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abril 29, 2005

Verba non Res

Na continuação do meu post de ontem, a prestação de hoje do PM Sócrates apenas reforçou o que então escrevi – muita retórica, mas nada de substância.

Sendo o debate sobre a justiça, esperar-se-ia que fossem anunciadas, mesmo que estivessem em embrião, medidas para combater o actual flagelo de uma justiça morosa, inoperante e cujas principais vítimas são ... as vítimas.

Ora o que foi anunciado são medidas que trazem, é certo, algum alívio os tribunais, mas apenas porque descriminalizam os infractores pela actualização dos plafonds, como o caso da emissão de cheques até um valor máximo de 150 euros. Quanto à medida anunciada por Sócrates "o Executivo avançará com um diploma que permitirá que o procedimento da injunção seja utilizado para crédito até ao valor de 15 mil euros", o que "ampliará substancialmente o limite actual, que é de cerca de 3700 euros". "Cerca de 15 mil processos passarão a ser tramitados por esta via mais expedita, libertando os tribunais para outras tarefas", julgo que deve ser confusão.

Ora segundo me parece, embora leiga nestas matérias, o Decreto-Lei n.º 32/2003, que transpôs para o direito nacional uma Directiva Comunitária, já permitia o recurso à injunção, independentemente do valor da dívida (ou seja, mais que os anunciados 15 mil euros). Anteriormente a esse decreto a possibilidade de recorrer ao processo de injunção estava limitada à cobrança de dívidas cujo valor não fosse superior a 3.750 euros. Sublinho que não sou jurista e pode-me estar a escapar algo, mas aparentemente Sócrates equivocou-se.

Quanto à questão da redução para um mês das férias judiciais, julgo que não terá quaisquer efeitos práticos nos andamentos dos processos. Os juízes argumentam que o mês em que os tribunais estão encerrados é usado para avançarem no estudo dos processos mais complicados que têm entre mãos. Se for isso que acontece, então não há rigorosamente diferença nenhuma no andamento dos processos.

Sem querer meter a foice em seara alheia, julgo que a agilização da justiça passa pela simplificação de todos os procedimentos judiciais. Um deles, por exemplo, seria o caso dos despejos por não pagamento da renda que poderiam ser apenas um caso de polícia. Para além disso deveria haver um controlo rigoroso dos procedimentos da justiça. O caso do Gang do Vale do Sousa é sintomático (principalmente porque estava em causa um homicídio de um elemento da PJ ... de alguém da casa) de que muita coisa não funciona, quer na lentidão da investigação, quer no comportamento e lentidão dos tribunais.

O mau funcionamento da justiça portuguesa constitui um pesado ónus para os agentes económicos portugueses e prejudicam o nosso desenvolvimento. Mas medidas baseadas principalmente na descriminalização das dívidas não tranquilizam os agentes económicos que vivem de transacções de baixos montantes, como os comerciantes. O cheque passa a ser um meio de pagamento ainda menos fiável.

Instado sobre as medidas que está a tomar para equilibrar as contas públicas, Sócrates não disse rigorosamente nada de concreto, limitando-se a evidenciar surpresa pelo PSD questionar uma matéria que, alegou, este não fora capaz de resolver. Diversas vezes, quando na oposição, parlamentares socialistas mostraram-se indignados pela referência de Durão Barroso à «pesada herança guterrista» alegando que essa herança já havia sido julgada e penalizada nas urnas. O que interessava era o presente e o futuro, não o passado. Sócrates já se esqueceu dessas épocas. As perguntas eram concretas e deveria ter havido respostas concretas, mesmo que “apimentadas” com críticas à governação da coligação PSD/PP.

A afirmação de Sócrates de que está "surpreendido" com a possibilidade aberta pelo anterior Governo PSD/CDS-PP de os clubes de futebol com dívidas fiscais só acertarem as suas contas com o Estado em 2010 é ... surpreendente. O governo de Sócrates tem praticamente 2 meses. Sócrates deveria estar a governar baseado no estudo dos dossiers existentes nos ministérios, e não estar a comentar baseado em notícias de jornais.

Se não está de acordo com o parecer que fundamentou a decisão do ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, e do actual director-geral dos Impostos, decida de outra maneira e lide com as consequências dessa decisão. Não precisa de fazer comentários – decida de outra maneira, porque tem poder para o fazer. Não venha agora alegar surpresas, pois teve 2 meses para se inteirar dos dossiers.

Todavia enquanto manifestava a sua surpresa, Sócrates, instado pelos jornalistas, eximiu-se a dizer algo de concreto ... o assunto estava a ser estudado pelo Ministério da Finanças. Se o assunto está a ser estudado há semanas, e já anteriormente havia sido objecto de pelo menos 2 pareceres contraditórios, então o assunto é complexo e a surpresa manifestada por Sócrates não passa de hipocrisia.

Esperemos para ver a decisão (se a houver) e as consequências dessa decisão (caso haja).

Publicado por Joana às 09:15 PM | Comentários (32) | TrackBack

A Relatividade de Orwell

Ou um texto imprescindível de João Miranda no Blasfémias ... que transcrevo aqui, com a devida vénia:

Relativismo e a orwellização das palavras
Ou porque é que um gato é um cão

O relativismo prevalecente nas sociedades contemporâneas manifesta-se na progressiva degradação da qualidade da discussão pública. Os conceitos, que antigmente tinham um significado preciso, foram progressivamente orwellizadas.

Por exemplo, antigamente, uma pessoa tolerante era uma que, não concordando com o comportamento X, não perseguia nem defendia a perseguição ou a ilegalização do comportamento X, mas não se coibia de criticar abertamente e sem rodeios o comportamento X do ponto de vista moral. A tolerância era uma atitude que cada um tinha em relação a comportamentos de que declaradamente não gostava.

Hoje em dia, uma pessoa que expresse o seu desagrado com o comportamento X é imediatamene declarada intolerante, mesmo que não defenda nenhum tipo de perseguição legal ou social relativamente às pessoas que têm o comportamento X. Em alguns casos extremos, uma pessoa que se limita a mostrar desagrado com o comportamento X pode mesmo ser perseguida judicial e socialmente por intolerância por pessoas que se dizem tolerantes. Ou seja, as pessoas que se limitam a manifestar a sua discordância em relação ao comportamento X são consideradas intolerantes, enquanto as pessoas que se propõem perseguir quem se limita a expressar as suas opiniões em público são consideradas os guardiões da tolerância. A palavra «tolerância» foi de tal forma redefinida, que agora significa precisamente o contrário do que significava originalmente.

PS -Aqueles crimepensantes que se limitam a reprovar o comportamento X em pensamento também não se safam. Não é por isso que os guardiões da tolerância vão deixar de presumir os seus pensamentos a partir da sua forma de vestir ou das suas origens sociais.
Joao Miranda at 10:07

Publicado por Joana às 02:07 PM | Comentários (21) | TrackBack

abril 28, 2005

Verba et circenses

... praetereaque nihil

Os dirigentes políticos romanos praticavam a política “Panem et circenses” para entreter a plebe romana e distrai-la dos incómodos assuntos da coisa pública. O governo Socrático, cujo nome indicia uma forte ligação às concepções políticas da Antiguidade Clássica, segue uma política semelhante: palavras e diversões circences ... nada mais.

Em posts anteriores tenho referido as pseudo-medidas avulsas tomadas pelo governo. Nenhuma deles se refere aos problemas estruturais que a sociedade portuguesa enferma e cuja reforma é inadiável: justiça, saúde, educação, despesa pública, reestruturação do serviço público, etc.. Apenas acções de cunho meramente ideológico, como a proclamada transformação dos hospitais SA em EPE, ou operações de cosmética na área da educação, sem consistência.

Em contrapartida, o governo Socrático tem-se evidenciado na tentativa de criar um circo político, com o óbvio intuito de entreter a plebe portuguesa e distrai-la dos incómodos assuntos da coisa pública.

Os gladiadores mais evidentes neste circo são os que actuam no ludus scoenicus do aborto. O principal espectáculo é o da controvérsia com o PR sobre as datas do referendo. O PR recebe partidos; o PS promete referendo rápido e escuda-se no PR, mas assegura que a consulta popular se realiza ainda este ano, apesar das resistências do Presidente da República. Entretanto o lanista Albertus Martinus lançou a confusão nos gladiadores que se exibiam a partir da AR, pois cada um tinha entendimento diferente da estratégia do lanista, ou então este havia ditado estratégias diferentes a cada, e quarenta gladiadores exigiram mesmo mudanças no próprio projecto de lei do PS. Segundo o lanista essa confusão é despicienda, pois trata-se de artistas de elite que darão o melhor de si mesmos quando subirem à arena. São cenas que irão entreter a plebe muitos meses ... talvez mais de um ano.

Outro espectáculo encenado foi o da reavaliação do TGV, que já está a ser estudado há cerca de uma década, porque "apesar dos estudos já desenvolvidos e do empenho para definir as melhores soluções, algumas questões não são consensuais e não estão devidamente identificados os riscos e oportunidades que transportam para as decisões que é necessário tomar”. Assim sendo, é um espectáculo que promete agitar as turbas circenses, porquanto, que eu saiba, nunca nenhuma obra foi consensual, o que indicia que possa permanecer na arena pelo menos uma legislatura.

Mas já se perfila outro espectáculo capaz de consumir as atenções e as energias da plebe. Uma numerosa família de gladiadores está a treinar-se afincadamente para levar à arena a fabula da regionalização. Segundo consta nos húmidos corredores subterrâneos do Colosseum, esta será uma das prioridades do PS e os seus edis curiais vão bater-se pela concretização da regionalização administrativa. Ao que se julga um dos lanistas encarregados dos treinos será o edil Narcisus Mirandae. Um gladiador de famílias adversárias, que foram excluídas dos espectáculos pelas votações dos últimos comícios, declarou invejoso: "É um disparate completo. É mais um factor de diversão". Mas é isso justamente que é o importante!

Hoje, o ministro das Obras Públicas e Transportes, Marius Linus, pessoa de grande traquejo em tráfego aéreo, conquistado na direcção de uma distribuidora livreira e das Águas de Portugal, revelou que está insatisfeito com a actual solução de construção na Ota e não exclui estudar alternativas ao projecto da Ota. Ora a questão das localizações de aeroportos é dos temas mais fracturantes que geram imediatamente dois consensos extremos e incendiários: uns entusiasmados, a favor, outros indignados, contra. E gera consensos similares relativamente a outras localizações alternativas. É obviamente um prelúdio a um espectáculo que poderá demorar mais uma legislatura, pelo menos.

A temporada artística advinha-se excitante. A plebe tem entretenimento garantido. Oxalá ela não fique entediada com a proliferação dos espectáculos ou a annona não lhe venha a faltar.

Há apenas um receio – será que tanta diversão consegue despertar Jaime Gama? Ontem, de madrugada, 5 automóveis explodiram violentamente junto da casa dele. Polícias aos apitos, sirenes de bombeiros, chamas que chegavam aos 15 metros de altura, barulhos dos estores, moradores aos gritos, atropelando-se no desespero de evacuar as residências ... um horror ... – mas o Presidente da AR continuou, com toda a tranquilidade, ‘ferrado’ a dormir. Esta experiência suscita fundadas dúvidas sobre se Jaime Gama, a 2ª figura da Res Publica aguentará espectáculos tão prolongados sem se deixar adormecer, em pleno suggestum, profundamente, irremediavelmente, definitivamente.

Publicado por Joana às 11:18 PM | Comentários (20) | TrackBack

abril 27, 2005

Realizar com fé para estudar com fé

Ou como a fé move trapalhadas ...

Tinha que acontecer. Estou sem assunto. Mas para quê preocupar-me? O país está anestesiado, amodorrado no sofá, olhos fechados, imune a pensamentos complexos que perturbem a sua quietude. Espera que estas coisas bizarras da globalização, défice orçamental, deslocalizações passem e não dêem por ele. E vai-se anichando no sofá, almofada sobre a cabeça, tentando passar despercebido, à espera que a crise passe.

Está mesmo imune às trapalhadas. Ainda hoje o ministro da Administração Interna admitiu que o anunciado projecto de acompanhamento de operações policiais por elementos do Ministério Público pode ter resultado de um erro de interpretação jurídica do Governo sobre algumas competências da polícia. “Pode” ter resultado ... António Costa, com a experiência que se lhe reconhece, porquanto já havia sido ministro da Justiça de Guterres, vai continuar a estudar este assunto. Por isso advertiu que pode ter resultado de um erro de interpretação. Uma pessoa com o traquejo de António Costa em matérias de justiça, não comete erros ... foi apenas uma atrapalhação de momento.

Quando se falou na possibilidade de Bruxelas abrir, contra Portugal, um procedimento por défice excessivo, o comentário de Campos e Cunha foi "Não ficarei surpreendido". Campos e Cunha não foi interrogado na qualidade de analista de temas financeiros. Ele é o ministro das Finanças. Não se espera que um ministro das Finanças, em face de uma possibilidade de procedimento por défice excessivo, apenas nos revele os seus estados de alma, ou nos indique os valores da sua tensão arterial quando confrontado com a notícia. Esperava-se que revelasse as medidas que tencionava tomar. Atrapalhou-se ... provavelmente.

Já anteriormente, ou ele ou Sócrates (ou ambos) se haviam atrapalhado sobre a eventualidade de uma subida de impostos – um negando-a peremptoriamente e outro achando que “não ficaria surpreendido se tal acontecesse”.

Estava estabelecido como dado adquirido a realização de exames no 9º ano. A ministra, recentemente, lançou a confusão sobre esta matéria, “relativizando” o papel do exame. Tudo indica que este ano haverá mesmo exames. Para o ano ... logo se vê ... enfim ... uma trapalhada. Ontem foram lançadas algumas “ideias” completamente avulsas e outras (aumento do horário lectivo) que já não serão aplicadas este ano lectivo (que está perto do fim) e que a ministra espera que as pessoas se tenham esquecido (as escolas esquecer-se-ão seguramente) na reabertura do próximo ano lectivo. Trapalhadas ...

O Governo decidiu acabar com os hospitais SA e transformá-los em os hospitais EPE. Entretanto nomeou uma comissão para efectuar uma avaliação dos seus resultados. Expliquem-me uma coisa: não é normal, num processo decisório, estudar-se primeiro, fazer os diagnósticos e decidir no fim? Como é que se integra, nesse encadeamento lógico, decidir primeiro e estudar no fim.

Salazar disse num seu discurso, nos alvores do seu longo consulado, que deveríamos “Estudar com dúvida para realizar com fé”. Sabe-se como ele afinal acabou por “Estudar com fé para realizar com fé”. Sócrates inverteu os termos e decidiu-se a “Realizar com fé para estudar com fé”, porque depois de “Realizar com fé”, se estudasse “com dúvidas” poderia perder a “”. Assim sendo, terá que “estudar com fé”.

Trapalhadas ... Ainda bem que o país e a comunicação social estão amodorrados.

