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novembro 30, 2004

... E o óbvio aconteceu

Não tenho nenhum dedo que advinha, mas a realidade é que a situação existente era insustentável. Historiemos os acontecimentos:

Durante cerca de 2 semanas, entre Junho e Julho deste ano, Sampaio transformou uma decisão, politicamente simples e constitucionalmente escorreita, numa decisão complexa, «a mais complexa dos seus mandatos», transfigurando-a numa crise política, dramatizada até ao paroxismo.

Mas, como escrevi em 11 de Julho, após a indigitação de Santana Lopes «Santana entregue à vigilância presidencial», «ao escolher aquela decisão, incluiu nesse pacote decisor uma garantia, pessoal e presidencial, de permanente vigilância do novo governo. Presume-se que seja uma vigilância especialmente acrescida relativamente àquela que decorre das obrigações normais do seu cargo. Ora este «aviso» é um convite público a todos os kamikazes da comunicação social e a todos os falhados da política para, cada vez que Santana mexer um músculo, tremer uma pálpebra, balbuciar uma sílaba, esboçar um sorriso, embaciar um olho, porem o dedo no ar e gritarem indignados para o presidente: «stôr», este menino está a portar-se mal! «stôr», este menino é mau! «stôr», ponha este menino na rua e marque-lhe falta de castigo! E mesmo se o menino Santana permanecer fixo, marmóreo, aqueles meninos não desarmarão: «stôr», este menino está esfíngico! «stôr», este menino está a tramar alguma! «stôr», ponha este menino na rua e marque-lhe falta de castigo, com participação e Conselho Disciplinar! Será que o «stôr» vai conseguir manter a «estabilidade» na sala de aula?» ... «Portanto o PR pretende estabilidade no país e cria condições para a instabilidade na comunicação social e nos areópagos políticos. Não se percebe como o país vai ficar imune à instabilidade na comunicação social.»

Ora estes 4 meses mostram à evidência como as minhas previsões estavam certas. E quando ontem escrevi o post anterior, o meu feeling era que este governo não tinha quaisquer condições para governar. Não é possível governar tendo permanentemente a espada de Damocles da dissolução sobre a cabeça. Tudo o que o governo fazia, ou não fazia, tudo o que se propalava que o governo ia fazer, ou não fazer, tudo o que se inventava sobre o que o governo faria, ou não faria, era objecto das baterias da comunicação social assestadas sobre ele.

É evidente que o governo tem tomado diversas decisões medíocres. A Lei do Arrendamento Urbano é uma decisão corajosa, mas peca pelas insuficiências e erros que já apontei neste blogue. Também teci severas críticas ao Orçamento de Estado para 2005. Mas não fui hipócrita nessas críticas, porquanto o critiquei pelas razões de austeridade económica que venho defendendo há anos, enquanto outros o atacaram por mero oportunismo político.

Também me parece que a coordenação governativa não funcionou como devia, pese embora que muitas das contradições apontadas pela comunicação social resultasse de leituras enviesadas que fez. O ministro Gomes da Silva teve uma actuação desastrada – um membro do governo tem que agir com continência verbal. Etc., etc..

Não sei se a decisão da demissão foi unicamente devida a Sampaio, ou se foi Santana Lopes que criou as condições para não dar outra alternativa ao PR. Em qualquer dos casos, é preferível para Santana surgir como um 1º ministro demitido num quadro constitucionalmente estável, pelo motivo insignificante da demissão de um ministro, que ser ele próprio a demitir-se.

Sendo demitido, nas circunstâncias em que o foi, pode protagonizar de uma forma menos ambígua e mais evidente o papel de vítima.

Publicado por Joana às 08:05 PM | Comentários (40) | TrackBack

novembro 29, 2004

Obviamente, Demito-me

Penso que Santana Lopes se deveria demitir e sugerir ao PR a realização imediata de novas eleições. Todos (ou quase) as querem: a maioria do PSD, o PCP, o BE, os pré-socráticos do PS, o milhão de portugueses que subscreve o Barnabé, etc.. Apenas o PP e Sócrates (e os socráticos) não querem eleições antecipadas. Mas estão claramente em minoria.

O país só sobreviverá com reformas profundas. Foi-se aguentando numa ilusão bem sebastianista de um milagre salvador. Mas atingiu um estado em que a competitividade do sector privado, nomeadamente do sector exportador, já não consegue aguentar a situação. A emergência das novas economias asiáticas foi o canto do cisne da nossa economia obsoleta e pouco qualificada. O país vive muito acima das suas posses e não se convence desse facto.

Para fazer essas reformas, que irão bulir com muitos (maus) hábitos instalados, será preciso um governo com elevada credibilidade e uma extensa base consensual de apoio popular. E essa extensa base consensual popular e a neutralização da comunicação social pacóvia que tem aviltado e iludido o nosso país só se conseguem quando o país estiver num estado desesperado, visível, bem evidente e absolutamente convincente para uma maioria esmagadora da população.

Sócrates não quer eleições antecipadas porque prefere que o governo de PSL faça algumas reformas, impopulares, que ele nunca teria coragem de as fazer, mas que gostaria que fossem feitas. Quando Leonor Coutinho clama, desgrenhada, que quando o PS for governo revoga a Lei do Arrendamento está a brincar com o eleitorado. Então, em face dos novos contratos entretanto firmados, que vai o PS fazer? Revoga com efeitos retroactivos? Nada disto é sério.

O governo de Santana Lopes, pelo que mostrou até agora, não tem capacidade de fazer reformas de fundo. O Orçamento para 2005 é uma mistura de populismo contraproducente (a baixa das taxas do IRS, que ninguém vai sentir), medidas anti-económicas (aumento excessivo, para as contas públicas, do rendimento disponível e diminuição dos incentivos às poupanças das famílias e das empresas), condimentado com ameaças de um despotismo fiscal incompatível com um Estado de direito. É necessária uma lei que reveja os contratos de arrendamento anteriores a 1990, mas esta lei está mal feita, é mais severa com a habitação (que é uma função social) que com o comércio (onde a renda é um custo de produção) para satisfazer o lobby dos comerciantes, e vai provocar um terramoto social sem resolver a questão de fundo (Leia-se sobre este assunto os diversos artigos que escrevi neste blogue sobre o arrendamento urbano).

A reforma da administração pública é vital e nada se faz ... porque é difícil. A Saúde e o Ensino custam fortunas ao erário público com resultados deploráveis. Sem estas reformas não há dinheiro que chegue para aplacar este monstro. Aliás, se a crise da competitividade exterior da zona euro se agravar, duvido que num futuro, talvez mais próximo do que se imagina, haja dinheiro para pagar a função pública, as transferências sociais, etc., a menos que haja cortes substanciais naquelas despesas. E quanto mais se vai buscar às empresas mais a competitividade destas diminui, mais o défice das transacções com o exterior se agrava e menos dinheiro há, por insolvência das empresas e das famílias.

A economia portuguesa não se cura com os emplastros que o governo de PSL aplica, embora se tenha que reconhecer que sempre é melhor aplicar emplastros que afundar-se nos desvarios despesistas da era Guterres, que comprometeu o país para os 25 anos seguintes. Nenhum governo português, nestes últimos 2 séculos, havia deixado uma herança tão sinistramente pesada.

Se PSL não é capaz de resolver os problemas do país, que é que ganha em permanecer no governo, aplicando paliativos, fazendo meias reformas, e sendo grelhado em fogo lento por (quase) todos os corifeus da política e da comunicação social? Nada ... apenas uma derrota estrondosa nas próximas eleições e um país que, devido aos paliativos e mezinhas que aplicou, ficou com alguma pequena mas enganosa margem para mais umas ilusões despesistas.

O melhor é cortar o mal pela raiz, assumir a sua incapacidade, em face da actual situação social, em governar da forma que entende como a mais adequada ao país (se é que ele tem alguma ideia sobre qual a forma mais adequada ao país) e fazer as malas.

E quem vier atrás que feche a porta, se for capaz ... ou se o deixarem ...


Nota: A demissão de Henrique Chaves é uma prova da forma repugnante como a política está a ser vivida actualmente. Um ministro não se demite na praça pública, sem previamente avisar o 1º Ministro, e deve deixar correr um período razoável de nojo, antes de se produzir na comunicação social. Aliás, Henrique Chaves já devia sofrer de uma profunda instabilidade psíquica, visível quando recebeu os dirigentes do SL Benfica. Quer se goste ou não, nunca deveria afirmar publicamente que só por delicadeza não atirou pela janela fora um DVD que os dirigentes do Benfica haviam lá deixado. Só um ministro em estado de completa incontinência verbal produz afirmações públicas como aquela. Era mais sensato ter deitado o DVD no ecoponto mais próximo e ter ficado calado.


Nota 2 - Ler a seguir:
... E o óbvio aconteceu

Publicado por Joana às 07:59 PM | Comentários (27) | TrackBack

A Lei de Gresham e o Entesouramento dos Políticos

A velhinha Lei de Gresham afirma que a má moeda expulsa a boa moeda da circulação devido ao facto do ouro ser entesourado, em virtude do seu valor comercial ser superior. Explicando por miúdos, na época em que o valor do dinheiro equivalia ao seu peso em ouro ou prata, se houvesse quebra da moeda (o rei ou o governo decidisse cunhar moeda com o mesmo valor nominal, mas com menos teor em ouro ou prata), então os possuidores da moeda antiga preferiam guardá-la, porque embora o valor nominal para as transacções no mercado fosse o mesmo, ela valia intrinsecamente mais. Portanto, pouco a pouco, as transacções faziam-se usando apenas a má moeda, enquanto a boa moeda era entesourada nos baús caseiros. Segundo Cavaco Silva descobriu há dias, o mesmo fenómeno está agora a ocorrer entre os políticos.

Temos assim que os maus políticos estão a expulsar os bons políticos da circulação. Estamos portanto perante o fenómeno do entesouramento dos bons políticos. Os agentes económicos portugueses (famílias e empresas) estão a açambarcar os bons políticos, deixando os maus políticos para as trocas do dia-a-dia.

Sempre fui contra os açambarcamentos, embora reconheça que quando o mercado não funciona, os agentes económicos reagem na defensiva. Trata-se portanto de um mau funcionamento do mercado. Por razões ainda por esclarecer, mas que já deveriam estar sob a alçada da Inspecção-Geral das Actividades Económicas, estão a ser lançados no mercado políticos de qualidade medíocre. O IGAE, que vigia a oferta de produtos e serviços nos termos legalmente previstos, já deveria ter procedido à investigação e instrução dos respectivos processos por contra-ordenação.

E ao mesmo tempo o IGAE deve investigar quem açambarcou, e onde param, os bons políticos. Eu desde já asseguro que não tenho na minha posse qualquer político, quer mau, quer bom. É um bem muito sujeito a flutuações que considero arriscado transaccionar. Políticos, Pararede e BCP são coisas a evitar.

Em qualquer dos casos, ordenei hoje de manhã, ao sair, uma aspiradela rigorosa por todos os recantos da casa, não fosse o diabo tecê-las, pois hoje em dia, os jardins escolas e os primeiros ciclos do básico são locais onde se efectuam as trocas mais inesperadas.

E ao chegar a casa verifiquei que apenas haviam sido recolhidos 42 peças de puzzles da Majora, um urso de peluche, um Action Man Operation Cuba e um Tito Gusanito, que eu julgava que já tinham ido para o ecoponto, 2 Spiderman Action, 75 peças legos, 2 kgs de plasticina e 5 kgs de cotão. Políticos ... nem um.

Tenho as minhas suspeitas sobre quem açambarca os bons políticos: as empresas privadas. E açambarcam com tal proficiência que as próprias empresas públicas apenas conseguem obter maus políticos. Dos bons políticos nem um sobeja para o serviço público.

Além do que os bons políticos converteram-se num recurso muito escasso, demasiado escasso. E pelas leis do mercado, quando os recursos são escassos, o seu preço de equilíbrio aumenta vertiginosamente. Será que a situação financeira do país permite remunerar adequadamente os bons políticos?

Publicado por Joana às 07:10 PM | Comentários (8) | TrackBack

Descodificando o Código da Vinci 5

A Maldição dos Templários – Les Rois Maudits

A Ordem, pela sua cupidez e riqueza, era temida e odiada pelas populações. No início do processo os povos estariam inclinados a aceitarem as acusações contra a Ordem. Todavia a iniquidade do julgamento e as execuções bárbaras de muitos cavaleiros e do mestre da Ordem fizeram com que as simpatias da posteridade, a cujos olhos a desapiedada violência do monarca foi o traço mais vivo deste drama, se inclinaram tanto mais decididamente a favor da Ordem quanto mais ambíguo era o papel nele desempenhado pela Igreja e quanto mais esta deu a entender, em interesse próprio, que a Ordem sucumbira inocente. Mas o que excitou mais a imaginação dos contemporâneos e da história foi a alegada maldição de Jacques de Molay e o destino subsequente do papa, do rei, dos seus filhos e noras, e da sua dinastia.

Há quem pretenda que Jacques de Molay, ao ver-se na fogueira, emprazou o rei e o seu cúmplice Clemente V a comparecerem dentro de um ano no tribunal de Deus e, devido a esta maldição, relaciona o vulgo as mortes de um e outro, ocorridas, a do papa, em 20 de Abril de 1314, menos de um mês depois da execução, e a de Filipe em 29 de Novembro do mesmo ano (faz hoje 690 anos). Na doença de que o rei foi acometido e nos reveses que caíram sobre a sua família, viram outros o castigo do céu pelo crime cometido contra a Ordem dos Templários.

Por sua vez, algumas semanas após o suplício, soube-se que as noras do rei, Marguerite da Bourgonha e Blanche de Artois, cometiam adultério com dois cavaleiros da corte e que Jeanne, a irmã de Blanche, e também nora do rei, estava ao corrente e dava cobertura. Foi a filha de Filipe IV, Isabel (*), casada com o rei de Inglaterra, Eduardo II, que denunciou as cunhadas ao pai, em Abril de 1314. Foi o chamado escândalo da Torre de Nesle, do local, onde segundo a lenda, se davam os encontros.

As duas adúlteras foram obrigadas a irem para o convento, em situação penosa (Marguerite sobreviveu poucos meses à clausura numa torre com todas as janelas abertas ao vento) e os amantes sofreram um suplício terrível: cortados aos pedaços ainda em vida, o sexo deitado aos cães, decapitados no fim. O castigo de Jeanne foi menos gravoso.

Para além da afronta à família real, do ónus da imoralidade que atingia, publicamente, pessoas da nobreza mais elevada, eram as próprias instituições e o futuro da dinastia que estava em risco. Quem certificaria que as noras de Filipe IV teriam filhos legítimos? O que se sabia do seu comportamento poderia ser utilizado para pôr em dúvida a legitimidade dos descendentes.

A Filipe IV sucedeu Luís X le Hutin (o Desordeiro) que apenas sobreviveu dois anos ao pai. Como a mulher (Marguerite) morrera em cativeiro, casou-se novamente, mas apenas teve um filho póstumo, João I, que só viveu 5 dias.

No curto reinado de Luís X, este ordenou, em 1315, a execução de Enguerrand de Marigny, o principal conselheiro financeiro de Filipe IV e um dos grandes responsáveis pela extinção da Ordem do Templo. A permanente crise das finanças tinha que ser resolvida, e que melhor solução se poderia encontrar senão mandar executar o encarregado das finanças? Enguerrand de Marigny foi executado e os seus despojos ficaram pendurados no cadafalso durante dois anos!

Após Luís X e o seu filho póstumo, cingiu a coroa Filipe V em 1316. Justificou o afastamento da sua sobrinha, filha de Luís X, do trono, por uma interpretação errónea da lei sálica. Todavia, a sua esposa reabilitada, Jeanne d'Artois, apenas teve 3 filhas e nenhum filho varão. Quando morreu, em 1322, a sua própria interpretação das regras da sucessão afastou as suas filhas do trono, e fez que fosse o seu irmão Carlos IV a suceder-lhe

Carlos IV divorciara-se de Blanche, casara novamente, mas morreu em 1328, sem herdeiro masculino.

Em face da extinção desta linha da dinastia dos Capetos, e perante os pretendentes, a nobreza escolheu Filipe de Valois, sobrinho de Filipe IV. Todavia Eduardo III da Inglaterra, neto de Filipe IV (era filho de Isabelle, a Loba de França) reivindicou o trono. Ia começar a guerra dos 100 anos.

Todos estes acontecimentos causaram profunda perturbação na época e a lenda da maldição dos Templários ganhou foros de verdadeira. O Papa e o Rei directamente responsáveis pelo suplício do Mestre do Templo morreram menos de um ano depois; todos os filhos do Rei reinaram sucessivamente, mas nenhum deixou descendência que pudesse cingir a coroa; o escândalo da Torre de Nesle, que veio a público menos de um mês após aquele suplício, deu uma machadada fatal à legitimidade da descendência de Filipe IV e causou a extinção da dinastia. O Conselheiro financeiro de Filipe IV, e o mais exaltado detractor dos Templários, foi executado um ano depois do suplício de Jacques de Molay.

E todos estes acontecimentos iriam fazer mergulhar a França e a Inglaterra na Guerra dos 100 anos.

Todas estas coincidências, espantosas e fatais, constituiriam fundamentos mais que suficientes para que surgissem as mais variadas lendas sobre os Templários. Algumas asseguram que a Ordem manteve-se viva, embora clandestina e que a maçonaria tem as suas raízes nela. Mas tudo isto não passa de lendas sem consistência histórica.

Nota (*): Muitos devem ter visto Sophie Marceau no papel de Isabel no excelente filme "Braveheart" de Mel Gibson. Neste filme Isabelle está pintada com cores muito benévolas. Os ingleses conheciam-na pela Loba de França, por causa do seu temperamento violento. Como o marido, com quem casara em 1308, se interessava mais por pajens, ela tomou por amante, de forma quase pública, Roger Mortimer. Segundo parece apressou a morte do marido, em 1327. Três anos depois, o seu filho, Eduardo III, atingiu a maioridade, mandou executar o amante da mãe e enviou esta para o convento.

Nota - Ler ainda 1, 2, 3 e 4

Publicado por Joana às 12:38 AM | Comentários (19) | TrackBack

Descodificando o Código da Vinci 4

Os Templários – A Queda

Ao nascer do dia da sexta-feira, 13 de Outubro de 1307, todos os templários de França são detidos nas suas comendadorias. Haviam passado dezasseis anos desde a queda de São João de Acre e o fim dos Estados Latinos do Levante. Ainda na véspera desse dia, o mestre da Ordem, Jacques de Molay, acompanhara o rei na cerimónia das exéquias da esposa de um irmão do rei. Essa detenção maciça, efectuada no mesmo dia, à mesma hora, nas cerca de três mil comendadorias repartidas por toda a França, representa sem dúvida nenhuma uma das operações policiais mais extraordinárias de todos os tempos.

Era necessário, para que surtisse efeito, que aquela operação tivesse sido minuciosamente preparada. Na realidade, a ordem de prisão fora enviada um mês antes, em 14 de Setembro de 1307, sob a forma de cartas fechadas, dirigidas aos bailios e senescais, com indicação de as abrirem numa determinada data. O texto dessas instruções continha acusações contra a Ordem do Templo, acusações essas que teriam chegado aos ouvidos do rei; ordenava que «se prendam todos os freires da dita Ordem, sem excepção nenhuma, se os mantenham prisioneiros e reservados para o julgamento da Igreja; que se apoderem dos seus bens, móveis e imóveis», e explicava cuidadosamente a maneira como se devia proceder: mandar fazer uma informação secreta sobre todas as casas dependentes da Ordem do Templo, situadas na circunscrição do bailio; escolher «homens probos e poderosos do país, ao abrigo da suspeita [...] e informá-los do trabalho a fazer, sob juramento e secretamente»; por fim, «em dia marcado, muito cedo», ir prender as personagens e apreender os bens.

Embora a operação minuciosamente montada pudesse ser considerada, em si, uma surpresa, já o mesmo não se poderia dizer dos riscos que corriam os Templários, cujo tempo corria então contra eles. A questão começara uma década antes na querela entre Filipe IV o Belo e o Papa Bonifácio VIII.

O clero francês havia-se dirigido a Roma queixando-se dos exorbitantes impostos que lhe exigia o rei, e do recente imposto de 2% sobre todos os bens eclesiásticos moveis e imóveis. Em vista disto, Bonifácio VIII publicou a bula Clericis laicos (1296), na qual se queixava da hostilidade que os leigos manifestavam contra o clero e contra a Igreja, e proibia aos leigos, sob pena de excomunhão, que recebessem contribuições ou impostos dos sacerdotes, ordenando ao mesmo tempo a estes que não pagassem nenhum, sem expresso consentimento do papa. Esta bula significava uma declaração de guerra à monarquia, que sem o auxílio do clero não podia subsistir, sobretudo numa época de transição entre o pagamento em espécie e o pagamento em dinheiro. É certo que o papa não nomeava a França directamente, mas ninguém duvidava que as suas ameaças se dirigiam a Filipe, o Belo, mais do que a qualquer outro.

A resposta de Filipe IV foi tão hábil quanto eficaz. No mesmo ano proibiu a exportação de cavalos, armas, dinheiro e objectos preciosos de França. Nesta disposição não se fazia a mais ligeira referência ao papa, apenas ao perigo da guerra na Flandres, mas indirectamente anulava quaisquer efeitos da bula papal, não permitindo a saída de França de bens para a cúria romana.

Embora a proibição de Filipe IV não fosse totalmente eficaz, pois a Ordem dos Templários conseguia iludir a proibição régia, secou-se a fonte dos abundantes recursos que a cúria ambiciosa costumava tirar de França, notando então Bonifácio VIII a oposição que existia entre as suas teorias e a ordem de coisas vigente.

Estas disputas conduziram a diversas picardias entre o clero francês, apoiado por Bonifácio VIII, e a coroa, à ameaça de convocação de um concílio para excomungar Filipe IV e ao episódio de Anagni (7 de Setembro de 1303), onde Guilherme de Nogaret, depois nomeado chanceler do reino, acompanhado de homens de armas, tentou raptar o Papa, com a pretensão última de o destituir. Foi a população de Anagni (situada a cerca de 40 kms a sul de Roma) e arredores que se sublevou e conseguiu impedir o rapto. Mas o Papa não se livrou de uns bofetões. Bonifácio VIII apenas sobreviveu um mês a esta cena violenta. O Papa que lhe sucedeu sobreviveu-lhe apenas um ano.

Numa tentativa de apaziguamento, e sob pressão de Filipe IV, o conclave elegeu um Papa francês, Clemente V, que se instalou em Avignon, por receio de ser vítima da hostilidade das populações italianas, e romanas em particular. Clemente V foi um fiel servidor de Filipe IV, eliminou as disposições tomadas por Bonifácio VIII e preparou, em conjunto com o rei de França, a operação que eliminaria a poderosa Ordem dos Templários e se apropriaria do seu riquíssimo espólio.

Portanto o autor do Código da Vinci equivoca-se ao colocar no Vaticano a sede do papado na época. Esta estava em Avignon (que na altura não pertencia à coroa francesa, mas ao Conde da Provença, dependente do Sacro Império), junto à fronteira dos domínios de Filipe IV, e aí permaneceu por mais 70 anos. Não foi a cúria romana a responsável pela destruição da Ordem, mas um Papa in partibus infidelis, eleito sob pressão de Filipe IV e que viveu para lhe satisfazer as vontades. Portanto as razões mais substanciais em que baseou a intriga são destituídas de fundamento.

Estas modificações na super-estrutura política e religiosa deveriam fazer reflectir os templários, mas tal não aconteceu. O mestre da Ordem, Jacques de Molay não parece que fosse pessoa clarividente e o poder de uma ordem que dispunha de uma força militar de 15 mil homens e de uma riqueza imensa parecia suficientemente sólido para arrostar com a animosidade do rei de França. Mas aquela força militar estava demasiado dispersa por toda a Europa para ser um argumento sólido contra a decapitação das suas chefias sedeadas em França.

No dia seguinte à prisão dos templários em França, um manifesto real é espalhado por Paris, tornando públicas as acusações contidas na ordem de detenção: os Templários seriam culpados de apostasia, de ultrajes à pessoa de Cristo, de ritos obscenos, de sodomia e, por fim, de idolatria. As suas infâmias manifestam-se, especialmente, aquando da admissão dos freires: obrigam-nos a renegar Cristo, três vezes, e a escarrar sobre o crucifixo; em seguida, despojados das suas vestes, são beijados na ponta inferior da coluna vertebral, no umbigo e na boca por aquele que os recebe; depois, obrigam-nos a prometer entregar-se à sodomia, se isso lhes for pedido; finalmente, adoram uma estatueta a que chamam Baphomet e trazem consigo um cordãozinho que foi, precedentemente, deposto sobre essa estátua. Baphomet, segundo parece o mais provável, seria uma corruptela de Maomé. Aliás os Templários eram acusados de manterem relações muito íntimas com o Islão e com o Velho da Montanha.

Em 16 de Outubro, Filipe, o Belo, dirigia aos príncipes e aos prelados da cristandade cartas incitando-os a imitá-lo e a mandar prender os templários que se encontrassem nos seus Estados. Essas cartas só obtiveram três respostas favoráveis: a do duque da Baixa Lorena; de Gérard, conde de Juliers, e a do arcebispo de Colónia. O bispo de Liège, o rei de Aragão, o rei dos Romanos (Alberto) respondem-lhe que o assunto é da competência do papa. Quanto ao rei de Inglaterra, Eduardo II (genro de Filipe, o Belo), longe de se deixar convencer, iria ele próprio escrever aos reis de Portugal, de Castela, de Aragão e da Sicília, para lhes pedir que não agissem senão depois de madura reflexão, pois as acusações formuladas contra o Templo lhe pareciam ditadas pela calúnia e pela cobiça.

No mês seguinte, cento e trinta e oito prisioneiros são interrogados em Paris, na sala baixa do Templo, peto inquisidor de Paris, depois de terem passado pelas mãos dos oficiais do rei, que, de conformidade com as instruções contidas nas cartas fechadas, empregaram «a tortura, em caso de necessidade». De facto, trinta e seis dos presos deveriam morrer em consequência dessas torturas. Perante o inquisidor, apenas três deles negaram ter cometido os crimes de que os acusavam

Embora Clemente V dirija a Filipe, o Belo, uma discreta carta de protesto contra as torturas, publica em 22 de Novembro a bula Pastoralis praeminentiaie, onde ordena a todos os príncipes da cristandade que prendam os Templários que se encontram nos seus Estados. Explica que se vira obrigado a tomar essa medida pelas confissões dos templários de França e que certos templários em serviço na cúria romana lhe teriam confirmado o bem fundado dessas confissões; seria efectuado um processo eclesiástico, em seguida ao qual, se a Ordem fosse reconhecida inocente, todos os seus bens lhe seriam devolvidos; caso contrário, esses bens seriam consagrados à defesa da Terra Santa.

O processo foi-se arrastando. A ordem era poderosa e tinha muitos defensores, nomeadamente nos países não sujeitos à coroa francesa. Em 1310, uma proclamação dos seus defensores afiançava que «Se os freires do Templo disseram, dizem ou viessem a dizer no futuro, enquanto se conservarem na prisão, seja o que for contra eles, ou contra a Ordem do Templo, isso não traz prejuízo à Ordem acima citada, porque é notório que falaram ou falarão forçados ou obrigados ou subornados pelos pedidos, pelo dinheiro ou pelo receio; e declaram que o provarão em tempo e lugar quando usufruírem de uma plena liberdade [...] Eles pedem, suplicam, requerem que sempre que actos sejam examinados nenhum laico esteja presente ou possa ouvi-los, nem nenhuma outra pessoa de cuja honestidade se possa duvidar com razão [...]

