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maio 05, 2005

O Mito do Estado

No (o vento lá fora) tem havido algumas profissões de fé no Estado. Têm 3 coisas em comum: a veemência, a fé e a ausência de fundamentação científica. Comecemos por esta citação: “Tomemos o ensino, como podíamos tomar a rede viária ou a Imprensa. Sob o pretexto de que o sistema estava falido, sem dúvida alguma devido à irresponsabilidade do Estado para o gerir, abriu-se o ensino superior à "iniciativa privada". Efeitos: o ensino superior não só não melhorou como globalmente dá hoje piores resultados; a grande maioria das universidades privadas está tecnicamente falida”.

Comentário: Portugal é, depois da Finlândia, o país da UE que investe mais na educação em termos do PIB. Portugal gasta mais 50% em Educação que a média europeia e tem o mais baixo nível de educação da UE. Portanto o sector público do ensino não está falido apenas porque é pago pelos contribuintes, por todos nós. Em segundo lugar as Universidades privadas foram-se criando, algumas com o compadrio do poder, numa época em que o sector público não conseguia satisfazer a procura. Entretanto a oferta pública aumentou e os subsídios às privadas diminuíram. É óbvio que as Universidades Privadas não podem concorrer com as públicas: são em média 10 vezes mais caras para os utentes. A menos que se imponham pela qualidade – e apenas duas ou três o conseguem fazer, tal a diferença de propinas.

E depois acrescenta, consternado, com as consequências desta situação que “a sociedade (representada pelo Estado) perante um dilema terrível: ou as deixa fechar pelo curso inexorável dos tempos, com alguns custos políticos (governo que o faça fica com esse ónus), ou as mantém artificialmente com os balões de oxigénio das notas de acesso mais baixas”.

Eu estou mais consternada com o custo exorbitante do nosso sistema de ensino, que se não fosse eu e muitos outros pagarem para ele, já teria falido há algum tempo. Mas para o pagarmos sobrecarregamos o tecido produtivo com impostos e levamos as empresas à falência. Os defensores do peso do Estado estão convencidos que o dinheiro que ele custa, aparece por obra e graça do Espírito Santo (a 3ª pessoa da Trindade e não o Banco!). Não é verdade – ele sai do nosso bolso. É o nosso bolso que paga o Estado, a sua ineficiência e evita, não sei quanto tempo ainda, que ele vá à falência. (o vento lá fora) está preocupado com a possibilidade de falência dessas universidades privadas. Eu não estou. O corpo docente de parte delas é constituído, em muitos casos, por “turbo-professores” que ficarão, resignados, reduzidos às universidades públicas. Estou mais preocupada com o desemprego e a desaceleração económica gerados na indústria pelo gigantismo do Estado (ver aqui e aqui). Aí não há turbo-empregados. Há gente que fica em desemprego de longa duração.

Quanto “aos manuais escolares” julgo que há um total equívoco. Eles sempre foram produzidos por editoras privadas. O Estado não se alheou. Foi exactamente o contrário que ocorreu. É o Estado que altera constantemente os currículos e que introduz o caos naquele mercado. As editoras limitam-se a tabelar os livros adicionando um prémio de risco para o caso do ministério ou das escolas mudarem de ideias. Um manual escolar está em permanente risco de se tornar num mono e a editora de ficar com dezenas de milhares de exemplares em stock. Não é alheamento ... é uma acção nociva do Estado.

Quanto ao SNS, (o vento lá fora) afirma que “Está por provar que a gestão hospitalar privada seja a solução”. Concordo. Todavia a situação de descontrolo orçamental do SNS está provada e tem que acabar, quer seja com privados, com hospitais SA ou com hospitais EPE. E isso é o âmago da questão. (o vento lá fora) afirma que os privados não são solução (embora antes tenha afirmado que tal está por provar) porque “a saúde não é uma actividade lucrativa”. Esta afirmação é apenas uma tirada moralista. O abastecimento de água, o tratamento de efluentes e a recolha e tratamento do lixo também não eram actividades lucrativas, e muitas delas foram concessionadas a privados porque estes as fazem com preço mais baixo, e ainda conseguem obter lucro.