Publicado por Joana às 11:28 PM | Comentários (27) | TrackBack

abril 26, 2005

Construtores de Pirâmides

Durante 23 anos, os egípcios sob o esclarecido governo de Quéops (Khufu para os amigos) construíram uma pirâmide descomunal, amontoando 3 milhões de metros cúbicos de pedras. Segundo Heródoto, 100.000 homens trabalharam nela, embora especialistas em recursos humanos tenham recentemente posto aquele número em dúvida, considerando que as autoridades faraónicas tinham uma notável eficiência na gestão de recursos humanos. A corveia imposta aos felás egípcios representaria mais de 10% da sua força de trabalho. Nos últimos 23 anos a corveia imposta à riqueza produzida pelos felás portugueses passou de 30,9% do PIB para 50,2%, ou seja 20% da nossa capacidade de produção de riqueza. Andamos há 23 anos a construir uma pirâmide muito mais avantajada que a de Quéops … só que é imaterial – não se vê, nem vai proporcionar excursões turísticas.

Quéops (Khufu para os egiptólogos) foi o primeiro político a aplicar a receita keynesiana de combater o desemprego (entre duas cheias consecutivas do Nilo) e a insuficiência da procura, através de obras públicas de grande envergadura e de impacte que qualquer turista, por muito exigente que fosse, não deixaria de realçar. Também foi o primeiro político a revelar total indiferença pelos níveis dos défices públicos e das paridades das taxas de câmbio. Mas o Egipto estava separado da globalização pelos desertos que ladeavam o Nilo e pelo Mediterrâneo. Em Mênfis, nem os escribas mais habilitados andavam a par dos câmbios e de quantos bezerros necessitavam a mais, para trocarem pelo mesmo volume de madeira de cedro que os mercadores de Byblos traziam, quando arribavam ao Delta.

E isso possibilitou que Quéfren (Khafré para os amigos) e Miquerinos (Menkauré entre os amigos) continuassem com aquela política de aposta decisiva na despesa pública. Porém as pirâmides foram diminuindo de tamanho, porquanto o corpo social egípcio estava cada vez mais exangue. Mas mesmo minguando as pirâmides, as corveias impostas à população tornaram-se totalmente insuportáveis, e apesar de não haver globalização nem crise cambial visível, o regime implodiu, desfazendo-se o Egipto em dezenas de pequenos Estados, muito menos vorazes em termos de corveias e pouco versados em Keynes.

Portugal está há 23 anos a construir uma pirâmide. Não trouxemos das pedreiras 3 milhões de metros cúbicos de material. Durante esse período trouxemos mais de 200 mil funcionários públicos para entufar o Moloch estatal. E as corveias adicionais, impostas à população, para transportar, instalar e manter aquela multidão, traduziram-se em 20% do que essa população produz. As pedras egípcias tiveram a qualidade de, uma vez colocadas e executado o remate final, a pirâmide ter ficado ali, tranquila, na planície poeirenta de Gizé, milénios a fio, sem necessidade de quaisquer custos adicionais e produzindo inesperadas receitas turísticas 45 séculos depois. A multidão que utilizamos como elemento construtivo da nossa pirâmide tem custos de manutenção permanentes e não tem qualquer impacte turístico, nem agora, nem certamente daqui a 45 séculos. Aliás, é uma pirâmide totalmente invisível … apenas pesa, e muito, no orçamento.

Ainda se um Bonaparte qualquer passasse por cá, daqui a 40 séculos, e proclamasse: do vazio daquele erário, 40 séculos vos contemplam, talvez isso pudesse constituir uma promoção turística, mas é muito problemático ...

Tenho mesmo fundadas dúvidas que tenhamos capacidade para construir mais alguma pirâmide. As múmias de Quéfren e Miquerinos podem portanto permanecer na sua tranquilidade milenar. Aliás, nem aquela que já construímos é seguro que a consigamos manter. Em termos anuais, a riqueza que os nossos felás produzem cresceu durante um quarto de século à taxa anual média de 2% enquanto a despesa pública que pesa sobre os seus ombros cresceu, anualmente, à taxa de 4,7%. Se esta situação se mantivesse, as despesas públicas corresponderiam, em 2030, a 97% do PIB. Todos os felás estariam a acartar entulho para a pirâmide …

Não me parece que a dinastia se aguente.


Muitos acusam as pirâmides de serem construções absolutamente inúteis. Talvez ... mas têm uma presença física imponente ... assombram o turista. A nossa pirâmide só pesa ... não se vê, nem permite espectáculos de som e luz ... nada ... não serve mesmo para nada e está-nos a custar muito mais caro. Apenas assombra o contribuinte.

Publicado por Joana às 10:45 PM | Comentários (37) | TrackBack

abril 25, 2005

Américo Sampaio

Neste dia triste para os saudosistas do antigo regime, há, desde alguns anos para cá, algumas compensações, algumas identidades que se perpetuam. E a mais nostálgica é, seguramente, o extenso vazio discursivo do actual PR, no estilo que tanto notabilizou o último PR da II República. A referência à «A avó de 95 anos que vestiu o seu melhor vestido para ir votar pela primeira vez na sua vida» é uma das mais comoventes figuras retóricas daquele estilo que alguns recordam saudosos.

Mas todo o seu discurso foi uma peça retórica que relegou La Palisse para um truísta de segundo plano. Constituiu uma completa surpresa saber-se que «há momentos de consenso e dissenso, e que esses momentos são parte da vida política». Até hoje o país estava convencido que quando votava, apenas escolhia entre os logótipos esteticamente mais apelativos. O resto era completamente consensual.

Todavia não constituiu uma novidade exaltante saber-se que «há muito a fazer no Governo e na oposição, nas estruturas do Estado e na economia». Os portugueses já andavam desconfiados disso. Suspeitas pairavam no ar de que porventura houvesse algo a fazer naquelas áreas. O que continuam sem saber é o que é que falta fazer. Falta fazer muito ... mas o quê?

Na área da droga, Sampaio foi decisivo: «o combate exige uma resposta coerente». Está resolvido! Há décadas que a maioria dos governos mundiais tentava encontrar soluções para combater esse flagelo. Afinal é simples e linear: basta «uma resposta coerente».

Sampaio avisou igualmente que é urgente «aprofundar um investimento sério na educação e na ciência». Julgo que o país terá que se regozijar por este pensamento inovador de tratar «a educação e a ciência» como assunto «sério». Muitos de nós estávamos convencidos que «a educação e a ciência» não passavam de uma experimentação lúdica em que os brinquedos eram as nossas crianças e adolescentes.

Mas o PR não fez apenas concorrência a La Palisse e ao seu longínquo antecessor na presidência. Fê-la igualmente ao rifoneiro popular: «não podemos deixar de fazer hoje o que já devia ter sido feito ontem». Esta nova versão de um aforismo multi-secular pecou apenas pelo dia em que foi proferida e que pode causar uma interpretação duvidosa. Os portugueses, quase sem excepção, fizeram hoje, feriado, o que deviam ter feito (e provavelmente fizeram) ontem, domingo, isto é, descansaram. Ou seja, cumpriram os desejos do PR no preciso momento em que ele os formulava. É isto que define um líder político – estar em sintonia com as massas!

E rematou com uma gloriosa tirada, que faria roer de inveja a Pitonisa de Delfos: «não podemos comprometer o futuro, desperdiçando as oportunidades ou não cumprindo as responsabilidades do presente». Oportunidades e responsabilidades são palavras fortes e decisivas. A gramática assegura mesmo que são substantivos, ou seja, têm substância. Comprometer, desperdiçar e cumprir são verbos de reconhecido valimento gramatical. O conjunto sintáctico é que não tem qualquer sentido concretizador.

Em Outubro de 2003, escrevi aqui que «Nos tempos heróicos, a Pitonisa de Delfos, posta em transe pelos vapores telúricos, talvez com a mesma essência básica do suave aroma acanelado dos pastéis de Belém, debitava frases que serviam de referência a políticos, generais, mercadores de azeite, pastores e até a atletas que demandavam os Jogos Olímpicos, psicologicamente carenciados. A sua reputação era célebre. Os meios de comunicação da época asseguram que salvou a Grécia quando, instada por um Temístocles temeroso perante a inumerável hoste persa, o avisou para confiar nas suas muralhas de madeira.

Em Belém também se instalou uma pitonisa que, sobre os grandes (e pequenos) temas da política nacional, emite proposições que nunca são decifráveis em menos de 50 ou 100 interpretações diferentes e contraditórias. É uma pitonisa filosoficamente mais avançada, pois contém em si todos os momentos da dialéctica hegeliana (teses, antíteses, a afirmação e a sua negação) excepto as sínteses.

Felizmente para Temístocles, as difíceis comunicações da época impediram-no de demandar Belém, senão nunca teria havido Salamina e a história teria sido dramaticamente diferente. A trirreme de Temístocles estaria algures no Mediterrâneo, navegando em círculos, com os soldados no convés gritando teorias todas diferentes e contraditórias sobre a rota a traçar e, na coberta, a chusma de remadores, num alarido infernal, agitando perigosamente os remos e discutindo com o homem do tambor sobre o ritmo e direcção das remadas.

No seu último discurso do 25 de Abril, como PR, Sampaio não desmereceu esta gloriosa herança clássica. Muitos têm tentado imitar Aristóteles, Platão, Homero, Heródoto, Tucídides, mas sem o conseguirem. Sampaio foi mais feliz com a Pitonisa.

Sobre este tema ler ainda:
O Manto Habitual da Hipocrisia
Belém pariu um rato
Um de nós mentes ...
e os links indicados neste último post

Publicado por Joana às 11:05 PM | Comentários (28) | TrackBack

O Princípio de Pedro

Quando ganhou a Câmara Municipal de Lisboa, muitos pensaram, e ele talvez mais que todos, que só o céu seria o limite. Todavia, quanto maior a nau, maior a tormenta. E a tormenta foi extrema: a nossa mesquinhez intelectual e a nossa ânsia pelo bota-abaixo uniram-se em bloco contra um personagem que tantos anti-corpos havia criado. E Santana Lopes revelou-se um timoneiro cada vez mais inábil à medida que a nau crescia e a tormenta aumentava.

Santana Lopes ganhou a CML com duas ideias emblemáticas. O Casino e o Túnel do Metro. O Casino do Parque Mayer, uma obra normal numa comunidade que não fosse intelectualmente bacoca e culturalmente provinciana , foi inviabilizada pelo facto de Santana Lopes estar em minoria na AML. Em contrapartida o Túnel, uma obra cara e não prioritária no balanço das carências de Lisboa, começou e tem progredido com altos e baixos, num torvelinho de paixões, onde tem sobejado a irreflexão e faltado o rigor técnico.

Santana Lopes não soube lidar com uma situação obviamente complexa. Mas é isso que se espera de um político com ambições. Carmona Rodrigues, que nunca havia sido um político e cujo perfil é fundamentalmente técnico, acabou por ter uma prestação mais aceitável que um político profissional para o qual só o céu parecia o limite.

Finalmente veio o Verão quente de 2004. Durão Barroso após dois anos de um governo penoso, sem vislumbres de imaginação, sem ousadia para tomar as medidas que o país precisava, rodeado de ministros cuja média de competências deixava a desejar e sem coragem para remodelar o gabinete, aproveitou a oportunidade dada pela escolha para Presidente da Comissão Europeia para abandonar um barco de que já não conseguia ser timoneiro. Pela ordem natural da normalidade democrática, seria Santana Lopes a suceder-lhe.

Todavia, Santana Lopes nunca deveria ter aceitado a indigitação. Como eu escrevi aqui, nessa altura, tal foi um presente envenenado. Sampaio indigitou-o apenas por duas razões: 1) não se atreveu a inviabilizar a ida de Durão Barroso para a Comissão Europeia; 2) o PS não tinha então líder capaz.

Santana Lopes formou governo numa situação de grande desvantagem. O PR arrastou a indigitação, sujeitando-o a uma espera interminável e absurda; condicionou a formação e a actuação do governo de uma forma humilhante e contrária aos hábitos constitucionais; declarou por diversas vezes que manteria o governo sob vigilância, o que era um convite aos clamores da oposição e da comunicação social por tudo o que o governo fizesse ou não fizesse e à instabilidade social que tal alarido permanente causaria; promoveu uma contínua instabilidade política, aproveitando todas as ocasiões para dramatizar a vida política – caso Marcelo, artigos de semanários, demissão de um ministro, etc..

Santana Lopes agiu durante esse tempo como um «patrocinado» do PR, um seu protegido, um seu cliente (no sentido romano do termo), sem perceber que Sampaio apenas o havia indigitado como solução interina enquanto o PS não fosse uma alternativa política credível. Era uma estratégia clara. Foi-o para mim, que estou muito longe destas andanças, e certamente seria mais óbvia para Santana Lopes, que calcorreava quase diariamente o caminho para Belém para ouvir mais uns remoques do PR. PSL ao aceitar aqueles meses de contínuas humilhações, numa postura que lhe não é habitual, perdeu toda a credibilidade política.

Durante esses meses, Santana Lopes não mostrou a coragem política que o seu passado sugeria ter. Capitulou perante o vampirismo da comunicação social e a hipocrisia das manobras presidenciais. Ficou uma sombra do enfant terrible que era anos atrás. Cada vez mais se produzia perante as câmaras em estado de compungida penitência, olhando os algozes com a humildade de quem teme pela punição dos pecados que terá, segundo o que o braço secular presume, cometido. A sua prestação tornou-se cada vez mais errática, de derrotado à partida, de vencido antes do jogo começar.

A estatura de um político revela-se nos momentos difíceis. A estatura dos políticos que ficaram na história revelou-se tanto maior quanto mais críticas foram as situações com que se confrontaram. Santana Lopes falhou lastimosamente, quando foi confrontado com condições adversas. E quanto mais adversas eram essas situações mais a sua prestação era humilde, submissa, errática.

Após o seu desgaste político no exercício do cargo de 1º ministro, a atitude mais razoável deveria ser a de fazer aquilo que se designa em política como a “travessia do deserto”, esperando que a imagem que criou (e lhe criaram) nesses 6 meses se desvanecesse e os eventuais erros do actual governo servissem de contraponto para uma reavaliação da sua capacidade governativa e da justeza ou não das críticas que lhe foram dirigidas. E aqui verificou-se que o problema de Santana Lopes não era apenas uma questão de imagem – era também uma questão de estatura política.

Santana deveria ter abandonado a presidência do PSD pela porta grande e evitar frases inúteis e pretensiosas, como “vou andar por aí”. Inúteis, porque com certeza que ele continuaria “por aí”, visto não abandonar o partido; pretensiosas porque não correspondiam à força política que ele efectivamente dispunha então. Saber estar calado, também é uma virtude política.

A última humilhação foi a questão da CML. O regresso à CML é discutível, mas pode ser interpretado como uma tentativa de mostrar que não quereria que se continuasse a dizer que ele nunca terminava nenhum mandato. O mesmo não se poderá dizer da candidatura à presidência da CML. Santana Lopes deveria ter sido o próprio a renunciar à recandidatura a Lisboa e nunca pôr isso nas mãos de Marques Mendes. Ao fazê-lo sujeitou-se a mais uma humilhação desnecessária e deu mais um sinal de fragilidade política.