Por fim, fazem notar que, fora de França, não se encontrou nenhum freire do Templo que dissesse ou apoiasse as «mentiras» proferidas contra a Ordem. Por conseguinte, a defesa do Templo estava a organizar-se e, aos olhos dos comissários eclesiásticos, tomava um novo aspecto. Era preciso agir. Em fins de 1311 reúne-se um concílio, em Vienne, no Delfinado, onde Clemente V, apoiado pelos prelados favoráveis a Filipe IV e numa situação «logística» onde os restantes teriam dificuldades em opor-se aos desígnios do rei, pretendia extinguir a Ordem.

Na verdade, Vienne tornou-se naqueles dias o pólo de atenções do favoritos do rei, como Enguerrand de Marigny e alguns conselheiros laicos de Filipe, o Belo. O próprio rei apresentou-se em pessoa, em Vienne, em 20 de Março de 1312 seguido de um grande cortejo. Dois dias depois, em consistório secreto, Clemente V faz aprovar a supressão da Ordem do Templo, pela bula Vox in excelso; o texto desta bula não condena a Ordem, mas invoca o bem da Igreja, para. pronunciar a sua supressão. Semanas depois a bula Ad providam atribui à Ordem do Hospital os bens dos Templários.

Restavam as chefias dos templários. A sua sentença foi proclamada em 18 de Março de 1314. No próprio dia foi preparada uma fogueira, perto do jardim do palácio. Nessa mesma tarde Jacques de Molay, o mestre da Ordem, e Geoffroy de Charnay subiram para o estrado onde se encontrava a pira. Pediram para ficar de cara voltada para Notre-Dame, clamaram mais uma vez a sua inocência, declarando que o único crime que haviam cometido fora o de se terem prestado a fazer falsas confissões para salvarem a vida. A Ordem era santa, a Norma do Templo era santa, justa e católica. Não haviam cometido as heresias e os pecados que lhes atribuíam. E diante da multidão paralisada de espanto, morreram com a mais tranquila coragem.

O rei de Portugal, D. Dinis, procedeu neste caso, com toda a sagacidade que lhe era própria. Parece que, num relance, vira toda a questão e as vantagens que dela poderia tirar para a nação. Cumpriu a bula pontifícia discreta e de forma calculista. Mandou instaurar processo judicial contra os Templários residentes no País, dando-lhes todavia o tempo necessário para poderem furtar-se a eventuais consequências. Os agentes do rei apoderaram-se dos bens da Ordem com fundamento de que haviam sido ilegalmente separados da coroa. O rei suspendeu quaisquer reclamações do clero regular sobre quaisquer daqueles bens e ordenou a penhora das propriedades em litígios, com fundamento na ausência do mestre e dos freires, protelando a questão até que houvessem apresentado a sua defesa perante o pontífice e dele tivessem recebido sentença final. Tratou igualmente de estabelecer uma convenção com o rei de Castela, em 1310, para o caso de a Ordem, como se suspeitava, vir a ser eliminada, e, por essa convenção, os dois monarcas comprometiam-se a auxílio recíproco e conduta comum, destinada a assegurar ao reino respectivo os bens e rendimentos dos Templários em cada país. No mesmo ano, o concílio de Salamanca, reunido a mandado do papa, investigava sobre a conduta dos freires nos três reinos de Portugal, Leão e Castela, e foi declarada por unanimidade e lealmente a sua inocência e inculpabilidade. Depressa o rei de Aragão procedia como os dos três reinos, de modo que, quando Clemente V, em 1312, suprimia a Ordem e concedia à do Hospital todos os seus bens, os reinos peninsulares ficaram exceptuados e apenas obrigados os respectivos soberanos a nada alienar sem a resolução definitiva da Santa Sé.

Todavia a coroa portuguesa acabou por não ficar com os bens da Ordem do Templo, ou pelo menos com a sua totalidade. As disputas com a Santa Sé acabaram numa solução de compromisso – esta aprovaria a criação da Ordem de Cristo e faria a transferência para ela dos bens dos Templários, que foi o que veio a acontecer.

Resumindo, a supressão da Ordem e o processo dos Templários liquidou fisicamente algumas centenas de membros da Ordem, e fundamentalmente em França. A imensa maioria dos membros da Ordem sobreviveu, quer mudando de Ordem, quer passando à vida civil, quer ingressando no clero regular, etc. Apenas as chefias francesas foram decapitadas. Isto deve ser tomado em consideração ao ler o Código da Vinci, pois fica-se com uma ideia errada do grau de destruição dos membros da Ordem dos Templários.


Nota - Ler ainda 1, 2, 3, e 5

Publicado por Joana às 12:16 AM | Comentários (14) | TrackBack

novembro 28, 2004

Descodificando o Código da Vinci 3

Os Templários – Nascimento e Ascensão

Após a conquista de Jerusalém (em 1099), a situação era precária e havia a convicção entre muitos cruzados da posição difícil em que se encontravam. Dominavam toda a costa do Levante – Principado de Antióquia (conquistada em 1098) e Condado de Edessa (regiões agora incluídas na Turquia e na zona costeira da Síria), o Condado de Tripoli (o actual Líbano) e o Reino de Jerusalém (actualmente Israel, Gaza, Cisjordânia e parte da actual Jordânia), mas eram demograficamente muito minoritários nas terras que dominavam e estavam rodeados por estados árabes hostis.

Das três grandes ordens militares criadas na Terra Santa, a Ordem do Templo foi a única fundada, não com o intuito de auxiliar peregrinos e doentes, mas sim para combater imediatamente os infiéis e proteger as rotas dos peregrinos. Os seus documentos oficiais designam-nos por Fratres militiae Templi ou Pauperes commilitones Christi Templique Salomonis. Foi fundada em 1119 por Hugo de Payens e Geoffroy de Saint-Omer. Outros seus companheiros aderiram elevando para nove o número de cavaleiros que constituíram inicialmente a ordem. Posteriormente muitos outros foram aderindo.

Nove anos depois foi confirmada pelo papa, a pedido de S. Bernardo de Claraval, que lhe deu o estatuto e escreveu um livro em louvor dos Templários. Alguns anos depois, o rei de Jerusalém, Balduíno II, por se ter ido instalar na Torre de David, cedeu aos «Pobres Cavaleiros de Cristo» (é o nome que eles inicialmente escolheram para designar o grupo a que pertencem) essa primeira residência real, a que chamam o Templo de Salomão, e que os Muçulmanos haviam transformado na mesquita Al-Aksa. A partir desse momento, a ordem passa a ser designada pela Ordem do Templo e os seus membros os Templários. A regra ditada por S. Bernardo, extremamente severa e promulgada no Concílio de Troyes, parece ter decaído rapidamente da primitiva austeridade que a aproximava da regra da Ordem de S. João (Hospitalários), sem que, todavia, essa regra tivesse afastado pretendentes à ordem, que, em grande número, a preferiram à do Hospital, talvez exactamente por não terem obrigação de prestar a doentes serviços muitas vezes desagradáveis.

A Ordem do Templo — que nunca deixará de considerar como sua casa principal a casa dirigente, esse Templum Salomonis que sempre figurará no seu sinete — constitui uma criação absolutamente original, pois fez apelo aos cavaleiros seculares para que dediquem a sua actividade, as suas forças e as suas armas ao serviço daqueles que precisam de ser defendidos. Por conseguinte, concilia duas actividades que pareciam incompatíveis: a vida militar e a vida religiosa. E, efectivamente, muito cedo compreendem a necessidade de uma norma precisa que, ao mesmo tempo que reprima os seus membros evitando irregularidades sempre possíveis, lhes permita serem reconhecidos pela Igreja na função que exercem.

Como a maior parte das ordens religiosas dessa época, prevê diversas espécies de membros: os cavaleiros, que pertencem à nobreza (nessa época, apenas os nobres podem assumir a função militar) e que são os combatentes propriamente ditos; os beleguins e os escudeiros, que são os seus ajudantes e podem ser recrutados no povo ou na burguesia; os padres e os clérigos, que se encarregam do serviço religioso da Ordem; finalmente, os criados, artífices, os servos e outros ajudantes diversos.

Em 29 de Março de 1139, na bula do papa Inocêncio II, Omne datum optimum, ficarão estabelecidos os privilégios da Ordem. O principal desses privilégios é a isenção da jurisdição episcopal; a Ordem poderá ter os seus próprios padres, os seus capelães, garantindo a assistência religiosa e o culto litúrgico, e que não dependerão dos bispos da região. Um privilégio desses será contestado e dará origem a muitos problemas com o clero secular. A Ordem também fica isenta de pagar dízimas. Além dos Templários há apenas uma ordem que está isenta desse pagamento: a dos Cistercienses. E é compreensível que esse privilégio fiscal tenha suscitado numerosas invejas, pois favorecia os domínios pertencentes a essas ordens. Além disso, os Templários tinham o direito de construir oratórios e de serem enterrados dentro deles. Por conseguinte, a Ordem dispunha de uma grande autonomia e de grandes recursos, pois as doações afluíram. E as acusações de orgulho e de avareza encontrarão nelas uma base sólida à medida que a Ordem se for desenvolvendo. O Templo torna-se num Estado, transversal aos restantes Estados da cristandade.

A sua passagem pela Palestina ainda hoje é visível nas suas fortalezas de arquitectura poderosa e eficaz, como Monte Tabor. Mas a sua acção não se restringiu aos Estados Latinos do Levante. Implantou-se fortemente na península Ibérica, onde, desde os primeiros momentos, os Templários vieram para uma luta semelhante à que travavam na Palestina e Síria; houve também a Ordem de Alcântara, a de Calatrava, a de Avis, a de Cristo — e é nesta última que os Templários sobreviverão depois de a sua Ordem ter sido suprimida—, a de Santiago da Espada, etc.

São Bernardo, abade de Clairvaux, e que contribuiu para que no concilio celebrado em Tours, em 1129, se fixasse a sua regra, faz-lhes uma apologia em De laude novae militiae (escrita entre 1130 e 1136), onde exaltou as profundas virtudes do cavaleiro do Templo:

Em primeiro lugar a disciplina é constante e a obediência é sempre respeitada; vai-se e vem-se, consoante a ordem daquele que tem autoridade; anda-se vestido com o que ele deu; nem sequer passa pela ideia ir buscar comida e vestuário a qualquer outro lugar [...] Vivem lealmente em. comunidade, uma vida sóbria e alegre, sem mulher nem filhos; nunca estão sem fazer nada, ociosos, curiosos [...]; entre eles não há nenhuma preferência por ninguém: honra-se o mais valoroso, não o mais nobre [...]; detestam jogar os dados e o xadrez, detestam caçar [...]; têm o cabelo cortado à escovinha [...], nunca penteados, raramente lavados, o pêlo descurado e hirsuto; sujos de pó, a pele curtida pelo calor e a cota de malhas [...]

Enfim ... uma descrição pouco condizente com muitas ideias românticas existentes e pouco propícia a uma adaptação cinematográfica. Quanto a não terem mulher, convenhamos que aquele estado de imundície descrito pelo piedoso santo não era muito motivador. É claro que este trecho foi escrito uma década após a criação da Ordem, ainda durante o seu período heróico. Um século depois aquela descrição estaria certamente muito longe da realidade.

Enquanto viveram na Palestina, houve sempre uma emulação entre os Templários e os Hospitalários, que não poucas vezes se traduziu por lutas armadas. Com a queda de São João de Acre, em 1291, e o fim dos estabelecimentos latinos na Palestina (Jerusalém já tinha caído em 1187, Antioquia em 1268 e Trípoli em 1289), ambas as ordens se transferiram para Chipre, que Ricardo Coração de Leão tinha dado ao rei de Jerusalém. Aí continuaram as suas desavenças com os Hospitalários, que, provavelmente, lhes cobiçavam as riquezas. Mas enquanto os Cavaleiros do Hospital se mantinham no Mediterrâneo Oriental (Chipre, Rodes), os Templários concentravam-se no Ocidente da Europa.

Na Península Hispânica mantiveram a sua acção militar, mas em França, na Inglaterra e no Império, onde não a podiam empregar, dedicaram-se sobretudo a uma actividade financeira que os tornou odiosos à maior parte das populações. Torneavam as disposições da Igreja que proibiam os cristãos de exercer usura, arrendando os seus bens por preços superiores aos que figuravam nos contratos. O seu grande poderio financeiro pô-los em oposição com os soberanos, que defendiam os interesses dos seus vassalos; por vezes demonstravam orgulho extraordinário nas relações com o poder real. Eram, por assim dizer, um Estado dentro do Estado e, muitas vezes, grave elemento de perturbação contra ele.

Na Península Ibérica, pelo contrário, tiveram actuação de relevo, reconhecida pelos reis e por estes recompensada com benefícios importantes. Os seus bens eram, por disposição da Igreja, isentos de muitos impostos, como os censos eclesiásticos gerais, e da jurisdição episcopal, mas, além disso, todos os reis peninsulares lhes concederam privilégios especiais e lhes fizeram importantes doações de territórios, que muitas vezes eram situados na fronteira, por preferirem sempre combater na vanguarda dos cristãos, mas também receberam benefícios importantes em pontos onde não tinham de combater, como os que lhes foram proporcionados pelos arcebispos de Braga. A sua acção no repovoamento de Portugal foi importante nas regiões de que eram donatários, além da intervenção importante que tiveram nas lutas da Reconquista. O seu chefe usou vários nomes: mestre, procurador, etc. Por vezes havia um só mestre nos três reinos: Portugal, Castela e Leão. Aragão manteve-se sempre autónomo.

A Ordem, progredindo rapidamente, adquiriu consideráveis bens e grandes rendas que lhe permitiram desenvolver cada vez mais a sua actividade. A maioria dos cavaleiros iniciados nesta Ordem era francesa e tinha entrado nela sob a influencia de S. Bernardo, antes da tomada de Jerusalém (1187).

Aos cavaleiros templários reconhecia-se a gloria do seu valor militar, mas em compensação censurava-se a sua ambiciosa política, que sempre antepôs os interesses da Ordem aos de toda a cristandade, podendo aduzir-se em prova disto, as ambíguas relações que manteve com o Islão. Esta Ordem procurou ampliar os seus domínios mesmo à custa dos magnates e príncipes cristãos, e desde o principio que mostrou uma excessiva cobiça. Como podia dispor de imensos recursos pecuniários, chegou a ser uma verdadeira potência financeira. Quando ocorreu a catástrofe da sua supressão, no início do século XIV, o seu capital em bens imóveis ascendia entre 3 a 6 mil milhões de euros (segundo estimativa minha em termos de poder de compra actual); e quanto a rendas, dízimos, juros, etc. receberia cerca de 200 milhões de euros anuais, igualmente estimativa minha.

Esta riqueza, superior à de um monarca de então, harmonizava-se muito mal com a pobreza imposta pelos estatutos dos «Irmãos Pobres do Templo», principalmente porque só uma pequena parte dela se aplicava aos fins para que a Ordem tinha sido criada e em beneficio dos Lugares Santos. Além disso, a Ordem não só se entregava à construção naval, mas dedicava-se a grandes empresas mercantis: nas suas galeras transportava todos os anos milhares de peregrinos para a Palestina, e o privilégio de introduzir, sem pagar direitos, os artigos exigidos pelas suas necessidades, permitiu-lhe dedicar-se a especulações em grande escala.

Como intermediária do tráfico entre o Oriente e o Ocidente, a Ordem adquiriu excepcional importância para o tráfico de dinheiro; nas suas seguras e rápidas galeras enviavam os papas as quantias destinadas à Terra Santa, confiando-as à guarda e administração da Ordem. Também serviu de intermediária noutras operações financeiras. A sua casa principal de Paris, o Templo, converteu-se numa espécie de Bolsa internacional, onde faziam as suas transacções os comerciantes dos países mais distantes: até os próprios príncipes se valiam dela, pois os reis de França depositavam ali os seus tesouros e realizavam nela as cobranças e os pagamentos. A Ordem não fazia naturalmente todos estes negócios por simples amor ao próximo, e sem lucro algum, cobrando obviamente comissões vultuosas, que pagavam os riscos das transferências, mas também a cupidez dos «Irmãos Pobres do Templo». A Ordem dos Templários, que era uma potência militar e uma riquíssima proprietária com a qual ninguém podia competir, veio deste modo a ser também uma grande potência financeira, cujo favor imploravam os reis, seus devedores. O próprio Filipe IV, o Belo, o seu futuro carrasco, teve que valer-se da importância da Ordem.

Com a queda dos estabelecimentos cristãos do Levante e o fim da Reconquista na Península (a partir de meados do século XIII restava apenas o pequeno Reino de Granada, que durou ainda dois séculos), terminara a sua antiga missão militar e uma vida de indolência e de prazeres precipitou a sua degradação. A opinião pública odiava-a, acusando-a de soberba: o povo não só atribuía aos seus membros um brutal empenho pelos prazeres, um grosseiro egoísmo e erros da pior espécie, senão que também dizia que tinha incorrido secretamente em heresia passando-se ao islamismo.

O ódio votado à Ordem do Templo tem, no fundo, as mesmas raízes do ódio aos judeus. A Igreja considerava pecaminosas e indignas de um cristão as actividades que envolvessem lucros, as actividades financeiras, os usurários, etc. Santo Agostinho, exprimira o receio de que o comércio afastasse os homens do caminho de Deus; e a doutrina de que nullus christianus debet esse mercator ( Nenhum cristão deve ser mercador) era geral na Igreja da Idade Média, embora com as cruzadas tivesse começado a haver uma evolução dos valores éticos da cristandade face ao comércio e usura. Portanto era fácil a revolta dos povos serem canalizadas contra judeus e templários. Foi o mesmo processo que, em pleno século XX, Hitler e os nazis utilizaram na Alemanha. Aliás, por vezes eram os monarcas que serviam de freio a tentativas de perseguição dos judeus, como sucedeu em Portugal nos séculos XIV e XV.

A própria cúria dirigiu severas censuras contra a Ordem e propôs-se rever e reformar o seu estatuto, propondo, por exemplo, fundir a Ordem dos Templários com a dos Hospitalários. Apesar de todas estas advertências, a Ordem, convencida da sua inexpugnável posição, resistiu com um certo desprezo à opinião publica que se lhe manifestava hostil, o que foi interpretado como confirmação dos rumores que circulavam.

Desde a criação de um clero especial para a Ordem, os sacerdotes que entraram ao serviço desta ficaram isentos de qualquer outra dependência eclesiástica, e nem mesmo estavam subordinados ao bispo em cuja diocese exerciam as suas funções. Em situação análoga estavam os leigos filiados. Nos seus domínios construiu a Ordem templos e capelas, provendo-os dos sacerdotes necessários: com eles nada tinha que ver o bispo, de cuja jurisdição se eximiram também todas as antigas capelas ou igrejas, que passaram ao poder dos templários. Sobre eles nem o bispo nem o pároco respectivo tinham poder algum para castigar, não podendo, portanto, lançar-lhes a excomunhão, nem pô-las em interdito. De sorte que vastas comunidades e com frequência extensos territórios ficavam fora da autoridade da Igreja. Isto causava, como era natural, graves prejuízos económicos ao episcopado e ao clero paroquial. Daqui a luta contínua dos bispos e dos párocos contra a Ordem: mas todos os seus esforços malograram-se sempre pela atitude dos papas que apoiaram a Ordem com toda a sua autoridade e aumentaram constantemente os seus privilégios. Os bispos consideravam que com isto a cúria rebaixava a consideração que lhes era devida. Por exemplo, quando um bispo ou um padre se recusavam a dar a alguém sepultura “sagrada”, resolvia-se esta dificuldade enterrando-o numa igreja da Ordem. Por todas estas causas nasceu entre o episcopado e o clero paroquial por um lado e a Ordem por outro, uma inimizade mortal, que motivou intermináveis queixas, mútuas recriminações, processos, e não poucas vezes, actos violentos de defesa própria.

Sob outro ponto de vista, os templários emanciparam-se pouco a pouco da Igreja. Alexandre III permitiu aos cavaleiros do Templo que se confessassem aos clérigos da Ordem por eles nomeados, concessão que, na prática, veio a converter-se no principio de que os templários só a esta classe de sacerdotes podiam confessar-se. E, como estes estavam completamente fora da influencia do episcopado, a Igreja não tinha qualquer influência sobre a Ordem e não podia exercer qualquer vigilância sobre as suas crenças e sobre a sua vida. Alexandre III concedeu além disso ao grão-mestre da Ordem o direito de alterar a regra, depois de se ter aconselhado com os «prudentes» irmãos, e deste modo a regra de Troyes perdeu a sua importância constitucional, e a Ordem adquiriu neste sentido a fisionomia estranha com que se nos apresenta no século XIII e que era filha da profunda mudança de ideias produzida pelas Cruzadas. Fim consequência do desengano sofrido com as derrotas sofridas no Oriente, rejeitou-se por erróneo o sistema até ali seguido, e os povos, separando-se do pontificado, criticaram acerbamente a Igreja e acabaram por duvidar do cristianismo. Formaram-se então associações piedosas que, em oposição à Igreja dominante, creram cada uma delas conter em si a ciência, o valor e a missão da Igreja. Surgiram então os valdeses; o sul da França viu-se dominado pelos albigenses, e um sem numero de seitas esquecidas, como a dos bogomílos e outras, deram novas e cada vez maiores mostras da sua actividade.

Portanto a mensagem transmitida pelo Código da Vinci de que haveria uma luta de morte entre a Ordem do Templo, guardadora de um segredo terrível, e a Igreja Romana que pretendia que esse segredo não viesse a lume, é completamente insensata. Foi exactamente a cúria romana a principal defensora da Ordem contra as queixas do clero regular, apoiado pelos povos, que a odiava pela sua riqueza e por se ter eximido às regras que a restante cristandade cumpria. Quando o Papa deixou de defender a Ordem, deu-se a tragédia.

No fim do século XIII a Ordem do Templo era mais rica e poderosa que nunca. Mas tinha criado tantos ódios e invejas que o seu futuro só na aparência era seguro.

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Descodificando o Código da Vinci 2

Código da Vinci, a sucessão de Fibonacci e o número de ouro

No que se refere à sucessão de Fibonacci e ao número de ouro (Φ = 1,618033 ...) designado pela letra grega phi em honra de Fídias (Phideas), trata-se de uma matéria conhecida há séculos e que nada tem de sobrenatural. É uma proporção que ocorre com muita frequência na natureza e que é referida como a proporção esteticamente ideal. Mas a arquitectura da vida e da natureza tem igualmente uma origem comum, matrizes comuns e haver essas matrizes comuns – os átomos, o código genético, etc., pode ser excitante do ponto de vista do aprofundamento do conhecimento científico da natureza, mas nada tem de sobrenatural.

Os artistas da Renascença designaram por número de ouro, um número que, desde a mais remota antiguidade, era visto como símbolo cosmológico e fórmula mágica. Pelas propriedades de que goza , o número de ouro é chave de diversas construções geométricas utilizadas, desde há muitos séculos, na Arquitectura; a proporção que ele traduz é considerada particularmente estética e numerosas obras primas da pintura e da escultura inspiraram-se nele. O número de ouro também chamado Divina Proporção desde que Fra Luca Paccioli, sob a influência de Piero de La Francesca, escreveu um livro sobre este número com desenhos de Leonardo da Vinci (o primeiro a utilizar a expressão sectia aurea), é talvez, de todos os números, o mais famoso e ubíquo. No século XX o arquitecto Le Corbusier (1948) fundamentou nas propriedades do número de ouro, o seu MODULOR, espécie de tabela, com medidas padrão, a ser utilizada nas obras arquitectónicas.

O MODULOR. módulo de ouro, é uma tabela para uso da Arquitectura, inspirada no número de ouro Φ. Le Corbusier construiu-a tomando como base três medidas aproximadas, 43cm, 70cm e 113cm, onde 113 = 70 + 43 e cuja razão é o número de ouro. Note-se que a secção áurea de 113 é 70; que a de 70 é 43 = 113 - 70; que a de 43 será 27 = 70 - 43, e assim sucessivamente. Assim, Le Corbusier parte de 113 e continua, nos dois sentidos, construindo uma cadeia de secções áureas a que chamou série vermelha:

4 - 6 - 10 - 16 - 27 - 43 - 70 - 113 - 183 - 296

A estatura humana correspondia à medida de referência 183cm. A altura ao solo do umbigo seria de 113 cm; o joelho situar-se-ia a 43cm, etc.. As medidas da série vermelha foram, por Le Corbusier, tomadas como base para o estudo das alturas das bermas, bancadas, cadeiras, mesas, balcões, janelas, muros, portas, tectos, etc..

Modulor_Corbusier.jpg

Matematicamente, número de ouro é a raiz positiva da equação: x2 – x – 1 = 0. É uma dízima infinita não periódica. Com dez casas decimais podemos escrever Φ = 1,6180339887.... Também pode ser obtido através da sucessão de Fibonacci, cuja principal propriedade é que cada termo é a soma dos dois termos que o antecedem.

0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144, 233, 377, 610 ...

A razão entre cada termo desta sucessão e o anterior converge rapidamente para o número Phi, que é o limite dessa sucessão. O seu inverso representa 0, 618033 também um papel importante na proporção áurea. O inverso do número de ouro é a raiz positiva da equação: x2 + x – 1 = 0.
No caso de Le Corbusier, este aplicou aquela proporção partindo de um valor de referência (183 cm). Construiu portanto uma sucessão com valores diferentes da de Fibonacci, mas com a mesma razão entre os números consecutivos.

Geometricamente o número de ouro pode ainda ser calculado pela razão entre a diagonal e o lado de um pentágono regular. Ou seja, pela razão entre uma qualquer das linhas do pentagrama e a distância entre duas extremidades contíguas do mesmo. Sendo assim, o número de ouro pode ser obtido pela expressão 0,5*(1 + RQ(5)), onde RQ significa raiz quadrada. Obviamente estas coincidências excitam as imaginações e facilitam a elaboração de especulações esotéricas.

O número de ouro é muitas vezes relacionado com o chamado "rectângulo de ouro", que tem intrigado estudiosos desde há muitos anos atrás. Este rectângulo baseia-se no seguinte princípio formulado pelo alemão Zeizing, em 1855:

Para que um todo dividido em duas partes desiguais pareça belo do ponto de vista da forma, deve apresentar a parte menor e a maior a mesma relação que entre esta e o todo.

Ou seja, dado um segmento de recta AB, um ponto C divide este segmento de uma forma mais harmoniosa se existir a proporção de ouro AB/CB = CB/AC (sendo CB o segmento maior). O número de ouro é exactamente o valor da razão AB/CB, a chamada razão de ouro. O rectângulo de ouro goza da seguinte propriedade: suprimindo-lhe o quadrado de lado igual ao seu lado menor, sobra um rectângulo com as mesmas proporções que o primeiro, isto é, semelhante ao primeiro. Se a cada rectângulo áureo se retirar o quadrado de lado menor obtém-se outro rectângulo áureo, e assim sucessivamente

Portanto, se desenharmos um rectângulo cuja razão, entre os comprimentos dos lados maior e menor, é igual ao número de ouro, obtemos um rectângulo de ouro. O rectângulo de ouro é uma entidade matemática que marca forte presença no domínio das artes, nomeadamente na arquitectura, na pintura, e até na publicidade. Este facto não é uma simples coincidência já que muitos testes psicológicos demonstraram que o rectângulo de ouro é de todos os rectângulos o mais agradável à vista. Por exemplo, o Parténon, em Atenas, está calculado com base no número de ouro, visto que a Arquitectura grega considerava a proporção áurea como a proporção perfeita, o máximo da harmonia. Inclusive na Grande Pirâmide de Gizé, construída pelos egípcios, o quociente entre a altura de uma face pela metade do lado da base é quase 1,618, embora há 45 séculos ninguém tivesse alguma vez ouvido falar no número Phi.