A ideia do lucro como pecado é uma tradição escolástica, dos tempos de S Tomás de Aquino. Se uma entidade me prestar um serviço, com a mesma qualidade, e a um preço inferior, não me importo que ela possa ter lucro. É o prémio por ela prestar dois serviços: o serviço em si, e a eliminação do desperdício social anterior. Claro que há que haver cuidado com o contrato de concessão e com as obrigações nele consignadas e constituir uma entidade reguladora que vele pelo cumprimento contratual e pelo andamento da concessão. Anteriormente foram construídas centenas de ETA’s e ETAR’s pelo sector público que ou nunca funcionaram, ou deixaram de funcionar ao fim de pouco tempo. Isto sim ... é desperdício. Eu prefiro o pecado do lucro a deitar dinheiro à rua.

Em matéria de Comunicação Social não vou discutir com um “insider”. Só posso dar o testemunho de leitora que não é abonatório, embora provavelmente por outras razões.

Mas o paradoxal é que, quando confrontado com a sua relação com o Estado, conclua que “o Estado é mau. Hoje em dia não é pessoa de bem”, que foi por “ter deixado chegar a este ponto de gordura paralisante que a sociedade passou a demandar a sua desestruturação, em benefício do sector privado”. Sobre isso estamos de acordo. Todavia lembro que essa “demanda” sempre foi objecto da Ciência Económica até à actualidade. As próprias receitas keynesianas de aumento de despesa pública referiam-se a circunstâncias muito específicas, completamente diversas das existentes no pós-guerra. E referiam-se a investimento público e não ao aumento estéril da burocracia e das sinecuras. E se o keynesianismo é hoje atacado, é por se tentarem usar as suas receitas em circunstâncias completamente diversas (embora também seja atacado por razões de capelinhas científicas). O que aconteceu entretanto foi que as sociedades ocidentais criaram um monstro (no caso português, além de monstro é totalmente ineficiente) que não conseguem dominar e de que se arriscam a serem vítimas. E há uma progressiva tomada de consciência disso à escala do mundo desenvolvido.

Todavia quando (o vento lá fora) afirma : «Mas agora temos um novo problema: o sector privado também foi incapaz de responder aos desafios como se desejava e impunha» está a esquecer-se de várias coisas. Em primeiro lugar, o peso do Estado é ele próprio um entrave ao desenvolvimento (ver os meus posts * e * e os estudos * e *). Em segundo lugar, e no caso português, há uma história espúria de dependência dos empresários relativamente ao Estado (contratos públicos, condicionamento industrial e outras formas de protecção anti-concorrencial, etc.); levantar aquela questão é o mesmo que dizer: este tóxico-dependente não está a ter um bom desempenho, o melhor é continuar a drogá-lo. Em terceiro lugar, e apesar de ser «incapaz de responder aos desafios como se desejava e impunha», é ele que paga o Moloch estatal. É do sector produtivo que, directa ou indirectamente, sai o financiamento da despesa pública, que já ultrapassou 50% do PIB. É ele que tem que competir com a globalização que nos bate à porta e arca ainda por cima com a ineficiência do Estado, enquanto o sector público se permite ignorar as regras da eficiência e só ainda não faliu, porque esse «sector incapaz de responder aos desafios», continua a ser capaz de o sustentar.

Os meus parabéns, todavia, pela frase final, que é uma conclusão genial face ao conteúdo do texto: «Vamos em Portugal continuar a viver tempos difíceis e de desorientação geral».


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Mito do Estado Inovador

Publicado por Joana às maio 5, 2005 10:59 PM

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Comentários

Belíssimo texto, obrigado pela desconstrução e pela crítica afiada.

Assinaladas as discordâncias de análise e de opinião, que se manterão ;) , resta-me esclarecer um ponto menos claro (para os leitores do Semiramis, que não tanto para os meus, que sabem o que a casa gasta): nesta altura dava jeito a fórmula "mais Estado, melhor Estado", sim, mas reflectir nisto não me habilita a defensor do Estado, seu profeta ou crente.

Não vejo, cara Joana, paradoxo algum. Quero "mais Estado" e "melhor Estado", não o actual Estado.