Numa hierarquia empresarial tende-se a subir até atingir o seu nível de incompetência. É o Princípio de Peter. Na política, a situação é mais fluida. Sobe-se até se atingir o nível de incompetência e, se não houver prudência, continua-se o percurso, errático, até se atingir o nível do descrédito. Foi o que aconteceu com Pedro Santana Lopes. É o Princípio de Pedro.

Ler sobre o percurso de Santana:

A Desmagnetização de Santana
Estaturas Políticas
Belém pariu um rato
Um de nós mentes ...
O Tiro no Pé de Santana
O Túnel pela culatra
Patchwork mal cerzido
... E o óbvio aconteceu
Obviamente, Demito-me
Sampaio escreve direito por linhas tortas

E as ligações neste post relativas a textos sobre a crise da sucessão de Durão Barroso.

Publicado por Joana às 07:25 PM | Comentários (40) | TrackBack

abril 22, 2005

Os meus agradecimentos

De partida para um fim de semana prolongado não pude eximir-me em vir aqui apresentar os meus mais comovidos e veementes agradecimentos ao pessoal da RTP membro do Sindicato dos Jornalistas (SJ), do Sindicato dos Trabalhadores de Telecomunicações e Comunicação Audiovisual (STT) e do Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisual (SINTTAV), pela greve que continua a ter, segundo eles, uma participação de quase 100%, “inclusive com a adesão dos trabalhadores da televisão pública que estavam de folga nos dias 18 e 19 e que hoje, dia 20, não retomaram o serviço".

Os meus agradecimentos só pecam pela insuficiência da prosa, mas os senhores sindicalizados desculpar-me-ão certamente, dada a premência da minha partida. E pecam porque aqueles sindicalizados deram uma tremenda lição ao país: aqueles sindicatos englobam a maioria dos trabalhadores da RTP, conseguiram uma adesão de 100% e permitiram que o país verificasse que a RTP continuava a funcionar e, inclusivamente, que aumentava as audiências.

Assim sendo, seria imperdoável o país esquecer que deve um favor enorme ao pundonor com que estes sindicalizados se esforçaram, durante 3 longos e empolgantes dias, a provar de forma irrefutável que são completamente desnecessários e que o país pode poupar 150 milhões de euros/ano, mais as derrapagens orçamentais e mais os 6 milhões que custariam as suas reivindicações actuais.

Espero, ansiosa, que os sindicalizados (hesito em chamar-lhes trabalhadores) de outras empresas públicas, que nos custam os olhos da cara e que nos tornaram nos campeões da Europa da caridade público-empresarial, exasperados pelo facto dos governos não sanearem e reestruturarem as suas empresas, sigam este exemplo e se empenhem igualmente em mostrarem, de forma tão decisiva, que são supérfluos e que essas empresas escusam de continuar a viver da caridade forçada dos contribuintes portugueses.

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abril 21, 2005

Decapitar o Mensageiro

O movimento anti-globalização continua pujante. Existe apenas uma diferença subtil – há anos, grupos radicais organizavam manifestações maciças contra os líderes políticos dos países mais ricos, acusando-os de promoverem a globalização com o intuito de explorarem o terceiro mundo e sublinhavam esse repúdio vandalizando as cidades onde aqueles líderes se reuniam; agora imprecam irados contra a invasão dos produtos provenientes do terceiro mundo que exploram os países ricos, e exigem que estes sejam protegidos dessa globalização pérfida. Em qualquer dos casos o culpado é o mesmo: o neoliberalismo. O neoliberalismo é acusado de ser e de não ser.

Os economistas não inventaram a globalização. Têm-se limitado a estudá-la e a deduzir os seus efeitos. A globalização começou com as descobertas da América e do caminho marítimo para a Índia e foi progredindo até ter atingido um ponto alto nas vésperas da 1ª Guerra Mundial. Durante essas épocas, os economistas foram produzindo teorias para explicarem o funcionamento das economias e deduzirem as formas dos Estados obterem ou produzirem uma maior riqueza – mercantilistas, fisiocratas, clássicos ingleses e históricos alemães, socialistas, etc. – mas não foram agentes do processo. Nas naus de Vasco da Gama e de Colombo não há indicação da existência de economistas. No Estado-Maior de Lord Clive também não foi detectada a presença de economistas. Quando Bonaparte, no Egipto, antes da batalha das Pirâmides, ordenou “Burros e sábios ao centro”, os sábios eram egiptólogos e os burros pertenciam mesmo à espécie asinina – nenhum deles era economista.

As sequelas da guerra de 1914-18 e o estabelecimento de regimes totalitários, comunistas e fascistas, que apostavam na autarcia e no dirigismo económico, reduziram o mundo a compartimentos estanques. A seguir à 2ª guerra mundial, e apesar da queda do fascismo, a progressiva substituição do colonialismo europeu por regimes autoritários, muitos reclamando-se do marxismo, manteve essa situação que, contrariamente às intenções dos seus promotores, tornou os países ricos, mais ricos, e os pobres, mais pobres. Também durante este período os economistas limitaram-se a explicar as diversas situações e a deduzir teorias que fornecessem instrumentos de resposta. Keynes, entre as duas guerras, foi um deles. Quando a validade de muitos dos axiomas keynesianos foram postos em causa pela experiência do pós-guerra, chegou a vez da Escola de Chicago ganhar poder explicativo.

A implosão do comunismo, a queda de muitos regimes autoritários terceiro-mundistas e a alteração das políticas económicas de alguns Estados no sentido de uma maior abertura (Índia, China, etc.), conjuntamente com uma rapidez cada vez maior do fluxo da informação, reactivaram o processo da globalização. Todavia, não foram economistas que demoliram o Muro de Berlim; quando Ieltsin subiu para um tanque em Moscovo, não havia qualquer economista ao lado dele e não foram certamente os neoliberais que induziram Deng Xiaoping a iniciar a criação das Zonas Económicas Especiais.

Em todos estes processos, os economistas (e os neoliberais, em particular) limitaram-se a percepcionar os fenómenos, a analisar os seus efeitos, a deduzir modelos explicativos e a propor instrumentos de acção. Têm sido apenas os portadores das mensagens e, quando lhes pedem, de eventuais soluções. Assacar-lhes a responsabilidade de um fenómeno que, com altos e baixos, se tem aprofundado de há 500 anos para cá, é pura ignorância. É o mesmo que responsabilizar os meteorologistas pela seca ou os geólogos pelos terramotos.

Aliás, aqueles que há dois ou três anos vandalizavam as cidades, repudiando a globalização porque esta significava a exploração dos países pobres pelos ricos, e agora vandalizam os meios de comunicação social, repudiando a globalização porque esta significa a exploração dos países ricos pelos pobres, não têm qualquer valimento científico ou ético para o fazerem – pois se eles nem percebem o que se passa! Pois se eles contestam com a mesma veemência o A e o não-A!

Prefiro aqueles que fazem procissões, rezando com fervor para que venha chuva. Têm seguramente mais êxito (a chuva acabará por vir, só não se sabe quando) e não partem montras nem alvorotam os espíritos.

A globalização não se combate com manifestações de repúdio, nem com preces e procissões. Aliás, não é possível combater um fenómeno natural, porquanto ele é inerente ao progresso da humanidade. Os fenómenos naturais domam-se de forma a tornarem-se úteis para nós, e não um factor de destruição. Para tal temos de os estudar e organizarmo-nos quer para evitar eventuais efeitos destrutivos, quer para os utilizar em nosso proveito.

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abril 20, 2005

Conservação Destrutiva

... em vez da Destruição Criativa

É um dado adquirido que o principal motor do crescimento económico é a inovação tecnológica (e a concomitante melhoria da qualificação laboral). E a experiência do último século e meio provou que essa inovação assenta num permanente movimento de substituição e/ou reafectação dos factores de produção – Capital e Trabalho. Sem essa Destruição Criativa, utilizando a terminologia de Schumpeter, não teria havido crescimento, ou esse crescimento teria sido muitíssimo mais lento. Em Portugal, Governos e sindicatos têm apostado, preferencialmente, na Conservação Destrutiva.

Há dias, a CGTP e a UGT exigiram ao ministro do Trabalho e da Solidariedade que procedesse à revalorização do Salário Mínimo Nacional (SMN) numa perspectiva económica e não pelo impacto que vai ter no Orçamento de Estado. Exigiram igualmente a revisão do Código do Trabalho, obviamente numa perspectiva de uma maior rigidez. Isto é, os sindicatos privilegiam os “insiders”, face aos restantes; privilegiam a rigidez dos factores de produção, face à sua mobilidade; privilegiam a “conservação” do statu quo face à Destruição Criativa; em suma privilegiam a Conservação Destrutiva.

O progresso económico só se consegue com uma contínua renovação e reafectação dos factores de produção. No caso do Capital, todos estão de acordo. É mais simples ... é o empresário a pagá-lo. No caso do Trabalho há uma forte oposição. Governos e sindicatos não perceberam que sem mobilidade laboral não há inovação, ou esta é muito lenta. Governos e sindicatos não perceberam que sem mobilidade laboral não há incentivos ao investimento e à renovação do factor capital. Nenhum empresário está disposto a fazer investimentos vultuosos, a arriscadas rupturas tecnológicas, com efectivos cuja imobilidade não incentiva à requalificação. A rigidez laboral desincentiva a Destruição Criativa do Capital.

Li há tempos que na década de 1990 foram criados, nos EUA, cerca de 330 milhões de postos de trabalho e destruídos cerca de 305 milhões. Ou seja, o número de postos de trabalho aumentou cerca de 25 milhões. Sem aquela enorme “Destruição” não teria sido possível a criação de uma tão grande quantidade de empregos e o elevado ritmo de progresso económico dos EUA. Aqueles números indicam que um trabalhador americano mudou, em média, duas vezes de emprego durante a última década

A rigidez do mercado do trabalho torna o desemprego friccional das economias dinâmicas, em desemprego estrutural, de longa duração, nas economias “conservativas”, como a nossa.

Quanto ao SMN, se ele se mantém baixo, a sua influência sobre o nível de emprego é despicienda. Todavia, se ele aumenta, a partir de certo nível torna-se um travão ao aumento do nível de emprego, nomeadamente no segmento dos menos qualificados. E, na actual situação da Economia global e da baixa qualificação laboral portuguesa, pode ser um incentivo à deslocalização e ao aumento do desemprego. É uma protecção envenenada aos menos qualificados. Os sindicatos acenam com ilusões, atrás das quais se perfilam as duras realidades.

No caso português coexistem dois mercados de emprego: um rígido e outro pouco ou nada regulado (contratos a prazo e recibos verdes). É este último mercado que, apesar dos disparates económicos que se têm cometido, serve de travão a um aumento mais acelerado do desemprego. É esse mercado que propicia alguma Destruição Criativa. Também é neste mercado que há os comportamentos mais indecorosos de alguns empresários (conjuntamente com o banditismo fiscal do Estado sobre os trabalhadores em regime de recibo verde) que são tomados como manifestações da impiedade neoliberal, quando eles resultam de uma política cobarde e deliberada do Estado que, incapaz de regulamentar o mercado de trabalho de forma eficiente, deixa continuar a rigidez excessiva no mercado “normal” e é obrigado a permitir uma total desregulação no mercado “lateral” de forma a incentivar o emprego e evitar que o nível de emprego caia drasticamente devido à rigidez dos “insiders”. Uma obrigação com que ele, aliás, não deixa de lucrar abusivamente.

Mas não é só no mercado do trabalho que prevalece a Conservação Destrutiva. Portugal é o segundo país da União Europeia (dos 15) que mais ajudas concedeu às suas empresas em 2003, com 1,24% do PIB, atrás da Finlândia (1,41%) e muito à frente da Alemanha (0,77%), para uma média da UE (dos 15) de 0,57%. Não é apenas o ónus para a despesa pública e para os bolsos do contribuinte que tal representa. Proteger empresas ineficientes desvirtua a concorrência, provoca uma deficiente afectação dos recursos e conduz a um nível menor do bem estar social. E leva a que os empregados dessas empresas percam a noção de que estão a servir uma clientela e se julguem numa sinecura.

Ao pôr entraves à Destruição Criativa, em nome de uma “Conservação” ilusória, o nosso país protege o que é obsoleto, avesso ao risco e à mudança. É uma Conservação Destrutiva, porquanto julga conservar, mas cria as condições para a destruição progressiva do nosso tecido económico.


Sobre esta matéria ler:
O Caso Bombardier
Construtores de Pirâmides
Estado de Silêncio

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abril 19, 2005

A Deslocalização não Pára

O Espírito Santo escolheu a Alemanha

Publicado por Joana às 11:18 PM | Comentários (23) | TrackBack

Habetis Papam

Entre a ruptura e a continuidade, os cardeais reunidos em conclave escolheram a segunda opção. Os católicos que estão pela continuidade rejubilam: Morreu o Papa João Paulo II, viva Bento XVI!; os que, como D. Manuel Martins, prefeririam a ruptura, murmuram, melancólicos: Morreu o Cardeal Ratzinger, viva Bento XVI! Como Marcelo Rebelo de Sousa assegurava há tempos que, em Conclave, além dos cardeais estaria o Espírito Santo para lhes providenciar a clareza do juízo, esta eleição era pré-determinada, logo deverá ser aceite pelos católicos, porque é matéria de fé e pelos não católicos, porque é matéria que não lhes diz respeito.

O Cardeal Ratzinger estava nos primeiros lugares na bolsa das apostas. Logo não constituiu surpresa. Apenas provocou hilaridade porque 3 horas antes, o “nosso” enviado António Esteves Martins garantia que o fumo negro das 2 votações da manhã significava a definitiva derrota do Cardeal Ratzinger. Quanto mais afirmativos são os nossos analistas, mas se equivocam. Quem ouvisse as suas afirmações peremptórias, à hora do almoço, diria que António Esteves Martins tinha acompanhado o Espírito Santo para o interior do Conclave.

Uma curiosidade desta eleição foi o ardor com que muitos que, anteriormente, eram notórios ateus, agnósticos e mesmo anti-clericais, se empenharam nesta eleição. Quem os lesse e ouvisse diria que tinham regressado, como filhos pródigos, ao aprisco divino (ou à vinha do Senhor do Cardeal Ratzinger/Bento XVI) para intervirem na eleição do seu novo pastor. Até Mário Soares deixou de ser laico (e quiçá republicano) para se lançar na contenda. Pelo que observei, deve ter havido milhares de conversões nestas últimas semanas. Se continuarem no aprisco, a Igreja Católica sai muito robustecida deste Conclave.

Publicado por Joana às 07:51 PM | Comentários (51) | TrackBack

abril 18, 2005

Choque Tecnológico em Xeque

O Secretário de Estado da Educação afirmou hoje que cerca de 20 por cento dos 121.599 professores cometeram erros no preenchimento da candidatura ao concurso nacional para colocação nas escolas. A Direcção Geral dos Recursos Humanos de Educação (DGHRE) assegurou que deu apoio directo (esclarecimentos e explicações) a um em cada três candidatos, pelo menos uma vez, tendo sido feitos 47 mil contactos entre os candidatos e o Ministério da Educação, 31 mil através do centro de atendimento telefónico, três mil na loja DGRHE e 13 mil por e-mail. Isto apesar da actual equipa do Ministério da Educação, segundo indicou, não ter introduzido qualquer alteração ao modelo de concursos organizado pelo anterior Governo.