A divisão de um segmento de recta feita segundo essa proporção, denomina-se divisão áurea, a que Euclides chamou divisão em média e extrema razão, também conhecida por secção divina ou secção áurea, segundo Leonardo da Vinci, como escrevi acima. No fundo a formulação é simples: Para seccionar um todo em partes desiguais, de modo a obter equilíbrio e beleza, é preciso que a razão entre o todo e a parte maior seja igual à razão entre esta e a parte menor. Portanto o número de ouro aplica-se ao rectângulo, mas igualmente à divisão em troços de um segmento de recta.

Até hoje não se conseguiu descobrir a razão de ser dessa beleza, mas a verdade é que existem inúmeros exemplos onde o rectângulo de ouro aparece. Até mesmo nas situações mais práticas do nosso quotidiano, encontramos aproximações do rectângulo de ouro, é por exemplo o caso dos cartões de crédito e outros documentos do género, assim como a forma rectangular de muitos dos nossos livros, embora ultimamente, por questões de normalização na dobragem do papel, a relação entre os lados das folhas de papel normalizado esteja na proporção da raiz quadrada: A0, A1, ...,A4, A5, etc...

Todavia não é verdade que as proporções dos seres humanos «se ajustem com flagrante exactidão a esse rácio», como escreve o autor do Código da Vinci. As pessoas não são todas iguais, nem têm todas as mesmas proporções. O que é todavia verdade é que essas proporções são vistas como um ideal de beleza. Isto é, segundo os nossos critérios de estética sobre as proporções das coisas e das pessoas, quando essas proporções estão de acordo com o número de ouro, consideramo-las mais belas.

Talvez por isso, os egípcios do tempo de Khéops tenham utilizado um valor aproximado àquela proporção na Grande Pirâmide, embora nada permita concluir tenham sido guiados pelo número Phi.

Nota: Ver O Número de Ouro in Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática nº 17 (Junho 1990), nº 19 (Fevereiro 1991) e nº 20 (Junho 1991)

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Descodificando o Código da Vinci

O papel da Igreja Oficial

Depois de ter resistido longos meses, acabei por capitular perante o entusiasmo popular ... não, não comecei a ver a Quinta das Celebridades, ...não estou assim tão desmuniciada e indefesa ... aproveitei este fim de semana e li o Código da Vinci!

Trata-se de um absorvente romance policial, jogando com a sede pelo esoterismo misterioso de uma sociedade que já não se reconhece nos seus valores tradicionais e que busca refastelar-se em mistérios baseados numa amálgama de religião, magia, mitologias, ocultismo e histórias fantásticas. Para mim o livro foi absorvente porque me perguntava como ia o autor sair da embrulhada que tinha criado e que ia empolando de capítulo para capítulo. Optou pela solução óbvia de regressar às origens ... isto é, o mistério continuar oculto dos olhos da humanidade ... excepto dos seus milhões de leitores.

Relativamente à herança cristã dos ritos orientais, eu já havia escrito neste blogue, no Natal do ano passado, Semiramis e o Natal, onde mostrei, embora em tom ligeiro, que muito da liturgia cristã é herdeira dos ritos e ícones de religiões anteriores, e resumi escrevendo que «A gestação do cristianismo durou vários séculos num meio político que o hostilizava. A religião cristã acabou por incorporar na sua liturgia imensos símbolos das religiões que a precederam – a Virgem e o menino, o Natal, a Páscoa, o halo que se perfila por detrás da cabeça de Cristo (posteriormente alargado às representações dos santos), que representa uma reminiscência simbólica do sol invencível, etc.».

No que se refere ao pretenso "Priorado de Sião", julgo que se trata de um embuste inventado há duas ou três décadas. E a menos que me provem o contrário continuarei a dar ao "Priorado de Sião" o mesmo valor que a "Os Protocolos dos Sábios do Sião" que se descobriu ser uma fraude feita na Rússia pela Okhrana (policia secreta dos Czares), com o intuito de culpar os Judeus pelos males do país.

No que se refere à vida de Cristo, as fontes são os Evangelhos, sobre os quais existem dúvidas sobre a autoria, a época e sequência em que foram escritos. Pensa-se, por exemplo, que o Apocalipse seria o primeiro documento do Novo Testamento, escrito ainda no século I, pois a doutrina aparenta estar menos elaborada que nos restantes escritos. Basta ver a sua referência à Babilónia prostituída (Roma) que indiciava um ódio ao poder e às instituições romanas que depois se foi diluindo ... a Deus o que é de Deus, a César o que é de César. Portanto, contrariamente à “ordem” do Novo Testamento, o Evangelho segundo S. João seria o primeiro que foi escrito e não o último.

Assim, admitindo que este evangelho tivesse sido escrito entre 80 e 90 DC, então a versão “oficial” dos restantes teria sido escrita em meados do século II, portanto cerca de um século após os factos a que se refere. O tempo suficiente para muitas lendas se terem criado e acrescentado. Aliás há contradições entre esses evangelhos, como no caso de Jesus Cristo ter ou não irmãos.

Todavia, existe um outro testemunho da época. Flávio Josefo, judeu, escreveu sobre Jesus nas Antiguidades Judaicas 18,3,3 parágrafos 63 e 64, por volta do ano 95 dC. Existem, porém, duas versões sobre o mesmo trecho, uma mais antiga, em língua grega, que refere Jesus como o “Messias”, e uma tradução árabe que omite tal coisa. Aquela afirmação, no texto grego, poderá ser uma interpolação acrescentada posteriormente por “piedosa” mão cristã; mas também poderá ter sido omitida no texto árabe por motivos óbvios. Mesmo que o texto grego seja integralmente genuíno, poderá ser, todavia, uma opinião do Flávio Josefo, baseada no “ouvir dizer”.

Esta discrepância constata-se ao comparar Orígenes (185-254) na Polémica contra Celso (245-50 DC) e Eusébio de Cesareia (260-339) na História Eclesiástica (324 DC). Orígenes acusa Flávio Josefo de não reconhecer Cristo como o Messias, enquanto que o Bispo Eusébio o cita na sua versão actual. As versões que ambos citam não são idênticas. Quanto aos dois textos (grego e árabe) são os seguintes:

Texto Grego:
Naquela época vivia Jesus, homem sábio, se é que o podemos chamar de homem. Ele realizava obras extraordinárias, ensinava aqueles que recebiam a verdade com alegria e fez-se seguir por muitos judeus e gregos. Ele era o Cristo. E quando Pilatos o condenou à cruz, por denúncia dos maiorais da nossa nação, aqueles que o amaram antes continuaram a manter a afeição por ele. Assim, ao terceiro dia, ele apareceu novamente vivo para eles, conforme fora anunciado pelos divinos profetas e, a seu respeito, muitas coisas maravilhosas aconteceram. Até a presente data subsiste o grupo dos cristãos, assim denominado por causa dele.
Texto Árabe:
Naquela época vivia Jesus, homem sábio, de excelente conduta e virtude reconhecida. Muitos judeus e homens de outras nações converteram-se em seus discípulos. Pilatos ordenou que fosse crucificado e morto, mas aqueles que foram seus discípulos não voltaram atrás e afirmaram que ele lhes havia aparecido três dias após sua crucificação: estava vivo. Talvez ele fosse o Messias sobre o qual os profetas anunciaram coisas maravilhosas.

A possibilidade de todo o trecho ser “inserto” posteriormente é inverosímil. Não me parece crível que, havendo várias versões daquele texto, todas inventassem aquele sub-capítulo. Repare-se que não é só a interpolação de um sub-capítulo – seria toda a renumeração do capítulo 3 do Livro XVIII. Por outro lado essa inserção teria de ter sido feita numa época em que a Igreja ainda era perseguida e, de forma alguma, detinha as rédeas do poder, da cultura e do conhecimento, o que não é credível.

Tácito, historiador bastante consciencioso, nascido em 55 DC, relatou a perseguição desencadeada contra os cristãos pelo imperador Nero, logo após o incêndio de Roma ocorrido no ano 64 DC. (cf Anais, livro XV,44, escrito no início do séc. II (entre 115 e 120 dC)):

“Nenhum meio humano, nem os gestos de generosidade do imperador [Nero], nem os ritos destinados a aplacar [a ira] dos deuses, faziam cessar o boato infame de que o incêndio havia sido planejado nas altas esferas. Assim, para tentar abafar esse boato, Nero acusou, culpou e entregou às torturas mais deprimentes um grupo de pessoas que eram detestadas por seu comportamento e que o povo chamava "cristãos".
Este nome lhes provém de Cristo, [um homem] que no tempo de Tibério havia sido entregue ao suplício pelo procurador Pôncio Pilatos. Reprimida no momento, essa execrável superstição surgiu novamente, não apenas na Judéia - seu lugar de origem - mas também em Roma, onde tudo aquilo que há de ruim e vergonhoso no mundo chega e se espalha

É óbvio que estes textos poderão incorporar muito do “ouvir dizer”, embora sejam dois autores muito credíveis e nenhum deles cristão. Ainda no que respeita a fontes não cristãs temos Suetónio que, na sua obra "Vida dos Doze Césares" XXV,4 (por volta de 120 dC), alude à expulsão dos judeus de Roma ocorrida em 41 dC, sob o imperador Cláudio. O decreto de expulsão seria, segundo ele, resultado dos constantes distúrbios ocorridos nas comunidades judaicas em Roma em virtude de Cristo. Também é de referir as cartas entre Caio Plínio (Plínio o moço), governador da Bitínia entre 111 e 113, e Trajano, imperador de Roma entre 98 e 117 dC, onde Plínio solicita instruções de como proceder perante as denúncias contra os cristãos, o que indica que estes já seriam numerosos na Ásia Menor.

Obviamente que parte destes testemunhos foram “por ouvir dizer”. Todavia são textos de autores conscienciosos (Tácito, Suetónio, Plínio e Josefo), que não eram cristãos, que fazem fé e autoridade nas suas obras. Se aceitamos os seus testemunhos para fazermos a história daquela época, não podemos contestar liminarmente os testemunhos que, por qualquer motivo, não nos convêm. Aliás, nenhum dos textos acima prova a alegada natureza divina de Cristo.

Existem igualmente documentos cristãos do século I: Didaqué - um catecismo cristão escrito entre 60 e 90 d.C. As epístolas de Inácio de Antioquia (morto em102), o Cânon de Muratori, Clemente de Roma, tudo escritores e escritos do início do século II e Tertuliano (Apologeticus, De Spectaculis, etc.), nascido em 155.

A partir desta época a doutrina cristã já estava estabelecida, em linhas gerais, tal como a conhecemos hoje embora, por exemplo, tivesse sido apenas no século IV, que o 25 de Dezembro passou a ser a festa do "Dies Natalis Domini", por decreto papal. Antes aquele dia, embora já fosse o maior feriado em Roma, assinalava a festa mitraista do Natalis Solis Invicti. Os documentos coevos que não se inseriam na leitura oficial da Igreja sobre a vida de Cristo passaram, com seria óbvio, a documentos apócrifos do ponto de vista da ortodoxia eclesiástica, embora sejam conhecidos

Acusa-se frequentemente a Igreja de ter destruído os documentos que não lhe convinha. Na Europa Ocidental, a Igreja deteve o monopólio da cultura durante toda a Alta Idade Média. Mas, na destruição da maioria dos textos antigos, a Igreja apenas teve uma quota-parte e, provavelmente, a menor. Os textos antigos perderam-se:
1 – por motivos naturais (eram materiais perecíveis e o uso vai-os degradando)
2 – por catástrofes naturais (incêndios, terramotos, etc.)
3 – por pilhagens, saques, etc. decorrentes das guerras;
4 – para o seu suporte ser reutilizado. O pergaminho era caro e os monges, e não só, para escreverem coisas “mais úteis” devem ter raspado (feito palimpsesto) muitas preciosidades antigas por ignorância;
5 – por maldade, ou antes, por uma visão perversa da fé.

Os últimos séculos do Império Romano foram, de todos os pontos de vista, uma época de terrível decadência – as populações (na maioria escravos) vegetavam na mais degradante miséria e desnutrição, para sustentar uma camada social ociosa e numa grande decadência cultural, apoiada num exército que consumia todo o erário público. Muita da cultura antiga perdeu-se nesta época, e há muitos testemunhos que provam isso. Quando um sucessor de Constantino, o Imperador Juliano, apesar da sua capacidade, tentou restaurar a cultura antiga, não teve qualquer apoio. A cultura clássica estava morta. Do ponto de vista social, os novos regimes impostos pelos invasores germânicos, descontada a violência de actuação (mitigada todavia pela Igreja), traduziram-se numa melhoria significativa de vida. O mesmo aconteceu com os árabes que implantaram sociedades mais justas e humanas.

Por outro lado, havia muitas correntes e seitas dentro da Igreja que nem o Concílio de Niceia, nem o poder do Imperador Constantino conseguiram vergar. A Igreja Católica só teve poder absoluto sobre o conhecimento, na Europa Ocidental. No Oriente e Egipto o cristianismo estava organizado em facções e seitas rivais que se combatiam arduamente e utilizavam todos os textos disponíveis nessas disputas. 3 séculos após Niceia deu-se a conquista árabe do Egipto e da Síria, e parte importante do acervo cultural da antiguidade clássica acabou por nos chegar por via árabe. Portanto a importância da Igreja Católica na destruição do que não lhe convinha é bastante relativa. Em contrapartida os mosteiros permitiram manter viva, copiando e recopiando, muita da cultura antiga, cujos suportes materiais eram perecíveis e se teriam perdido sem esse esforço.

Isto é o que se tem conseguido apurar sobre a génese do cristianismo. Neste entendimento o alegado episódio da união de facto entre Jesus Cristo e Maria Madalena é de somenos. Se as provas da existência e vicissitudes da vida de Cristo são tão discutíveis do ponto de vista da exegese histórica, se houvesse uma fonte credível dessa união e dos seus frutos, ela seria a prova mais evidente da existência física de Cristo. Para quê eliminar essa fonte? A Igreja medieval fá-lo-ia, mas a Igreja actual acolhê-la-ia de braços abertos e encontraria seguramente uma leitura favorável à sua interpretação de Cristo.

Nota - Ler ainda 2, 3, 4 e 5

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novembro 26, 2004

Corro risco de vida

O Supremo Tribunal de Justiça atenuou a pena de prisão de um homicida que estrangulou a própria mulher até à morte por considerar que as atitudes desta terão contribuído para o desfecho fatal. Nesse acórdão os juízes do STJ referem que não terão sido alheias ao crime as condutas anteriores da vítima, designadamente a de deixar algumas vezes esturricar a comida que confeccionava; sair e a chegar a casa de noite; ir tomar café a um estabelecimento de cafetaria sem dar conhecimento ao arguido, etc.

Uma dúvida me assalta e aterroriza: e manter um blogue? Não será considerada uma atenuante fortíssima em caso de uxoricídio? Esturricar a comida não me incomoda, pois se tal acontecer com frequência, a nossa ucraniana terá que procurar outros patrões: será ela a única vítima. As restantes condutas malévolas da assassinada já estão consignadas nos direitos dos casais modernaços e de mentes abertas. Mas o blogue é que me está a incomodar.

Se este blogue acabar de repente e uma mancha vermelha alastrar sinistramente pela sua página de abertura, estejam atentos ao Jornal Nacional da TVI e aos acórdãos do SJT.

Publicado por Joana às 02:49 PM | Comentários (29) | TrackBack

O Barnabé encontrou a solução

O Barnabé titula, empolgado, que foi «eleito por 1 milhão de portugueses». Ou, mais precisamente, que foi visitado por um milhão de portugueses. O Barnabé realizou finalmente algo de útil: resolveu a situação demográfica portuguesa.

Eu já devo ter aberto aquele blogue uma dúzia de vezes. Sou 12 portuguesas. Haverá adeptos fervorosos do Barnabé que poderão tê-lo visitado, cada um, 2 ou 3 mil vezes, nos seus, ao que julgo, 14 meses de existência. Cada um tornou-se milhares de portugueses. Jesus Cristo multiplicou os pães nas bodas de Caná, Barnabé multiplicou os portugueses na blogosfera cá do sítio.

Espero que este fenómeno tão benéfico para o país já tenha chegado ao conhecimento da Administração Fiscal e da Segurança Social. É natural que tal tenha sucedido pois julga-se que é na função pública que se encontram os internautas mais devotados. Sendo assim já estarão, a esta hora, a serem emitidas liquidações oficiosas tributárias e avisos de pagamento das contribuições para a Segurança Social para toda essa multidão de portugueses tão inesperadamente surgida da blogosfera pela prestimosa e patriótica iniciativa do Barnabé.

Bagão Félix está finalmente satisfeito e a salvo: as receitas fiscais vão disparar e o superavit orçamental português vai fazer empalidecer de inveja e despeito os nossos parceiros europeus. PSL vai poder, com toda a tranquilidade, encontrar assessoras de comunicação social realmente competentes e com impacte devastador a nível de imagem.

Não há dúvida: é por estas e outras que o Barnabé é diferente dos outros.

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novembro 25, 2004

25-11-1975, o Thermidor Português?

Muitos consideram o 25 de Novembro de 1975 como o epílogo da Revolução Portuguesa. Não concordo com essa opinião. Em 25 de Novembro foram derrotadas as forças políticas mais radicais, que tinham impulsionado o PREC. A partir daí deu-se o refluxo da maré revolucionária, mas não se encontraram os equilíbrios sociais próprios de uma sociedade democrática estável. O epílogo da Revolução Portuguesa deu-se com a ascensão ao poder de Cavaco Silva, a sua consolidação política e o fim do espectro de uma fase cesarista, consubstanciada em Eanes e no Conselho da Revolução, cesarismo frequente nos finais das revoluções quando as sociedades não conseguem encontrar equilíbrios consensuais.

A primeira quinzena de Julho de 1974 marca o fim da primeira fase da revolução: a fase dos notáveis. Nessa primeira fase tinham confluído os interesses da oficialidade mais jovem, descontente com uma guerra sem solução militar à vista, o liberalismo tecnocrático, ansioso de se pôr em dia com a Europa e que reprovava a ineficácia do aparelho salazarista, e as opções da pequena burguesia esclarecida, favorável a uma estratégia democrática. Essa fase acabara. Entre 8 e 12 de Julho era criado o COPCON (8-7), caía o governo de Palma Carlos (9/7) e Vasco Gonçalves era indigitado 1º ministro (12-7). O poder da rua impunha a sua força.

Para contrariar o protagonismo das forças radicais, Spínola faz apelo à «Maioria Silenciosa». O problema da «Maioria Silenciosa» é que ela é ... silenciosa. Pode exprimir-se nas urnas, mas não tem apetência para acções de rua, a menos que adquira o sentimento da sua força e importância numérica, através do sufrágio. Este apelo de Spínola, embora tivesse apoio de gente do PS, foi prematuro e precipitado.

Mas isso ocorre normalmente em qualquer revolução deste tipo (revolução de Abril, Revoluções Francesas 1789-99 e 1848-51, revolução bolchevique, etc.). Tentativas extemporâneas de inverter uma revolução acabam sempre por a fortalecer.

A elaboração de um «Programa Económico de Transição» coordenado por Melo Antunes foi um acto falhado. Quando começou a ser concebido fazia sentido. Quando foi concluído, veio à luz num país em que cada força política tinha objectivos diferentes e mutuamente opostos e estava convencida de conseguir atingi-los. Um mês depois Spínola é levado a tentar um golpe de estado, para inverter o processo. Dá-se a insurreição da Base Aérea de Tancos e um ataque aéreo ao Quartel do RAL1. Esta intentona, completamente desajeitada, enfraquece as forças que se opõem ao PREC e reforça os elementos radicais. Uma onda de nacionalizações (banca e seguros) abala os fundamentos económicos da sociedade portuguesa.

As eleições de 25 de Abril de 1975 para a Constituinte contaram “a rua”. Não chegavam a 20%. Poderiam ter servido de matéria de reflexão para os líderes que “comandavam a rua”, mas nunca servem. Na Assembleia Constituinte na Rússia os bolcheviques tiveram um peso eleitoral ligeiramente superior (25%), mas como tinham as forças armadas (quase totalmente expurgadas de oficiais) nas mãos, dissolveram a Constituinte e tomaram o poder. Durante a Revolução Francesa, a Montanha dispunha de pouco mais de 10% dos Convencionais. Mas o pavor em que os membros da Convenção Nacional viviam face à violência das secções populares arregimentadas pela Comuna de Paris, levou-os a votarem favoravelmente as decisões mais perversas da Montanha e foram precisas sucessivas cisões no interior da Montanha para que acontecesse o 9 Thermidor e acabasse o terror. Até se auto-destruir, a Montanha dominou a seu bel-prazer.

Mas a Revolução Francesa ocorreu há mais de 2 séculos, numa época em que a consciência cívica e democrática estava ainda em embrião. A Revolução Bolchevique deu-se em plena Grande Guerra, numa época em que o Mundo vivia uma grande instabilidade. O MFA consciente de que as eleições seriam desfavoráveis para o PREC tentou subverter os seus resultados previsíveis através de uma série de medidas prévias à realização das eleições: 1) Institucionalização do MFA através da criação do Conselho da Revolução (CR) e da Assembleia do MFA. O CR ficaria com poderes constituintes até à promulgação da Constituição. 2) Estabelecimento de uma Plataforma de Acordo Constitucional com os partidos, definindo um conjunto de regras a que a Constituição deveria obedecer, consagrando a existência constitucional do CR e da Assembleia do MFA e o direito de veto do CR sobre a Constituição, mas também sobre leis aprovadas na futuras Assembleia Legislativa. 3) À Constituinte ficava vedado ocupar-se da composição ou alteração do governo provisório.

Todos os partidos com pretensões eleitorais assinaram este acordo, pois não tinham alternativa.

Por via disso, e apesar da votação ser, para a «Aliança Povo-MFA», uma catástrofe muito superior à previsível, durante o mês seguinte foram nacionalizados sectores vitais da economia portuguesa: Produção, Transporte e Distribuição de Energia Eléctrica, Petróleos, Siderurgia, Cimentos, Transportes, etc., conjuntamente com a ocupação de terras nos meios rurais e a criação das UCP's, segundo o modelo soviético. Foi o «Socialismo aos empurrões»: a fraqueza eleitoral da «Aliança Povo-MFA» levou às nacionalizações apressadas, de forma a pôr as forças políticas que representavam mais de 80% do eleitoral perante factos consumados. Esta perversão política apenas serviu para arruinar o país, pois logo que as revisões constitucionais o permitiram, a quase totalidade daqueles activos (ou o que restava deles) foi privatizada.

O PS foi o principal vector de combate a esta situação. Sem qualquer mácula de ligações à ditadura, vencedor folgado das eleições e sistematicamente banido dos centros de decisão políticos e económicos, espoliado de acesso à comunicação social, inclusivamente d’A República (19-5-75), assumiu o papel de vítima. Uma semana depois as instalações da Rádio Renascença, propriedade do Episcopado, também eram ocupadas pelos trabalhadores. Em 16 de Julho, alegando estar a ser marginalizado e em vias de ser expulso da vida política, o PS abandona o governo e o PPD segue-lhe o exemplo.

Estes acontecimentos levaram a uma cisão no MFA. Muitos oficiais da elite revolucionária consideravam que se estava a caminhar no sentido inverso às intenções iniciais dos revoltosos, o estabelecimento de uma democracia parlamentar, e que as forças radicais estavam a tomar conta do processo e se caminhava para uma situação totalitária. Esta cisão foi-se aprofundando de uma forma dramática. A ala esquerda do MFA, COPCON (ligado aos esquerdistas) e gonçalvistas (ligados ao PCP e MDP) foi ficando isolada perante os sectores democráticos do MFA, agrupados atrás do Grupo dos Nove, e que se opunham às teses políticas do Documento Guia Povo/MFA, a Bíblia da ala esquerda.

Neste processo a ala esquerda do MFA acabou derrotada na Assembleia do MFA e Vasco Gonçalves obrigado a demitir-se, em fins de Agosto. Pinheiro de Azevedo sucedeu-lhe. Em face da fraqueza da ala gonçalvista do MFA, o PCP deixou-se arrastar para alianças pontuais com os grupos radicais de esquerda, julgando, porventura, que conseguiria liderar o processo. Ora isso era insensato: a ala gonçalvista não tinha força militar e o COPCON, que a tinha, estava completamente dominado pelos radicais de esquerda. Nesta via, o PCP andaria sempre a reboque dos esquerdistas.

Em Novembro a situação era insustentável e só podia resolver-se mediante a derrota militar de uma das facções. No dia 12, uma manifestação de trabalhadores da construção civil sequestra os deputados no Palácio de S.Bento. No dia 15 dá-se o juramento de bandeira no RALIS (ex-RAL1) onde os soldados quebram as normas militares que regulamentam o juramento de bandeira e fazem-no de punho fechado.

A exibição dos ícones revolucionários empolga os mais radicais, mas afugenta todos os outros. Os elementos radicais do COPCON ficaram isolados entre as forças armadas. No dia 20, o Conselho da Revolução decide substituir Otelo Saraiva de Carvalho por Vasco Lourenço no comando da Região Militar de Lisboa. Entretanto o Governo anuncia a suspensão das suas actividades alegando "falta de condições de segurança para exercício do governo do país". O próximo disparate dos elementos radicais das FA seria o detonador para a sua liquidação.

Tal ocorreu em 25 de Novembro quando paraquedistas da Base Escola de Tancos ocupam o Comando da Região Aérea de Monsanto e seis bases aéreas, contestando a decisão da sua passagem à disponibilidade. Era o momento esperado. Os militares ligados ao Grupo dos Nove e a maioria das FA decidem intervir militarmente. O PCP, confrontado com essa decisão, capitulou e comprometeu-se a não convocar os seus militantes e apoiantes para qualquer acção de rua. A alternativa seria um massacre inútil e a ilegalização do PCP.

O Presidente da República Costa Gomes decreta o Estado de Sítio na Região de Lisboa e elementos do Regimento de Comandos da Amadora cercam e tomam o Comando da Região Aérea de Monsanto ocupado pelos insurrectos, e depois atacam e conseguem a rendição do Regimento da Polícia Militar, unidade militar próxima da esquerda revolucionária.

Carlos Fabião e Otelo são destituídos, respectivamente, dos cargos de Chefe de Estado Maior do Exército e de Comandante do COPCON e Ramalho Eanes, o estratega 25 de Novembro, torna-se Chefe de Estado Maior do Exército.

Em 2 de Abril de 1976 é aprovada a Constituição da República de 1976 pela Assembleia Constituinte. Em 27 de Junho Ramalho Eanes é eleito Presidente da República e em 23 de Setembro dá-se a tomada de Posse do I Governo Constitucional, chefiado por Mário Soares.