Publicado por: Paulo às maio 6, 2005 12:50 AM

Paulo:
Sobre “nesta altura dava jeito a fórmula "mais Estado, melhor Estado"”, aconselhava-o a ler os meus posts anteriores que eu citei, e os trabalhos em que eles, parcialmente, se baseiam. Neles poderá constatar, com números, que a dimensão do Estado trava o desenvolvimento económico, faz diminuir o Investimento e aumentar o desemprego. E este é um fenómeno cumulativo, isto é, cada ano o crescimento económico, o investimento e o emprego são degradados cada vez mais.

Quer a Teoria Económica (embora muitos duvidem daquilo que não querem acreditar) quer os resultados empíricos ( e estes são evidências das análises econométricas) apontam para isso.
Mais Estado é pior Estado, mais falências, mais deslocalizações, mais desemprego e menos receitas fiscais para pagar um Estado que você quer maior.

E quanto mais tarde se convencer disto, pior para si ... e para nós todos

E obrigada pelo elogio.

Publicado por: Joana às maio 6, 2005 08:59 AM

Cara Joana: digamos que estou um bocado cansado de ler estudos com o intuito de "formar uma opinião". Há estudos para fundamentar QUALQUER opinião, pelo que evito espalhar-me por aí.

Prefiro também observar a realidade directamente, não através dos números, que não passam de meros intrumentos com utilidade limitada.

Tenho, felizmente, conseguido evitar os efeitos perniciosos das pessoas que me dizem frases como "tens de te convencer disto" (sendo "isto" algo que ELAS acham) ou "será pior para ti" se, obviamente, não seguir as sábias recomendações delas. Estranhamente, sobrevivi.

Não quero viver e deixar descendência numa sociedade com "mais Estado", mas admito que nesta altura do campeonato da economia (e, em Portugal, do país todo) deixarmos de lado os preconceitos (a Joana é um bom exemplo de alguem cujo brilhantismo intelectual é, aqui e ali, traído pelos preconceitos e dogmas) sobre o Estado e tentarmos alguma solução que permita inverter a economia e a sociedade. Tendo os "privados" tido a sua oportunidade, que falharam redondamente, não seria altura de um ciclo de "mais Estado", uma vez quer, com o que hoje sabemos, conseguiríamos que fosse "melhor Estado"?

Reflicta, Joana. Não se fique por papaguear a opinião dos autores que lê. Reflicta sobre elas. E busque alargar esse leque.

Publicado por: Paulo às maio 6, 2005 10:50 AM

"a Joana é um bom exemplo de alguem cujo brilhantismo intelectual é, aqui e ali, traído pelos preconceitos e dogmas"

Concordo plenamente (retiraria apenas o "e dogmas"). Suspeito que a educação da Joana, numa família muito ressentida pelos desvarios do PREC e muito direitista, deforma lamentavelmente, por vezes, o seu brilhantismo intelectual.

Quanto à substância da questão, eu concordo tanto com o Paulo como com a Joana. A Joana tem razão em dizer que o Estado é demasiado grande e muito ineficiente. O Paulo tem razão em dizer que, nos mais diversos setores, os privados não se têm conseguido superiorizar ao Estado, não conseguindo produzir melhores serviços e limitando-se a explorar as fragilidades culturais da população portuguesa. Se com este Estado estamos mal servidos, não é claro, em certos setores, que com empresas privadas fiquemos muito melhor.

Publicado por: Luís Lavoura às maio 6, 2005 12:24 PM

Paulo às maio 6, 2005 10:50 AM
Obrigada por me atribuir brilhantismo intelectual pela forma como papagueio os autores que leio. É um elogio original, mas simpático.
Você prefere “observar a realidade directamente, não através dos números, que não passam de meros intrumentos com utilidade limitada”.
Deixe-me papaguear um autor que certamente você não desmerece. Marx referia que vemos a realidade através das lentes da nossa própria ideologia. Uma forma de contornar esse fenómeno é ler, estudar, e separar depois o trigo do joio. É evidente que não há ciências totalmente neutras. Mas quanto mais se lê e se estuda (não estudar de uma forma escolástica, mas estudar cotejando com a realidade), mais somos capazes de avançar no conhecimento. Deixamos de ter lentes, ou elas diminuíram substancialmente de dioptrias.
Eu apresentei-lhe factos e números. Você apenas convicções. E para solidificar as suas convicções alega que “Há estudos para fundamentar QUALQUER opinião, pelo que evito espalhar-me por aí. ”.
A questão que coloco é: acha que essa é uma posição científica?
E ainda outra: Não acha que essa posição é a forma mais rápida para “papaguear” coisas sem ter a noção que se está apenas a “papaguear”?