Portanto os principais protagonistas do Choque Tecnológico, os heróis em quem a Pátria tem os olhos postos e de quem espera que cumpram a missão exaltante de salvarem o país do pântano da desqualificação, e ensinarem as nossas crianças a sobreviverem e prosperarem num mundo cada vez mais competitivo e exigente em termos de qualificação científica e técnica, falharam ao preencher o modelo de candidatura a protagonistas desse esforço patriótico e tecnológico. E falharam apesar dos meios de aconselhamento ao seu dispor. Nem foi preciso serem confrontados com os alunos. Tombaram logo na fase dos papéis.

A menos que os papéis sejam de tal forma confusos que estejam fora do alcance do comum dos mortais. Nesse caso, antes do Choque Tecnológico, sugere-se o Choque Desburocrático.

Publicado por Joana às 07:19 PM | Comentários (19) | TrackBack

abril 17, 2005

Inquisição Cautelar

Nada mais repugnante que os Inquisidores que se atribuíram a missão mesquinha de velar pela manutenção da ideologia dominante. Infelizmente é um desígnio nacional que remonta há perto de 5 séculos e que se tem mantido vivaz. Nada mais repugnante de que sejam aqueles que estão refastelados nas cadeiras do poder da Comunicação Social, pagos frequentemente pelos contribuintes, que acusam vozes que, a expensas próprias, se elevam contra essa ditadura do pensamento, de terem uma “difusão privilegiada - e sem concorrência - do seu correctíssimo proselitismo ideológico”. É o farisaísmo mais repugnante.

Uma das características do farisaísmo é acusar os outros dos seus próprios vícios. Por isso, V Jorge Silva acusa hoje, com a contumaz pesporrência, as vozes que têm, pelo esforço próprio e à custa de tanto insulto e calúnia, emergido do pântano da cultura estatizante, de terem a “Arrogância, a sobranceria, a pose de infalibilidade inquisitorial“.

Todos os totalitarismos ideológicos atribuem os males mais horrendos àqueles que se lhes opõem. Os fascistas condenavam os comunistas, acusando-os de comerem criancinhas; V Jorge Silva indigna-se pelo “ódio primitivo que hoje votam a figuras emblemáticas como Sartre (que alguns chegam, sem nenhum sentido do ridículo, a comparar a Salazar!)”. Se o ridículo (de VJS) matasse ...

Na realidade, o menos laudatório que se tem escrito sobre Sartre, neste ano do centenário do seu nascimento, é o relativo à sua intervenção política (e não como escritor ou filósofo), comparando-o com Raymond Aron, que nasceu no mesmo ano e foi condiscípulo dele, sublinhando, como eu escrevi aqui há um mês, que em cada evento, Sartre esteve, quase sempre, do lado certo, de acordo com o pensamento politicamente correcto da época, mas quase sempre do lado errado, de acordo com o posterior julgamento da história enquanto Aron esteve, quase sempre, do lado errado, de acordo com esse mesmo pensamento politicamente correcto e sempre do lado certo, de acordo com o mesmo julgamento posterior.

Nada disso prefigura um ódio primitivo mas apenas análise política e histórica factual; Não li em sítio algum Sartre ser comparado a Salazar. E se tal tivesse acontecido, isso apenas constituiria ignomínia para quem o escrevesse e não para Sartre.

Por isso é normal que os arautos do actual politicamente correcto odeiem serem confrontados com exemplos de figuras que foram idolatradas sobre os acontecimentos e cujos erros emergiram e foram ganhando uma dimensão cada vez mais calamitosa, à medida que a distância temporal se ampliou. Receiam o julgamento da história. E enquanto esse julgamento não chega ... insultam os adversários.

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abril 15, 2005

Chirac e Eastwood

Jacques Chirac, no debate crucial de ontem sobre o referendo europeu, na TF1, obteve um share de 30,8 % contra os 26,6% da France 3, que transmitia Pale Rider (O Justiceiro Solitário), um filme de Clint Eastwood, antigo de vinte anos, onde este faz de pregador, um pregador directo, com pouca retórica, mas muito rápido a sacar da arma e certeiro em atingir os alvos. O que faltou seguramente a Chirac, encurralado entre ser um anti-liberal militante na cena internacional e a necessidade de introduzir reformas liberais no Estado social francês, chez lui. Clint era certeiro com o revolver, Chirac errático com o boomerang.

Chirac, perante um painel de 83 jovens, voltou a fazer a sua profissão de fé anti-liberal, atacando a corrente ultra-liberal, anglo-saxónica, atlantista (!?). Atacou a mundialização desencadeada por uma corrente liberal em proveito dos mais fortes e garantiu que só uma Europa forte e organizada se poderia opor a esta evolução. Só não explicou como o faria. E quando lhe perguntaram porque é que o desemprego no Reino Unido era muito inferior ao francês, Chirac replicou que o modelo social britânico seria inaceitável em França(!!). Ou seja ... a droga está a levar-me ao túmulo, mas não consigo passar sem ela.

É interessante ver Chirac repetir os mesmos argumentos da vasta união popular que vai desde a extrema esquerda (PCF, LCR, Verdes), passando por José Bové e acabando na extrema direita de Le Pen. Só que estes usam aqueles argumentos para pedirem o Não, enquanto Chirac usa-os para pedir o Sim. Talvez por isso Valéry Giscard d'Estaing, o pai da Constituição, tenha declarado que Chirac “não era credível”. Se a França votar Não, os outros 24 Estados terão que nos vir comer à mão, pensam os adeptos do Não; se a França votar Sim, a Europa forte e organizada destroçará a mundialização e o liberalismo, contrapõe Chirac. E dá como exemplo o ter posto a directiva Bolkestein, sobre a liberalização dos serviços, em banho Maria, após ter falado com voz grossa à Comissão Europeia.

O ridículo desta história é que a Constituição Europeia não vai trazer qualquer alteração à mundialização e à contínua deslocalização das empresas para Leste ou para a Ásia. O Tratado de Maastricht ou a recente adesão dos 10 países de Leste tiveram importância nesta matéria, mas são factos consumados: hoje temos a moeda única e 10 países com baixos custos de mão de obra e com uma legislação laboral liberal. A Constituição Europeia pode ser contestável em termos de soberania, nunca em termos de modelo social de cada Estado membro. Os franceses não estão a discutir a Constituição Europeia, estão a exorcizar os seus temores face a um mundo em mutação.

O problema francês é a quadratura do círculo. A França pretende conservar intocável um modelo que, segundo afirmou ontem em Montpellier Nicolas Sarkozy, o ex-ministro da Economia, significa «duas vezes mais desempregados que os outros». Sarkozy, criticando Chirac sustentou que a França não tem lições a dar aos seus parceiros sobre modelos sociais, dado o abismo a que conduziu o seu, finalizando com um mordaz «Felizmente que o ridículo não mata!». Bem ... o ridículo não mata ... mas levou à evicção de Sarkozy da pasta da Economia, para acalmar os temores franceses sobre a invulnerabilidade do seu modelo social.

A França pretende igualmente opor-se às deslocalizações, ao fecho das fábricas, ao aumento do desemprego, etc.. Mas pretende opor-se julgando que tal é possível construindo uma «Muralha da China» à sua volta, ou à volta da Europa (mas de qual Europa? A dos 25? A dos 15? A dos 6?). Ora há mais de 20 anos que governos de direita e de esquerda (inclusive com a inclusão do PCF) tentam medidas para diminuir o desemprego e falharam sempre. O grave, actualmente, é que a mundialização, a emergência dos gigantes asiáticos e os novos 10 Estados membros (e os outros que se perfilam no horizonte), são dados incontornáveis e cada vez mais determinantes. A «Muralha da China» e as profissões de fé anti-liberais de Chirac não levam a sítio nenhum. São apenas retórica. Retórica de tal forma vazia que, perante um debate tão importante, um número quase igual de franceses preferiu ver um velho filme de Clint Eastwood.

O problema francês é, mutatis mutandis, o actual problema português: queremos resolver uma situação que se agrava dia a dia, mas não queremos submetermo-nos às cirurgias necessárias; queremos reformas, mas não as queremos no nosso grupo social ou corporativo – os outros que as façam. Só não queremos uma «Muralha da China» porque sabemos que a nossa reduzida dimensão económica tornaria essa pretensão totalmente ridícula.

O futuro não se constrói tentando congelar o passado. O processo que levou à actual situação europeia e portuguesa entrou numa fase de aceleração. Não a resolvemos olhando nostálgicos para o passado.

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abril 14, 2005

Hipocrisias

O parecer da Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) sobre a venda da Lusomundo Serviços à Controlinveste é uma contradição nos termos, uma contradictio in subjecto, ao assinalar, como primeira condição, que "a adquirente respeite a liberdade de expressão e o confronto das diversas correntes de opinião, bem como a identidade e linha editorial dos órgãos de comunicação social em presença”, e isto porque ou a identidade e linha editorial dos órgãos de comunicação social em presença respeitam a liberdade de expressão e o confronto das diversas correntes de opinião e nessa situação o segundo termo é mais que despiciendo, é nocivo, porquanto gera ambiguidades; ou não as respeitam, e deverão ser alteradas em vez de protegidas por uma entidade que teria por missão zelar pela liberdade de expressão.

A AACS é uma entidade que já recebeu a extrema-unção há bastante tempo, cujos figurantes terminaram os mandatos há mais de um ano, e cujo corpo jaz, putrefacto, à espera que os políticos se decidam a removê-lo para o destino final. Como qualquer múmia o seu único objectivo é a conservação. A AACS apenas pretende conservar a situação que o nosso recente processo histórico criou na comunicação social e mantê-la per omnia secula secolorum.

A referência à liberdade de expressão e o confronto das diversas correntes de opinião é apenas o ramo de salsa do leitão da Bairrada (respeite ... a identidade e linha editorial dos órgãos de comunicação social em presença). A AACS refere-se à liberdade da [nossa] expressão e ao confronto das [nossas] diversas correntes de opinião.

Quando um empresário compra uma fábrica de calçado tem que se obrigar a satisfazer as leis e os regulamentos em vigor na actividade que exerce. Não existe todavia uma Alta Autoridade para os Modelos de Calçado que lhe imponha os formatos de sapato que vai produzir, e lhes imponha: o Sr. empresário terá que se cingir aos modelos actualmente fabricados e, sobretudo, evitar aquelas sandálias de salto alto, tipo agulha, de tiras finíssimas que se entrelaçam lascivas, perna acima, pois fazem mal à coluna e, para mais, só despertam pensamentos pecaminosos, o que na nossa idade pode provocar um AVC.

Não vejo porque há-de ser diferente na Comunicação Social. É certo que, pela sua especificidade, faz necessariamente parte do seu regulamento o respeito pela liberdade de expressão e pelo confronto das diversas correntes de opinião, no produto que vende ao público. Ao “exigir” igualmente o respeito pela identidade e linha editorial dos órgãos de comunicação social está a ser hipócrita, pois está a tirar com a mão esquerda o que deu com a direita – o Sr. empresário tem que respeitar a liberdade da nossa opinião, ou seja, da opinião que lhe impomos, e terá que respeitar o confronto das [nossas] correntes de opinião, ou seja, aquelas que se inserem na nossa identidade e na nossa linha editorial.

Todavia, os vícios da AACS têm trazido alguns benefícios. Bernard de Mandeville escreveu, no início do século XVIII, na A Fábula das Abelhas: Ou velhacos transformados em gente honesta que O que, no estado da natureza, faz o homem sociável, não é o desejo que tem de estar em companhia, nem a bondade natural, nem a piedade, … . As qualidades mais vis, frequentemente as mais odiosas, são as mais necessárias para torná-lo apto a viver com o maior número. São elas que … mais contribuem para a felicidade e prosperidade das sociedades. Neste caso também há benefícios: ao entregar a Comunicação Social aos jornalistas que “descobriram o caminho marítimo para lá chegarem” com exclusão de arrivistas posteriores, a AACS está a promover meios alternativos, como a blogosfera. Os velhacos [foram] transformados em gente honesta! A irrupção da blogosfera deve-se, em parte, às mordaças da AACS e quejandos – apesar das suas intenções serem vis, estão a promover o bem.

E com o tempo vai igualmente verificar-se que esse espartilho legal se revelará precário. No sistema capitalista, como escrevia Marx, tudo o que é sólido se dissolve no ar. Portugal tentou preservar para si o “Justo Império Asiático” armado de leis, bulas, etc.. Isso não impediu holandeses e ingleses, quando tiveram meios para isso, de o retalharem em seu proveito. A descoberta do caminho marítimo para o Oriente não nos conferiu uma procuração irrevogável de usufruto daquelas áreas. O mesmo vai acontecer com as pretensões da AACS e dos jornalistas “instalados”. O facto de eles terem chegado primeiro não os vai manter indefinidamente no poleiro.

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abril 13, 2005

Adam Smith e Marx

Adam Smith e Marx influenciaram de uma forma decisiva o pensamento político, económico e social dos últimos dois séculos. Há um século de diferença entre ambos. Curiosamente o mesmo período que medeia entre Marx e a vivência do poder soviético. Igualmente é curioso verificar que, dessas três “vidas”, o pensamento que se mantém mais actual e vivaz é o da primeira. Todavia há uma estranha complementaridade entre Adam Smith e Marx. Adam Smith preocupou-se com o funcionamento económico da sociedade em que vivia. E extraiu dessa observação conceitos, ainda em vigor, que se revelaram extraordinariamente operacionais. Marx preocupou-se com as causas do devir social e histórico e estabeleceu uma teoria explicativa desse devir que continua a manter algum poder explicativo, embora a sua aplicação mecânica e absoluta se tenha revelado insuficiente e errónea. No seu sóbrio e prático raciocínio de um burguês britânico, Adam Smith ficou em muitos aspectos mais actual que Marx, o típico filósofo alemão que aspirava ao absoluto da totalidade explicativa.

A Riqueza das Nações é um manifesto de combate contra as coacções extra-económicas então existentes (obrigações feudais, corporações, regulamentos diversos) mas também contra o mercantilismo e a fisiocracia, então em voga. Curiosamente o mercantilismo assentava em três noções que continuam a inquinar a nossa sociedade: o Estado como principal agente económico, o progresso baseado na injecção de dinheiro na economia e o superavit da balança de transacções com o exterior. Nos nossos dias tal corresponde ao mito estatizante, ao despesismo dos dinheiros públicos e à desvalorização cambial para incentivar as exportações. Para Adam Smith é o indivíduo, e não o Estado, o principal actor económico; a riqueza é a produção efectiva em bens e serviços e não a criada artificialmente pela injecção de dinheiro na economia; o comércio internacional é apenas um comércio como outro qualquer.