Nos dias seguintes ao 25 de Novembro o PC foi apoiado e "salvo" pelo célebre discurso de Melo Antunes quando ele disse que o PC era essencial à revolução portuguesa. Melo Antunes pretendia que o poder se baseasse na existência de um equilíbrio. Sem o PC esse equilíbrio far-se-ia mais à direita; com um PC legalizado, o equilíbrio far-se-ia entre o PS e o PC, ou seja, num PS de esquerda, isto é, far-se-ia na zona política onde se encontravam os militares que então tutelavam Portugal.

Este discurso modelou a situação política nos anos que se seguiram. O país continuou sob tutela. Os grandes grupos económicos portugueses haviam sido liquidados e os sectores industriais e financeiros mais importantes ficaram vedados à iniciativa privada. A maioria das empresas públicas ia acumulando prejuízos sobre prejuízos e nada havia a fazer. A tutela militar, que servia de Tribunal Constitucional, e a própria Constituição de 76 impedia quaisquer modificações.

O PS que estivera ligado à revolução, que ganhara prestígio por ter combatido o gonçalvismo, que se tornara o partido hegemónico no sistema político português, não soube governar o país. Mesmo depois do fim da tutela militar, quando era possível criar em Portugal uma economia de mercado que funcionasse, o PS nunca se emancipou dos complexos da esquerda estatizante, apesar de inicialmente, em pleno PREC, ter sido contra as nacionalizações. O país arrastou-se sem rumo, com um clientelismo potenciado pela enorme quantidade de lugares disponíveis nas empresas públicas, em permanente crise económica e orçamental.

A fase terminal da revolução foi a emergência do eanismo, primeiro nos governos de iniciativa presidencial, depois na criação de um partido que iria redimir a pátria da situação miserável onde se encontrava, o PRD. Todavia a pátria não se redime com boas intenções, nomeadamente quando essas «boas intenções» estão equivocadas sobre as formas de resolver os problemas. Mas o PRD conseguiu um objectivo que não estava nas suas intenções. Propôs uma moção de confiança ao governo minoritário de Cavaco Silva. Essa moção é o paradigma dos equívocos da esquerda, vítima dos seus mitos. Como Cavaco Silva não fazia aquilo que cai sob a definição de «política de esquerda», era óbvio que seria derrotado nas eleições, caso a AR fosse dissolvida. Mário Soares, que via no eanismo o seu inimigo principal, dissolveu a AR e Cavaco Silva ganhou as eleições com uma estrondosa e inesperada maioria absoluta.

A revolução terminara.

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novembro 24, 2004

Que Fazer?

Tenho recebido alguns apelos para que, em vez de criticar, proponha soluções.

Sobre essa matéria tenho a dizer o seguinte:

Há dois tipos de críticas que tenho feito. Um deles refere-se a decisões de índole geral, política e económica, ou situações pontuais, não estruturais ou estruturantes – nessas críticas estão, explícitas ou implícitas, as minhas opiniões sobre o que se deveria fazer. Vejam-se os meus textos sobre questões orçamentais e decisões macroeconómicas, ou sobre alguns “casos” pontuais - comunicação social, Casa Pia, etc..

Outro refere-se a reformas estruturais. Nesta matéria não tenho soluções precisas a dar. O principal problema é a reforma da função pública, cujo sustento consome quase metade da riqueza produzida pelo país. Mas eu só conheço a função pública das minhas relações com ela e do que leio. Fui durante 3 anos e pouco assistente universitária. Mas a Universidade, embora comungue de alguns vícios similares, é um caso atípico de função pública.

Aliás, a reforma da função pública não pode ser vista como um caso, mas como casos diferentes. A reforma do Ensino Secundário e Básico não pode ser vista da mesma maneira da do Ensino Superior. A reforma da justiça terá que ser vista de forma diversa da reforma do sistema de saúde. A reforma da administração central e local terá que ter outros tratamentos, etc..

Já assisti a uma reestruturação de uma empresa e sei que é uma coisa complexa, que tem que ser feita com muito senso e sabendo motivar o pessoal para os fins em vista. Ora se tal é necessário numa unidade pequena, sem alarme público, como o fazer em universos de muitas dezenas de milhares de trabalhadores? Ainda para mais com forças exógenas, altamente apoiadas na Comunicação Social a meterem paus na roda e a incitarem os trabalhadores a oporem-se, criando fantasmas e aterrorizando-os.

Quanto ao sector privado já tenho escrito por diversas vezes o meu apoio a um mercado mais eficiente (menos regulamentado): A mobilidade laboral incentiva a qualificação e melhora a afectação de recursos. Por isso, e por outras razões, não me parece que este pacote laboral seja suficiente.

Mas, embora favorável ao mercado, defendo que tem que haver redistribuição de recursos de forma a evitar exclusão social. Para isso existem as transferências sociais, o salário mínimo, etc.. Para isso existem o Serviço Nacional de Saúde, o Ensino Público, etc.. Por isso eu defendo que aqueles sistemas devem funcionar bem, porque ao funcionarem mal, prejudicam não apenas o país, mas principalmente as classes economicamente menos favorecidas. Certamente já leram algumas objecções que fiz à futura Lei do Arrendamento Urbano, apesar de eu ser favorável ao fim da regulamentação desse mercado. Essas objecções mostram que eu não sou adepta da desregulamentação completa e que sou sensível a situações que se podem tornar dolorosas para parte do tecido social.

Mas também defendo o princípio da diferença: as desigualdades sociais e económicas devem ser organizadas de forma a trazer aos mais desfavorecidos as melhores perspectivas e a serem compatíveis com o objectivo permanente da igualdade das oportunidades. Este princípio é compatível com um aumento da desigualdade. Pouco importa que o rico se torne muito mais rico se o pobre se tornar menos pobre.

Não é a igualdade que é importante, mas sim a equidade. Equidade na política de educação, segurança social, ordenamento do território, etc., fazendo discriminações positivas. Isto porque penso que o igualitarismo conduz ao desinteresse pelo investimento, pelo empreendedorismo, pelo incentivo à criação de riqueza, o que leva à estagnação económica, que é má para todos.

O capitalismo distribui a riqueza muito desigualmente, mas o socialismo “real”, o que existiu, e ainda existe, na prática, distribui igualitariamente a miséria.

Publicado por Joana às 01:46 PM | Comentários (35) | TrackBack

novembro 23, 2004

O Estranho Caso da RTP

A audição de José Rodrigues dos Santos e Almerindo Marques, ontem, perante a subcomissão parlamentar de Direitos Fundamentais e Comunicação Social, deixou-me confusa.

Ao longo de toda a audição uma interrogação pairou em permanência: porquê este braço de ferro, quando anteriores desacordos sobre colocações se sanaram a contento? Porquê este braço de ferro numa altura em que saíam notícias no Expresso sobre uma alegada avaliação de Rodrigues dos Santos? Porquê este braço de ferro numa altura em que o governo era bombardeado diariamente com críticas sobre a sua relação com a comunicação social? Porquê este braço de ferro entre duas entidades que se elogiaram mutuamente e que garantiram, ambas, nunca ter havido interferência do CA na política informativa? Porquê este braço de ferro sobre uma questão aparentemente menor, embora Rodrigues dos Santos argumentasse que a decisão do CA significava que já não estava no uso pleno dos seus poderes, e que tal era grave? Porquê ter sido este o primeiro concurso em que o júri da parte editorial apresentou os resultados sob a forma de lista seriada?

Em primeiro lugar ambos os auditados gozam de boa reputação. Almerindo Marques é conhecido por ser um homem com uma “integridade à prova de bala”, que não privilegia o amigo e incapaz de despromover o inimigo. É extremamente trabalhador e exigente consigo próprio. Subiu a pulso na vida. Estava no Banco da Agricultura quando, em fins da década de 60, um novo administrador, para escolher um adjunto, convocou diversos quadros da empresa para reuniões onde expunha as suas ideias sobre o futuro do banco. Algumas pecavam, propositadamente, por falta de sensatez. Chegada a sua vez, Almerindo, que ainda não tinha 30 anos, ouve-o perplexo. No fim disse-lhe: "Com esses critérios não fico no banco." Esta resposta corajosa garantiu-lhe o lugar.

Sempre se pautou pela integridade, reconhecida por todos, numa vida profissional ligada à Banca até abandonar a CGD, nas vésperas de eleições de 2002, após denunciar várias operações financeiras pouco transparentes. Esteve sempre, pelo menos até 2002, ligado ao PS.

Sobre José Rodrigues dos Santos não tenho informações, mas sempre me pareceu um sujeito sensato, e a sua actuação como Director de Informação da RTP parece-me que tem sido excelente. Aliás, a RTP ganhou muita credibilidade com a actual equipa, que está lá desde meados de 2002.

Por isso mesmo este caso permanece muito misterioso. Como é possível que por causa do provimento de um lugar de correspondente em Madrid, se tenha chegado a este braço de ferro? A única discrepância, com substância, entre os dois depoimentos refere-se à forma como decorriam os concursos. Concursos que aliás só começaram a haver com esta equipa.

Rodrigues dos Santos deu a entender que sempre houvera uma seriação dos candidatos e que o CA sempre concordara com as propostas da Direcção de Informação. Ou quase sempre. Houve casos que, por razões de representação institucional, o candidato escolhido não teria sido o primeiro.

A CA tem uma tese completamente diferente. Houve 14 preenchimento de vagas para correspondentes, mas só alguns lugares haviam sido providos através dos resultados dos concursos, por diversas razões, mas sempre por acordo entre o CA e a Direcção de Informação. Não havia um regulamento escrito do processo de concurso, que o CA havia pedido há algum tempo à Direcção de Informação, mas cuja minuta esta só lhe entregara para apreciação em Outubro passado.

Por outro lado sempre havia sido o entendimento do CA, entendimento que fora comunicado à Direcção de Informação, que os resultados dos concursos seriam sempre fornecidos em termos de apto e não apto para o lugar. O CA não julgava conveniente, para o ambiente dentro da empresa, porquanto se tratava de um concurso interno, que os resultados das apreciações do júri conduzissem a uma seriação dos candidatos. Em face dos candidatos que a Direcção de Informação considerasse aptos, o CA complementaria a escolha tendo em conta a gestão dos recursos humanos e as características do lugar em termos da representação da empresa e das tarefas administrativas e financeiras. O CA insistiu muito neste ponto. Ainda segundo o CA, o concurso para Madrid foi o primeiro em que a Direcção de Informação apresentara a lista dos resultados do concurso sob a forma de uma classificação ordenada.

Segundo foi dito por Rodrigues dos Santos, em face de não ser possível escolher o 1º classificado (por razões que não expuseram, mas sobre as quais estavam ambos de acordo), ele propôs o segundo. Entretanto o CA havia escolhido a nº 4, pelas razões aduzidas no parágrafo anterior.

Rodrigues dos Santos não abdicou da sua escolha, pois achava que ela dizia unicamente respeito à Direcção de Informação. O CA fazer escolha diversa era invadir a sua esfera de competências. Segundo ele afirmou, no caso do cargo de correspondente da RTP em Madrid, a esfera da administração era apenas a decisão sobre se aquele cargo podia existir ou não, tendo em conta as disponibilidades financeiras. O resto era da exclusiva competência da Direcção de Informação.

Para o CA a esfera de competências da Direcção de Informação acabava com a indicação dos jornalistas que considerava aptos a exercerem o cargo. A partir daí entrava-se na esfera de competência do CA. E o CA não abdicava da sua competência em gerir a empresa.

Portanto ambos concordaram que havia sido um conflito interno de competências. Quando foram inquiridos sobre as notícias que o Expresso publicou sobre uma alegada avaliação que estaria a ser feita a Rodrigues dos Santos, nenhum lhes deu importância para os factos em apreço. Ambos negaram ter havido, directa ou indirectamente, pressões políticas.

Resta acrescentar que o Conselho de Redacção da RTP não partilhou, no seu comunicado, do ponto de vista de Rodrigues dos Santos.

Os próprios deputados da oposição, embora o tivessem tentado, não viram como haviam de dar volta à questão. Almerindo Marques propôs-se explicar as razões porque entendia que não deveria haver seriação. Mas como essa explicação, pelo melindre de envolver referência a nomes de jornalistas da RTP, deveria ser feita à porta fechada, perguntou-se aos deputados se alguém requeria à mesa o prosseguimento da audição à porta fechada. Ninguém requereu.

A oposição tentou construir um cenário em que a escolha do CA seria uma tentativa para colocar Rodrigues dos Santos numa posição tal que seria forçado a pedir a demissão. Todavia este cenário não teve sustentabilidade. Em primeiro lugar a carreira de Almerindo Marques é incompatível com este tipo de jogos. Em segundo lugar, as razões aduzidas pelo CA para que o júri decidisse apenas sobre a aptidão dos jornalistas para exercerem a função parecem sólidas e consistentes. Quando Rodrigues dos Santos afirmou que "Se não consigo escolher as pessoas que acho adequadas para determinada função não posso ter responsabilidades sobre esses conteúdos", está a omitir que se considerou a nº 4 como apta, assume implicitamente que «pode ter responsabilidades sobre os seus conteúdos». Se não pudesse, tinha-a considerado não apta.

Aliás este cenário foi-se esvaziando no decorrer das audições. A alocução final de Alberto Martins do PS é a constatação da impotência para se chegar a uma base mínima que sustentasse aquele cenário. «Ambas as versões são consistentes e sólidas, embora contraditórias na questão de Madrid» reconheceu.

Por parte da coligação, Narana Coissoró tentou fazer passar a ideia que este braço de ferro por questão menor estaria integrado numa estratégia destinada a prejudicar a imagem do governo. De facto quem tomou as iniciativas quanto à ruptura foi sempre Rodrigues dos Santos: forneceu, pela primeira vez, uma lista seriada; considerou, pela 1ª vez, que as razões editoriais seriam as únicas que deveriam ser tomadas em conta; apresentou a demissão porque a sua opinião não prevaleceu; insistiu no seu pedido de demissão depois de lhe pedirem para reconsiderar.

Todavia este cenário parece-me demasiado «maquiavélico». Porque entraria Rodrigues dos Santos em choque com o CA? Que ganharia com isso? Pelos vistos foi um confronto pessoal, embora parte da Direcção de Informação se tivesse depois demitido por razões de solidariedade. Todavia o Conselho de Redacção da RTP não validou aquelas posições dos colegas e alinhou pelas teses da administração.

Na vida de uma empresa surgem frequentemente atritos que, por vezes, se vão avolumando com o tempo e levam a uma confrontação por razões menores. Rodrigues dos Santos pareceu-me um sujeito com uma forte auto-estima e muito cioso das suas opiniões. Sabe-se, pelos casos que se contam da sua vida, que Almerindo Marques é “à prova de bala”. São pois duas personalidades muito fortes. Terá sido isso? Mas porquê exactamente agora, com o governo sob o fogo da comunicação social? Será que Rodrigues dos Santos quis bater com a porta na altura em que esse bater fosse mais fragoroso por razões externas? A exemplo do que aconteceu com MRS?

Julgo que, quer no caso de Rodrigues dos Santos, como no anterior caso de Marcelo Rebelo de Sousa, só saberemos a verdade (se alguma vez a chegarmos a saber), pelos percursos futuros destes personagens. Até lá, estamos presos na caverna de Platão: só vemos as imagens reflectidas e filtradas.

Publicado por Joana às 03:01 PM | Comentários (16) | TrackBack

novembro 22, 2004

Cassandra ao Retrovisor

Mário Soares na sua alocução, quinta-feira à noite, no Porto, não fez apenas diagnósticos. Fez também profecias. Profetizou a possível ocorrências de «revoltas descontroladas ou rupturas que podem levar a aventuras, como aconteceu no fim da I República, dando lugar a uma ditadura obscurantista ... A integração na União Europeia defende-nos de aventuras militares, mas só uma consciência cívica nacional evitará outros perigos».

Há algo de similar entre as profecias de Mário Soares e as de Cassandra, embora seja uma similitude às avessas. Mário Soares é uma Cassandra vista pelo retrovisor.

Cassandra, filha de Príamo, Rei de Tróia, foi dotada com o dom da profecia. Todavia «meteu na gaveta» as promessas que, em troca desse dom, havia feito a Apolo. A punição divina foi pesada: Cassandra continuaria a prever o futuro mas sem poder convencer ninguém da veracidade das suas afirmações. Todo o drama de Tróia aparece pontuado pelas profecias desacreditadas de Cassandra: em vão avisou os troianos da desgraça que se abateria sobre a cidade. Avisou-os que Páris, seu irmão, deveria ser eliminado, pois se vivesse seria a causa da ruína da cidade; avisou-os que a viagem de Páris a Esparta traria desgraças (e ... ele trouxe Helena, raptada); avisou-os que se Helena não fosse devolvida, Tróia seria destruída; avisou-os que o cavalo de madeira deixado pelos Gregos às portas da cidade, como presente, não deveria ser trazido para dentro da cidade ... e ninguém, alguma vez, acreditou em quaisquer das suas profecias!

Na repartição do espólio da Guerra de Tróia, ela foi dada, como cativa, a Agamemnon, o rei de Micenas, para ser sua concubina. Em vão, numa derradeira e inútil profecia, Cassandra anunciou o que o futuro reservaria ao rei e a ela própria, se regressassem a Micenas: a morte às mãos de Clitemnestra, a rainha, e de Egisto, que havia substituído Agamemnon no tálamo real, durante aqueles 10 longos anos de ausência.

Mário Soares anda há anos a fazer profecias completamente inverosímeis, mas que são reverenciadas pelos meios de comunicação e políticos em exercício ou no desemprego. A maldição lançada pelo determinismo histórico, por Soares ter «metido o socialismo na gaveta», foi inversa à da punição divina sobre Cassandra: Soares debitaria profecias cada vez mais insensatas e, em contrapartida, os seus auditórios evidenciariam a mais cândida credulidade.

A inversão da imagem é visível no facto dos troianos deste outro extremo da Europa alegarem que, em vez de os avisar, foi ele próprio quem introduziu o cavalo de pau Frank Carlucci dentro das muralhas da cidade. Alegarem que depois da derrota, enquanto Cassandra foi violada por Ajax e levada cativa por Agamemnon, Soares violou as promessas que havia feito, liquidou politicamente o vencedor Eanes e cativou inexplicavelmente o cargo de PR. Alegarem que, enquanto Cassandra permaneceu sempre fielmente troiana, com Mário Soares nunca se sabe se ele está a ser grego, troiano, ou nem uma coisa, nem outra.

Cassandra, ao profetizar, tornou-se sempre uma das primeiras vítimas da recusa em acreditarem nas suas profecias. Mário Soares, ao profetizar, apenas vitimiza os crédulos que seguem as suas profecias.

Publicado por Joana às 12:02 AM | Comentários (9) | TrackBack

novembro 21, 2004

Mário Soares diagnostica-se

Ao ler as declarações proferidas por Mário Soares, quinta-feira à noite, no Porto, fiquei empolgada. Senti-me transportada às leituras dos manifestos e proclamações que lançaram o PRD na arena política. Certamente, naquela noite sublime, flutuaria um halo sobre a cabeça do «Patriarca da Democracia», o mesmo halo que terá refulgido sobre o penteado de Manuela Eanes, então transfigurada em Nossa Senhora de Fátima, que se aprestava a salvar o país da desgraça em que se encontrava, e a repô-lo sob a sua divina protecção. O diagnóstico que Soares fez do país é um perfeito remake do diagnóstico que os promotores do PRD e o casal Eanes fizeram do mesmo país há 2 décadas.

Apenas uma ligeira diferença formal, sem substância. Em 1985 Portugal encontrava-se, conforme aquele diagnóstico (um deles, pois qualquer serve), numa «situação bem difícil, sem estratégia para o futuro, desorientado, perdido no seu labirinto político», onde «os abusos, as injustiças e as corrupções» campeavam e onde havia o «polvo da corrupção que alastrava os seus tentáculos no Estado, na sociedade, nos partidos e nas autarquias». Todavia quem então fazia aquele diagnóstico considerava o próprio Mário Soares, e a camarilha que o rodeava, como os autores materiais e morais daquela situação calamitosa. Mário Soares e os seus acólitos eram considerados a prova «que o sistema estava a seleccionar, para baixo e para o mal, os políticos» e que só se viam então «figuras menores».

Os eleitores aceitaram aquele diagnóstico e as eleições de 1985 foram um completo descalabro para o PS. Se eles aceitaram maioritariamente aquele diagnóstico em 1985, é porque ele teria substância. Portanto todos «os abusos, as injustiças e corrupções», de que fala agora Soares, deveriam ainda ser mais revoltantes nessa época, dada a reacção dos eleitores. Reacção que validou não apenas aquele diagnóstico, como constituiu um veredicto de culpa, para Mário Soares e os líderes do PS da altura, no julgamento que os eleitores fizeram sobre os responsáveis do estado em que o país estava.

Portanto Mário Soares não disse nada de novo no seu diagnóstico. Limitou-se a repetir o que outros haviam dito sobre o estado do país em 1985. Só omitiu uma coisa: É que ele havia sido declarado o principal responsável por essa situação, situação que ainda se manteria, segundo as suas palavras. Quem reflectir sobre as palavras de Mário Soares terá que concluir que ele lançou um terrível libelo acusatório ... sobre si mesmo. Só que inflamado pela sua prolixa eloquência se esqueceu que o arguido ali, era ele. Mas isso é normal – os políticos têm a memória curta, fenómeno que se vai agravando com a senectude.

Todavia há algo de abonatório que se deve dizer, duas décadas volvidas. Mário Soares lembrou que "as televisões dão a conhecer escândalos impensáveis e depois não acontece nada". Em 1985 a televisão pública não dava a conhecer nada. Em 2004, mesmo que não aconteça nada, pelo menos ficamos a «conhecer escândalos impensáveis». Já é alguma coisa, pelo menos muito mais que há duas décadas. Mário Soares fala horrorizado do caso Casa Pia. Mas o caso Casa Pia já existia na época. Apenas não era um «caso», porque não havia então condições para vir a lume.

Mário Soares revolta-se por o país ser "uma espécie de telenovelas de desgraças. E a justiça mostra-se incapaz de agir. As polícias sabem muita coisa mas só actuam por critérios pouco claros". Mário Soares confunde os sintomas com a doença. A doença já existia então, provavelmente mais grave, mas os sintomas permaneciam ocultos, por falta de meios de diagnóstico: canais televisivos privados, banalização da informação (TV cabo, Internet, blogs, etc.), etc.. Mário Soares afirma, cheio de virtudes democráticas, que o caso Marcelo nunca ocorreria no seu tempo. Tem toda a razão. Nunca ocorreria porque nunca chegaria ao domínio público. MRS seria despedido ... mas não haveria «caso Marcelo». E a hipocrisia destas afirmações é certificada pelo facto de elas provirem de quem, quando PR, se travou de razões com o J E Moniz, na altura director da RTP, e que mandou Alfredo Barroso repreender o director de um canal TV por este ter o desplante de responder ao PR. Quando foi PM, com tutela sobre os meios de comunicação, na maioria estatais, sabe-se lá o que terá acontecido.

A lógica obriga pois que se conclua da alocução de Soares que, em 2004, o país está mal, talvez não tanto como em 1985, e que um dos principais responsáveis é precisamente Mário Soares, já então seleccionado «para baixo e para o mal» como «figura menor».

O que é revoltante neste diagnóstico é que ele enfatiza, com cores sombrias, o que a população conhece agora devido à banalização da informação. Mas quando Mário Soares foi 1º ministro, ele estaria certamente informado (quando não implicado) de muitos dos podres e corrupções então existentes, e no mínimo tão graves como os actuais, cujo conhecimento era vedado à população por falta de transparência da comunicação social. Para Soares, os problemas só adquirem gravidade quando vêm a lume. Enquanto estão no domínio restrito das chefias políticas (a que ele pertence) ... são irrelevantes.

Por isso, quando apela à «honradez republicana», e sabendo-se do nepotismo e corrupção existentes durante as suas governações, sabendo-se, quando já PR, do caso de Macau, tal invocação não é para ser levada a sério. São frases sem conteúdo para uma plateia ansiosa por ouvi-las, independente de terem ou não substância.

Uma das afirmações de MS pode causar estranheza. «É preciso restituir a voz aos cidadãos, se quisermos evitar ... rupturas». Sabe-se que em Portugal há regularmente eleições, de acordo com os prazos e preceitos constitucionais e para as diversas instâncias do poder. É assim que funciona a democracia representativa de que Mário Soares foi um dos principais promotores, e acérrimo defensor, antes e na sequência do 25 de Abril. Esta afirmação só será compreensível se significar que Mário Soares deixou de acreditar naquilo porque lutou durante décadas, e que se tornou um adepto da democracia participativa.

Ainda o veremos a correr pelas ruas, empunhando cartazes anti-globalização, a apedrejar montras e a incendiar automóveis.


Nota-Ler a continuação em:
Cassandra ao Retrovisor

Publicado por Joana às 10:18 PM | Comentários (26) | TrackBack

Voltaire e Micrómegas

Voltaire (François-Marie Arouet) nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694, há 310 anos precisamente. Estudou num colégio de jesuítas pretendendo seguir a magistratura. Entretanto publicou seus primeiros versos e escritos. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado na Bastilha, de onde saiu seis meses depois. Foi por essa ocasião que ele resolveu adoptar o nome de Voltaire e se começou a tornar conhecido pela sua actividade literária.

Em 1726, em consequência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente preso na Bastilha, de onde só pôde sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Datam da mesma época as suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se na Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até à morte desta, em 1749.

Em 1749, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, indo para Berlim no ano seguinte. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade não durou muito: eram duas personalidades muito fortes e as intrigas e invejas mútuas obrigaram Voltaire a deixar Berlim em 1753.

A partir de 1758, adquiriu o domínio de Ferney e aí passou a residir em companhia da sobrinha. Em 1778, efectuou uma viagem a Paris, onde foi entusiasticamente recebido. Era “Le Roi Voltaire”. Morreu no dia 30 de março desse ano, aos 84 anos de idade.

A sua divisa Ridendo Castigat Mores «rindo (satirizando), corrige-se os costumes», é uma das minhas preferidas.


Micrómegas, que transcrevo a seguir, foi escrito por influência de As aventuras de Gulliver, de Swift, que Voltaire lera em Londres, da Pluralidade dos mundos, de Fontenelle e da mecânica de Newton. O resultado é uma obra com humor e ironia, mas que obriga à meditação sobre o homem, as suas crenças, costumes e instituições.

MICRÓMEGAS - HISTÓRIA FILOSÓFICA
por Voltaire

CAPÍTULO I
Viagem de um habitante da estrela Sírio ao planeta Saturno

Num dos planetas que giram em volta da estrela Sírio havia um rapaz de muito espírito que tive a honra de conhecer na última viagem que fez ao nosso minúsculo formigueiro.

Chamava-se Micrómegas, nome que se adapta muito bem a todos os grandes. Tinha oito léguas de altura; calculo estas oito léguas em vinte e quatro mil passos geométricos, de cinco pés cada um.

Alguns matemáticos, categoria de pessoas sempre úteis ao público, de caneta em punho, calcularão que, tendo o senhor Micrómegas, habitante da estrela Sírio, desde a cabeça aos pés vinte e quatro mil passos, o que corresponde a cento e vinte mil pés e que nós, cidadãos da Terra, não vamos além de cinco pés e que esta mesma tem apenas nove mil léguas de circunferência, calcularão, repito, que é absolutamente necessário que o mundo que o produziu tenha, precisamente, vinte e um milhões e seiscentas mil vezes a circunferência da nossa pequena Terra.

