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dezembro 19, 2005

Democracia Representativa vs Directa

Relativamente a um debate blogosférico ocorrido há dias entre o Insurgente e o Vento Sueste sobre a Democracia Participativa (julgo que no sentido de Democracia Directa, porquanto na Democracia Representativa há participação) versus Representativa, que só agora tive oportunidade de ler, há exemplos que foram trazidos à colação como argumentos, que não me parecem correctos. Como primeiro exemplo, a afirmação de que «pode perfeitamente haver uma "democracia representativa" sem garantias constitucionais (a França sob o Terror é um bom exemplo)» é incorrecta. Se é verdade que a Convenção Nacional era um organismo representativo, os seus membros não estiveram, durante o Terror, no pleno uso das suas capacidades como representantes dos seus eleitores.

Paris esteve, nessa época, dominada pela Comuna de Paris cujo poder assentava nas secções populares armadas. Isso permitiu a que um grupo partidário, a Montanha, que disporia pouco mais de 10% dos deputados à Convenção, conseguisse levar avante a sua política totalitária, através do terror imposto pelas secções populares, que sitiavam e invadiam a Convenção, armadas, quando pretendiam impor-lhe a sua vontade. A Comuna de Paris foi o exemplo típico do que posteriormente se designou por “democracia participativa”: uma absoluta perversão totalitária; o serem, por direito próprio, os depositários da verdade; a mais abjecta intolerância para quem não comungasse dessa verdade, que foram liquidados como reaccionários; uma democracia constituída apenas por eles próprios, cujas chefias se perpetuavam ad eternum, sem nunca se submeterem ao escrutínio público e que eram as únicas a saber interpretar fielmente a “vontade popular”, mesmo quando essa “vontade” não correspondesse à vontade expressa nas urnas. Quando no Thermidor(1794) foi possível destruir o poder armado dessa “democracia pseudo-participativa”, verificou-se que aquela não tinha qualquer conteúdo real, apenas se limitava a mobilizar arruaceiros com palavras de ordem demagógicas.

Quanto à afirmação que “temos montes de exemplos de "democracia participativa" que não conduziram a ditaduras, desde Atenas até à Islândia medieval, passando pelas tribos germânicas ou berberes, os cantões suiços, os "town meetings" da Nova Inglaterra, etc.” é uma mistura que confunde coisas muito diversas. Porque não também os Sioux ou os Guaranis? As sociedades tribais primitivas eram pequenas aldeias, sedentárias ou nómadas, e o seu funcionamento não pode exemplificar o funcionamento da sociedade actual. Aliás, evoluíram todas no sentido de ficarem agregadas sob regimes despóticos, excepto aquelas cuja a colonização travou a evolução natural. Os colonos da Nova Inglaterra, agrupados em pequenos núcleos, eram gente perseguida por motivos religiosos, com uma grande identidade própria, religiosa e de cidadania. Mas por cima deles havia uma autoridade que punha baias nas suas capacidades decisórias. Mesmo assim houve o caso das bruxas de Salem, então um pequeno povoado, onde dezanove pessoas, na sua maior parte mulheres, foram declaradas culpadas e executadas num clima de completa histeria colectiva.

Quanto à Grécia Antiga ela foi, de facto, o berço da democracia, mas importa lembrar que essa democracia existiu apenas num pequeno número de cidades-estado e por um período de tempo muito limitado. A democracia ateniense, cujo vibrante elogio feito por Péricles é uma das páginas mais belas do ideal democrático, cairia duas ou três décadas depois, após uma guerra sem sentido, para a qual concorreu muita demagogia política. Basta ver como Alcibíades convenceu os atenienses a uma expedição à Sicília, completamente insensata e cujo desastre levou Atenas à exaustão e à capitulação. Após a derrota na Guerra do Peloponeso, Atenas oscilou entre tirania e democracia, despojada das glórias passadas, até à conquista macedónica, meia dúzia de décadas depois. Além do mais, se Atenas teria, na época de Péricles, cerca de 400 mil habitantes, os cidadãos não seriam mais de 20 mil. Só eles “usavam” uma democracia onde os direitos individuais não eram garantidos, nem na teoria, nem na prática, e onde as assembleias populares tinham poderes ilimitados que conduziam, às vezes, às maiores perversões (o julgamento de Sócrates, por exemplo). A democracia ateniense era a sujeição do indivíduo à autoridade de uma comunidade cuja vontade não conhecia limitações.