Publicado por: Joana às maio 6, 2005 01:50 PM

Luís Lavoura às maio 6, 2005 12:24 PM
Relativamente ao percurso ideológico dos meus progenitores (e meu), você está redondamente enganado. Nem adivinha quanto!
Leia por exemplo:
Uma Homenagem (http://semiramis.weblog.com.pt/arquivo/043246.html). Certamente nem eu nem eles estaríamos lá se tivéssemos esse carimbo na testa.
Leia ainda “Um de nós mentes” (http://semiramis.weblog.com.pt/arquivo/2004/12/um_de_nos_mente.html). A pessoa que deu o conselho que aí referi, foi o meu pai. Certamente se ele estivesse “muito ressentido pelos desvarios do PREC e muito direitista” não teria (e continuamos a ter) aquelas amizades, nem compareceria naqueles eventos.
Já reparou certamente que eu conheço bem Marx (“bem” para esta terra de cegos). Obviamente que não pensa que eu o andei a ler por masoquismo.

Publicado por: Joana às maio 6, 2005 02:02 PM

Bolas, Joana, eu imaginava mesmo que tinha sido uma forma de masoquismo da sua parte ler Marx!

Eu nunca li Marx. Nem desejo. Aliás, leio muito pouco, e cada vez menos, seja o que fôr.

Publicado por: Luís Lavoura às maio 6, 2005 02:22 PM

Pelos comentários que aqui vejo, as pontes deviam ser construídas totalmente através de palpites, assim como os aranha-céus e os aviões. Se por acaso cairem, a culpa será de quem queria fazer tudo por cálculos.

Acho este um dos feníomenos mais intrigantes da humanidade. A capacidade da auto-ilusão, que quase sempre vem junta à acusação fácil de serem os outros a ter esse defeito.

Publicado por: Mário às maio 6, 2005 02:23 PM

Da leitura cuidadosa dos dois posts antigos que me foi recomendada pela Joana, concluo que ela é uma "arependida" do PCP, ao qual toda a sua família pertence ou pertenceu. (Ser do PCP é coisa hereditária em muitas famílias, uma situação deveras curiosa.)

Fiquei desiludido. Tenho em muito má conta, em geral, e a menos de provas em contrário, as pessoas que pertencem ou pertenceram ao PCP. Para mim o comunismo sempre foi uma teoria de ferozes torcionários. Custa-me a aceitar alguém que alguma vez na vida tenha estado metido com essa perigosíssima cambada. Nunca confio num ex-comunista (e muito menos num comunista, claro).

Publicado por: Luís Lavoura às maio 6, 2005 02:38 PM

Luís Lavoura às maio 6, 2005 02:22 PM:
Pois eu, ainda nem sabia ler, comecei a tomar conhecimento com uma eminente obra de um filósofo marxista, entretanto tornado reitor da Universidade de Lisboa: "Joana Come a Papa".
Felizmente consegui livrar-me desse trauma.

Publicado por: Joana às maio 6, 2005 07:36 PM

Você é rápido a tirar conclusões. Infelizmente nunca acerta no alvo ... provavelmente porque toma os seus desejos pela realidade. Os meus pais nunca estiveram inscritos em nenhum partido (e eu ainda menos!) e, desde que me lembro, o meu pai sempre encarou a política cinicamente.
Esses (e outros) conhecimentos remontam aos tempos de escola, de Universidade, vida cultural, vidas profissionais, etc.. Foi a sua tolerância que permitiu manter amizades, ao longo dos anos, com pessoas que passaram a ser inimigas políticas (e não só) irredutíveis umas das outras. E nós continuávamos amigos deles todos, ouvindo sempre com amizade e compreensão, as gravíssimas acusações que cada um fazia aos outros (que não estavam presentes). E cada vez mais cínicos sobre os políticos partidários.
Foi essa vivência que me levou a dar um enorme desconto ao que os políticos dizem.

Publicado por: Joana às maio 6, 2005 07:40 PM

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