Nada é mais simples e mais banal na natureza. Os estados de alguns soberanos da Alemanha ou da Itália, que levam uma escassa meia hora a percorrer, comparados com o império da Turquia, da Moscóvia ou da China, são, apenas, uma pálida imagem das diferenças prodigiosas que a natureza estabeleceu para todos os seres.

Sendo a estatura de Sua Excelência da altura que mencionei, todos os nossos escultores e pintores concordarão, sem dificuldade, que a cintura pode ter cinquenta mil pés: isto dá-lhe uma bela proporção.

O seu espírito é um dos mais cultos que temos. Sabe muitas coisas e inventou outras: ainda não tinha duzentos e cinquenta anos e estudava, segundo o costume, no colégio dos jesuítas da sua estrela, quando resolveu, com o auxílio da sua inteligência, mais de cinquenta teoremas de Euclides.

Isto é, mais dezoito do que Blaise Pascal que, depois de ter resolvido trinta e dois, brincando, como diz sua irmã, se tornou um medíocre geómetra e um péssimo metafísico.

Ao sair da infância, cerca dos quatrocentos e cinquenta anos, dissecou insectos tão pequenos que não chegam a alcançar cem pés de diâmetro e que fogem ao campo visual dos microscópios vulgares. Compôs sobre o assunto um livro muito curioso mas que lhe trouxe algumas complicações.

O mufti do seu país, grande coca-bichinhos e bastante ignorante, encontrou no livro proposições suspeitas, malsoantes, temerárias, heréticas, tresandando a heresia e perseguiu-o activamente: procurava saber se a substância das pulgas era igual à dos caracóis.

Micrómegas defendeu-se com brilho; arrastou as mulheres para a sua causa. O processo durou duzentos e vinte anos. Por fim, o mufti conseguiu que o livro fosse condenado por juizes que nunca o leram e o autor foi proibido de frequentar a corte durante oitocentos anos.

Afligiu-se muito pouco por ter sido banido de uma corte cheia de intrigas e frivolidades. Compôs uma canção muito graciosa contra o mufti, com que este nada se incomodou; e pôs-se a viajar de planeta para planeta, para acabar de formar o espírito e o coração, como se costuma dizer.

Os que apenas viajam em diligência ou em berlinda ficarão admirados, sem dúvida, com as carruagens lá de cima, porque nós, neste pequeno grão de areia, nada admitimos fora dos nossos costumes.

O nosso viajante conhecia, maravilhosamente, as leis da gravidade e todas as forças atractivas e repulsivas. Servia-se delas tão a propósito que, umas vezes com a ajuda de um raio de sol, outras utilizando um cometa, saltava de globo em globo, ele e os seus, tal como um pássaro saltita de ramo em ramo.
Percorreu a Via Láctea em pouco tempo e sou obrigado a confessar que nunca viu, através das estrelas que a compõem, esse maravilhoso céu empíreo que o vigário Derham se gaba de ter observado com a sua luneta. Não é que eu queira afirmar que o senhor Derham tenha visto mal. Deus me livre! Mas Micrómegas passou por lá e é um bom observador... E eu não quero contradizer ninguém.

Micrómegas, depois de muitas voltas, chegou ao planeta Saturno. Por mais acostumado que estivesse a ver coisas novas não pôde, a princípio, evitar, em face da pequenez do globo e dos seus habitantes, aquele sorriso de superioridade que escapa, por vezes, aos mais comedidos. Porque, enfim, Saturno é apenas novecentas vezes maior do que a Terra e os seus habitantes anões de cerca de mil toesas de altura.

Divertiu-se um pouco, de princípio, com esta gente, tal como um músico italiano se riu da música de Lulli, quando veio a França. Mas porque era muito inteligente depressa compreendeu que um ser pensante pode não ser ridículo por possuir, apenas, seis mil pés de altura. Familiarizou-se com os saturnianos depois de os ter espantado. Ligou-o estreita amizade com o secretário da Academia de Saturno, homem talentoso, que, na verdade, nunca inventou nada mas compreendia as invenções dos outros, fazia versozinhos sofríveis e grandes cálculos.

Vou contar agora, para satisfação dos leitores, uma conversa curiosa que Micrómegas teve, um dia, com o senhor secretário.

CAPÍTULO II
Conversação entre o habitante de Sírio e o de Saturno

Depois que Sua Excelência se foi deitar e que o secretário se aproximou, Micrómegas disse: - É preciso confessar que a Natureza é muito variada.
- Sim, respondeu o saturniano, a Natureza é como um jardim cujas flores...
- Oh!, exclama o outro, deixe lá o jardim.
- Ela é, torna o secretário, semelhante a um conjunto de loiras e morenas, cujos adornos...
- Que me interessam as vossas morenas?
- Então é como uma galeria de pintura cujos traços...
- Oh! não, diz o viajante. A Natureza é como a Natureza. Para que buscar comparações?
- Para vos divertir, responde o secretário.
- Eu não quero que me divirtam, volve Micrómegas, quero que me instruam. Comece, pois, por me dizer quantos sentidos têm os homens do vosso globo.
- Temos setenta e dois, diz o académico, e lamentamo-nos sempre por termos tão poucos! A nossa imaginação supera as necessidades. Achamos que, com os setenta e dois sentidos, o anel e as cinco luas, somos muito limitados e, apesar de toda a nossa curiosidade e do número excessivamente grande de paixões que resultam desses setenta e dois sentidos, temos muito tempo para nos aborrecer.
Acredito, diz Micrómegas, porque, no nosso globo, temos perto de mil sentidos e ainda nos fica um vago desejo, uma inquietação que nos faz pressentir, continuamente, quão pequenos somos e que há seres muito mais perfeitos. Tenho viajado um pouco, tenho visto seres muito inferiores mas também muitos superiores, nunca encontrei, porém, nenhuns que não tenham mais desejos do que verdadeiras necessidades e mais necessidades do que satisfação. Talvez um dia atinja o país onde nada falte mas, até agora, ninguém me deu notícias positivas acerca dele.
O saturniano e o siriano cansaram-se de conjecturas; mas, após variados raciocínios muito engenhosos e incertos, foi preciso voltar aos factos.
- Qual a duração da vossa vida? perguntou o siriano.
- Muito pequena, replica o pequeno Saturniano.
- É como nós, volve o siriano; lamentamos sempre ser tão curta. É necessário que obedeça a uma lei universal da Natureza.
- Valha-me Deus! desabafa o saturniano; não vivemos mais do que quinhentas grandes revoluções do sol (isto equivale a cerca de quinze mil anos, contados à nossa maneira). Bem vê que é morrer quase a nascença; a nossa existência é um ponto; a nossa duração um instante, o nosso globo um átomo. Mal nos começamos a instruir um pouco chega a morte, antes que tenhamos experiência! Quanto a mim não ouso fazer projectos; sou como uma gota de água num oceano imenso. Sinto-me envergonhado, sobretudo perante vós, da figura ridícula que faço no mundo.
Micrómegas torna a dizer: - Se não fôsseis filósofo temeria afligir-vos, dizendo que a nossa vida é setecentas vezes mais longa do que a vossa. Mas sabeis muito bem que, quando é necessário entregar o corpo aos elementos e fazer viver a Natureza, sob uma outra forma, que se chama morrer, quando este momento de metamorfose chega, é precisamente a mesma coisa o ter vivido uma eternidade ou um dia. Visitei países onde se vive mil vezes mais tempo do que no meu e notei que também se protestava. Mas há por toda a parte pessoas de bom-senso que sabem conformar-se e louvar o autor da Natureza, que espalhou no Universo uma profusão de variedades, com uma espécie de uniformidade admirável.
Por exemplo, todos o seres pensantes são diferentes e todos se parecem, no fundo, pelo dom do pensamento e dos desejos. A matéria é, por toda a parte, extensa mas tem, em cada globo, propriedades diversas. Quantas destas propriedades diversas apresenta a vossa matéria?
- Se vos referis aquelas propriedades, diz o saturniano, sem as quais supomos que este globo não poderia subsistir tal como é, podem indicar-se trezentas, como extensão, impenetrabilidade, mobilidade, gravitação, divisibilidade e o resto.
- Aparentemente, replica o viajante, este pequeno número está de acordo com a visão que o Criador teve do vosso pequeno mundo. Admiro-o em toda a sua sabedoria; vejo diferenças por toda a parte mas, igualmente, a proporção.
O globo é pequeno e os habitantes são-no também. Tendes poucas sensações; a matéria tem poucas propriedades; tudo isto é obra da Providência. De que cor é o vosso Sol?
- De um branco muito amarelado, diz o saturniano e, quando examinamos, separadamente, um dos raios, achamos que tem sete cores.
- O nosso Sol tende para vermelho, acrescenta o siriano e temos trinta e nove cores primitivas. Não há um Sol, de entre todos os que tenho visto de perto, que se assemelhe, como entre vós não há uma cara que não seja diferente de todas as outras.
Depois de várias perguntas desta natureza informou-se sobre a quantidade de substâncias essencialmente diferentes que Saturno continha. Esclareceram-no de que existiam aproximadamente umas trinta, tais como Deus, espaço, matéria, seres extensos que sentem, seres extensos que sentem e pensam, seres pensantes que não têm extensão, os que se penetram, os que não se penetram e o resto.
O siriano, em cuja terra se contavam trezentos e que tinha descoberto outros três mil nas suas viagens, espantou prodigiosamente, o filósofo de Saturno.
Enfim, depois de terem comunicado um ao outro um pouco do que sabiam e muito do que não sabiam, depois de terem discorrido durante uma revolução do Sol, resolveram fazer os dois uma pequena viagem filosófica.

CAPÍTULO III
Viagem dos dois habitantes de Sírio e de Saturno

Estavam os nossos dois filósofos quase a embarcar na atmosfera de Saturno, com uma belíssima provisão de instrumentos matemáticos, quando a amada do saturniano, sabendo a novidade vem, desfeita em lágrimas, recriminá-lo. Era uma bonita moreninha que não tinha mais do que seiscentas e sessenta toesas mas que compensava a pequenez do tamanho com muitos adornos.
- Ah! cruel! gritava ela, depois de ter resistido durante mil e quinhentos anos, agora, que começava enfim a render-me, que passei apenas cem anos nos teus braços, deixas-me para ir viajar com um gigante de outro mundo. Vai, não és mais do que um curioso; nunca sentiste amor: se fosses um verdadeiro saturniano serias fiel! Onde vais? Que buscas? As nossas cinco luas são menos errantes do que tu, o nosso anel menos inconstante. Nunca mais amarei ninguém!
O filósofo abraçou-a e chorou com ela, como filósofo que era; e a senhora, depois de ter desmaiado, foi consolar-se com um peralvilho do país.
Entretanto os dois curiosos partiram; primeiro saltaram para o anel, que acharam muito espalmado, como muito acertadamente o supôs um ilustre habitante da nossa Terrinha; de lá foram, de lua em lua. Um cometa passou muito perto da última; lançaram-se sobre ele com os criados e os instrumentos. Quando tinham percorrido cerca de cento e cinquenta milhões de léguas encontraram os satélites de Júpiter.
Passaram pelo próprio Júpiter, onde ficaram um ano, durante o qual aprenderam belíssimos segredos, que estariam actualmente publicados se os senhores inquisidores não tivessem encontrado algumas proposições um pouco violentas. Mas eu li o manuscrito na biblioteca do ilustre arcebispo de... que me deixou ver os seus livros, com uma generosidade e bondade que não saberei, devidamente, louvar.
Mas voltemos aos nossos viajantes.
Tendo saído de Júpiter atravessaram um espaço de cerca de cem milhões de léguas e costearam o planeta Marte o qual como se sabe, é cinco vezes mais pequeno do que o nosso globo. Viram as duas luas que servem este planeta e que escaparam aos olhos dos nossos astrónomos.
Sei bem o que o padre Castel escreverá, muito ridiculamente, contra a existência destas duas luas mas dirijo-me aos que raciocinam por analogia.
Estes bons filósofos sabem como seria difícil para Marte, tão longe do Sol, viver com menos de duas luas.
De qualquer forma os nossos personagens acharam-no tão pequeno que recearam não encontrar lugar para dormir e seguiram o seu caminho, como dois viajantes que desdenharam uma péssima estalagem de aldeia e avançam até a cidade vizinha.
Mas o siriano e o seu companheiro cedo se arrependeram, pois andaram muito tempo e nada encontraram.
Avistaram, finalmente, um pequeno clarão: era a Terra.
Causou-lhes impressão. No entanto, com receio de se arrependerem segunda vez, resolveram desembarcar. Passaram para a cauda do cometa e, encontrando uma aurora boreal muito perto, instalaram-se nela e chegaram à Terra, na margem setentrional do Mar Báltico, a cinco de Julho de mil setecentos e trinta e sete, segundo o novo calendário.

CAPÍTULO IV
O que lhes aconteceu no globo terrestre

Depois de repousarem algum tempo, comeram ao almoço duas montanhas, muito bem preparadas pelos seus criados.
De seguida dispuseram-se a conhecer a região onde se encontravam. Foram, primeiro, de Norte a Sul.
Os passos normais do siriano e da sua gente, eram de cerca de trinta mil pés; o anão de Saturno seguia-o, de longe, ofegante; era-lhe necessário dar cerca de doze passos enquanto o outro dava uma passada: imaginai (se é permitido fazer tais comparações) um cãozinho de luxo, que seguisse um capitão da guarda do rei da Prússia.
Como iam muito depressa, deram a volta à Terra em trinta e seis horas; o Sol, na verdade, ou melhor, a Terra, faz a mesma viagem num dia. Mas é preciso notar que é mais fácil girar num eixo, do que caminhar a pé.
Ei-los, portanto, regressando ao ponto de partida depois de terem visto aquele mar chamado Mediterrâneo, quase imperceptível para eles, e aquele pequeno lago que, sob o nome de Grande Oceano, rodeia o montinho da Terra.
O anão molhou-se até metade da perna e o gigante apenas o calcanhar.
Fizeram o que lhes apeteceu, indo e vindo de baixo para cima, tentando descobrir se a Terra era ou não habitada.
Baixaram-se, deitaram-se, tactearam por toda a parte, mas, não tendo os olhos e as mãos proporcionados aos seres que rastejam por aqui, não receberam a menor sensação que pudesse fazer supor que nós e os nossos semelhantes, habitantes deste globo, temos a honra de existir.
O anão, por vezes precipitado nos juízos que formulava, decidiu, a princípio, que a Terra não era habitada, pelo facto de não ter visto ninguém.
Micrómegas, delicadamente, fez-lhe sentir que estava a raciocinar mal. Disse-lhe:
- Porque não vês, com os teus pequenos olhos, algumas estrelas de quinquagésima grandeza que eu distingo perfeitamente, concluis que não existem?
- Mas - respondeu o anão - apalpei bem.
- Porém - volveu o gigante - sentiste mal.
Insiste o anão. Esta terra é mal construída, irregular e de uma forma que se me afigura ridícula; parece que aqui reina o caos. Olha esses pequenos riachos; nenhum corre direito; e esses lagos que não são nem redondos, nem quadrados, nem ovais, nem de nenhuma forma regular; estes grãos pontiagudos de que toda a Terra está eriçada e que me dilaceram os pés (queria falar das montanhas).
Olha ainda a sua forma, como é achatada nos pólos, como gira desastradamente em volta do Sol, de maneira que o clima nos pólos é, necessariamente agreste.
Na verdade, o que me faz pensar que não existe vida, é a convicção de que ninguém de bom-senso aqui quereria viver.
- Pois bem, diz Micrómegas - não será, possivelmente, habitado por pessoas de bom-senso. No entanto, não parece que fosse criado sem qualquer fim. Tudo aqui se vos afigura irregular, porque em Saturno e Júpiter tudo é traçado à régua. É talvez também, por este motivo, que há um pouco de confusão. Não te contei já que nas minhas viagens sempre notei variedade?
O Saturniano retorquia a todas estas razões e a disputa eternizar-se-ia se, por felicidade, Micrómegas encolerizando-se, não tivesse partido o fio do colar de diamantes. Estes caíram. Eram lindos diamantezinhos, desiguais, pesando o maior quatrocentas libras e os mais pequenos cinquenta.
O anão apanhou alguns; apercebeu-se de que, da maneira como estavam talhados, constituíam excelentes microscópios.
Pegou então num de seiscentos e sessenta pés de diâmetro e aplicou-o à sua pupila; Micrómegas escolheu outro de dois mil e quinhentos pés. Eram óptimos, mas à primeira tentativa nada viram porque não estavam adaptados.
Por fim, o habitante de Saturno lobrigou qualquer coisa quase imperceptível que se movia no mar Báltico: era uma baleia.
Agilmente apanhou-a com o dedo mínimo e pondo-a sobre a unha do polegar mostrou-a ao Siriano que se pós a rir pela segunda vez, da pequenez excessiva dos habitantes do nosso planeta.
O Saturniano, convencido agora de que este mundo era habitado, concluiu imediatamente que o era, apenas, por baleias e, como era muito raciocinador, quis descobrir como se movimentava um átomo tão pequeno, se tinha ideias, vontade, liberdade.
Micrómegas ficou fortemente embaraçado; examinou pacientemente o animal e concluiu que era impossível que existisse nele alma.
Os dois viajantes inclinaram-se a pensar que não havia espíritos no nosso mundo, quando, com a ajuda do microscópio, perceberam qualquer coisa maior do que a baleia que flutuava no mesmo mar.
Sabe-se que, precisamente nessa data, um grupo de filósofos voltava do círculo polar, onde tinha feito observações, inteiramente desconhecidas até à data.
Os jornais disseram que o barco naufragou nas costas de Bótnia, e que eles, dificilmente, se conseguiram salvar, mas a verdade, neste mundo raramente se conhece bem.
Vou contar, com toda a simplicidade, como as coisas se passaram sem acrescentar nada por minha conta.
O que não representa pequeno esforço para um historiador.

CAPÍTULO V
Experiências e raciocínios dos dois viajantes

Micrómegas estendeu docemente a mão em direcção ao objecto e, avançando dois dedos retirou-os, com receio de se enganar, depois, abrindo-os e fechando-os, agarrou rapidamente o barco que trazia aqueles senhores, pô-lo na unha, sem o apertar, com receio de o esmagar.
- Eis um animal bem diferente do primeiro, diz o anão de Saturno. O siriano colocou o pretenso animal na cavidade da mão. Os passageiros e a tripulação que se julgaram arrebatados por um tufão e pensaram ter arribado a um rochedo, puseram-se todos em movimento. Os marinheiros arrastaram tonéis de vinho, lançaram-nos na mão de Micrómegas e precipitaram-se atrás deles. Os geómetras agarraram os quadrantes, os sectores e raparigas da Lapónia e desceram para os dedos do Siriano.
Tanto fizeram que este sentiu, por fim, algo que lhe fazia cócegas nos dedos: era um pau ferrado que lhe enterravam no índex e julgou, por causa desta picadela, que alguma coisa saíra do animalzinho que segurava; mas não se preocupou. O microscópio que apenas permitia distinguir uma baleia e um barco não tinha capacidade para tornar perceptíveis os homens.
Não pretendo chocar, aqui, a vaidade de ninguém, mas sou obrigado a pedir às pessoas importantes que façam comigo um pequeno reparo: atingindo a estatura dos homens cerca de cinco pés não fazemos, na Terra, muito melhor figura do que faria, sobre uma bola de dez pés de circunferência, um animal que medisse apenas, aproximadamente, uma seiscentésima milésima parte de uma polegada.
Imaginai um ser que pudesse segurar na mão a Terra e que tivesse os órgãos na proporção dos nossos; pode muito bem acontecer que haja grande número dessas substâncias; ora, concebei, peço-vos, o que pensariam elas desses combates que nos renderam duas aldeias que tivemos de entregar depois.
Não duvido de que, se esta obra um dia for lida por algum capitão de granadeiros, este ordene que os bonés dos seus soldados passem a ter, pelo menos, mais dois pés de altura. Mas advirto-o de que, faça o que fizer, tanto ele como os seus nunca passarão de infinitamente pequenos.
Que maravilhosa habilidade não foi necessária ao nosso filósofo de Sírio para distinguir os átomos de que acabo de falar!
Quando Leuwenhoek e Hartsoeker conseguiram ou julgaram ter conseguido ver as pequenas partículas de que somos formados, não fizeram, nem de longe, uma tão surpreendente descoberta. Que prazer sentiu Micrómegas, vendo mexer estas pequenas máquinas, observando as voltas que davam, seguindo-as em todas as evoluções. Como ele rejubilava! Com que alegria pôs um microscópio nas mãos do companheiro de viagem!
- Vejo-os, diziam ao mesmo tempo; não os vedes carregando fardos, baixando-se, levantando-se?
E falando deste modo, tremiam-lhes as mãos, pelo prazer de descobrir coisas ignoradas e com receio de as perder.
O saturniano, passando do excesso de desconfiança ao da credulidade julgou perceber que eles se entregavam a um trabalho de procriação.
- Ah!, disse, surpreendi a Natureza em flagrante; mas enganara-se com as aparências: o que acontece com frequência, quer nos sirvamos de microscópio ou não.

CAPÍTULO VI
O que lhes aconteceu com os Homens

Micrómegas, muito melhor observador do que o anão, viu claramente que os átomos falavam, e fê-lo notar ao seu companheiro que, envergonhado por se ter iludido na questão da procriação, não quis acreditar que semelhantes espécies pudessem trocar ideias.
Tinha o dom das línguas, assim como o siriano, não ouvia falar os átomos e supunha que o não fizessem. De resto, como poderiam estes seres imperceptíveis ter órgãos para a voz e o que teriam para dizer? Para falar é preciso pensar ou quase; mas se eles pensassem teriam que possuir o equivalente a uma alma. Ora, atribuir o equivalente a uma alma a esta espécie parecia-lhe absurdo.
- Mas, disse o siriano - há pouco julgaste que eles estavam a praticar o amor; podes crer que se possa praticar o amor sem pensar e sem proferir qualquer palavra, ou, pelo menos, sem se fazer compreender? Julgas que é mais difícil produzir um argumento do que um filho? Para mim um e outro me parecem grandes mistérios.
- Não ouso acreditar nem negar - replicou o anão - não tenho opinião. É preciso examinar estes insectos, depois raciocinaremos.
- Muito bem - concordou Micrómegas e imediatamente puxou de meia tesoura, com que cortava as unhas, e com uma apara da unha do polegar fez uma espécie de porta-voz, semelhante a enorme funil, cujo tubo meteu na orelha.
A circunferência do funil envolvia o barco e toda a tripulação.
A mais fraca voz entrava nas fibras circulares da unha; de maneira que, graças à sua habilidade, o filósofo, lá do alto, ouvia perfeitamente o zumbido dos insectos cá em baixo.
Dentro de poucas horas, começou a distinguir palavras, e, por fim, a compreender o francês. O anão fez a mesma coisa, ainda que com maior dificuldade.
O espanto dos viajantes redobrava de momento a momento. Ouviam os bichinhos falar com certo bom-senso; este jogo da natureza pareceu-lhes inexplicável.
Acreditai que ambos ardiam de impaciência para travar conversa com os átomos.
Temiam, porém, que as suas vozes de trovão, sobretudo a de Micrómegas, ensurdecesse os terrenos sem conseguirem fazer-se entender.
Era necessário diminuir-lhes a força e, para isso, colocaram na boca uma espécie de pequenos palitos cujas pontas, muito afiadas, chegavam junto do navio.
O Siriano tinha o anão nos joelhos e o barco com a tripulação numa unha, baixava a cabeça e falava mansamente.
Enfim, usando todas estas precauções e ainda muitas outras, começou assim o discurso:
- Insectos invisíveis, que a mão do Criador fez nascer do abismo do infinitamente pequeno, dou-Lhe graças por se dignar revelar-me segredos que pareciam impenetráveis. Talvez que, na minha corte nem sequer vos olhassem, mas eu não desprezo ninguém e ofereço-vos a minha protecção.
Não há notícia de espanto semelhante ao que sentiram os que ouviram tais palavras. Não podiam adivinhar donde elas vinham.
O capelão do barco recitou os exorcismos, os marinheiros praguejaram e os filósofos elaboraram um sistema; mas, nem com todos os sistemas, conseguiram adivinhar quem lhes falava. O anão de Saturno, cuja voz era mais doce do que a de Micrómegas, explicou-lhes então, em poucas palavras quem eram. Contou-lhes a viagem desde Saturno; pô-los ao facto de quem era o senhor Micrómegas e, depois de os lamentar pela sua pequenez, perguntou-lhes se tinham vivido sempre nesse estado miserável, tão próximo do nada; o que faziam num mundo que parecia pertencer às baleias; se eram felizes, se se multiplicavam, se tinham alma e muitas mais perguntas desta natureza.
Um pensador do grupo, mais ousado do que os restantes, indignado por duvidarem da existência da sua alma, assestou as pínulas do seu quadrante sobre o interlocutor, fez duas observações e, à terceira, falou assim:
- Lá porque tendes mil toesas de altura, julgais, senhor, que sois...
- Mil toesas! gritou o anão - Céus! como pôde ele saber a minha altura? Mil toesas! É geómetra, conhece o meu tamanho e eu, que o vejo com um microscópio, não consigo conhecer o dele!
- Sim, eu medi-vos - diz o físico - e medirei também o vosso grande companheiro.
A proposta foi aceite. Sua Excelência deitou-se ao comprido, porque, se continuasse de pé, a cabeça iria muito além das nuvens.
Os nossos filósofos espetaram-lhe uma grande árvore num lugar que o doutor Swift nomearia, mas que eu, de modo nenhum, chamarei pelo nome, por causa do grande respeito que tenho pelas senhoras.
Depois, por uma série de triangulações, concluíram estar perante um rapaz de cento e vinte mil pés.
Então Micrómegas pronunciou estas palavras:
- Vejo agora melhor do que nunca, que nada se deve julgar pela sua grandeza aparente.
Ó Deus, que haveis dado inteligência a substâncias que pareciam tão desprezíveis, o infinitamente pequeno custa-vos tão pouco como o infinitamente grande! se é possível existirem seres mais pequenos do que estes podem ter ainda um espírito superior ao daqueles soberbos animais que vi no céu e cujo pé bastaria para cobrir o planeta a que desci.
Um dos filósofos respondeu-lhe que podia ter a certeza absoluta da existência de seres inteligentes mais pequenos do que o homem. E contou-lhe, não tudo o que Virgílio escreveu de fabuloso sobre as abelhas, Swammerdam descobriu e o que Réaumur dissecou.
Informou-o ainda de que certos animais são para as abelhas o que estas são para o Homem, aquilo que o próprio Siriano era para aqueles grandes animais de que falava, e o que estes, por sua vez, são para outras substâncias, perante as quais parecem apenas átomos.
Pouco a pouco a conversação tornou-se interessante e Micrómegas falou assim.