Para Adam Smith a prosperidade nasce da divisão do trabalho. A divisão do trabalho é a condição sine qua non do crescimento. Mas qual é o seu fundamento? A racionalidade dos indivíduos? O fruto de uma vontade colectiva? Não, resume-se simplesmente ao gosto visceral dos homens pela troca e pelo lucro. Os sapatos que calçamos não os devemos ao sentido altruísta do fabricante de calçado, mas à satisfação do seu interesse egoísta em obter um lucro. E a melhoria das condições de produção na sua fábrica não se deve a um sentido altruísta, a um ideal estético ou a uma virtude política: é unicamente fruto do seu interesse pessoal em melhorar a competitividade da sua exploração para maximizar o seu ganho. Escreveu Adam Smith Na realidade, ele não pretende, normalmente, promover o bem público, nem sabe até que ponto o está a fazer …. só está a pensar na sua própria segurança; e, ao dirigir essa indústria de modo que a sua produção adquira o máximo valor, só está a pensar no seu próprio ganho, e, neste como em muitos outros casos, está a ser guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte das suas intenções. Nem nunca será muito mau para a sociedade que ele não fizesse parte das suas intenções. Ao tentar satisfazer o seu próprio interesse promove, frequentemente, de uma maneira mais eficaz, o interesse da sociedade, do que quando realmente o pretende fazer. Nunca vi nada de bom, feito por aqueles que se dedicaram ao comércio pelo bem público.

Não nos dirigimos ao humanismo do industrial, mas ao seu egoísmo; não o convencemos das nossas necessidades, mas das suas vantagens. São os planos e projectos daqueles que empregam o capital que regulam e dirigem todas as tarefas mais importantes do trabalho, e o lucro é o fim que buscam todos esses planos e projectos. E o que é mais surpreendente é que esta transacção de egoísmos e de utilidades, o mercado, corresponde, igualmente, a um óptimo colectivo. É um óptimo por defeito, porque nenhum outro funciona. Em vez da providência divina do pensamento escolástico, é a mão invisível que provê ao nosso bem estar

Há um ponto em que tem que haver intervenção do Estado. Na defesa e segurança pública. A sociedade tem necessidade de ser protegida e de ser liberta dos entraves que possam prejudicar o seu progresso: suprimir as barreiras que limitam a liberdade económica (regulamentos e corporações no plano interno e restrições às importações e travões ao comércio livre no plano externo), porque a liberdade do funcionamento da economia e do comércio tende a maximizar o rendimento anual da sociedade.

E isto porque Adam Smith vê a liberdade do mercado do ponto de vista do conjunto da sociedade e do bem público. Não a vê do ponto de vista dos “interesses” dos produtores em termos de criarem regulamentos ou situações que pervertam a liberdade de mercado, para daí extraírem lucros adicionais: O interesse dos comerciantes, em qualquer ramo de actividade, é, todavia, sob muitos aspectos, sempre diferente e mesmo oposto, ao do público. O interesse dos comerciantes está sempre em alargar o mercado e estreitar a concorrência. O alargamento do mercado é, muitas vezes, suficientemente vantajoso para o público, mas a redução da concorrência é sempre contra ele e só pode servir para permitir aos comerciantes fazerem incidir, para seu próprio beneficio, através da elevação dos lucros para além ao seu nível natural, um imposto absurdo sobre os seus concidadãos. Qualquer proposta para uma nova lei ou regulamento do comércio proveniente desta classe deveria ser sempre escutada com as maiores precauções, e nunca deveria ser adoptada sem ter sido antes longa e cuidadosamente analisada, não só com a mais escrupulosa atenção, mas também com a máxima desconfiança. Ela provém de uma classe de indivíduos cujos interesses nunca coincidem exactamente com os do público, que têm geralmente como objectivo defraudá-lo e mesmo oprimi-lo, e que o têm efectivamente, em muitas ocasiões, defraudado e oprimido.

Adam Smith vê a liberdade do mercado como base do bem estar social e recusa qualquer derrogação a essa liberdade, quer por regulamentos e leis, quer por conluios ou práticas anti-concorrenciais dos agentes económicos. Por esse motivo recusa igualmente qualquer despesa pública em favor dos pobres quer por considerar que se favorece uma classe de cidadãos face a outra, quer por entender que tal cria obstáculos à mobilidade dos trabalhadores. Ora esta última razão continua a ser defendida hoje em dia: uma das razões pelas quais a economia americana atinge mais facilmente o pleno emprego é a menor subsidiarização do desemprego, e essa situação, para além de diminuir o desemprego, aumenta a riqueza pública.

Esta formulação de Adam Smith foi a base da Economia Positiva e da teoria microeconómica ainda em vigor.

Marx pôs a tónica no devir social e na forma como o posicionamento dos agentes económicos face à produção e à propriedade dos meios de produção cria clivagens sociais, comportamentos diferenciados entre os grupos sociais que detêm essa propriedade e os grupos sociais não possidentes, clivagem essa que origina uma luta de classes que se torna o motor da sociedade e a leva, mais tarde ou mais cedo, a ser substituída por outra sociedade em que o posicionamento dos agentes económicos face à produção e à propriedade dos meios de produção seja diverso do da anterior.

Marx escrevia A Economia Política parte da existência da propriedade privada; não a explica. E tem razão nesse ponto. Mas tal constituirá uma razão de superioridade do pensamento económico de Marx sobre Adam Smith?

Marx escreve nos Manuscritos: A alienação do trabalhador no objecto do seu trabalho, é expressa da seguinte maneira nas leis da Economia Política: quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem para consumir; quanto mais valor ele cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu trabalho, tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho tanto mais frágil o trabalhador; quanto maior a inteligência revela o trabalho tanto menos inteligente e mais escravo da natureza se torna o trabalhador.

Esta texto poderá fazer as delícias de alguns mitómanos da esquerda radical. Mas terá sido confirmado pela história económica? O trabalhador tornou-se mais bárbaro e grosseiro à medida que o produto do seu trabalho se tornou mais aperfeiçoado e civilizado? É óbvio que não. Marx ficou preso, na sua análise, ao tempo e ao espaço das manufacturas de meados do século XIX.

Na verdade, do ponto de vista da Teoria Económica, O Capital apenas tem valor arqueológico. A Teoria da Reprodução Simples e a Teoria da Reprodução Ampliada têm, descontando obviamente o século de diferença, uma importância inferior ao Tableau Économique de Quesnay. Quem, no pleno uso das faculdades mentais, acredita actualmente na Lei da tendência decrescente da Taxa de Lucro? ou na Lei da pauperização crescente do proletariado? Quem pode acreditar que a classe operária constitui a maioria, está pauperizada e é a portadora exclusiva e decisiva do desenvolvimento social? Ora era nestes axiomas que se exprimia o carácter contraditório do capitalismo: o crescimento dos meios de produção, em vez de se traduzir pela elevação do nível de vida dos operários, traduzir-se num duplo processo de proletarização e de pauperização.

Igualmente, a concepção marxista do desenvolvimento da classe operária no capitalismo avançado não se confirmou e, ao invés, ocorreu e continua a ocorrer o seu enfraquecimento relativo.

Mesmo que se objecte que o conceito de proletariado será diferente, hoje em dia, e inclua os trabalhadores intelectuais e a intelligentsia, eu oporia que, de acordo com Marx, sendo a consciência social determinada pelo ser social, então este proletariado não teria nada (ou muito pouco) a ver com o proletariado de Marx.

Ora aquela formulação era um axioma basilar do pensamento de Marx. Marx não nega que entre os capitalistas e os proletários existam múltiplos grupos intermédios, artesãos, pequeno-burgueses, comerciantes, camponeses proprietários. Mas afirma duas proposições. Por um lado, à medida que o regime capitalista evoluir, tenderá para uma cristalização das relações sociais em apenas grupos: os capitalistas e os proletários. As classes intermédias não têm nem iniciativa nem dinamismo histórico. Há apenas duas classes capazes de imprimirem a sua marca à sociedade. Uma é a classe capitalista e a outra a classe proletária. No dia do conflito decisivo, todos e cada um serão obrigados a juntar-se ou aos capitalistas ou aos proletários.

A história traiu Marx e os seus epígonos. E mesmo depois de se verificar, na prática, que aqueles axiomas não eram verdadeiros, eles continuaram a ser repetidos à exaustão pelos intelectuais “ditos” marxistas.

Não será mais actual a afirmação de Adam Smith que A real e eficaz disciplina exercida sobre o trabalhador não é a da sua corporação [Adam Smith referia-se às corporações feudais, muito fechadas e regulamentadas], mas a dos seus clientes. É o medo de perder o emprego que o refreia na prática de fraudes e lhe corrige a negligência. Uma corporação exclusivista necessariamente retira força a este tipo de disciplina. Há, nessas circunstâncias, um determinado grupo de trabalhadores que de certeza obterá emprego, seja qual for o seu comportamento. Não foi a inexistência deste efeito de mercado que provocou a ineficiência económica do regime soviético? Que tornou, nesse regime, o produto do trabalhador menos aperfeiçoado e civilizado?

Quanto à contribuição de Marx para a explicação do devir histórico, ela é importante. Mas, embora haja um fio condutor permanente no pensamento de Marx sobre as causas desse devir, a sua formulação mais concreta é a que citei em “Marx (in)actual” e em algumas passagens do Manifesto. E esses conceitos avançados por Marx têm um óbvio interesse explicativo. Todavia a ânsia de tornar “científico” o “materialismo histórico” levou posteriormente à estilização da caracterização das sociedades. A história foi arrumada em comunismo primitivo, esclavagismo, feudalismo, capitalismo e socialismo (e, num futuro radioso, o comunismo).

Isto equivaleu a deitar a História no leito de Procusta do “marxismo mecanicista”. Ora a escravatura no Império Romano nunca atingiu, relativamente à população total, a percentagem da existente na Confederação Americana, em meados do século XIX. Fenómenos típicos da economia capitalista que ocorreram na antiguidade – inflação, crises financeiras, etc. – não podiam ser explicados. Diversas formas de sociedade escapavam àquela arrumação. A teoria do modo de produção esclavagista só conseguia explicar Atenas e, parcialmente, a Roma Cidade-Estado. A teoria do modo de produção feudal só conseguia explicar cabalmente os modelos francês e alemão e, em menor grau, os da restante Europa Ocidental. Falhava clamorosamente em Bizâncio e no mundo islâmico. E que dizer das sociedades indianas e chinesas? Em face dessa falência, os teóricos soviéticos e os seus “compagnons de route” inventaram o “Modo de Produção Asiático” para encaixarem desajeitadamente todas as peças do puzzle que falhavam.

Também aqui o pragmatismo de Adam Smith revelou-se mais fecundo. Longe de pretender qualquer explicação absoluta, Adam Smith interessou-se pela importância da “Divisão do Trabalho”, da criação de excedentes por uma dada comunidade ou grupo social e da sua troca por bens que eram necessários a essa mesma comunidade. Sendo assim, o Homem, tal como existe actualmente, resulta de um processo histórico em que o primeiro passo fundamental foi o da “Divisão do Trabalho”, ou seja da progressiva especialização de tarefas. A “Divisão do Trabalho” permitia uma maior produtividade, mas só funcionaria se se desenvolvessem as trocas comerciais. E foi essa espiral produção-consumo que permitiu, com avanços e recuos, o aumento da prosperidade da humanidade.

E veja-se que, ao longo da história, os povos que tinham vantagens comparativas ao nível do comércio – portos marítimos ou fluviais abrigados, encruzilhadas facilitadas pela geografia física, etc., foram os que mais prosperaram e induziram o desenvolvimento dos restantes. O Egipto e a Mesopotâmia desenvolveram-se porque os seus rios facilitavam as trocas (para além da riqueza agrícola que, todavia, não seria tão explorada se não fosse possível trocar os excedentes). A Fenícia, Creta, as cidades gregas, Cartago, Roma, Constantinopla, as repúblicas italianas (Veneza, Génova, etc.), as cidades flamengas, Lisboa, as Províncias Unidas, a Inglaterra, etc. são exemplos da importância do comércio e da “troca” na prosperidade dos povos.

Marx falhou estrondosamente na Economia, porque teve uma abordagem totalmente enviesada: a sua intenção era unicamente explicar os fundamentos da exploração capitalista e da extracção da mais-valia. Não é possível estudar e aprofundar qualquer ciência apenas com um determinado intuito. A abordagem científica deve ser despida de preconceitos. Deve procurar as explicações e não partir destas para construir uma ciência.

Marx, e principalmente os seus epígonos, falhou (falharam) na História e na sua explicação porque perseguiu uma explicação absoluta e total. Era o filósofo alemão, o discípulo, embora recalcitrante, de Hegel, na perseguição da verdade absoluta. Mas descontando essa pretensão, quando Marx abordou acontecimentos políticos da época, produziu trabalhos de elevado interesse científico, no campo da Teoria da História – As Lutas de Classes em França 1848-1850 e o 18 de Brumário de Luis Napoleão, por exemplo.

Faltava a sobriedade e o pragmatismo de um burguês britânico que analisa a realidade e o seu devir de uma forma límpida e fecunda, sem pretensões a explicações absolutas.


Nota - ler igualmente, na "pré-história" do blogue:
Adam Smith e Marx
Hegel e Marx

Ler ainda, mais recentes e sobre Marx:
Marx (in)actual
Marx Neoliberal-Educação Gratuita?
Marx Neoliberal

Publicado por Joana às 11:36 PM | Comentários (79) | TrackBack

abril 12, 2005

A Internacional vítima de takeover Neoliberal

Parafraseando a cassete de Carvalho da Silva, a ofensiva neoliberal arremete selvaticamente em todas as frentes. Soube-se recentemente que a Internacional estava privatizada e que mesmo assobiá-la, inocentemente, em público, obrigava ao pagamento de direitos de autor. A cidadela mais emblemática do socialismo de Estado havia caído nas mãos da iniciativa privada. Havia passado a Internacional SA.

A notícia caiu como um raio. Em Portugal, como é evidente, apenas a Blogosfera (primeiro a Grande Loja e depois o Blasfémias, que eu saiba) deu notícia. Este infeliz evento era demasiado doloroso para os “politicamente correcto” da nossa Comunicação Social o partilharem com o seu público. Mas lá fora, ele foi glosado pelo El Mundo e pelo Monde. Este último conta a “descoberta” da privatização da Internacional em pormenor:

No filme Insurrection résurrection, um actor assobia durante 7 segundos a Internacional. O produtor do filme recebeu uma carta da entidade que zela pela propriedade privada dos direitos de autor em França (SDRM), avisando-o que, no decurso de uma fiscalização, havia sido detectada aquela apropriação indevida de um bem pertencente à Le Chant du monde. O custo de utilização daquele bem foi fixado em 1.000€ pela SDRM.

E o que é mais mortífero para a visão do Estado Social de que a Internacional tem sido um dos suportes sonoros mais comoventes e exaltantes, é que o filme em causa apenas teve 203 espectadores no total, isto é, 202 mais o vigilante da SDRM. Poucos mais que os filme portugueses que vivem às nossas expensas. A expensas do nosso Estado Social!

Louve-se todavia a prudência do cineasta. O actor apenas assobiou durante 7 segundos. Se ele, levado por um inebriante ímpeto revolucionário (ou insurreccional), tivesse assobiado durante 3 minutos, o produtor teria que pagar 25.714€! E imagine-se que em vez de um único personagem, fosse toda a assistência de um comício a entoar a Internacional num imponente concerto de assobios? Eram milhões de euros que estariam em jogo!

