pelos seus concidadãos. E isso dá ao cidadão comum um quadro muito desagradável do funcionalismo público.
A agravar isto, verifica-se que a estratégia sindical, tal como é protagonizada, dá a noção de que visa sobretudo defender a mediocridade instalada e a concepção de posto de trabalho como asilo. Por exemplo, estas últimas intervenções do representante sindical dos trabalhadores dos impostos são profundamente abjectas e constituem um paradigma do comportamento sindical no nosso país.
No âmbito universitário as decisões sobre currículos, numerus clausus e outras, são tomadas para satisfazer compadrios e clientelismos em detrimento dos interesses nacionais e pedagógicos.
Esta feudalização de pequenos centros de poder defensores de interesses corporativos agravou-se sobremaneira durante o período guterrista. Hoje, governar o país é muito mais difícil do que há 6 anos. Qualquer pedra em que se mexa surgem clamores indignados de todos os pequenos interesses instalados.
A solução terá que passar pela introdução generalizada, em todos os níveis, de procedimentos de qualidade, de formas de avaliação de desempenho e de premiar ou penalizar o desempenho do pessoal. É isso que se está a generalizar nos privados e que fatalmente se terá que estender à função pública, porque senão o país não sairá da cepa torta.

13-Dezembro-2002

Publicado por Joana às 10:51 AM | Comentários (2) | TrackBack