CAPÍTULO VII
Conversa com os Homens

- Ó Átomos inteligentes, em quem o Ser eterno quis manifestar a sua habilidade e poder, deves gozar, sem dúvida, alegrias muito puras no vosso globo; porque sendo feitos de tão pouca matéria e de tanto espírito deveis passar a vida a amar e a pensar; é a verdadeira vida dos espíritos. Não vi em parte alguma, a verdadeira felicidade, mas aqui existe, com certeza.
Ouvindo estas palavras todos os filósofos abanaram a cabeça; e um deles, mais franco do que os outros, confessou, com simplicidade que, exceptuando um pequeno número de habitantes, pouco considerável, o resto é constituído por uma mistura de doidos, maus e desgraçados.
- Temos mais matéria do que a necessária para fazermos muito mal, se este vem da matéria, e demasiado espírito se ele vem do espírito.
Sabeis, por exemplo, que neste momento, cem mil doidos da minha espécie, que usam chapéu, matam cem mil outros animais que usam turbante ou são massacrados por eles. Por toda a Terra é assim que se procede desde tempos imemoriais.
O Siriano estremeceu e perguntou qual a causa destas querelas entre animais tão mesquinhos.
- Trata-se, informou o filósofo, de um pouco de lama do tamanho do vosso calcanhar. Não é que qualquer dos Homens que se deixam degolar pretenda alguma migalha dessa lama. Trata-se apenas de saber se ela é pertença de um certo homem chamado «Sultão» ou de outro a quem denominavam, não sei porquê, «César».
Nem um nem outro viram ou chegarão a ver o pequeno torrão em litígio; e quase nenhum destes animais, que mutuamente se degolam, viu o animal por quem se deixa matar.
- Ah! desgraçados, gritou, indignado o Siriano - não se pode conceber este excesso de furor raivoso! Dá-me vontade de dar três passos e esmagar a pontapé todo este formigueiro de assassinos ridículos.
- Não vale a pena, disseram-lhe, eles trabalham suficientemente para a sua ruína. Ficai certo de que, daqui a dez anos, não resta a centésima parte desses miseráveis. Mesmo sem combaterem, a fome, a fadiga e a intemperança destrui-los-ão quase todos. De resto, não são eles que devem ser punidos, mas sim aqueles bárbaros sedentários que, do seu gabinete de trabalho, ordenam, durante a digestão, o massacre de milhões de homens e que, depois, vão agradecer a Deus, solenemente.
O viajante sentiu-se cheio de piedade, pela pequena raça humana, na qual descobria tão impressionantes contrastes.
- Já que pertenceis ao pequeno mundo dos sábios, disse ele a esses senhores, e que, aparentemente, não matais ninguém por dinheiro, dizei-me, peço-vos, em que vos ocupais?
- Dissecamos moscas, responde o filósofo, medimos linhas, juntamos números, concordamos sobre dois ou três pontos que compreendemos e disputamos sobre dois ou três mil que não entendemos.
Lembrou então ao Siriano e ao Saturniano interrogar estes átomos pensantes sobre as coisas em que concordavam.
- Que distância vai da estrela da Canícula à Grande Estrela dos Gémeos?
- Trinta e dois graus e meio, responderam todos ao mesmo tempo.
- E quantos graus distam daqui à Lua?
- Sessenta semi diâmetros da Terra, em números redondos.
- Quanto pesa o vosso ar?
Pensava atrapalhá-los, mas todos lhe responderam que o ar pesa cerca de novecentas vezes menos que o mesmo volume de água mais leve e dezanove vezes menos que o ouro de um ducado.
O anãozinho de Saturno, espantado com estas respostas, quase tomava por feiticeiros estes mesmos seres a quem, um quarto de hora antes, negava a possibilidade de terem alma.
Por fim Micrómegas disse-lhes:
- Já que conheceis tão bem o que vos é exterior, deveis, sem dúvida, conhecer ainda melhor o que está dentro de vós.
Dizei-me o que é a vossa alma e como formais as ideias.
Os filósofos falaram todos ao mesmo tempo, como das outras vezes, mas as suas opiniões divergiram totalmente.
O mais velho citou Aristóteles, o outro pronunciou o nome de Descartes, este o de Malebranche, aquele o de Leibniz; aqueloutro o de Locke.
Um velho peripatético declarou, alto, com toda a confiança:
- A alma é uma enteléquia e uma razão, pela qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, pág. 633 da edição do Louvre.
- Não compreendo muito bem o grego, observou o gigante.
- Eu também não, respondeu o bichinho filosófico.
- Então para que citais um certo Aristóteles, em grego? - volveu o Siriano.
- É porque, concluiu o sábio, é conveniente citar aquilo que se não compreende bem, na língua que menos se entende.
O cartesiano tomou a palavra, dizendo desta maneira:
- A alma é um espírito puro que recebeu no ventre materno todas as ideias metafísicas e que, saindo de lá, é obrigada a ir à escola aprender de novo o que já soube muito bem e que não saberá mais.
- Então não vale a pena, comenta o animal de oito léguas, que a vossa alma seja tão sábia no ventre da mãe, para ser tão ignorante na altura em que tendes barba no queixo.
- E o que entendeis por espírito?
- Que me pergunta? - interroga o pensador. Não faço ideia nenhuma do que seja. Têm-me dito que é aquilo que não é matéria.
- Mas ao menos sabeis o que é matéria?
- Muito bem, respondeu o homem. Por exemplo, esta pedra é cinzenta, tem determinada forma, tem três dimensões, é pesada e divisível.
- Está certo, retorquiu-lhe o Siriano - mas o que vem a ser essa coisa que vos parece divisível, pesada e cinzenta? Vedes alguns dos seus atributos, ou conheceis a coisa em si?
- Não.
- Então não sabeis o que é matéria.
Dirigiu-se, depois Micrómegas a outro sábio que tinha no polegar, perguntando-lhe o que era a alma e o que fazia.
- Nada, respondeu o filósofo malebranchista, Deus é que faz tudo; em Deus e por Deus faço e vejo tudo. Ele tudo obra, sem necessidade do meu auxílio.
- Valeria mais não existir, exclamou o sábio de Sírio.
- E tu, meu amigo, pergunta a um leibnitziano - O que me dizes acerca da tua alma?
- É o ponteiro que indica as horas que o corpo bate; ou melhor, se quiserdes, é ela quem bate as horas que o corpo indica; melhor ainda, a alma é o espelho do Universo e o corpo, a sua moldura. Isto é evidente.
Um minúsculo partidário de Locke estava muito perto e, quando lhe foi dirigida a palavra, respondeu:
- Não sei como penso, mas sei que penso sempre por meio dos meus sentidos. Acredito na existência de substâncias imateriais e inteligentes; do que duvido, porém, é que é impossível a Deus comunicar o pensamento à matéria. Venero o poder eterno e não me compete limitá-lo; nada afirmo. Contento-me em crer que há mais coisas possíveis, para além do meu pensamento.
O animal de Sírio sorriu; não achou que este fosse o menos sábio. O anão de Saturno teria abraçado o discípulo de Locke se não fosse a extrema desproporção dos seus tamanhos.
Por desgraça estava lá um animalzito, de boné quadrado, que cortou a palavra a todos os animaizinhos filósofos.
Declarou conhecer tudo, porque todo o segredo estava esclarecido na Summa de S. Tomás; mirou, de alto a baixo, os dois habitantes celestes e afiançou-lhes que eles, seus mundos, sóis e estrelas, foram criados com o fim único de servir o Homem.
Ouvindo este discurso os dois viajantes desataram a rir, ruidosamente, com aquele riso inextinguível que, segundo Homero, é apanágio dos deuses. Os ombros e as barrigas estremeciam-lhes e, nas suas convulsões, o barco, que o Siriano segurava sobre a unha, caiu numa algibeira das calças do Saturniano. Procuraram-no durante muito tempo, encontraram a tripulação, repondo tudo nos seus lugares.
O Siriano voltou a apanhar os bichinhos, falou-lhes com muita paciência, ainda que um pouco ferido, no fundo do coração, por verificar que entes tão infinitamente pequenos tinham um orgulho quase infinitamente grande.
Prometeu oferecer-lhes um bom livro de filosofia onde tudo fosse, minuciosamente, explicado, para nele aprenderem a verdadeira essência das coisas.
Efectivamente, deu-lho antes de partir. Apresentaram-no em Paris, na Academia das Ciências; mas, quando o Secretário o abriu, apenas viu um livro completamente em branco.
- Ah! exclamou, já esperava que isto acontecesse!

FIM

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novembro 19, 2004

Regulador desregulado

O relatório da AACS é a prova de que em Portugal não é possível haver isenção e objectividade na comunicação social e nas entidades que emanam dela. A futura entidade reguladora que venha a substituir a AACS, extinta pela última revisão constitucional, por acordo do PSD, PP e PS (mas que funciona interinamente entretanto), deveria ser constituída maioritariamente por magistrados e personalidades capazes de fazer prevalecer a razão sobre a paixão. Jornalistas, ou gente oriunda da comunicação social, não deveria fazer parte desse órgão, ou ter uma representação muito diminuta e por via institucional (representantes do SJ, do patronato da CS, etc.). Ninguém é bom juiz em causa própria e, pior que isso, os jornalistas não se têm revelado como modelos de isenção.

A AACS entendeu que as declarações do ministro Rui Gomes da Silva configuravam "uma tentativa de pressão ilegítima" sobre o grupo Media Capital contrária à independência dos media "constitucional e legalmente consagrada. O relatório não refere, no entanto, qualquer relação causal entre as declarações de Rui Gomes da Silva e a saída do ex-presidente do PSD da TVI, tendo mesmo Artur Portela adiantado que esta não ficou provada com os depoimentos das três partes envolvidas prestados na AACS.

Ora se não ficou provada qualquer relação causal entre as declarações de Rui Gomes da Silva e a saída do ex-presidente do PSD da TVI, como é possível deduzir no relatório que houve uma tentativa de pressão ilegítima. Mas o que é uma tentativa de pressão? Houve pressão ou não? Por tudo isto é natural que o Presidente da AACS, um juiz conselheiro que já foi vice-presidente do STJ, tenha votado vencido contra esta «contradição nos termos».

Durante a audição de Marcelo Rebelo de Sousa, a postura subserviente da AACS, principalmente a do seu pivot Artur Portela Filho, foi aviltante. A AACS não estava ali para ajuizar das razões do professor, mas para o abraçar, comovida e pesarosa, e derramar abundantes lágrimas de compreensão, apoio e carinho no seu ombro amigo. Foi exactamente isso o que fez.

O ministro Gomes da Silva reagiu inabilmente a algo que não concordava. Fez mais ou menos (talvez um pouco mais) o que o Presidente Sampaio havia feito anos antes, relativamente ao mesmo comentador, e não me consta que o PR tenha sido acusado de "uma tentativa de pressão ilegítima", o que aliás seria igualmente absurdo. O ministro em causa tem-se notabilizado pela sua incontinência verbal. Mas o julgamento sobre essa característica inquietante do ministro faz parte da esfera da acção do 1º Ministro: ajuizar da adequação do ministro em causa ao cargo que ocupa e agir em conformidade, destituindo-o ou não, quando julgar oportuno.

Mas, na verdade, entre o ministro Gomes da Silva e a AACS não há diferença. O primeiro fala em cabala não intencional. A segunda em tentativa de pressão sem nexo de causalidade. Estão bem um para o outro.

Outra pérola: A AACS censurou expressamente o presidente da Media Capital, Paes do Amaral, considerando que a conversa que este teve com Marcelo Rebelo Sousa pode de facto "ser interpretável como condicionamento da colaboração do comentador". Considerou, por outro lado, que o presidente da Media Capital "infringiu a liberdade editorial legalmente protegida" ao conversar com Marcelo "sem a presença, a intervenção atempada ou sequer o conhecimento prévio" do director de informação da TVI, Eduardo Moniz.

O que significa "pode ser interpretável como condicionamento”? Não significa nada com substância. Pode ser ... mas também pode não ser ... Como é possível, depois desta suposição de uma outra suposição, extrair qualquer conclusão?

Ora Miguel Paes do Amaral e Marcelo Rebelo Sousa são cunhados e amigos há décadas (ou eram). Tiveram uma conversa num bar, num dia feriado. Foi uma conversa entre pessoas que eram amigas e, segundo parece, trocaram impressões, entre outras coisas, sobre o formato e conteúdo dos comentários de MRS. Mesmo que tivesse havido pressões (e resta saber como graduar uma troca de palavras – sugestão, conselho, pressão ou ultimato), nenhum tribunal as consideraria como provadas. Quanto à ausência do director de informação, ela nunca poderia ser considerada relevante, dada a relação entre MPA e MRS e o local e o dia em que o encontro ocorreu. Não pretendo com isto afirmar que houve ou não pressões. Eu não estava lá e só sei as versões que cada um tornou públicas. Há todavia um conceito, designado por benefício da dúvida, que é uma das bases do nosso direito. Mas para a AACS há benefício da dúvida apenas para uma das partes, pois para a outra há o prejuízo da dúvida.

Portanto aquela conclusão da AACS não tem fundamentação adequada. É apenas uma suposição. Ora um órgão com as responsabilidades da AACS não pode basear as suas conclusões em suposições. Por isso, a AACS sentiu-se na obrigação de não impor coimas a Paes do Amaral, alegando razões de "prudência e razoabilidade". A AACS agiu apenas como instância política e não como entidade reguladora. A aplicação de coimas cabe às entidades reguladoras, instâncias políticas fazem apenas comunicados.

Publicado por Joana às 12:00 AM | Comentários (36) | TrackBack

novembro 18, 2004

Transsexualidade Política

Acabei de ouvir as declarações de Jaime Gama e estou confusa. Mesmo atónita. Defendeu uma política de rigor orçamental, alertou para uma expansão baseada num aumento indesejado do rendimento disponível induzido pela diminuição do IRS, e para a derrapagem nas importações induzida pela distensão que os portugueses sentiram relativamente ao clima de austeridade. E foi com profunda emoção que vi depois todos os deputados do PS levantarem-se, num voto unânime contra a falta de ambição deste Governo na consolidação orçamental e criticando a política de descontinuidade orçamental.

Todavia, não foram as declarações de Jaime Gama, e de outros líderes socialistas, que me perturbaram. O que me perturbou não foi o conteúdo das declarações, foi elas serem proferidas pelos mesmos que andaram dois anos e meio a protestar contra a “obsessão” pelo défice, a favor da necessidade de aumentar a despesa pública para dinamizar a economia, e que fizeram uma campanha para as eleições europeias baseada na luta contra a austeridade orçamental.

Fiquei perplexa porque vi um país às avessas. O PS preocupado com o ataque à classe média decorrente do fim dos benefícios fiscais e contra a diminuição das taxas do IRS dos escalões mais baixos, e a coligação de direita a protagonizar a defesa dos mais desfavorecidos, beneficiados por essa diminuição das taxas. O BE, por seu turno, a dizer-se preocupado com os direitos dos contribuintes face às formas de combate à evasão fiscal preconizadas por um Bagão Félix que, vindo do sector financeiro, desafiava a banca e afirmou repetidamente que era ela o alvo principal das suas medidas de justiça fiscal. Que estranho fenómeno terá ocorrido? Alguma mutação de origem alienígena?

O governador do Banco de Portugal afirmou há dias que sem um forte controlo do défice e dos níveis da dívida pública o país caminha para o abismo. E disse-o como forma de contestação da estratégia económica de Bagão Félix. Ora durante dois anos e meio a coligação andou a citar as sucessivas declarações de Vítor Constâncio como prova evidente da correcção da sua política. Agora Bagão Félix fala, com um sorriso depreciativo, da ortodoxia dos bancos centrais, enquanto o PS descobre inebriado a excelência da análise económica e financeira do governador do Banco de Portugal, depois de ter andado dois anos e meio a ignorar os seus apelos à austeridade das finanças públicas.

Há obviamente algo de errado em tudo isto. Os mais versados em matérias científicas alegarão alguma mutação provocada por qualquer vírus desconhecido, eventualmente alienígena. Os mais inspirados pelos reality show dirão que houve operações maciças de mudança de sexo político nos membros da AR e do governo. Que estamos perante um fenómeno inesperado de transsexualidade política. Erro profundo.

Estamos apenas perante uma elite política incapaz de ultrapassar as tricas partidárias, incapaz de conseguir consensos que possam promover as reformas urgentes de que o país precisa, e apenas capaz de se digladiar em jogos de poder.

Estamos perante uma elite política incapaz de debater objectivamente a essência das coisas, por estar mais preocupada com a sua existência enquanto fonte do poder.

Publicado por Joana às 07:57 PM | Comentários (25) | TrackBack

novembro 17, 2004

Lei do Arrendamento Urbano

Ou ... quando não se domina a matéria não se acerta na solução

O arrendamento urbano no nosso país foi um exemplo de como pacotes legais feitos com as melhores das intenções de justiça social e de protecção à habitação, regulamentando o mercado, estabelecendo preços que não correspondiam aos equilíbrios que se formariam pelo seu funcionamento normal, e a manutenção dessa situação ao longo de décadas, conduziu à ruína dos centros históricos das cidades, à derrocada dos prédios antigos, ao excessivo endividamento das famílias, à dificuldade prática de uma reforma fiscal moderna do património e à total injustiça social, onde as gerações mais antigas têm casas de rendas irrisórias, enquanto os mais novos têm um ónus terrível em despesas de habitação; onde os senhorios dos prédios antigos estão descapitalizados, sem capacidade de intervirem na reabilitação dos seus prédios, enquanto os senhorios de áreas mais recentes têm rendimentos incomparavelmente superiores, com custos muito menores. Muitos dos prédios degradados nem sequer têm senhorios conhecidos. Quem consta do registo das Conservatórias já não existe e os herdeiros nunca reclamaram a herança porque provavelmente o Imposto Sucessório seria muito superior ao valor dos imóveis. A perversão do sistema é total.

Em Portugal apenas 70% dos fogos são utilizados como residência habitual. O que significa que cerca de 1,5 milhões de fogos estão vagos ou servem apenas para uso ocasional; 78% da população vive em casa própria e apenas 22% em casa arrendada; mais de meio milhão de fogos (544 mil) estão vagos, dos quais 105 mil para venda e 80 mil para arrendar (embora apenas o INE saiba onde estão estes últimos fogos); e há 29 mil famílias ou 82 mil pessoas a residir em barracas ou similares.

A situação é (e é desde há muitos anos) catastrófica. Tem que ser resolvida. Têm que se ser encontradas soluções. Para se resolver um problema é necessário fazer-se um diagnóstico muito exacto e rigoroso da situação, saber avaliar com muita clarividência os efeitos directos e colaterais das soluções possíveis e ter a coragem de resistir aos lobbies e aos interesses que obviamente se levantarão para desfigurar qualquer solução no sentido dos seus interesses.

Nada disto está a acontecer. Desde 1990 que o arrendamento é livre e a prazo (5 anos). Portanto os fogos actualmente devolutos estão em mercado livre. O primeiro estudo que o governo deveria ter feito seria o de investigar porque é que há 544 mil fogos devolutos (359 mil, se descontarmos os que alegadamente estão à espera de comprador ou arrendatário) num mercado livre. Enquanto o governo não perceber as razões porque tal acontece, não vale a pena dar o passo seguinte, pois irá certamente fazer asneira.

Eu não sei responder. Mas posso fazer conjecturas. Em primeiro lugar pergunto: todos aqueles fogos existirão realmente? Não se tratarão, em muitos casos, de construções antigas, entretanto demolidas, mas que continuam a constar nos registos matriciais? E se existirem, pergunta-se: Não estarão em tais condições de inabitabilidade que se poderão considerar em ruínas?

Em segundo lugar pergunto: que desmotivação leva um senhorio a manter devoluto um fogo habitável? Aqui a minha resposta é liminar: actualmente muitos dos novos inquilinos pagam o 1º mês e o mês de caução e ficam 2 ou 3 anos à espera que a acção de despejo e acção para execução da sentença os obriguem a sair, deixando o fogo num estado lastimável. O senhorio recebe 2 meses de renda (alguns, mais afortunados, 4 ou 5) e tem que pagar aos advogados e as obras de reabilitação do fogo quando o inquilino sair. E não se consegue ressarcir. O fiador, quando existe, é tão insolvente quanto o inquilino; no caso de arrendamento para a habitação, nenhum banco aceita prestar uma garantia. Quando o inquilino for despejado, o senhorio pensará duas vezes sobre o que irá fazer com o fogo.

Ora a resolução expedita dos contratos em caso de incumprimento por falta de pagamento não consta da presente lei. Poupa-se uma acção judicial, mas mantém-se o recurso aos tribunais e o ónus da lentidão da justiça portuguesa. Quanto ao ressarcimento dos estragos perpetrados pelo inquilino ... é melhor esquecer. Sabe-se que há um diferencial, estimado em mais de 40%, que é uma espécie de prémio de risco para o senhorio. O empolamento das rendas deve-se ao receio do senhorio face ao imprevisível comportamento do inquilino e não a outro motivo.

Relativamente aos fogos actualmente devolutos, esta lei poderá ter efeitos nos imóveis degradados, parcialmente devolutos, e parcialmente ocupados com rendas irrisórias, que o senhorio poderá agora reabilitar, aumentando as rendas dos actuais inquilinos e alugando os actualmente devolutos. Mas será que isto vai funcionar? Resposta: só muito parcialmente.

E porquê? Não é por muitos senhorios estarem descapitalizados. Os que não tiverem dinheiro, nem know-how, poderão sempre vender o imóvel a um promotor capaz de o reabilitar e fazer o negócio. Há várias razões que irão dificultar o negócio: 1) muitos dos actuais arrendatários estão nas categorias sociais ou etárias que impedem a liberalização da respectiva renda, logo não há qualquer estímulo para o senhorio reabilitar o imóvel, nem encontrará qualquer promotor interessado na sua aquisição; 2) muitos dos fogos (provavelmente a maioria) têm dimensões tão reduzidas e os imóveis, de que fazem parte, uma área de implantação no solo (área de cobertura) tão pequena, que não faz sentido reabilitá-los tal como estão. As novas gerações não conseguirão viver em fogos com áreas de 15 e 20 m2. A reabilitação desses imóveis terá que passar por uma reformulação das tipologias, com muito menos fogos. Ora isso será muito complicado para o proprietário. Há casos que só poderão ser resolvidos em termos de quarteirão, remodelando este integralmente, o que envolve vários proprietários. Que destino se vai dar aos actuais inquilinos dos fogos minúsculos? Haverá dispositivos legais para resolver esta situação?

Talvez por se ter apercebido destes efeitos “colaterais”, apareceu hoje nos jornais uma notícia afirmando que «o Governo admite entregar casas em bairros sociais em alternativa ao pagamento do subsídio especial de renda (SER), previsto para apoiar os agregados familiares mais desfavorecidos e que os estudos do governo indicaram ser cerca de 102 mil famílias».

A questão que coloco agora é a seguinte: pretendendo o governo dinamizar o mercado do arrendamento, vai agora o próprio Estado adquirir imóveis para os alugar com rendas sociais? Então e os tão falados 544 mil fogos devolutos? Se presentemente os senhorios não alugam 544 mil fogos, como irão alugar os 646(544+102) mil fogos entretanto devolutos? Provavelmente aquela é a única solução para essas famílias ficarem com casas reabilitadas. Mas é também a certificação que a lei não satisfaz as razões que foram invocadas como primordiais para a sua feitura.

E não venham com a estafada proposta de agravamento do IMI sobre fogos devolutos. Estudem primeiro os assuntos, analisem bem as causas das coisas, antes de dizerem os primeiros disparates que vêm à mente. Ora todos estes ziguezagues decorrem justamente do governo não ter conseguido obter um diagnóstico exacto da situação, nem se ter apercebido de todos os efeitos da lei, por desconhecimento da situação.

Continuando no campo da habitação, há varias dezenas de milhares de famílias que estão no caso da negociação livre. O governo encontrou uma solução “engenhosa” para desmotivar os senhorios de avançarem com uma proposta inicial extremamente elevada, através do estabelecimento de indemnizações por inexistência de acordo. Em linguagem de Bridge, diria que o governo quer impedir as aberturas de barragem. O problema é que um inquilino que habite um fogo há 20 ou 30 anos, com a casa arranjada e a vida estabelecida, não terá o mesmo sangue frio que um jogador à mesa do Bridge. Neste, o jogador, se falhar na negociação do contrato, poderá apanhar com um “cabide”, naquele, o inquilino poderá ter que se mudar com mobílias, roupas e dezenas de cabides. Há varias dezenas de milhares de famílias ( ... classe média) naquelas circunstâncias. Este é um assunto que se pode tornar explosivo.

Passemos agora ao arrendamento comercial. O direito à habitação é uma questão social, mas a utilização de um espaço para efeitos comerciais ou industriais é um factor de produção. Não tem nada de social. Pergunto: porque é que o governo foi muito mais cuidadoso com o comércio que com a habitação? Porquê prazos muito mais dilatados para o ajustamento das rendas no comércio?

Fala-se no comércio tradicional e nas suas dificuldades. Rio-me dessa afirmação. Uma das certezas que há em Economia é que andar subsidiar empresas anos a fio apenas serve para desperdiçar dinheiro. As empresas subsidiadas têm a vertigem do abismo: não inovam, não mudam, não saem da cepa torta. Assim sendo, o comércio dos centros históricos foi desbaratando qualidade, cristalizou, e perdeu mercado face ao comércio menos central e com maior capacidade de inovação e aos grandes espaços. A degradação da qualidade da actividade comercial nos centros históricos tem igualmente concorrido para a ruína destes e para a sua desertificação.

Portanto este extremoso cuidado governativo com o arrendamento comercial é duplamente perverso: encara-o com uma perspectiva mais “social” que a habitação e não percebe que subsidiar (não o Estado, mas os senhorios) empresas é contraproducente do ponto de vista económico. Agita-se o espectro do desemprego. Mas porque não intervém o Estado nos valores locativos dos espaços nos Centros Comerciais, onde há uma enorme mortalidade? Porque o emprego renova-se. As empresas menos aptas dão lugar a outras e o emprego, que desapareceu, é gerado novamente. Pois a situação será a mesma no caso do comércio tradicional.

E o mais perverso é que os comerciantes que se constituíram em lobby para obterem situações mais vantajosas na nova lei, são os mesmos sobre os quais há o consenso generalizado de que fogem aos impostos. Os comerciantes são notoriamente insolventes: rendas, IRC, IVA, etc..

Por outro lado não concordo que os contratos celebrados a termo certo a partir de 1990 caiam sob a alçada da nova lei e que na data da sua renovação os senhorios os possam denunciar, com pré-aviso de 3 anos. Na lei actual o valor inicial do arrendamento é livre, mas pode escolher-se entre um prazo de 5 anos, no fim do qual pode haver denúncia do contrato, (com pré-aviso), ou ilimitado (termo certo renovável). Ora um comerciante cria um negócio, fideliza uma clientela, e, dependendo do tipo de negócio, não quer correr o risco de ser obrigado a abandonar o local ao fim de 3 ou 5 anos. Para obviar esse risco, ele pode ter feito um contrato em que aceitou pagar uma renda superior em troca do prazo ser ilimitado. Se o fez ... Todavia concordo que, numa lei do arrendamento, prazos ilimitados sejam obviamente inaceitáveis, porque ninguém domina o futuro. Assim sendo, aqueles contratos deveriam ter um tratamento próprio, embora não descaracterizando o princípio da lei.

Portanto temos uma lei que era absolutamente necessária, mas que incide sobre situações muito complexas, que se foram complicando cada vez mais por décadas de imobilismo, e cuja solução não é fácil. Julgo que o que escrevi mostra como a falta de rigor, no diagnóstico exacto da situação e na avaliação de todos os efeitos, está a criar uma lei ineficiente, que não resolve muitos problemas, nomeadamente aqueles que se propõe resolver. Julgo que o que escrevi mostra como uma lei ineficiente tem dificuldade em resistir aos ataques dos interesses instalados que acabam por a tornar não só mais ineficiente, como injusta, porque desigual.

E não é a primeira vez que digo exactamente o mesmo sobre esta matéria. Quem vai mudando, parágrafo aqui, linha acolá, é o governo. Eu apenas observo a realidade, mas o governo está há mais de dois anos a estudar esta matéria, sabe-se lá com quantos assessores, institutos, Direcções-Gerais, técnicos qualificados, etc., etc..

