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dezembro 20, 2004

A Turquia e a Europa

A Europa está anémica, inerme. Quem acompanhou as negociações entre a UE e a Turquia com vista a uma futura adesão desta à União, decerto se apercebeu que quem falava mais grosso era a delegação turca. Tudo indiciava que os turcos estão convictos que irão a fazer um prestimoso favor à Europa em serem admitidos na UE.

O facto da Turquia ser um país islâmico parece-me uma questão menor, embora quem esteja contra essa admissão invoque essa questão como primordial. Primordial para quem contesta a entrada, mas também para quem a usa implicitamente, pretendendo dar ares de politicamente correcto, para a apoiar. Para mim, o essencial, são as seguintes questões:

A Turquia ocupa militarmente, há mais de 30 anos, cerca de 40% da República de Chipre, membro da UE. Ninguém fala dessa ocupação militar e o que tem sido abordado, embora de uma forma ambígua e susceptível de interpretações contraditórias, é apenas um eventual reconhecimento da República de Chipre pela Turquia.

O sueste da Turquia é habitado por uma importante e numerosa população curda (superior em número à população portuguesa), destituída de quaisquer direitos, cuja língua é proibida em tudo o que é público, incluindo as escolas e o seu ensino. Isto, penso eu, é o que se chama genocídio cultural. Por menos que isso, a Sérvia foi justamente penalizada pelo seu comportamento no Kossovo.

Quando se reclama pelo reconhecimento do genocídio dos arménios não se reclama, como é óbvio, pela reposição do statu quo ante. Seria estulto perante o facto de já se ter passado um século. Mas o seu não reconhecimento significa que a Turquia não está arrependida desse acto, ou que não o considera criminoso ou, pior, que o poderá repetir se se oferecer ocasião para tal.

Estes são os três pontos fulcrais. A questão islâmica é relevante apenas na medida em que a sociedade turca não teve o exercício de um poder e de uma cidadania laicos como na Europa Ocidental, mesmos nos países como a Irlanda, a Áustria e o próprio Reino Unido que, em teoria, são Estados confessionais.

E essa ausência de exercício de uma cidadania laica pode torná-la presa do fundamentalismo islâmico se as condições sociais o facilitarem. E mesmo que isso não aconteça, confere-lhe uma matriz cultural certamente muito diversa da europeia. Mas isso, apesar de ter algum relevo, não é de forma alguma motivo de impedimento, até porque a integração na Europa facilitaria o exercício da cidadania e o afastamento progressivo dos demónios do fundamentalismo religioso.

As três questões que enunciei são, essas sim, fracturantes. E o que me surpreende e revolta é a cortina de silêncio cúmplice que se abate sobre elas.

Os Estados Unidos fecham os olhos aos abusos dos direitos humanos quando, na sua óptica, os seus interesses estratégicos sobrelevam aqueles direitos. Mas não se percebe porque razão a Europa deve seguir na esteira dos EUA nesta matéria, quando tanto contesta outras opções políticas americanas.

Publicado por Joana às dezembro 20, 2004 12:01 AM

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Comentários

... e as prisões na Turquia estão cheias de presos políticos .

Publicado por: zippiz às dezembro 20, 2004 12:21 AM

Ora aqui está uma das boas razões, porque estamos em Portugal à beira de eleições...
Como muito bem diz a Joana, as razões de estratégia dos "nossos" amigos americanos são um ponto fundamental para o reconhecimento da Turquia no seio da comunidade.
Teve de ser colocado no lugar de comando alguém que respondesse "Yes" às suas pretensões hegemónicas!
Nada melhor, para começar essa parte da empreitada, que o Sr José Manuel, que aproveitou muito bem a amizade atlântica com Bush, para "cavar".
O facto da ocupação de Chipre, a questão dos curdos, dos presos políticos, não parecem ser, como deveriam, obstáculos para a integração.
Todos sabem que o problema do Ulster, o da Córsega, do País Basco, etc...nunca constituiram problema nenhum para a consciência dos arautos da Europeízação alargada.

Publicado por: E.Oliveira às dezembro 20, 2004 01:17 AM

Até que enfim que o E Oliveira concorda coma desorientada política da Joana!

Publicado por: Hector às dezembro 20, 2004 01:20 AM

Considero um erro a entrada da Turquia. Aliás julgo que a maior parte dos europeus também

Publicado por: David às dezembro 20, 2004 01:47 AM

Completamente de acordo, David

Publicado por: Sa Chico às dezembro 20, 2004 10:52 AM

Penso que a entrada da Turquia terá que ser encarada com toda a normalidade desde que esta cumpra alguns requesitos relacionados com os direitos do homem e todas os outros a que qualquer membro tem que se sujeitar. Preocupa-me um pouco a influência que os americanos possuem no aparelho militar do país e a grande influencia que este tem nas decisões do país. Também é verdade que apesar dessa influência a Turquia foi capaz de dizer não aos EUA aquando da invasão do Iraque. Apesar desse não público a verdade é que os EUA usaram uma base Turca, tal como usaram uma na Jordánia...possivelmente é uma realidade que a opinião pública desses países desconhecem...

amsf

Publicado por: amsf às dezembro 20, 2004 11:47 AM

Estou de acordo com o amsf. Mas o que se sabe é que a Turquia não os cumpre. O que a Joana diz no post é verdade e é grave. Além do mais continuam a haver presos políticos.

Publicado por: fbmatos às dezembro 20, 2004 01:21 PM

Se há possibilidade da Turquia melhorar estes pontos é com a entrada na UE.

O mais caricato seria a Turquia fazer progressos substânciais nesses pontos, com vista à entrada na UE, e depois ela ser-lhe recusada devido a alguns egoismos nacionalistas.

Publicado por: Mario às dezembro 20, 2004 02:22 PM

Se o actual desequlíbrio demográfico continuar, daqui a 100 anos há mais turcos na Europa que europeus (dos antigos)

Publicado por: Ricardo às dezembro 20, 2004 04:21 PM

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