A esta hora, se leram o Monde, Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã devem estar de calculadoras em punho a fazer contas: Portanto x comícios com uma média de y participantes, entoando durante cerca de 3 minutos ... dá ... diacho! A quanto monta o financiamento da campanha? Bem ... temos que rever as contas ... há muitos camaradas mudos e outros só abrem a boca para a gente julgar que estão a participar. Temos que fazer um inventário rigoroso e falar com o nosso departamento jurídico. Para a próxima vamos treinar o pessoal a cantar a Maria da Fonte que, segundo parece, ainda não foi privatizada.

Publicado por Joana às 07:48 PM | Comentários (53) | TrackBack

abril 11, 2005

Adam Smith ... do produtor

Ou uma lembrança para o Blasfémias.

Adam_Smith_Book_IV_2.jpg

Notas:
1 – A imagem poderia estar melhor, mas eu não quis calcá-la, pois é uma edição do século XVIII. O último período está, parcialmente na página seguinte.
2 – O outro excerto, não o digitalizei por duas razões: a primeira, porque isto é apenas uma brincadeira e andar a pôr edições antigas em scanners, só por festa; a segunda, porque metade da citação está numa página e a outra metade na página seguinte

Publicado por Joana às 09:59 PM | Comentários (15) | TrackBack

O Apóstata Cravinho

O liberalismo económico tem um novo apoiante – João Cravinho. Não o trato pelo título académico, porque ele nunca engenheirou. Começou como funcionário público e foi nesse cadinho de comportamentos inovadores que formou a sua mentalidade. Mas hoje fez, publicamente, a sua apostasia. E com o arrebatado fanatismo dos recém-conversos Cravinho não se ficou pelos nossos dias, irrompeu pela História Pátria numa impetuosa fúria revanchista, não deixando pedra sobre pedra dos nossos ícones mais caros.

A revolução liberal, cuja hagiografia havia constituído o enlevo dos profissionais da democracia em Portugal, é esconjurada liminarmente – ela “não criou um solo fértil para a irradiação do pensamento liberal”. Esta frase mortífera liquidou a questão. Pois é ... a “revolução liberal” produziu uma nova classe, em substituição da anterior, ainda mais dependente do Estado ... pois se até o seu património era fruto da “venda” dos bens nacionais. De facto criou uma classe privilegiada dependente do Estado e toda uma sociedade urbana dependente de empregos públicos sustentados pelos impostos.

Pior ... o Rubicão havia sido atravessado, e nada deteve Cravinho na sua ânsia iconoclasta de ajustar contas com o estatismo gerado e acarinhado pela “revolução liberal” – acusa-o de ter levado à ditadura. Na verdade concorreu para ela, mas Cravinho, se não estivesse possuído do furor apóstata, certamente reconheceria que o anti-clericalismo e as fraudes eleitorais gigantescas da 1ª República, que não permitiam alternativa eleitoral ao “republicanismo laico” pré-socialista de então, ajudaram em muito a criação de uma base social de apoio à instauração da Ditadura.

Depois do ajuste contas com o passado, Cravinho explica porque foi iluminado pela fé: “a direita liberal ... continuaria espécie exótica adiada, não fossem os brutais choques externos que ameaçam fazer implodir o passado que foi sobrevivendo na sociedade portuguesa, cega aos riscos da nova concorrência global ... É neste contexto que a direita liberal vê a sua janela de oportunidade. Pensando que em breve se tornará evidente que só ela tem as respostas certas para dar futuro aos portugueses no mundo globalizado.”.

Mas Cravinho é um profissional da política. Formou o seu pensamento no percurso entre o aparelho de Estado e aparelho partidário. Ele tem uma reconhecida e fecunda experiência do que é mentir aos eleitores em campanha, como acto necessário para colher dividendos políticos: “Mas o que é evidente para intelectuais e quadros cosmopolitas bem instalados na vida nem sempre é sufragado eleitoralmente pelos familiarizados e desesperados com os problemas da sobrevivência quotidiana. O que inviabiliza praticamente o combate a peito descoberto

E é neste impasse que o recém-convertido põe a sua experiência de aparatchik à disposição dos neoliberais, menos versados na chicana política: “fazer o takeover ideológico de um partido de Governo a partir de centros de poder capazes de fazer acontecer novas realidades no plano mediático e novos protagonistas no plano político. Esses centros terão de existir, pelo menos, no meio empresarial, na comunicação social e nas universidades e, claro está, dentro do próprio partido. Terá de haver também um partido de Governo em arrasadora crise de identidade susceptível de se deixar levar pela direita liberal na procura de novas soluções de fundo.” No fundo sugere que se faça aquilo que já havia acusado Sócrates de pretender fazer, no último congresso do PS.

Embora esta conversão do Cravinho me tivesse obviamente emocionado, julgo que talvez seja desnecessário recorrer à chicana política para convencer o eleitorado. É certo que o “Partido do Estado”, como lhe chama Medina Carreira, tem 52% do eleitorado. Todavia 70% desse “Partido” é constituído por pensionistas, reformados, e subsidiados por diversos motivos, principalmente por estarem no desemprego. Ora essa gente sobrevive, na sua quase totalidade, com rendimentos miseráveis justamente porque o sector público, o Moloch estatal, devora a seiva vital do país ... sobeja uma ninharia. E os desempregados devem a sua situação à perda de competitividade das empresas, perda de competitividade para a qual o devorismo do sector Estado tem concorrido sobremaneira. Embora pertencentes ao “Partido do Estado”, há um notório conflito de interesses entre eles e o Moloch.

Por sua vez o sector público não é constituído exclusivamente por “asilados”. Entre os mais jovens e entre os mais qualificados há muita gente capaz que gostaria de ver o seu mérito recompensado, que olha com desgosto para o que vê à volta e que aspiraria a uma reforma desse sector que o modernizasse e tornasse eficiente. Os mais capazes não se sentem realizados profissionalmente nesse ambiente esclerosado.

É claro que para toda esta gente perceber de que lado está a saída do impasse em que estamos, será necessário haver um corpo coerente de doutrina, haver soluções claras para a reforma do sector público (porque senão continuará instalado o medo do desconhecido) e continuar a haver este resvalar lento, mas inexorável, para o abismo.

Bastam estas condições. Não é preciso que os neoliberais façam um takeover ideológico de um partido de Governo. Provavelmente o que irá acontecer é um partido de Governo fazer um takeover político à ideologia neoliberal. Por enquanto, os chicaneiros políticos dominam em ambos os partidos. Mas o país está confrontado com as duras realidades de hoje da economia real, sem os instrumentos de há 20 anos – desvalorização cambial, taxa de juro, etc..

Sabe-se lá se não será o próprio Sócrates o primeiro a tentar esse takeover? ... agora, que tem o apoio inesperado de Cravinho!

Publicado por Joana às 09:16 PM | Comentários (24) | TrackBack

abril 10, 2005

A Política dos Balões

O PS é um gestor inconsequente do Estado e do país. Não consegue eximir-se a que os seus genes ideológicos inquinem as políticas que traça. Mascara a esterilidade da sua capacidade reformista com cosméticas mediáticas e demagógicas: vender as aspirinas nos hipermercados; encurtar as férias judiciais; pôr em causa os exames do 9º ano, que se realizam este ano pela primeira vez, porque não avaliam coisas como a oralidade e o saber fazer das crianças; extinguir os hospitais SA e transformá-los em entidades públicas empresariais (EPE). São balões que lança para o ar: uns para ver “se pegam”; outros coloridos e vistosos, mas apenas cheios de nada.

Reformar a justiça é imperioso, para o país em geral e para as actividades económicas em particular. Portugal não pode ser um local atractivo para investimentos se os agentes económicos não conseguem resolver os incumprimentos contratuais, nem cobrarem as dívidas. E Portugal tem, proporcionalmente, mais juízes, magistrados e funcionários judiciais que a média europeia. A reforma da justiça passa pela requalificação do pessoal e melhor afectação dos recursos humanos, mas principalmente pela desburocratização, simplificação e agilização de todos os procedimentos. Diminuir as férias judiciais, em si, é uma medida absolutamente inútil: os processos vão continuar a arrastar-se (enquanto não prescrevem) a passo de caracol ... todavia o governo esforçou-se ... se ele até encurtou as férias judiciais!

Sócrates prometeu o Choque Tecnológico. Foi o seu mote permanente, quer na campanha para secretário-geral do PS, quer na campanha das legislativas. Foi mote para ditirambos, odes, pregões, rogos, proclamações, soluços ... Pensei, ingenuamente, que o Choque Tecnológico pressupunha um maior rigor no ensino e nas avaliações. Era de facto ingenuidade: está nos genes da esquerda não fatigar o cérebro das crianças com enciclopedismos inúteis e não as submeter ao stress da avaliação do seu desempenho. A ministra, em visita recente a uma escola, relativizou a importância dos exames na avaliação dos conhecimentos dos alunos. "É preciso ter consciência de que avaliam apenas uma parte das capacidades. Não avaliam coisas como a oralidade e o saber fazer das crianças". Por isso mesmo, a ministra explicou que, tal como os estudantes, "os próprios exames vão ser avaliados" brevemente, para se "definir qual é a sua articulação com o sistema global de avaliação do próprio ensino e dos alunos". Para a ministra, os exames não avaliam o “saber fazer das crianças". O “saber fazer das crianças" é uma categoria misteriosa, de quantificação impossível, provavelmente inata e que só degradamos se as obrigarmos a esforços que contrariem a sua criatividade natural.

Mas se avaliar as crianças é despiciendo, avaliar o instrumento de avaliação das crianças, os exames, tem o sabor a vingança. Os portugueses, mormente aqueles que aspiram ao asilo estatal, detestam ser avaliados. Habituá-los, de pequeninos, a que se deve ser rigoroso e impiedoso com os instrumentos de avaliação e a que as avaliações são inúteis, dispendiosas e mesmo nocivas para o equilíbrio psíquico dos avaliados, é um elemento de manutenção das nossas características nacionais que tanto têm concorrido para a nossa situação actual.

Na Saúde o governo resolveu atacar com duas medidas: uma simples e de popularidade garantida – a da venda de medicamentos, que não necessitem de receita médica, nos hipermercados – outra ideológica, completamente demagógica – a da transformação dos hospitais SA em hospitais EPE.

A primeira medida serve para mostrar à opinião pública a “férrea” determinação do governo em enfrentar os lobbies. É a chamada medida que muda alguma coisa para que tudo o resto fique na mesma. É a providência cautelar do governo. A partir de agora o governo está certificado: quando se falar no poder dos lobbies, Sócrates responderá com firmeza – lobbies ... como-os ao pequeno almoço ... vejam o que eu fiz com os farmacêuticos.

A segunda é uma medida para mostrar ao povo de esquerda que o PS não esquece a sua herança genética. Correia de Campos afirmou que a transformação dos SA em EPE aproveita as vantagens da eficácia do modelo empresarial - maior autonomia e descentralização -, ao mesmo tempo que combate a lógica mercantilista do anterior regime jurídico. Visa, segundo ele, combater "a lógica de supermercado" no sector. "Lógica de supermercado" que, curiosamente, foi Correia de Campos quem a introduziu no sector, visto o primeiro hospital SA ter sido criado no seu tempo de ministro. O Correia de Campos de Guterres aparenta ser menos estatizante que o Correia de Campos de Sócrates.

Outra das razões alegadas era a de que "bastava mudar uma linha de um diploma" para alterar o seu capital exclusivamente público. Ou seja, o Governo podia facilmente mudar a lei, criando uma holding e "abrindo caminho à privatização dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde". Os novos hospitais EPE, pelo contrário, "fixam-se de modo definitivo no sistema público". Estas afirmações são absolutamente ridículas. Em primeiro lugar não me consta que alguma coisa, alguma vez, se tornasse definitiva por lei. Todos aqueles que quiseram mumificar a realidade mercê de um colete de forças legal, falharam – mais ano, menos ano, mais controvérsia, menos controvérsia, esse empecilho legal é eliminado ou substituído. Em segundo lugar, se agora basta uma lei para abrir "caminho à privatização dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde", depois passarão a faltar apenas duas leis – a primeira, que reponha a situação actual, e a segunda, que mude "uma linha de um diploma".

Não há nenhuma medida de fundo. Apenas publicidade enganosa. Todavia a nossa situação económica é grave e complica-se com o decorrer do tempo. A grande maioria da nossa população continua a acreditar que existe uma varinha mágica que resolve a situação, continua à espera que chegue um salvador milagroso, continua a pensar que a crise se resolve sem custos. Foi essa crença messiânica que deu a vitória a Sócrates, ou melhor ... a derrota a Santana. Mas a nossa crise nem se resolve com varinhas mágicas, nem com publicidade enganosa. É uma crise estrutural onde há factores exógenos que não controlamos e que a fazem aprofundar se não se tomarem as medidas que todos temem.

O governo poderá despender alguns meses neste tipo de publicidade enganosa. A população poderá sentir-se provisoriamente tranquila, mas a economia real prossegue a sua acção e, mais cedo do que muitos pensam, irá cobrar os custos da não tomada atempada das medidas indispensáveis.

Publicado por Joana às 08:15 PM | Comentários (24) | TrackBack

abril 08, 2005

A Mão Invisível estrangula o PSD

O PSD está a agir como o empresário estilizado da Teoria Neoclássica. O seu objectivo é único – maximizar a percentagem eleitoral. As suas regras de cálculo são lineares – presumindo ter uma informação perfeita sobre a sua clientela política e interpretando liminarmente os sinais do mercado (as intenções de voto) julga ser conduzido a uma solução eleitoral óptima conseguindo um score eleitoral tal que o ganho político com o último voto seja igual ao custo político da transigência ideológica.

Este PSD (tal como o empresário da teoria neoclássica) reage de forma automática aos estimulantes. É um comportamento apriorístico, pois pode ser mecanicamente deduzido das características do enquadramento em que se move. Esta teoria política (ou microeconómica) reduz um partido (uma empresa) a um ponto sem espessura nem dimensão temporal, realizando continuamente ajustamentos imediatos e reagindo de forma automática a estímulos. Não é uma estrutura provida de ideologia, é uma bola de bilhar.

A Teoria Neoclássica é um instrumento de uma lógica maravilhosa, simples, maleável e de uma elegância matemática notável. Todavia só serve para explicar tendências gerais de comportamentos. Não serve para gerir empresas. A forma como se geram equilíbrios levou a que, antes das equações matemáticas os deduzirem, se criasse a metáfora da Mão Invisível para idealizar aquele processo. Mas metáforas, por muito sugestivas que sejam, não chegam para construir um projecto economicamente viável, ideologicamente sólido, socialmente coerente e politicamente corajoso. É preciso uma sólida base ideológica por detrás.

O empresário atomizado reagindo automaticamente a estímulos é uma abstracção para criar as equações de partida do sistema. Os modelos explicativos vão-se refinando à medida que são introduzidas variáveis, parâmetros, restrições, etc., adicionais e deverão ser interpretados tendo em conta as limitações dos mesmos. Por exemplo, uma empresa real tem que planear a sua actividade a longo prazo. Uma nova unidade industrial pode demorar 3 a 5 anos a ser construída e ter uma vida útil de 15 a 20 anos, portanto o decisor terá que interpretar o mercado de forma estratégica e a longo prazo, visto uma decisão que ele tomar agora só será validada pelo mercado ao longo da próxima década.