Na minha opinião, e os exemplos históricos militam a favor dela, a democracia representativa é a forma governativa que permite o equilíbrio entre o controlo popular e a decisão deliberativa. Como afirmou Edmund Burke: «O vosso representante deve-vos não só os seus actos, mas também o seu julgamento e trai-o se, em vez de vos servir, sacrifica esse julgamento à vossa opinião … na verdade haveis escolhido um representante mas quando o fizeste, ele não já é o vosso representante, mas um membro do Parlamento». Ou seja, nós delegamos a nossa capacidade de decisão em pessoas em cujo julgamento confiamos. Essa delegação permite que as sociedades não oscilem ao sabor de demagogias de momento, e que os governos tenham tempo de implementar a sua política e serem depois julgados por ela. Não funciona necessariamente bem, mas o equilíbrio entre o controlo popular e a decisão deliberativa, assegura que mesmo funcionando mal, seja o mal menor.

Todas as formas de regime que se arrogaram do título de democracia participativa conduziram a modelos totalitários com as características que descrevi no parágrafo sobre a pseudo-representatividade de uma Convenção Nacional, durante o Terror, permanentemente sob o cutelo da guilhotina, um cutelo manejado pelos arruaceiros liderados pela Comuna de Paris e pelo Clube dos Jacobinos

Publicado por Joana às dezembro 19, 2005 08:00 PM

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Comentários

... não há nenhuma kpk à vista... venho aqui morder o nº 1, não que eu goste dessa koisa primeva do direito de pernada, mas enfim.

Só para lembrar que quando Hefestion morreu, quando parecia melhorar, alexandre, louco de dor, mandou enforcar o médico. Foi um sururu danado entre os homens, nem o rei da Macedónia, nem o grande Alexandre, podia mandar matar sem passar por votação dos homens (soldados).

Alexandre morreu um mês depois. Cumpria-se o oráculo de Amon.

PS e eu estou ali no quentinho a ler o Incal, que me apareceu direitinho na Bertrand qunado fazia horas para is ver a ópera do Mishima. Era sobre uma história de amor entre mulheres (espiritual), quem fikou a ver navios foi o homem... O Mishima fez hara-kiri como sabem.

Publicado por: py às dezembro 19, 2005 09:25 PM

Ou seja: na democracia representativa não há lugar a referendos.

Publicado por: Senaquerib às dezembro 19, 2005 09:28 PM

Senaquerib às dezembro 19, 2005 09:28 PM: Os referendos não se destinam a escolher quem nos governa, mas a obter respostas a perguntas específicas.

Publicado por: Joana às dezembro 19, 2005 09:43 PM

Então os nossos representantes não sabem dar respostas a perguntas específicas?
Representam o quê, afinal?

Publicado por: Senaquerib às dezembro 19, 2005 10:11 PM

Existindo a possibilidade de ser implementada uma democracia directa, e sendo imposta uma democracia representativa pelos representantes ou mesmo pela maioria do povo, a "democracia representativa" deixa de ser uma democracia, além de deixar de ser representativa.

Publicado por: Incognitus às dezembro 19, 2005 10:14 PM

Se existirem 6000000 de eleitores, uma democracia representativa PODE coexistir com uma democracia directa. Conceptualmente, quem não quisesse ser representado poderia ter o seu voto a valer 1/6000000 do total.

Se a possibilidade técnica existe e no entanto lhe retiram o poder de voto, já não estamos perante uma democracia.

Publicado por: Incognitus às dezembro 19, 2005 10:17 PM

A democracia (sob qualquer forma) pode não ser o mais justo, ou o mais correcto, ou o mais eficaz modelo de liderança.
Outros estilos (autoritário, "laisser-faire", etc.) podem ser melhores, consoante o grau de qualificação do grupo a que se dirigem.
A democracia, em certas circunstâncias, pode até ser altamente desorientadora.
E isto nada tem a ver com ditaduras ou tiranias, etc.