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novembro 16, 2004

Congressos e Coligações

As duas últimas eleições vieram mostrar algo que se sabia há muito. Eleitoralmente o PSD e o PP valem mais sozinhos que em coligação. O discurso do PP e, principalmente, a imagem que toda a comunicação social transmite dele, afugentam o eleitorado do centro e centro-esquerda. Em contrapartida, parte da direita não se revê na política centrista do governo de coligação.

A coligação foi inicialmente considerada um mal necessário, pois a situação do país não permitia um governo minoritário, flutuando ao sabor dos caprichos parlamentares. Era óbvio que Paulo Portas não poderia ser deixado fora do governo, pois fora dele seria incontrolável. Durão Barrosos apesar de nunca ter concordado com uma coligação com o PP, foi forçado a aceitá-la como um mal menor. Todavia, e contrariamente a muitas profecias, Portas e os ministros PP foram sempre de uma lealdade exemplar para com os interesses da coligação.

E o que aconteceu durante o governo de Durão Barroso, continuou durante o governo de Santana Lopes.

No congresso de Barcelos foi nítida a rejeição de uma parcela significativa dos congressistas, senão da maioria, de uma coligação eleitoral com o PP. Aliás, já no rescaldo das eleições europeias, em face dos maus resultados, vozes dentro do PSD tinham questionado o interesse de uma coligação eleitoral. O problema da Ciência Política é que não se podem repetir experiências utilizando outros ingredientes. Nunca se saberá quais seriam os resultados se os dois partidos tivessem concorrido separados naquela altura.

O comportamento de muitos congressistas do PSD teria indignado dirigentes do PP e só a necessidade de se manterem coligados, face à alternativa certa de dissolução da AR e de novas eleições, manteve a coligação governativa, segundo os órgãos de comunicação. Mas este desfecho seria sempre incontornável. Só suicidas maníacos tomariam decisões de rotura numa altura destas. Uma coisa são declarações de militantes isolados, ou aplausos de uma plateia indiferenciada, outra são decisões das chefias partidárias, de quem se espera mais continência.

Aliás, o resultado da votação foi concludente. Os congressistas do PSD deram carta branca a Santana Lopes, pois a alternativa era o fim do governo e a derrota eleitoral. Mas essa é a lógica dos congressos: os militantes do PS deram a vitória esmagadora a Sócrates, não porque lhe votem uma admiração especial, mas porque julgam que com ele regressarão ao poder.

A não existência, actualmente, de sinergias eleitorais numa coligação PSD-PP, e serem os congressistas do PSD os mais recalcitrantes em aceitá-la, é natural que indisponha os dirigentes e militantes de topo do PP. Afinal, os ministros mais polémicos, que mais problemas causaram à coligação e que pior desempenho tiveram foram, justamente, gente oriunda do PSD. Mas a política não tem moral, o PP é o parceiro menor de um governo que não soube gerir adequadamente a difícil situação em que o país estava, e de outro governo que vai pelo mesmo caminho, e a penalização que o eleitorado irá infligir, se tudo continuar como até aqui, recairá sobre ambos. E talvez com mais gravidade sobre o próprio PP.

As declarações de muitos dos congressistas do PSD e as afirmações de hoje, produzidas por Narana Coissoró, indiciam que, a menos que o governo inverta a situação, consiga um bom desempenho no próximo ano e melhore substancialmente o clima económico do país, assistiremos a um progressivo distanciamento entre o PSD e o PP à medida que se aproximarem as eleições e, eventualmente, se a situação se tornar grave e quando já não houver o risco da dissolução da AR, à rotura da própria coligação, à formação de um governo PSD de recurso, em minoria, e ao PP começar a campanha eleitoral, muito antes da abertura oficial desta, atacando o governo de que entretanto saiu.

A coligação tem tido uma enorme coragem em pôr na agenda política reformas de que o país necessitava há muito. Todavia são reformas que, por muito adiadas, irão conduzir a um terramoto social e político, a menos que haja muita argúcia na sua concepção, que me parece que escasseou, e muita determinação na sua aplicação, que eu não entrevejo.

Uma política difícil, de austeridade e de rigor, não se faz aos ziguezagues. Tal política, se for conduzida sem tibiezas, por muito que bula com interesses e hábitos instalados, acaba por resultar e ser compreendida pela população. Fazê-la, ou julgar-se que a faz, aos ziguezagues, não conduz a bons resultados e desacredita as reformas e o governo perante a população.

Publicado por Joana às 11:43 PM | Comentários (26) | TrackBack

ANÚNCIO

Publicista em busca de afirmação procura

Empresa de Comunicação Social, de preferência estatal ou pública.

Assunto:
Indigitação, ou preferencialmente contratação, para cargo de Directora de Informação.

Oferece-se:
Desvinculação rápida, pública e ambígua.
Sigilo total, condimentado com subentendidos
Audição garantida pela AACS

Garante-se:
Excelente promoção comercial para a entidade pseudo-empregadora;
Aumento do PIB induzido pela expansão das receitas publicitárias resultantes dos acréscimos de audiências dos órgãos de comunicação social;
Manutenção dos postos de trabalho da AACS;
Aumento geral do nível de emprego induzido pelo aumento do rendimento disponível;
Oportunidade única de salvar as finanças públicas do próximo colapso;

Respostas:
Devem ser dirigidas a Semiramis (http://semiramis.weblog.com.pt) e indicar o nome da entidade interessada, as condições contratuais e comerciais e o prazo de pagamento.
No caso de se tratar de um consórcio, indicar a designação social dos consorciados – entidade contratadora, ministério das Finanças, órgãos de comunicação social associados, AACS, etc.
Em qualquer dos casos deverá ser enviada documentação sobre a situação financeira dos concorrentes, incluindo os rácios previstos na lei, nomeadamente o rácio de Solvabilidade.

Publicado por Joana às 08:59 PM | Comentários (8) | TrackBack

novembro 15, 2004

O Eixo dos Nulos

É angustiante. É mesmo deprimente. Não será possível encontrar um painel de portugueses, minimamente cultos, que saibam dos assuntos sobre que falam, que tenham um humor acutilante, que não temam chamar as coisas pelos nomes, que sejam satíricos sem recorrer à maledicência ignóbil, que sejam provocadores sem resvalarem para o insulto, que sejam picantes sem caírem nos ditos soezes e que não se sintam ofendidos ou menosprezados uns pelos outros?

Julgo que não é fácil. A SIC tentou há uma década e falhou. Foi a Noite da Má Língua. O programa até começou bem, mas ao fim de um ou dois meses entrou numa fase de declínio e acabou num cabotinismo total. Os primeiros painéis eram formados por gente interessante, capaz de comentários mordazes, mas lúcidos. Depois foram-se despedindo, um após outro, provavelmente por acharem que o nível do programa estava a uma cota inferior à cota que a si próprios se atribuíam e àquela que estavam convictos que o público esperaria deles. Outros, ofendidos por minudências. Todos eles substituídos por gente cada vez menos capaz, degradando o nível do programa até ao limiar do insuportável.

Agora apareceu uma tentativa de remake, designada pretensiosamente pelo Eixo do Mal, que de mal apenas tem a qualidade da intervenção dos protagonistas. Foram todos uns meninos bem comportados, absolutamente banais e totalmente previsíveis.

Sempre considerei a Clara Ferreira Alves como uma articulista especializada em textos simples, banais e lineares. Quando foi convidada para Directora do DN, pensei: porque não? O Luís Delgado escreve textos ainda mais simples e lineares e tem subido na vida. Mas depois de duas actuações da Clara Ferreira Alves no Eixo do Mal, pergunto-me: Como é possível tê-la convidado para directora de um dos mais importantes jornais do país? É certo que, desta vez, foram mais lestos. Não agiram como no caso do director anterior, que só ao fim de alguns meses foi demitido por alegada incompetência. Neste caso foi demitida a priori, antes que fosse tarde demais!

Mas a Clara Ferreira Alves ainda tem traquejo de aparições televisivas – o seu incomensurável ego é-lhe de grande ajuda. Portanto consegue disfarçar as suas insuficiências. Os outros nem isso. Como é possível integrar um assessor de imprensa (e julgo que do grupo parlamentar) de um partido político num painel de comentaristas, de que se esperaria uma sátira acutilante e sem peias, sobre a vida política e social portuguesa? É certo que é assessor de um partido que se especializou em dizer mal de tudo e de todos – é o partido da má língua. Mas por muito folclórico e desbocado que seja o BE e que se julgue como um não partido, ou seja, como a encarnação do sentir dos portugueses (ou do que esses néscios deveriam sentir se não fossem ignaros), o ser-se dirigente partidário retira sempre margem de manobra ao próprio e credibilidade perante quem o escuta. Depois, o Daniel Oliveira está sempre a achar coisas – é um achista nato. O lugar dele deveria ser antes no “Acho do Mal”.

Os outros foram apenas desinteressantes, sem chama, sem opiniões que “aleijem”. Como os dois programas não passaram de um desfilar de banalidades, não havia nada para moderar. Assim sendo e dado o bom comportamento moral e civil dos colunistas (profissão que todos indicaram), o moderador remeteu-se a um mutismo quase completo. Quando era obrigado a dizer coisas, introduzir as rubricas seguintes, etc., titubeava com ar de quem estava a pedir desculpas urbi et orbi, ao painel e ao mundo.

E havia ali gente capaz de dizer coisas inconvenientes e desastradas. Por exemplo, o assessor do BE escreveu, há perto de um ano, no seu blogue (Barnabé): «A minha filha chegou-me a casa a saber o hino nacional de uma ponta à outra, sem falhas. Aprendeu na escola. Uma vergonha para mim e um orgulho para Paulo Portas. Tentei ensinar-lhe outras coisas, mais interessantes. Desisti. A música pimba sempre entrou mais facilmente no ouvido». Provavelmente foram os outros que lho imploraram, para não ficarem na contingência delicada de terem que defender Paulo Portas, o que é o cúmulo do politicamente incorrecto.

Todos eles tiveram uma característica – revelaram sempre a mais profunda e confrangedora ignorância técnica sobre os assuntos que debatiam, isto se exceptuarmos algumas matérias de índole cultural, onde a base técnica é despicienda, e por isso qualquer português, com aspirações a intelectual, está convicto de ter aí conhecimentos sólidos e firmes.

Os portugueses têm um defeito. Receiam imenso o julgamento que os outros fazem deles e melindram-se facilmente com esses julgamentos. Têm uma absoluta falta de fair-play. Esse receio torna-os cinzentos, com opiniões demasiado previsíveis, embora dentro dos estereótipos político-partidários a que cada um aderiu. Em vez do humor acutilante ou da sátira ferina, apenas a maledicência contra os outros partidos políticos ou opiniões contrárias.

O português, quer o emissor, quer o receptor, tem dificuldade em distinguir onde acaba a sátira e começa a maledicência pura. Quem opina, resvala facilmente da primeira para a segunda, sem se dar conta de tal. Aquele sobre quem se opina, entende sempre a sátira (ou a maledicência) como óbvia maledicência.

Estas características tornam muito problemático haver programas satíricos com nível, sobre a política, a sociedade e o espectáculo, em Portugal. Por exemplo, em Portugal não é possível haver um Jay Leno. Temos que nos contentar com um Herman José cada vez mais pimba e ordinário.

E seria possível em Portugal um programa como o Daily Show do Jon Stewart? Obviamente não. É um programa muito bem feito, uma sátira acutilante à política e à sociedade americanas. Jon Stewart nunca escondeu o ser um tenaz anti-Bush, mas as suas provocações, às vezes muito contundentes, são sempre bem construídas e o talento mascara e dilui a acutilância. Ele constrói cenas satíricas, que seriam consideradas excessivas entre nós, num registo que as torna aceitáveis, pois que as desdramatiza com um talento enorme. E os momentos mais altos do programa, nos meses que precederam as eleições, foram justamente as entrevistas a alguns líderes republicanos. Era difícil ajuizar o que era mais notável: se a argúcia satírica de Stewart a entrevistar, se o fair-play e a habilidade para inverter a situação evidenciados pelos entrevistados. Entrevistados que, quando ali iam, sabiam que tinham que enfrentar um interlocutor acutilante e provocador e um público desfavorável. Entrevistas em que cada um soube lidar com o humor e a sátira com total fair-play.

Por essa época, Jon Stewart foi ao talk-show de Jay Leno. Falaram sobre a campanha e Jay Leno disse a certa altura que lhe parecia estar-se a falar demasiado na guerra do Vietname. Jon Stewart respondeu mais ou menos isto: Sim, Kerry está fortemente empenhado nisso. Estou convicto que se ele ganhar as eleições, vai conseguir um acordo de paz no Vietname e fazer regressar os nossos rapazes de lá.

Manusear o humor, sem excessos que o aviltem e sem banalidades que o castrem, é o que há de mais difícil. É preciso muito espírito de humor, uma cultura sólida e uma educação extrema.

Publicado por Joana às 11:38 PM | Comentários (17) | TrackBack

Casa onde não há pão

O Estado tem que ter um orçamento. Elaborar um orçamento pressupõe fazer escolhas, engendrar planos, prever as despesas decorrentes das escolhas feitas e dos planos engendrados, e determinar as receitas para suprir as despesas, de forma iterativa, até encontrar a melhor solução tendo em conta as restrições existentes. Parece simples.

Deixa de ser simples, porque as restrições são de tal monta que as escolhas se tornam muito limitadas e todas más. Deixa de ser simples, porque Portugal é como uma família que contraiu demasiados compromissos financeiros para o nível salarial que a sua qualificação permite. Portugal vive acima das suas posses. Sempre, durante os regimes representativos, viveu acima das suas posses. Só em períodos ditatoriais tal não aconteceu. Os regimes representativos em Portugal sempre preferiram quer satisfazer as suas clientelas políticas e sociais, quer capitular perante interesses corporativos, na ânsia não comprometerem o seu futuro no poder, quer ambas as coisas. Nunca foram capazes promover a adequada qualificação científica e profissional e criar os mecanismos que permitissem a dinamização do tecido produtivo do país. Pior, começando pela venda dos bens nacionais, criou-se uma relação perversa de dependência entre o tecido empresarial, clientelar e frágil, e o poder político todo-poderoso e centralizador.

Quanto à ditadura, pela sua matriz ideológica de um Portugal agrário e corporativo (no sentido medieval), preferiu manter a população na ignorância, ou com instrução na qual era apenas suficiente «saber ler, escrever e contar», e criar regulamentos corporativos e restritivos para a actividade industrial que não permitiram o seu desenvolvimento. Foi a única época em que Portugal não viveu acima das suas posses ... pois viveu na miséria. Mas é fácil, em ditadura, controlar a despesa pública.

Por tudo isto, o orçamento anual do Estado português tem sido, é, e continuará a ser, um exercício sado-masoquista de alcance enorme, nas palavras dos seus autores, mas nulo (quando não negativo), nos seus efeitos práticos. O país não se desenvolve com os orçamentos. O país desenvolve-se se conseguir aumentar a sua competitividade em todos os seus sectores de actividade. Em primeiro lugar, na administração pública que é, proporcionalmente, a mais cara da Europa, e que piores serviços presta - O peso das despesas públicas (das quais cerca de 90% representam, em média, a despesa corrente) subiu assim perto de 60% entre 1980 e 2004 (31% do PIB em 1980 e cerca de 48% em 2004), com o crescimento económico sempre em desaceleração. Parte substancial da riqueza que o país penosamente produz é assim sorvida por esse monstro insaciável. Em segundo lugar, criar mecanismos que levem ao aumento da competitividade do nosso sector produtivo, nomeadamente nos sectores abertos ao exterior.

Ora isso só é possível com um amplo consenso partidário, porque implica reformas estruturais profundas que irão bulir com hábitos instalados e porque implica um regime de austeridade prolongado. E, com esse consenso patriótico, os orçamentos de Estado poderiam ser um instrumento importante para afectar os recursos necessários às rubricas estruturantes, gerindo a sua escassez da forma mais eficiente para o desenvolvimento do país. Senão entramos no ciclo «eles governam, eles perdem» e a implementação de reformas, mesmo ligeiras e com alcance limitado, é sabotada. A cobardia do governo e a demagogia da oposição (quaisquer que sejam as cores partidárias de um e da outra) impede que se saia desse ciclo vicioso.

Basta lembrar que Orçamento de Estado é um instrumento de política económica, fiscal e financeiro que, em teoria, deveria ser de importância relevante para o país e, por via disso, ser discutido com seriedade e isenção. Mas tudo o que ouvimos e lemos são afirmações para fazer manchete e nada mais. Portanto, bem lá no fundo, a classe política e a comunicação social portuguesas estão convencidas do que eu escrevi acima. Na prática, em Portugal, o orçamento do Estado não passa de um exercício sado-masoquista irrelevante.

Como ninguém quer atacar a doença, pretende-se atacar alguns sintomas. Quando se fala em cortar na despesa contrapõe-se o combate à evasão fiscal. Mas o combate à evasão fiscal deve ser feito para reduzir a pesada carga fiscal que recai sobre os portugueses, a troco de muito pouco que eles obtêm em troca, nunca para satisfazer esse Moloch insaciável.

Parte dos pesados impostos que pagamos (nomeadamente o Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e o imposto automóvel) destina-se não só a alimentar esse monstro, mas também a restringir o consumo e as importações, para contrariar o abismo para onde caminham as nossas contas externas. Sem o aumento da nossa competitividade externa não haverá meio de sair dessa situação.

Bastou, em 2004, uma ligeira diminuição do sufoco, para se agravar substancialmente o défice comercial português que cresceu 20,3% nos oito primeiros meses de 2004, visto as importações terem tido um aumento de 9,1% e as exportações crescerem a um ritmo de 4,2%. A taxa de cobertura das importações pelas exportações desceu três pontos percentuais, face a igual período do ano passado, para os 66,4%. Ora o orçamento actualmente em discussão irá provavelmente agravar este défice. Todavia a oposição andou dois anos e meio a combater a austeridade do governo. Não se percebe como defende agora a austeridade, em vez exigir ainda maior desafogo orçamental. Isto é ... não se perceberia se Portugal fosse um país a sério.

Depois há gente que dá socos no ar. Em face dos números do desemprego os líderes sindicais afirmam que o aumento do desemprego é o resultado das políticas do chamado rigor orçamental que «os governos andaram a praticar nos últimos anos». «Essa falta de investimento conduz a esta degradação que vemos traduzir-se no desemprego ... Face à crise económica que Portugal atravessa, só uma forte aposta em sectores estratégicos poderá inverter a subida da taxa de desemprego».

Ora o investimento público, enquanto dura, dinamiza sobretudo a Construção Civil (embora haja alguma influência induzida noutros sectores). O seu aumento não influenciaria significativamente a taxa do desemprego, visto a quase totalidade dos desempregados não ser dessa área. Influenciaria, quanto muito, o fluxo imigratório. Além do que, o investimento público, como forma de produzir euforia económica, é como uma droga – só produz efeitos enquanto se está sob a acção dela. Quando passa o efeito, volta tudo ao mesmo.

Quanto ao investimento em sectores estratégicos, os líderes sindicais saberão do que falam? Os sectores estratégicos são altamente competitivos, e têm, na sua maioria, economias de escala muito elevadas, muito superiores à dimensão do mercado nacional. O Estado não está vocacionado para gerir esses sectores, como mostrou a seguir ao 25 de Abril, e cujo o exemplo mais acabado é o das petroquímicas de Sines. Deve haver investimento em sectores estratégicos, mas o papel do Estado será incentivá-lo, criando condições favoráveis para que ele se faça. Mas se são os próprios líderes sindicais, com a sua visão jurássica do mundo laboral, que dificultam o estabelecimento dessas condições?

Escreve-se com alguma frequência que Portugal é um país inviável. Ele não é inviável. É a nossa elite política, sindical e comunicacional que anda a tentar inviabilizá-lo.

Publicado por Joana às 09:46 AM | Comentários (27) | TrackBack

novembro 12, 2004

Pior era impossível!

As declarações dos políticos e dos fazedores de opinião sobre o Orçamento de Estado para 2005 revelam que atingimos em Portugal o grau zero da racionalidade política e económica. E daí, talvez esteja equivocada. Portugal é um país de talentos insuspeitos que se revelam inesperadamente – quando pensamos que batemos no fundo, verificamos, pouco tempo depois, que ainda havia mais um fundo por debaixo do fundo ... e assim sucessivamente. Vejamos a questão da alegada descida do IRS.

Em primeiro lugar, ninguém entre a classe política está de acordo sobre se o IRS irá baixar ou não. Ora sabendo-se que 8,6% de famílias subscreveram PPR e 9,3% Contas Poupança Habitação, não custa a acreditar que, segundo estimativas oficiais, 88% das famílias vejam o seu o IRS reduzido ou mantido e as restantes 12% das famílias o vejam aumentado. Até aqui parece simples.

Simplesmente, este orçamento é para vigorar em 2005. Logo, logicamente, se em 2005 as retenções na fonte fossem feitas com as novas tabelas, com taxas inferiores, e tendo os reembolsos do IRS ainda em consideração os benefícios fiscais válidos para o exercício de 2004, haveria uma descida de receitas em sede de IRS durante o exercício de 2005. Todos veriam o seu IRS a descer em 2005. Populismo, clamaram diversos políticos e fazedores de opinião – é o regresso do despesismo e da falta de rigor orçamental. São as eleições autárquicas a pressionar!

Entretanto o ministro veio avisar que as retenções na fonte seriam feitas de forma que, durante 2005, aquela desfasagem na cobrança do IRS não levasse a uma diminuição das respectivas receitas. Ora isso significa que a correcção à liquidação do IRS nas declarações de 2005, feitas em 2006, poderá fazer com que os contribuintes recebam reembolsos do IRS, mais chorudos, na véspera das legislativas de 2006. Populismo, clamaram diversos políticos e fazedores de opinião – é o regresso do despesismo e da falta de rigor orçamental. São as eleições legislativas a pressionar!

Confusos? Mas há mais. Cerca de 10% das famílias verão o seu IRS aumentar. Não será um aumento exagerado, mas terá algum significado. Admitindo que a massa total do IRS se mantenha (a preços reais), tal significa que 90% da população verá o seu IRS descer, em média, 11% da valor médio do aumento sofrido por cada família “mais abastada” ... ou seja ... não verá nada, ou só enxergará alguma coisa, se estiver mesmo muito atenta ... e for muito forte em aritmética.

Por isto tudo não é de admirar que uma sondagem elaborada pela Marktest indique que 56% dos portugueses estão convencidos que vão pagar mais IRS em 2005. Um governo decidir baixar os impostos com o intuito de satisfazer a população, e esta ficar com a ideia que eles vão subir, é o pior que pode acontecer a um governo. Mais valia não ter feito nada. Evitava ser criticado por descer os impostos. Evitava ser criticado por afinal não descer os impostos. Evitava o recurso a algumas receitas extraordinárias, isto se cortasse alguns dos benefícios fiscais (e parece-me que estes cortes deveriam ter sido faseados para evitar agravamentos bruscos de IRS para os contribuintes atingidos). Ou então, mantinha o recurso às receitas extraordinárias e distribuía fundos por alguns autarcas sequiosos de numerário para fazerem obras e botarem figura, tendo em vista a proximidade das eleições de Outubro de 2005.

O impacte da diminuição de IRS para cerca de 90% dos contribuintes vai ser muito pequeno. A engenharia fiscal compensando essa descida com o corte de benefícios fiscais é capaz de ter um impacte mais negativo na opinião pública, pois atinge uma minoria mais influente. O governo não conseguiu fazer passar uma mensagem explicando bem os resultados da uma política fiscal que, já de si, se prestava a confusões. Aliás passou diversas mensagens que se prestavam, cada uma, a interpretações ambíguas e eventualmente contraditórias. O clamor das oposições contestando uma coisa e a sua oposta, ajudou à entropia fiscal. A consabida iliteracia jornalística fez o resto.

Julgo que o governo deveria substituir alguns assessores de imagem por assessores de estratégias políticas consistentes. Fazer uma coisa, e ser penalizado por o eleitorado ficar convencido que vai fazer a oposta, indicia alguma imperícia na concepção estratégica.

Pior era impossível!

Nota - sobre o OE 2005, consultar ainda:
Transsexualidade Política
Casa onde não há pão

Publicado por Joana às 11:35 PM | Comentários (17) | TrackBack

novembro 11, 2004

A Morte de Arafat

O Fim de uma Época?

Arafat foi uma das vítimas mais notórias do 11 de Setembro de 2001. Até essa data o terrorismo poderia ser assimilado a uma forma alternativa de resistência contra a ocupação israelita, e muitos o entenderam como tal. Depois desse atentado tudo mudou. O mundo apercebeu-se que o terrorismo tinha ganho uma autonomia própria e monstruosa, e que já não era possível desculpá-lo, entendendo-o como uma forma de luta de resistência nacional.

A primeira Intifada havia sido um êxito. O mundo comoveu-se com os adolescentes palestinianos a enfrentarem com pedras os blindados israelitas. A luta determinada entre miúdos armados apenas de pedras e um exército pesadamente armado foi igualmente um factor de desmoralização para esse exército – um exército não foi mentalizado para enfrentar miúdos. Mesmo o apoio de Arafat ao Iraque aquando da invasão do Kuwait não impediu que o espírito da paz fizesse progressos e se assinassem os acordos de Oslo em 1993, que Arafat se instalasse na Palestina, no ano seguinte, e constituísse a Autoridade Palestiniana.

Essa evolução levou a que Arafat recebesse o Nobel da Paz. Diversas vezes os Prémios Nobel da Paz foram atribuídos a indivíduos que haviam estado envolvidos em acções violentas e em matanças, directa ou indirectamente. Mas prevaleceu sempre a tese do filho pródigo que regressa ao lar. Todavia a parábola do filho pródigo pressupõe que este deixe de ser pródigo, depois de acabado o conto. Está implícito na parábola. Infelizmente para Arafat, para os palestinianos e para as milhares de vítimas que se seguiram, tal não aconteceu.

O assassinato de Rabin provocou a paralisação no processo de concessão progressiva de autonomia à AP. A vitória de Ehud Barak relançou esse processo, mas Arafat não compreendeu as relações de força dentro da sociedade israelita e fez falhar a cimeira com Clinton e Barak pensando que este cederia com uma segunda Intifada.

É certo que esses acordos congelariam a ocupação de 5% da Cisjordânia por Israel e impediriam o regresso dos refugiados. Mas Israel nunca aceitará, sem ser pela força das armas, a entrada no seu território (que, descontando o deserto do Neguev, tem uma densidade demográfica de mais de 700 hab/km2) de uma população de vários milhões de pessoas que, na sua quase totalidade, já nasceu na diáspora. É óbvio que aqueles acordos seriam difíceis de justificar perante uma população embalada pelo radicalismo político. Mas seriam tanto para Arafat como para Barak junto de cada um dos seus povos. Os acordos de paz exigem cedências mútuas, a menos que uma das partes tenha sido liquidada militarmente pela outra.

Ora a segunda intifada, desencadeada semanas depois, a pretexto da visita de Sharon à esplanada das Mesquitas, falhou completamente os objectivos. Em primeiro lugar, Arafat apostou nas armas e no terror, em vez das pedras dos adolescentes. O terror liquidou de facto Ehud Barak, mas para levar ao poder Ariel Sharon. Portanto a primeira consequência da estratégia de Arafat foi a eleição de Ariel Sharon e o progressivo declínio da esquerda israelita.