Do mesmo modo um dirigente político tem que analisar a sociedade, diagnosticar as suas necessidades e conceber e equacionar as soluções e tudo isto inserido num sistema coerente de ideias e valores adequado. E este “mercado” tem que ser avaliado a longo prazo e a estratégia estruturada e planeada a longo prazo. O político não pode reagir automaticamente a estímulos. Não pode planear as suas decisões como um empresário planeia uma nova linha de lingerie.

Ora o próximo congresso do PSD mostra que não existe no espectro político ali presente qualquer base ideológica relativa à liberdade do funcionamento da economia, à assumpção do risco, da inovação e da mobilidade, que é indispensável à tarefa de reformar o Estado e a sociedade portuguesa para os preparar para os desafios com que estão confrontados. Pelo contrário, sugestionados por uma análise superficial do “mercado”, recolhida na noite eleitoral, preparam-se para pescar nas mesmas águas turvas da política da ilusão consumista, no projecto da segurança medíocre e sem futuro do Estado asilo, que tem caracterizado a nossa vida económica e social na última década.

O posicionamento ideológico dos principais protagonistas deste congresso, de acordo com o Público (posicionamento cujas bases de cálculo ignoro o fundamento), está muito próximo dos actuais dirigentes do PS – estão no mesmo quadrante estatizante-libertário, na zona social-democrata. Nada os distingue. Marques Mendes não é alternativa a Sócrates, pois estão ideologicamente colados.

Ao iludir-se com os sinais do mercado, o PSD está a estrangular-se com a Mão Invisível que criou, ao não conseguir interpretar o “mercado político” para além dos sinais superficiais que detectou na noite eleitoral.

A situação é catastrófica, mas ... não inquietante ... A experiência tem mostrado que todas as medidas de liberalização do tecido económico, e que têm permitido diversos países ultrapassarem situações de estagnação, foram tomadas sob a premência inadiável dessas situações e contrariavam as promessas eleitorais feitas pelos respectivos governos, socialistas, sociais-democratas, centristas, democratas-cristãos, etc., quando em campanha. Os programas vendidos em campanha estão normalmente viciados pela ideologia pretensamente social que está nos genes do pensamento estatizante. E pretensamente social, porque sob o álibi do igualitarismo e justiça social, esconde-se o caminho que conduz à estagnação económica e ao nivelamento pela mediocridade.

A solução não é boa. É como passarmos da carroça para o automóvel, substituindo algumas peças de cada vez – rodas, motor, partes da carroçaria, caixa de velocidades, etc. Quando chegarmos a ter um automóvel completo, será uma figura compósita com peças de séries diferentes, que se encaixam mal umas nas outras e com uma performance inferior à desejada.

É a consequência, como escrevi acima, de não haver um projecto coerente.

Publicado por Joana às 11:41 PM | Comentários (36) | TrackBack

abril 07, 2005

O Erro dos Futurólogos

A faceta mais interessante dos futurólogos é a de que nunca acertaram em nada. Júlio Verne foi-se tornando cada vez mais desinteressante, porque acertou sempre ao lado: o homem criou o transporte aéreo e submarino, mas nada que se parecesse com as soluções ficcionadas por ele; criou os veículos motorizados para uso particular, mas completamente opostos à Casa a Vapor; e assim sucessivamente. Uma coisa é imaginar que uma dada acção se torne possível no futuro; outra é prever de que forma e porque processo essa acção se irá concretizar. Imaginamos o futuro, mas sempre através da matriz presente.
Deixemos a ficção científica e concentremo-nos na ficção económica. Analisemos a questão da evolução da produtividade do trabalho versus horário de trabalho à luz das ilusões dos fazedores de utopias.

Entre 1789 e 2003 o PIB per capita nos Estados Unidos, a preços constantes, aumentou 32,5 vezes (1.100 para 35.790 dólares de 2000). Ou seja, a produtividade anual do trabalhador americano teria aumentado cerca de 30 vezes. Mas o aumento da produtividade horária foi superior. Admitindo que esse trabalhador médio trabalhasse então cerca de 4.500 horas por ano e que actualmente a duração média anual de trabalho seja 40% daquele valor, teríamos um aumento da produtividade horária de 75 vezes. Estou a admitir que a percentagem da população activa na população total fosse idêntica nas duas épocas, o que talvez não seja verdade. Todavia o aumento da população activa feminina compensa, pelo menos parcialmente, a diminuição do trabalho infantil. Também não vale a pena cálculos muito exactos para o que pretendo ... digamos que a produtividade horária teria aumentado seguramente 50 vezes, provavelmente mais.

Ou seja, aquele trabalhador médio poderia trabalhar agora apenas 90 horas anuais ... meio dia (4 horas) por semana, durante metade do ano! (note-se que alguma parte do nosso sector público já atingiu esse desiderato).

Mas isso só seria possível se o trabalhador actual tivesse os mesmos hábitos de consumo que o de 1789 – 80% do consumo em alimentação e bebidas, contra menos de 20% actualmente (e fosse uma alimentação pobre, baseada em muito pão e em pouca carne, como era então) – e estivesse disposto a medicamentar-se com as mezinhas caseiras da época, a utilizar a água que fosse buscar à fonte, a abdicar das transferências sociais que lhe garantissem a protecção na doença, invalidez e velhice, etc., etc.(note-se que a parte do nosso sector público que atingiu aquele desiderato, não compreende estas contrapartidas).

Ou seja, o trabalhador médio de 2003 satisfaz o consumo de 50 trabalhadores de 1789 ... mas não de 2003.

Coloco todavia outra questão: seria possível uma sociedade funcionar assim? Se o trabalhador médio de 2003, com os hábitos de consumo do trabalhador de 1789, constituísse uma excepção e não a regra, isso poderia ser possível. Se fosse a regra, tal seria absolutamente impossível.

O aumento da produtividade do trabalho exige investimentos maciços em capital, quer equipamentos industriais, quer em investigação e desenvolvimento (I&D). Mas estes custos só se diluem se as produções atingirem níveis elevados. De outra maneira a produtividade não aumenta significativamente.

Por exemplo, uma produção de tractores só atinge a produtividade de 2003 se produzir centenas de milhares de unidades por ano e se estiver associada à produção de outros tipos de veículos. Uma empresa de veículos só é viável se produzir vários milhões de unidades por ano. Há modelos de que só são produzidas algumas dezenas ou centenas de milhares de unidades/ano, mas estão associados a outros modelos, havendo muitos componentes comuns. Mas a produtividade da indústria automóvel baseia-se, igualmente, entre outros factores, no preço do aço. Ora a dimensão mínima óptima de uma siderurgia é actualmente de 5 a 10 milhões de tons/ano, para além das restrições em termos de localização. E assim sucessivamente.

Os produtos de elevada tecnologia têm custos fixos cada vez mais elevados, nomeadamente em I&D, e esses custos fixos só são minorados se a produção for muito elevada. Porque é que só há meia dúzia de gigantes na indústria farmacêutica mundial? Aparentemente produzir pílulas pode estar ao alcance de qualquer pequena unidade. A questão é que a parcela principal do custo do medicamento reflecte os custos I&D e só as grandes empresas têm arcaboiço financeiro para alimentarem laboratórios de investigação caríssimos e inovarem e descobrirem novos produtos. E o mesmo sucede com a informática de ponta.

Ou seja, nós temos uma produtividade enorme porque produzimos em grande quantidade e essa produção só é viável porque consumimos em grande quantidade. Sem esta espiral produção-consumo não teriam existido os aumentos de produtividade a que assistimos em 2 séculos. Cada vez há menos gente na agricultura e na indústria, e mais gente nos serviços, porque a sofisticação dos equipamentos e de outros factores de produção da agricultura e da indústria exige cada vez mais I&D. Por detrás da automatização e da robótica está muito trabalho altamente qualificado investido.

Não é possível a coexistência do trabalhador médio de 2003 e do consumidor médio de 1789. A sociedade não funciona assim, nem é viável assim. Aliás, se os trabalhadores médios de 2003 passassem a ter os hábitos de consumo médio de 1789 (admitindo que isso fosse possível, dada a organização da sociedade actual), ao fim de poucos meses seria a crise generalizada e a maioria dos trabalhadores no desemprego.

Houve, durante estes dois séculos, uma descida acentuada no horário médio anual de trabalho. Essa descida foi-se desacelerando até se ter estabilizado nas décadas seguintes ao pós-guerra. A inversão da pirâmide etária foi talvez o factor mais importante dessa estabilização, mas não só – na maioria das actividades, nomeadamente nas mais qualificadas, não é possível manter um elevado ritmo produtivo a coexistir com períodos de lazer prolongados. Tal só é possível em actividades rotineiras. E a espiral produção-consumo tem que ser mantida, como base de um aumento sustentável da produtividade.

O erro dos futurólogos é o de preverem as possibilidades futuras em termos da sua mundividência presente. Ora o futuro nunca acontece assim porque os factores da sua concretização nos são desconhecidos. Imaginamos o geral, mas não prevemos o mais difícil – quais as peças do puzzle que irão construir esse geral. Foi aí que falhou Verne, apesar da genialidade de muitas das suas futurologias - construiu-as sempre com as peças que eram da sua época, ou que eram previsíveis na sua época.

Nos estudos de viabilidade económica normalmente não se ultrapassam os 15-20 anos (tempo médio de vida útil de uma instalação industrial). A partir daí diz-se, desdenhosamente, que é futurologia. Ou seja, as previsões só são válidas para o período em que a aderência do nosso actual enquadramento mental à evolução da realidade tem significado. A partir daí é futurologia.

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abril 06, 2005

Semiramis preocupada

Com a rigidez silenciosa (ou o silêncio rígido) de Sócrates:

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Publicado por Joana às 11:51 PM | Comentários (44) | TrackBack

Perguntas o que o Estado pode fazer por ti?

Errado. A pergunta é: o que devo fazer pelo Estado? O que o Estado pretende de mim? Qual a minha utilidade para o Estado?
A nossa relação com o Estado é unívoca e de sujeitos passivos, como se exemplifica em seguida:

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1) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do IRS. A segunda figura, comerciante em nome individual, vai sob custódia, pois havia alegado ter estado desocupado durante o exercício de 2004. O último preencheu a declaração G - Incrementos patrimoniais (o camelo ficou com mais uma bossa durante o exercício de 2004).

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2) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do IRC. A segunda figura, gerente de empresa em regime simplificado vai “liquidar-se” a ele próprio porque a colecta mínima é superior ao seu volume de negócios no ano. O último é um empresário têxtil do norte; veio de Ferrari porque, após entregar o modelo 22 com situação líquida negativa (quase tão negativa quanto o estado da fábrica), certificada por um TOC da família, vai abandonar o país a grande velocidade. Tribute Ionian.jpg Daqui a uma semana estará no Brasil, usufruindo os cash-flows gerados pela contabilidade criativa que tinha implementado na firma (a única inovação que fez durante a sua gestão) e vendo as reportagens da TVI, mostrando um armazém em ruínas, com equipamentos obsoletos, vigiados por turnos de trabalhadores determinados em que nem 1 Kg de sucata saia dali.

3) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto Automóvel (IA), Imposto Sobre os Produtos Petrolíferos (ISP), IVVA. – Imposto sobre a venda de veículos automóveis. São muitos e vieram a pé, porque tiveram que vender as viaturas, ou dá-las como dação em pagamento, para pagarem os impostos.
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4) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto de Circulação (ICI) e do Imposto de Camionagem (ICA). Um deles trouxe o zebú, para tentar obter deduções pelo mau estado da viatura. Intenção frustrada, pois atrás dele já se encontram dois agentes de intervenção fiscal, armados e municiados, de forma a não permitirem a mínima evasão - nem dele, nem do zebú.

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5) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto sobre o tabaco e do Imposto Especial sobre o Consumo de Álcool e Bebidas Alcoólicas. São poucos porque o excesso de consumo liquidou os sujeitos passivos antes deles liquidarem o Imposto. O que vai atrás, titubeante, ainda traz uma ânfora cheia do precioso néctar.

6) Sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto Municipal sobre Transmissões de Imóveis (IMT) e Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI). Têm todos barretes enfiados até ao pescoço para fazerem crer à Administração Fiscal que os preços das transmissões foram muito inferiores aos valores do mercado e que estão em condições de pedir uma isenção por 10 anos do Imposto Municipal sobre Imóveis.
Tribute Saka.jpg
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7) Este sujeito passivo é um ingénuo sem criatividade fiscal que foi vítima de um Imposto sobre as Mais-valias nas fusões e cisões, entradas de activos e permutas de acções.

Transporta o Activo e o Passivo aos ombros, na tentativa desesperada de convencer os funcionários fiscais que o balanço está equilibrado e não foram geradas mais valias.

Na sombra, perfila-se um agente de intervenção fiscal pesadamente armado, pronto a fazer a colecta coerciva.


8) Em baixo a fila de sujeitos passivos procedendo à liquidação e pagamento do Imposto sobre o valor acrescentado (IVA). A fila é muito extensa e a imagem só captou uma ínfima parte. Atrás vem um empresário de Braga que tem conseguido, há décadas, que o imposto devido pelo sujeito passivo seja sempre muito inferior ao devido pelo Estado, recebendo chorudos reembolsos. Por isso os seus sinais exteriores de riqueza.

Tribute Babylonian.jpg

9) Os sujeitos passivos que devem proceder ao pagamento de Licenças Camarárias, Taxa de Conservação de Esgotos, etc., ainda não chegaram, pois estão retidos há vários dias nos guichets camarários à espera de atendimento para obterem as guias de pagamento. Igualmente os sujeitos passivos das taxas de farolagem e balizagem andam perdidos na costa. Os sujeitos passivos do Imposto do Jogo foram para Macau em busca de melhores ares, depois de ouvirem o Miguel Portas e o Prado Coelho fazerem prédicas moralistas sobre o pecado do jogo, quando se falou do Casino no Parque Mayer.

Todos os sujeitos passivos se apresentaram munidos de documentos de quitação, certificando que têm pago o Imposto de Selo sempre que este é devido. Todos eles estavam igualmente munidos de declarações, válidas por 6 meses, de que não tinham dívidas à Segurança Social.

É esta a nossa relação com o Estado. É uma relação praticamente de sentido único. É uma prática de 3 mil anos que reeditamos com a nossa sábia ciência milenar.

Além de sermos sujeitos, temos a canga adicional de sermos necessariamente passivos.

Publicado por Joana às 09:47 PM | Comentários (22) | TrackBack

abril 05, 2005

Estado de Silêncio

É normal os governos terem um período de estado de Graça. Os dois últimos governos nunca tiveram “estado de graça” (ou seja, o estado governativo livre de pecado mortal).Começaram a governar sem prudentemente terem lavado o pecado original através da profissão de fé no Moloch-Social. Pior, o primeiro desses governos blasfemou publicamente ao afirmar que a gulodice do Moloch havia levado o país ao “estado de tanga”. O actual governo, mais prudente, que não está seguro da indulgência de um Moloch cada vez mais ávido do sangue de crentes e incréus, optou por se antecipar a um duvidoso estado de Graça, e preferiu o estado de Silêncio.