Publicado por: Senaquerib às dezembro 19, 2005 11:13 PM

Publicado por: Senaquerib às dezembro 19, 2005 09:28 PM

Sim, o recurso ao referendo deve ser usado com a máxima cautela e parcimónia.

Excelente e certeiro post. Andou a ler O Futuro da Liberdade? Lá encontra-se outra magnífica citação, sobre o equilibrio entre o controlo popular e o poder liberativo, do Profiles in Courage do J. F. Kennedy:

"Tal ponto de vista pressupõe que a população do Massachusetss me mandou para washington para servir apenas de sismógrafo com a função de registar as mudanças de opinião pública(...) Os eleitores escolheram-nos porque tinham confiança no nosso julgamento e na nossa capacidade de o exercer, segundo o que possamos determinar serem os seus interesses, dentro dos interesses da Nação. Isso significa, se for necessário, ter o dever de dirigir, informar, corrigir e, por vezes, ignorar a opinião pública de que fomos eleitos representantes."

Publicado por: cordobes às dezembro 19, 2005 11:29 PM

Estou de acordo com tudo o que a Joana escreve neste artigo.

Bastante sensato. :)

Publicado por: Alfredo às dezembro 20, 2005 07:24 AM

Não estou de forma nenhuma de acordo com os elogios que a Joana faz à "democracia representativa". Aliás, o que ela defende é que essa forma de governo NÃO deve ser democrática: ela defende que, a partir do momento em que o "representante" é eleito, ele já não necessita de representar, passa a ser um governante, efetivamente não democrático.

Já agora: a Suíça vive há séculos em regime de democracia largamente direta e, que se saiba, não exibe as perversões que a Joana aponta.

Publicado por: Luís Lavoura às dezembro 20, 2005 09:33 AM

A Joana também não nos explica de que forma é que o seu conceito (a meu ver) anti-democrático de democracia representativa evita as tiranias e as demagogias de que nos ofereceu exemplos históricos. Ao fim e ao cabo, praticamente todas as democracias foram e são, historicamente, democracias representativas. Hitler subiu ao poder numa democracia representativa. A própria democracia representativa americana já proporcionou a opressão dos direitos individuais dos cidadãos - de forma sistemática para com os negros e os índios, ao longo de séculos, e em episódios esporádicos mesmo com a população branca, por exemplo durante o mc.carthismo.

Publicado por: Luís Lavoura às dezembro 20, 2005 11:08 AM

Os cantões suiços nãao são democracias directas, mas sim representativas. A maioria deles tem mesmo mais população que o Luxemburgo

Publicado por: Frederico às dezembro 20, 2005 11:43 AM

O facto da unidade institucional ser pequena não significa que seja uma democracia directa.
Acaso as eleições para as nossas autarquias, algumas com menos de 3 mil hab. são democracia directa?

Publicado por: Frederico às dezembro 20, 2005 11:46 AM

Frederico

Alguns cantões suíços, muito pequenos (nomeadamente Appenzell), regem-se por democracias muito próximas da direta. Mas eu referia-me sobetudo à abundância de referendos na Suíça. Na Suíça praticamente tudo é sujeito a referendo.

Publicado por: Luís Lavoura às dezembro 20, 2005 12:48 PM

Na Califórnia também tudo é sujeito a referendos o que conduziu a resultados desastrosos.

Publicado por: Mário às dezembro 20, 2005 02:51 PM

Mário às dezembro 20, 2005 02:51 PM

Quais?

De qualquer forma: é evidente que qualquer forma de democracia pode conduzir a resultados desastrosos. Tal como qualquer forma de autocracia também pode conduzir a resultados desastrosos. No dilema, então, penso ser menos má a democracia do que a autocracia.

Publicado por: Luís Lavoura às dezembro 20, 2005 03:13 PM

A resposta já está lá.

Publicado por: Miguel Madeira às dezembro 20, 2005 05:17 PM

A Califórnia vive num regime em que cerca de 3/4 do orçamento estadual vão para subsídios que ninguém sabe.

Numa tentativa de alargar a democracia "participativa", com a utilização de muitos referendos, o poder foi-se transferindo para grupos de pressão, beneficiando uma reduzida parcela da população em deterimento de todos os outros.

Publicado por: Mário às dezembro 20, 2005 05:38 PM

Mário às dezembro 20, 2005 05:38 PM

Não percebo nada daquilo que Você está a dizer, mas parece-me que Você está a sugerir que a maioria do povo vota em referendos por forma a beneficiar apenas algumas minorias. Um resultado muito curioso.

Em todo o caso, parece que a Califórnia, tal como a Suíça, é bastante rica. Pelo que, aparentemente o resultado de todos esses referendos não é tão negativo assim.

Mas, é claro, talvez o Mário saiba melhor o que é bom para os californianos do que eles próprios. Há pessoas assim, que sabem muito.

Publicado por: Luís Lavoura às dezembro 20, 2005 06:00 PM

Publicado por: Luís Lavoura às dezembro 20, 2005 06:00 PM,

Um grupo de pressão, com uma empresa de sondagens e advogados bem pagos consegue ir adquirindo poder. Uma vez conferido o subsídio é quase impossível voltar atrás. A suíca é muito diferente da Califórnia, há muito mais dinheiro na Califórnia.

Publicado por: Mário às dezembro 20, 2005 06:05 PM

O importante não é o facto de ser representativa ou directa. O importante é haver um prazo determinado para o povo poder escolher de novo o representante (coisa que Hitler aboliu assim que lá chegou). Repito: um prazo determinado.

A democracia directa não dá prazo nenhum. Está-se sempre a voltar à escolha popular, com tudo o que isso tem de negativo.

A representativa assenta num contrato com tempo determinado. Dá tempo ao representante para agir livre da pressão da "maralha", mas assegurando que ele será julgado de novo. Compromisso, portanto.

A directa só serve à demagogia.

A representativa com prazo muito curto funciona quase como a directa.

Publicado por: J P Castro às dezembro 20, 2005 10:17 PM

já tou com olhinhos de sono. Uma koisa o Soares já ganhou: deixou-nos a todos com a ilusão de que é possível chegar aos 80 como ele. Ná, muito poucos chegam lá assim.

Publicado por: py às dezembro 20, 2005 10:19 PM

mas bem haja pela esperança

Publicado por: py às dezembro 20, 2005 10:20 PM

JP vou basar outra vez. Está bem visto essa do prazo. Sabias que os grandes revolucionários nessas coisas foram as ordens mendicantes do século XIII? já vinha dos beneditrinos o voto secreto, mas precisamente sem prazo determinado: resultado o abade podia eternizar-se.

Foram os franciscanos e dominicanos que estabeleceram para além do voto a feijões, o limite de dois mandatos consecutivos, para obrigar à rotação.

Quando voltar ver se akalmo (estou a escrever...) e te mando umas fotos e conversa secreta (?). Abraço

Publicado por: py às dezembro 21, 2005 08:47 AM

oops, aqui não pode haver gralha: Beneditinos,

a Regra de S. Bento,,,

Publicado por: py às dezembro 21, 2005 10:08 AM

Ok, py. A reunião anual já está para breve, não ?

Publicado por: J P Castro às dezembro 23, 2005 03:14 AM

.

Publicado por: tex às dezembro 27, 2005 01:13 AM

Uma cabra

Publicado por: Cisco Kid às dezembro 29, 2005 01:06 AM

Uma cabra

Publicado por: Cisco Kid às dezembro 29, 2005 01:07 AM

Uma cabra

Publicado por: Cisco Kid às dezembro 29, 2005 01:07 AM

Uma cabra

Publicado por: Cisco Kid às dezembro 29, 2005 01:07 AM

Uma cabra

Publicado por: Cisco Kid às dezembro 29, 2005 01:07 AM

kpk

Publicado por: Coruja às dezembro 29, 2005 01:26 AM

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