Escolha avisada. Nas poucas vezes em que ministros abriram a boca, foi para entrarem em contradições uns com os outros, ou para dizerem inconveniências, como a de que o rácio agricultores/funcionários era de 4/1 mas era preferível continuar na mesma ...

Com o governo em estado de Silêncio, obtêm-se diversos ganhos: 1) quem não fala, está seguro de não dizer asneiras; 2) os portugueses sempre detestaram governos, logo o estar calado cria a percepção de que não existe governo, o que tranquiliza a população; 3) as exacções fiscais que se avizinham (algumas já começaram) poderão ser lançadas a crédito do excesso de zelo fiscal, das exigências de Bruxelas, da seca, dos fogos florestais ... nunca de um governo que está em total silêncio; 4) apesar das previsões da UE e da OCDE serem cada vez mais sombrias, os indicadores de confiança pelo INE, revelaram que a confiança das empresas recuperou na indústria transformadora (onde se espera um aumento significativo de mortalidade de empresas no têxtil e no calçado!), na construção (onde se espera uma diminuição significativa no nível de emprego, aproximando-o da média europeia!!) e no comércio (onde o aumento do desemprego nos dois sectores anteriores irá levar fatalmente à diminuição do volume de negócios!!!), degradando-se nos serviços (talvez por ser onde há gente mais clarividente?).

Até quando, estado de Silêncio, abusarás da nossa credulidade? Será possível o governo continuar a alimentar o Moloch em silêncio? Será possível alimentar em silêncio um monstro cada vez mais voraz?

Durante anos a Comunicação Social tem lançado queixas pungentes sobre as centenas de milhares de empresas que não têm lucro. Sempre achei aquele número absolutamente disparatado. Agora soube-se que "A Direcção-Geral dos Impostos identificou 11.260 sujeitos passivos de IRC que apresentaram prejuízos fiscais em 2002 e 2003 e enviou uma carta a essas empresas alertando para o facto de que se repetirem a mesma situação fiscal em 2004 serão alvo de uma fiscalização(...)".

11 mil?? Então não eram 200 ou 300 mil?

Durante anos as profissões liberais foram imprecadas como não pagando impostos. Números fabulosos foram avançados. A mais intensa perseguição fiscal foi movida a essa classe relapsa. Resultado: os médicos e advogados com maior clientela constituíram empresas com contabilidade organizada e os profissionais independentes de magros proventos estão hoje sujeitos ao roubo mais descarado – colectas mínimas, elevadas quotizações mínimas para a Segurança Social (sem direito a baixas), etc..

Pequenas empresas que foram constituídas mas que ficaram entretanto inactivas, há 10 e 20 anos atrás, estão hoje a ser perseguidas pelo fisco para apresentarem declarações e pagarem as colectas mínimas inventadas pelo Pina Moura. Os Jaquinzinhos postaram hoje uma história “O Estado Ladrão”, que muitos julgarão ter sido ficcionada, mas que eu sou testemunha de um caso que se passou com um colega do meu pai que era sócio de duas empresas constituídas por ele a 3 amigos. Uma delas nunca chegou a exercer actividade e a outra exerceu-a durante 2 ou 3 anos (faziam projectos nas horas vagas). Após uma década de inactividade, julgo que em 1995, esse sujeito fez duas declarações de cessação de actividade para efeitos fiscais, para evitar estar a entregar declarações anuais do IRC e trimestrais do IVA em branco (só com zeros). Há cerca de um ano recebeu uma intimação das finanças (a sede social das empresas era no domicílio dele) para apresentar declarações e ... pagar as colectas mínimas. Segundo o funcionário da repartição, a declaração de cessação de actividade era só válida para efeitos do IVA!!

Ora o que há de surrealista nisto, é que com a entrada do euro, todas as empresas foram obrigadas a fazerem a redenominação do Capital Social e das respectivas contas em euros, e entregar nas Conservatórias do Registo Comercial as respectivas actas e documentos contabilísticos. Empresa que não o fizesse seria automaticamente extinta. Portanto as empresas em causa estariam de facto extintas! Pelo menos perante o Ministério da Justiça.

No fim do ano passado Bagão Félix acabou com esta situação vergonhosa, dando à administração fiscal a capacidade de fazer cessar oficiosamente a actividade das empresas “inactivas” e eliminar todo esse lixo (lixo que parecia ir tornar-se num tesouro para a avidez fiscal) das bases de dados do fisco. Provavelmente por isso é que em vez das tais centenas de milhares de empresas virtuais que a Comunicação Social trazia debaixo de olho, só apareceram onze mil!

Quando um Estado atinge a situação em que o nosso se encontra: ou se reforma ou aumenta a espoliação dos seus súbditos. A experiência histórica desta segunda escolha não se tem revelado muito frutuosa: revoluções, incêndios dos registos cadastrais, assassinatos de agentes do fisco, etc.. Enfim ... eram outras épocas, embora não tão distantes quanto isso. Hoje há formas mais sofisticadas: colocar os activos líquidos longe, fora do alcance dessas mãos ávidas e esperar pela ruína do país e do Estado e que essa ruína resolva, por ela própria, aquilo que os nossos governantes não conseguiram resolver - a chamada destruição criativa.

Quanto aos bens imóveis o risco é grande, mas menor – a maioria dos portugueses possui bens imóveis – e um aumento excessivo da carga fiscal sobre esses bens seria o dobre a finados do regime.

Tenhamos sangue frio: chegará o dia em que o estado de Silêncio será ensurdecedor.

Publicado por Joana às 07:59 PM | Comentários (45) | TrackBack

abril 04, 2005

Bruxelas, Previsões e Crescimento

Bruxelas prevê que Portugal cresça este ano 1,1%, portanto continuando a divergir da UE que, já de si, está com um crescimento muito fraco.Com um crescimento tão baixo, é certo que o desemprego vá continuar a aumentar. Adicionalmente alertou Portugal para o défice excessivo (4,9% em 2005) sublinhando que se não houver medidas de correcção, «no caso de Portugal, será necessário tomar decisões». Passada a euforia da flexibilização do PEC, vêm as duras realidades. A situação financeira portuguesa é grave, é insustentável e não há qualquer “atenuante” ou “razão pertinente” para ela.

O actual PEC tolera violações desde que ligeiras e temporárias, quando haja um crescimento fraco (que não é bem o nosso caso, visto termos um crscimento positivo, embora baixo) ou por causas “pertinentes”: reformas estruturais (que as andamos a evitar há décadas), investimento em I&D (que não fazemos), custos de unificação (que não temos, a menos que negociemos com AJ Jardim a secessão e a reunião posterior com a Madeira), a elevada contribuição para o orçamento comunitário (recebemos muito mais que contribuímos), despesas militares (não são possíveis em Portugal ... quando se compra algum equipamento chovem as recriminações), custos com as reformas dos sistemas de pensões (são miseráveis entre nós).

O problema de Portugal é que tem um sector público absolutamente ineficiente e que custa excessivamente caro. Gastamos mais 50% em Educação que a média europeia e temos o mais baixo nível de educação da UE; temos muitos mais juízes, magistrados e funcionários judiciais que a média europeia e a nossa justiça é de tal forma ineficiente que um melhor desempenho do sistema judicial se traduziria num acréscimo de 11% na taxa de crescimento do PIB, segundo cálculos recentes; a nossa gestão hospitalar e do sistema de saúde é um completo desastre e os custos são incontroláveis. E estes são apenas os exemplos mais visíveis num sector que está num caos organizativo.

Bruxelas espera pelo Programa de Estabilidade e Crescimento, que o Governo apresentará em finais de Maio, para avaliar soluções tem o Governo para estes desequilíbrios. Provavelmente haverá tolerância e «flexibilidade» se as soluções forem viáveis. Senão, teremos sérios problemas.

O Governo ganhou as eleições deixando criar a imagem de que os problemas e as dificuldades seriam eliminadas de forma indolor. Embora sempre evitasse dar respostas concretas, a imagem de contraponto que criou face aos anteriores governos induziam isso mesmo. Essa imagem não vai poder ser mantida muito mais tempo.

Na verdade, Portugal chegou a um ponto de não recuo. Tem que crescer, mas esse crescimento não pode ser dinamizado pela despesa, não só para não agravar o desequilíbrio orçamental, mas também por esse crescimento, se não for baseado no aumento da oferta, implicar um agravamento insustentável da balança de transacções com o exterior.

Mas Portugal só conseguirá dinamizar o tecido empresarial e criar empregos se desburocratizar e melhorar o desempenho do sector público, principalmente a justiça e a educação. De outra forma não se torna atractivo para o investimento. Precisa, em geral, de diminuir o custo do sector público para aliviar o ónus fiscal que retira competitividade às empresas e para melhorar o seu desempenho como Estado social. Parte do sustento do Moloch estatal é à custa da competitividade das empresas, mas uma parte não despicienda poderia ser carreada para melhorar os subsídios dos pensionistas, ou pelo menos para tornar mais sustentável a longo prazo a situação da Segurança Social.

Há dias, o secretário de Estado da Agricultura e Pescas declarou que havia 4 agricultores por cada funcionário do Ministério da Agricultura. Afirmou que seria um assunto a ponderar no futuro, embora por enquanto não, em virtude da principal batalha do governo ser a da redução do desemprego. Este tipo de raciocínio inviabiliza qualquer reforma. A reforma do sector público terá que ser feita reestruturando o sector, desburocratizando, e reduzindo o número de funcionários. Não pode ser feita apenas congelando os salários anos a fio. Fazer isso numa empresa seria um suicídio. O Estado aguenta gestões ruinosas, porque nós pagamos. Mas há limites para gestões ruinosas, mesmo no Estado, e mesmo sendo o país a pagar. E Portugal chegou a esse limite.

Publicado por Joana às 11:55 PM | Comentários (52) | TrackBack

abril 03, 2005

A Eurosclerose da França

O espectro do não francês à Constituição europeia aterroriza a “Velha Europa”. Não há concessões que os líderes da UE não façam a Chirac e à França para inverterem a tendência para o “Não”. Os franceses estão contra um grande mercado europeu concorrencial, estão contra a globalização e as suas exigências competitivas, estão contra as deslocalizações, estão contra a flexibilização laboral, estão contra a entrada da Turquia na UE, estão contra a imigração, estão contra o regresso ao horário de trabalho anterior à reforma do governo PS. A França está contra tudo o que lhe cheire a mudança.

A esquerda francesa acha a Constituição ultraliberal. A direita acha que o liberalismo é tão perigoso como o comunismo. A França é contra ela e, entre o restantes países da UE, paradoxalmente, ela é contestada por ser favorável às ambições de supremacia que a França tem na União Europeia. Por sua vez, os liberais dispersos, que há pela UE, acham a Constituição hiper-reguladora e directiva.

A revisão do PEC, imposta por Paris e Berlim, destina-se a lançar o manto diáfano da “ligeireza” orçamental sobre a nudez forte da falência total dos actuais modelos sociais, o fim inevitável dos Estados-Providência, nos moldes em que estão actualmente. Vai apenas servir para dar uma moratória a uma Europa que se recusa a encarar as realidades sociais de frente.

A directiva Bolkestein, destinada a liberalizar o sector de serviços, eliminando os diversos entraves burocráticos, políticos e jurídicos à circulação das empresas europeias de serviços, foi posta em hibernação – a Europa do “Mercado Comum”, e a França em particular, ficou em pânico com a concorrência dos prestadores de serviços dos países periféricos da UE, menos desenvolvidos, mas com elevado know-how em algumas áreas, e mesmo dos pequenos países mais desenvolvidos da UE, mas dotados de uma alta competitividade. E o mais paradoxal foi a esquerda portuguesa fazer coro com os interesses instalados no centro da Europa, impedindo que as empresas de serviços portuguesas usufruam daquelas vantagens.

A Europa, ou o eixo franco-alemão em especial, vive orgulhosa de ter um modelo social que, em termos relativos, tem uma menor percentagem da população que vive abaixo de um limiar de pobreza que os EUA. Esquece-se que se trata, justamente, de uma medida em valores relativos (metade da mediana do rendimento). Em valores absolutos, e como o PIB per capita americano, em termos de paridade de poder de compra (PPP), é 35% maior que o da França e da Alemanha, por exemplo, os pobres europeus são mais pobres que os pobres americanos.

Esquece-se ainda que a redistribuição que faz, através dos impostos, para evitar a degradação dos baixos rendimentos e providenciar subsídios de desemprego mais generosos e sobretudo mais prolongados que nos EUA, diminui os incentivos, quer à procura de emprego, quer à oferta de emprego. Nos EUA o desemprego é quase sempre temporário, enquanto na Europa é maioritariamente de longa duração. A menor flexibilização laboral e salarial na Europa faz com que os trabalhadores menos produtivos não estejam empregados, o que perverte o modelo social, pois os americanos pobres, na sua maioria, trabalham e criam riqueza, enquanto os europeus pobres, na sua maioria, estão a receber subsídios.

Esquece-se ainda que a ânsia de manter um grafo salarial de menor amplitude e uma elevada carga fiscal para fazer face ao custo cada vez maior do Estado-Providência, e estando confrontada com o aumento do preço do factor trabalho mais especializado nas novas tecnologias, está “entalada” entre dois males: assistir à fuga dos cérebros para os EUA, onde procuram melhores contrapartidas financeiras, e a pressão salarial dos trabalhadores menos qualificados, cujos sindicatos têm os olhos postos nas elevadas remunerações dos estratos laborais mais qualificados. Ou seja, perde competitividade porque investiu em investigação de que depois não tem qualquer retorno, e perde competitividade nos sectores económicos menos qualificados porque os respectivos salários são pressionados a subirem acima da fasquia da sustentação desses sectores.

Esta “eurosclerose” não afecta apenas a França. Nela é mais virulenta porque é potenciada pela nostalgia de “grande potência”, mas existe, em maior ou menor grau, nos principais países do antigo núcleo dos 15. É mais virulenta nos países que não têm conseguido proceder às reformas indispensáveis à sustentação do sistema, naqueles que não fizeram o trabalho de casa antes da actual conjuntura. Em Espanha, por exemplo, o referendo correu sem grandes problemas.

Este pânico face ao futuro tira discernimento à Europa, porque a faz apostar no passado em vez de construir o futuro; tornou-a avessa à mudança, em vez de planear essa mesma mudança. Todavia, se a Europa pode tentar ser avessa à mudança, não a pode evitar, não pode evitar a globalização e o alargamento do mercado mundial. Ao não planear a mudança, a Europa está a comprometer o seu futuro.

E não só nos principais países. Portugal tem um Estado-Providência, que providencia muito pouco, que não satisfaz as necessidades da população, que é uma caricatura de um Estado social, e que só tem uma característica similar à dos Estados-Providência dos países com um modelo social mais desenvolvido: custa proporcionalmente o mesmo. Na Europa central discute-se se vale a pena ter um Ferrari como Estado-Providência. Em Portugal nós pagamos um Ferrari, mas temos um Fiat em 5ª mão, que está permanentemente empanado.

Publicado por Joana às 11:11 PM | Comentários (47) | TrackBack