A segunda consequência decorreu do 11 de Setembro, ocorrido um ano após o início da segunda Intifada. A partir do 11 de Setembro, a opinião pública mundial prevalecente foi a de que não havia terroristas bons, nem terroristas maus. Eram todos abomináveis. Adicionalmente a visão dos palestinianos a festejarem o derrube das torres gémeas caiu certamente muito mal entre os americanos, e não só. A partir do 11 de Setembro Arafat passou a ser, para os americanos, apenas um terrorista, e a própria União Europeia teve que aceitar as teses americanas. Diversas organizações palestinianas foram declaradas terroristas e deixaram de receber subsídios da UE. O terrorismo de Arafat passou a ser contraproducente.

Para salvar as aparências, Arafat apostou numa postura hipócrita: Falando para os meios de comunicação ocidentais condenava, em inglês, o terrorismo. Mas em árabe fazia discursos populistas inflamados que, objectivamente, incentivavam a população palestiniana para acções terroristas. Só após muitas insistências e um ultimato da administração Bush, Arafat se decidiu a fazer, em árabe, uma declaração pública de condenação do terrorismo.

Uma outra consequência foi que as autoridades europeias, em face dos escândalos de corrupção de Arafat e da AP, que entretanto começaram a ser divulgados publicamente, se viram forçadas a abandonar a sua atitude de hipocrisia sobre factos que certamente conheciam, mas que fingiam ignorar. Arafat foi compelido a aceitar, para voltar a receber os subsídios, uma comissão de inquérito sobre a origem da sua fortuna pessoal e sobre a corrupção na AP e a nomear Salaam Fayad para ministro das finanças. A 2ª intifada havia arruinado completamente a economia palestina e a AP precisa desesperadamente de auxílio internacional.

Uma outra imposição internacional foi a criação da figura de 1º Ministro, com o objectivo ilusório de neutralizar Arafat. Arafat viu-se constrangido a indigitar Abu Mazen, em Março de 2003, para ocupar o cargo. Mas Arafat deu com uma mão e tirou com a outra. Tirou o tapete debaixo dos pés de Abu Mazen e levou este a demitir-se 6 meses depois. A demissão de Abu Mazen veio sedimentar a ideia que, com Arafat, não haveria possibilidade de avançar no processo de paz.

Resta saber o que vai acontecer agora. Os líderes mundiais multiplicam-se em declarações hipócritas, elogiando as qualidades de Arafat e dizendo que agora podem estar criadas as condições para uma paz. Então, se a morte de Arafat pode criar condições para a paz, que qualidades o Nobel da Paz Arafat tinha que impediam essa paz?

As primeiras decisões são salomónicas: o radical Faruk Kaddumi, contrário aos acordos de Oslo e que quer lançar os israelitas ao mar, tornou-se o chefe da Fatah, permanecendo em Tunes. O pragmático Abu Mazen passou a chefiar a OLP e Ahmad Qorei mantém-se 1º-ministro.

Resta saber se Abu Mazen e Ahmad Qorei conseguem controlar o Hamas, a Jihad Islâmica e as Brigadas dos Mártires de Al Aqsa. Se o conseguirem colocarão Ariel Sharon numa situação em que este terá dificuldade em colocar obstáculos ao processo de paz. A direita israelita é sustentada eleitoralmente pelo terrorismo dos radicais palestinianos. Se o terrorismo acabar, as forças da sociedade israelitas mais favoráveis a cedências e ao apaziguamento emergirão e poderá haver uma oportunidade para a paz. Todavia dificilmente os palestinianos alcançarão mais do que o que esteve quase acordado em Camp David.

A táctica dos falcões israelitas poderá ser a de ir colocando alguns paus na engrenagem do processo, de forma a que os radicais palestinianos sejam tentados a retomar os actos terroristas, criando o cenário de que os novos dirigentes da AP são incapazes de governar o país e controlar o terrorismo. Mas não é fácil implementá-la. A morte de Arafat suscitou uma esperança generalizada de que haveria agora condições para a paz. O governo israelita está obrigado, por esse clima, a mostrar abertura perante o processo de paz, senão diminuirá a sua credibilidade externa e interna, podendo as próximas eleições fazer com que “as pombas” substituam os “falcões”.

A bola está do lado da AP. Se ela manobrar com habilidade pode colocar o governo israelita na contingência de fazer algumas cedências e aceitar a instauração de um Estado palestiniano com fronteiras viáveis. Se não conseguir controlar os grupos radicais as suas possibilidades de êxito serão nulas, com a agravante que terá menos capacidade que Arafat em manter a unidade palestiniana. Se a AP falhar poderemos ver o caos instalar-se em Gaza e na Cisjordânia, o que não interessa a ninguém, nem mesmo aos israelitas.

A minha opinião sobre Arafat foi mudando ao longo dos anos. Apoiei a 1ª Intifada, e até à instalação da AP considerei Arafat um homem corajoso, empenhado na paz, que havia abandonado a fase do terrorismo. Fiquei chocada com o assassinato de Rabin e detestei a política israelita do “Bibi”até à ascensão de Barak. Fiquei todavia muito decepcionada com a rejeição por Arafat da “paz dos bravos”, dos acordos de Camp David. Na altura, apenas considerei que havia sido um erro político. Depois, com o encadeamento dos factos posteriores e o começo da 2ª Intifada, apercebi-me que essa rejeição fazia parte de uma manobra política para vergar os israelitas através do terrorismo. Manobra política completamente estúpida, como se viu, e que levou Arafat e os palestinianos à situação actual. O 11 de Setembro foi outro elemento catalizador da minha rejeição da política de Arafat. O terrorismo é o mal absoluto e é um crime (ou um suicídio) pactuar com ele. Antes tal não seria claro, mas depois daquele dia passou a ser.

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novembro 10, 2004

Atrasado para o Funeral

Já está tudo organizado. As exéquias realizam-se no Cairo, na próxima 6ª-feira, e no sábado será enterrado em Ramallah, no seu QG de Muqata. Diversos estadistas, políticos e outras personalidades do mundo inteiro já estão convidados para aqueles dois eventos que serão retransmitidos por todo o planeta.

Percebe-se, em tudo isto, uma sólida capacidade de decisão e organização. A escolha dos locais, os convites, os lugares e a sua distribuição, sempre delicada para não ferir susceptibilidades, a parte logística, os abastecimentos, as flores, as instalações sonoras, a sequência dos cânticos, a colocação das câmaras, etc., etc..

Apenas falta uma minudência. É pequena, está mirrada, está silenciosa e está imóvel, mas deveria ser o protagonista principal daqueles eventos – Falta o cadáver de Arafat!

Mas Arafat, que sempre foi um obstinado, para o bem e para o mal, recusa-se sistematicamente a morrer. Há uma semana estava em coma; no dia seguinte foi dado em estado de morte cerebral; anteontem afirmava-se que tinha apenas algumas horas de vida. Os organizadores dos eventos roem as unhas nervosos ... toca o telefone ... acorrem pressurosos – o gajo já ... ? – pergunta-se com angústia, e a resposta é um abanar desolado da cabeça: nada ... isto está a ficar feio ... ainda temos que devolver os bilhetes ...

A mulher de Arafat, Suha, acusou anteontem a direcção palestiniana de querer "enterrar vivo" o seu marido. Julgo que Suha não está a compreender a gravidade da situação. As mulheres têm frequentemente destes desvarios: não terem a racionalidade adequada à grandeza dos acontecimentos. Vivo ou morto (de preferência morto, como diriam aqueles cartazes no Far-West), Arafat terá que comparecer, 6ª feira ao seu próprio funeral. Todos o exigem, está tudo marcado e seria de uma enorme deselegância para com todos os convidados, se Arafat não comparecesse.

A Autoridade Palestiniana assumiu compromissos e terá que os cumprir. Suha terá que se conformar. Sexta-feira, vivo ou morto, Arafat estará no Cairo como prometido.

Publicado por Joana às 11:10 PM | Comentários (25) | TrackBack

Lazareto Semiramis II

Ao Luis Rainha (novembro 10, 2004 02:57 PM)

Em primeiro lugar queria reconhecer que não me apercebi das 2 notícias sobre o assassínio do Van Gogh. Elas já estavam arquivadas e eu só percorri a página principal. Sem os links que me deu agora, eu nunca chegaria lá, visto ser raríssimo eu abrir o BdE (fui lá ontem porque você teve a amabilidade de me visitar). Não é por má vontade política que eu não frequento o BdE. De forma alguma ... não veja nisto qualquer discriminação. Talvez algum elitismo cultural que eu tenho que ultrapassar, que fazer um esforço sobre mim própria. Veja que eu nem consigo abrir o 24 Horas ... nem mesmo o Correio da Manhã.

Do facto pedia-lhe imensas desculpas. Mas alego uma atenuante "p.c.": sou mulher e os 3 milénios de civilização judaico-cristã, para além da minha vida profissional, fazem com que o tempo, para mim, seja um bem muito escasso e me leve a exegeses apressadas.

Mas agora, lendo melhor aqueles dois textos (afinal teria sido preferível eu continuar com exegeses apressadas), verifico que o recato e a discrição no uso das palavras com que o BdE trata o assunto se inscrevem perfeitamente na tipologia do politicamente correcto que eu defini no meu post, exactamente no parágrafo dedicado ao assassínio do Van Gogh. Além do mais a vandalização da fachada de uma escola islâmica não será tão grave como o assassínio de um cineasta europeu e loiro por delito de opinião?

Por falar em pressas, você também leu apressadamente o meu texto. Eu não o critiquei a si “propósito de textos alheios”. Eu escrevi “Quando fui agora a Blog de Esquerda ... reparei que ... se referiram”. A 2ª pessoa do plural refere-se ao colectivo do BdE e nunca se prestaria a confusões, a menos que você, empolgado pelo seu apelido, utilize o plural majestatático “nós” para se referir a si próprio. Se for esse o caso, se você, quando se refere a si próprio, diz “nós” em vez de "eu", então peço-lhe repetidas desculpas.

Outra coisa: quando você diz que eu estou a “esconder a verdade ... por preguiça de melhor procurar”, não está a repetir, mutatis mutandis, o que o ministro Gomes da Silva disse sobre a “cabala não intencional” e que tanta galhofa desencadeou no país? Você não estará a ser colonizado mentalmente por aquele ministro. Será que os miasmas emanados do ministro são mais infecciosos que os que pairam no Semiramis?

Quanto a algumas afirmações que produz, acho-as perfeitamente naturais. Sendo você Rainha e usando “nós” como plural majestatático, é lógico que nos veja como complemento de si: a Branca de Neve e os anões. Só lhe fica bem trazer à colação uma história que deliciou as nossas infâncias, ainda por cima aceitando protagonizar o ingrato papel de vilão.

Para terminar, se pedi desculpas, foi por uma omissão involuntária, e não para lhe desfazer qualquer ideia. Aliás, julgo que mesmo depois de um tirocínio prolongado numa pedreira, aprendendo afincadamente o manejo de uma picareta, eu seria incapaz de lhe desfazer uma ideia, qualquer que ela fosse.

Todavia tenho que corrigir algo, a que aliás já me chamaram a atenção. Eu escrevi que só estava de acordo consigo numa coisa: a de estarmos ambos certos do seu enorme talento. Embora tivesse sido sem intenção, talvez por falta de esclarecimento ... as pressas ... menti-lhe descaradamente. Pois é, LR: até nisso estamos em total desacordo.

Publicado por Joana às 07:33 PM | Comentários (14) | TrackBack

novembro 09, 2004

O Lazareto Semiramis

Sempre me interroguei com que se pareceria este blogue. A resposta veio hoje, liminar e definitiva: Um Lazareto mental. Às vezes, é na voz dos simples (no caso, o Luís Rainha do Blogue de Esquerda) que aparecem as verdades mais inesperadas.

O Lazareto é um estabelecimento cheio de tradições: era inicialmente destinado a isolar pessoas vindas de localidades onde grassavam doenças contagiosas, em particular as chamadas moléstias pestilenciais. A par das pessoas eram isoladas as mercadorias e bagagens durante o tempo julgado suficiente em cada época, para os elementos transmissores perderem a sua capacidade de contágio. Chamava-se a isso pôr de quarentena. E quem ordenava estes internamentos eram os guardiães da saúde pública, investidos dessa suprema autoridade. Era o Lazareto físico.

A net impede o contacto físico, permitindo apenas o contacto a nível da opinião e do debate de ideias. Portanto, a designação de Lazareto mental, tão oportunamente dada por LR-BdE ao meu blog, terá que ser vista em termos de isolar as ideias mais molestas e pôr o pensamento mais contagioso de quarentena. E que bem que LR-BdE sabe assumir esse papel! Chegou aqui, ao post Intolerância Congénita, avisou de passagem um comentarista desprevenido, que estava nesta gafaria mental em risco iminente de contágio, e saiu apressadamente antes que os miasmas que flutuam insidiosamente pelo Semiramis pudessem penetrar através da poderosa couraça de betão e aço que, com vários centímetros de espessura, lhe protege o que lhe sobejou da massa encefálica.

Pois é, LR-BdE, nós aqui vivemos na mais estouvada e indecente promiscuidade mental. Temos opiniões diferentes e contrárias, expomo-las e ouvimo-las, incautamente impassíveis a contágios, arremessamos violentamente os vírus mentais mais infecciosos uns aos outros, com uma agressiva e pestilencial vontade de contagiar e corromper. Mas o mais surpreendente é que a nossa estrutura mental mantém-se praticamente incólume. Todos os dias porfiamos em contaminar os outros, e eles a nós, sem qualquer recato ou escrúpulo pelas prescrições dos guardiães da mente. Mas à força de tão prolixa troca de vírus, devemos ter criado tantos anti-corpos, que não há volta a dar. Ficamos na mesma!

Não, LR-BdE, apenas aparentemente ficamos na mesma. Em primeiro lugar aprendemos a respeitar e prezamos cada vez mais as opiniões dos outros, mesmo quando discordamos irredutivelmente delas. Em segundo lugar, as nossas próprias opiniões, mesmo quando se mantêm no essencial, temperam-se com o que nos vai chegando das opiniões dos outros – ou robustecem-se pelo exercício e força da nossa argumentação, ou transfiguram-se, em diversos dos seus aspectos, pelo reconhecimento do peso da argumentação contrária. Em qualquer dos casos, tornam-se sempre mais rigorosas e cosmopolitas.

A mente exercita-se no debate e na controvérsia, por muitos vírus que esse exercício licencioso e promíscuo transmita. Aliás, quanto mais vírus trocarmos, mais resistências ganhamos, mais robustecemos as nossas mentes e menos expostos ficamos a epidemias que por vezes surgem. Foi por não seguir este avisado conselho que Eduardo Prado Coelho se tornou, sempre, na primeira vítima de qualquer surto intelectual e cultural que assole o país (ou Paris de França). Aquele homem apanhou todas as viroses intelectuais que devastaram Paris e Portugal nos últimos sessenta anos. Não escapou a nenhuma, nem às suas mais imperceptíveis mutações. LR-BdE, pense bem! Pretende seguir este doloroso e insalubre exemplo?

Quando fui agora a Blogue de Esquerda em busca dos “links” (onde encontrei, com atónita surpresa, LR-BdE repetidamente virado para Deus), reparei que, finalmente e contrariando o que se poderia extrair do que eu havia escrito na véspera, se referiram ao assassinato de Theo van Gogh. Isto é ... apenas indirectamente ... pois o que o BdE pretendia mostrar era a sua indignação e apreensão pelo ataque a uma mesquita perpetrado por alguém com espírito de vendetta. O título é «O Assustador Presente da Holanda» e o que era assustador, era o ataque à mesquita. Objectivamente, o BdE não encontrou nada de assustador no assassinato de um agente cultural por este haver realizado um filme sobre o humilhante papel da mulher na sociedade islâmica. Quem teve a paciência de me ler até aqui, agradecia que recortasse este parágrafo e o colasse no post anterior sobre o “politicamente correcto”. É um dos paradigmas mais perfeitos dessa praga maniqueísta.

LR-BdE, você não quer aparecer por aqui, de peito aberto, pulmões carentes de oxigenação, sorver em longos e profundos haustos, todos estes miasmas corruptores da mente? Todos estes vírus insidiosos que inflectem a mente e corrompem a visão totalitária? Porquê persistir na Totalidade, em vez de se abandonar, por exemplo, ao Único (e sua Propriedade), começando pelo início absoluto: «A minha causa é a causa de nada»? Mas para isso teria que aceitar a morte de Deus e abandonar o folhetim (1,2,3, 4 e só Allah, o misericordioso, sabe quando terminará) a que hoje está a dedicar todo o seu enorme talento, talento que ambos admiramos intensamente, e que é a única matéria sobre a qual estamos presentemente de acordo.

Nota - Ler a réplica:
Lazareto Semiramis II

Publicado por Joana às 07:49 PM | Comentários (31) | TrackBack

novembro 08, 2004

Politicamente Correcto

Várias vezes tenho usado o termo politicamente correcto, ou o termo “intelectuais bem pensantes”, ou seja, os intelectuais que pensam “politicamente correcto”. Embora o termo tenha sido importado, directa ou indirectamente, dos EUA, ele ganhou autonomia própria e “nacionalizou-se”. Portanto não me vou interessar pela sua génese e avatares além fronteiras.

O politicamente correcto é comportar-se e pensar de acordo com os cânones impostos pela ideologia dominante. Mas essa ideologia não é necessária e exclusivamente política. Misturam-se nela diversos conceitos – puritanismo, censura, dogmatismo, ditadura das minorias, obrigação de fazer de qualquer particularismo uma lei geral para a comunidade, eliminação do fantasma de se tornar minoritário pela subvalorização da normalidade e das decisões ou da vontade da maioria, etc.

Do ponto de vista da ditadura sobre o pensamento, o politicamente correcto é o equivalente actual da moral burguesa, só que de sinal contrário quanto aos conceitos que erige em absolutos, o que é normal, visto a ideologia dominante se ter ela própria modificado. Portanto, todos os disparates que a ditadura da moral burguesa fez viver os nossos avós, equivalem àqueles que o politicamente correcto nos tenta impingir actualmente. Com uma diferença – a moral burguesa preocupava-se mais com o comportamento que com a política ou o pensamento, enquanto o politicamente correcto é totalitário porque invade tudo, incluindo aquilo que tínhamos de mais íntimo: o pensamento.

Formalmente o politicamente correcto é o depósito de todas as virtudes: prega a igualdade entre todos, o respeito pelo outro sob qualquer forma, o anti-racismo, a tolerância para com todas as outras crenças políticas e religiosas. O politicamente correcto abre apenas uma excepção a esta tolerância universal: O politicamente incorrecto é absolutamente interdito. Sendo assim, o politicamente correcto consiste na observação da sociedade e da historia em termos maniqueístas: O politicamente correcto representa o bem e o politicamente incorrecto representa o mal.

O politicamente correcto tem portanto a característica de uma religião total, pois para além da moral e do comportamento, abrange a política, a sociologia, as ciências da comunicação, etc., etc.. Não existe no plano económico, porque os protagonistas do politicamente correcto apenas se movem nas áreas das ciências humanas onde os critérios de validade são assegurados por quem tem mais verve ... ou quem tem uma corte mais numerosa. Em economia apenas utilizam frases simples: subsidiar os menos favorecidos, aumentar o emprego, atingir a igualdade social, etc.. Como não sabem fazer contas é-lhes despiciendo o saber como isso se faz, quanto custa e quem vai pagar. O politicamente correcto não abrange portanto as ciências baseadas em números, pois os números têm uma característica incómoda – não dependem da raça, do credo ou das preferências sexuais. São uns chatos!

Assim, para o politicamente correcto só há uma verdade: a sua. O politicamente correcto defende a tolerância ... mas apenas para o que é a sua verdade.

Neste universo perfeito é exaltante ser-se politicamente correcto, pois tem-se sempre a resposta certa para tudo. Só que têm que se fazer as penitências necessárias. Por exemplo um branco, para se tornar politicamente correcto, tem que assumir a sua culpa original por ter participado, mesmo in absentia, na escravatura, nos genocídios, no extermínio das espécies e nos maus tratos aos animais, etc.. As mulheres brancas têm um nível inferior de culpa, pois embora tenham nos seus currículos aqueles pecados originais, têm a atenuante de haverem sido vítimas de três mil anos de civilização judaico-cristã. Apenas uma espécie não tem qualquer culpa: a mulher negra, de uma crença não cristã, imigrante, sem-abrigo e lésbica.

Mas mesmo uma mulher, para se manter politicamente correcta tem que ter imenso cuidado: saber se o que usa para a maquilhagem não teria sido testado em animais, nunca usar peles ou tecidos oriundos de animais, reciclar todos os sobejos das refeições até à exaustão, ou até ao divórcio por alegada tentativa de envenenamento alimentar, etc.

Todavia, para o politicamente correcto, a mulher está num nível menos elevado que a etnia. O politicamente correcto zela pela igualdade dos sexos, mas é extremamente tolerante e compreensivo para os grupos étnicos ou religiosos que degradam a vida das mulheres e fazem delas suas vítimas.

Vejamos alguns exemplos:

Não é politicamente correcto referir a origem étnica dos delinquentes. Sempre que algum órgão de comunicação não conseguia evitar essa referência (na TV há dificuldade em impedir que o telespectador veja a etnia do delinquente) aparecia uma organização, SOS Racismo, a chamar a atenção para aquele conteúdo racista. De há alguns anos a esta parte, o SOS Racismo tem aparecido muito menos, porque verificou que o resultado junto da opinião pública era exactamente o oposto. As pessoas sentiam-se injustiçadas por julgarem que haveria uma protecção especial para delinquentes de outras etnias. Eis um exemplo em como o politicamente correcto anti-xenofobia fez, para surpresa dos p.c., aumentar a xenofobia.

Não é politicamente correcto gostar de touradas ou de tudo o que envolva qualquer sofrimento público dos animais. Os animais devem ser abatidos discretamente e aparecerem nos nossos pratos disfarçados de bifes. Como o politicamente correcto é um animal urbano, ele tem dificuldade em se aperceber que existe qualquer relação entre um bife, um entrecosto grelhado e qualquer espécie animal, por isso fica tranquilo enquanto se delicia com uma galinha de cabidela. Depois das grandiosas manifestações de massas que os arautos do politicamente correcto organizaram em Barrancos, em que cerca de cem pessoas, agitando centenas de cartazes repletos de frases politicamente correctas, condenaram firmemente as touradas, nunca estas estiveram tão em voga. O entusiasmo por esse espectáculo bárbaro aumentou em flecha. Esta é, aliás, a faceta mais brilhante do politicamente correcto – Obter junto da opinião pública o efeito exactamente oposto do que pretende.

Não é politicamente correcto pretender para as outras culturas o que se exige para a nossa. Os quadrantes políticos que mais pugnam pela descriminalização do aborto, foram aqueles que conseguiram adiar, na AR, o estabelecimento de legislação que condenasse a excisão do clítoris, a pretexto de se tratarem de culturas tradicionais e que era necessário, previamente, um estudo mais aprofundado.

Há dias foi assassinado, numa rua de Amesterdão, em pleno dia, Theo van Gogh, que havia realizado um filme sobre o humilhante papel da mulher na sociedade islâmica. Já havia recebido ameaças de elementos islâmicos. O suspeito do assassínio foi descrito como tendo barba comprida, estar vestido como um muçulmano e ter nacionalidade marroquina. Qualquer descrição que ultrapassasse esta forma de adivinha poderia ser considerada racista e xenófoba. Este assassinato tem permanecido relativamente em silêncio nos meios intelectuais. É natural, o politicamente correcto tem dificuldade em lidar com europeus loiros serem assassinados por muçulmanos de barba comprida. Se fosse o contrário, toda a intelectualidade estaria a redigir proclamações e abaixo-assinados de protesto. Neste caso o politicamente correcto tem o dever de ser discreto, pois se o não fosse poderia passar por racista, xenófobo, etc..

Também em matéria de ditaduras, o politicamente correcto é extremamente exigente. Ditaduras terceiro-mundistas, ou que se invoquem do anti-capitalismo ou do anti-americanismo são ditaduras boas. Em contrapartida, qualquer regime democrático que se lhes oponha é um regime imperialista e opressor.

O politicamente correcto é insidioso porque se insinua sob diversas formas, inocentes e de fácil assimilação. Começa pela linguagem. O vocabulário politicamente correcto é o principal veículo de contágio. O politicamente correcto usa eufemismos na sua linguagem. Determinadas expressões são condenadas a serem eliminadas do vocabulário para evitar associações de tipo discriminatório. Por exemplo, já não se diz contínuo da escola, mas Auxiliar da Acção Educativa, as mulheres a dias passaram a ser empregadas domésticas, os varredores de rua a serem técnicos de limpeza e jardinagem, etc.. Há determinadas categorias para as quais já se torna difícil encontrar no léxico uma denominação adequada, como no caso dos homossexuais. Mas há sempre o recurso aos circunlóquios.

A desintoxicação é difícil, na medida em que vivemos num mundo em que os meios de comunicação adquiriram uma importância desmedida e são estes os principais agentes encarregados da contaminação maciça. O primeiro remédio consiste em tomar consciência de que o politicamente correcto existe e que circula sobretudo através do nosso vocabulário. O segundo remédio consiste em pôr em prática a renúncia a toda a terminologia politicamente correcta e às ideologias nas quais ela se apoia. Chamar as coisas pelos nomes!

Como disse acima, há necessidade de uma contínua renovação de linguagem para caracterizar um conjunto de pessoas que executem uma tarefa considerada de menor nível, ou que tenham qualquer diferença que as tornem uma minoria, pois as palavras vão-se desvalorizando com o uso. O léxico vai-se esgotando. Quando isso acontece, os eufemismos utilizam circunlóquios cada vez mais tortuosos. Cito um exemplo retirado da Wikipedia (cf “Political correctness”). A forma politicamente correcta de escrever a frase "The fireman put a ladder up against the tree, climbed it, and rescued the cat" deveria ser:

"The firefighter (who happened to be male, but could just as easily have been female) abridged the rights of the cat to determine for itself where it wanted to walk, climb, or rest, and inflicted his own value judgments in determining that it needed to be 'rescued' from its chosen perch. In callous disregard for the well-being of the environment, and this one tree in particular, he thrust the mobility disadvantaged-unfriendly means of ascent known as a 'ladder' carelessly up against the tree, marring its bark, and unfeelingly climbed it, unconcerned how his display of physical prowess might injure the self-esteem of those differently-abled. He kidnapped and unjustly restrained the innocent animal with the intention of returning it to the person who claimed to 'own' the naturally free animal."

P.S. - Estava a escrever isto e a ver na TV o Miguel Portas dizer que o facto de contas bancárias, onde se decobriu estarem depositadas muitas centenas de milhões de euros, estarem no nome de Arafat, não significava que o dinheiro era dele. O azar do Isaltino foi não ter enfiado um turbante, deixado crescer a barba, passar a chamar-se Al-Satino. Então Portas passaria também a ter fundadas dúvidas. Este é um exemplo típico do politicamente correcto, acabado de vir directamente do produtor.

Publicado por Joana às 11:00 PM | Comentários (50) | TrackBack

novembro 07, 2004

Intolerância Congénita

... Ou de Dreyfus a M Moore, passando por Lukacs ...

Uma parte não despicienda do espectro político da esquerda portuguesa perdeu o sentido das proporções, perdeu a noção do significado prático dos valores democráticos e perdeu o espírito de tolerância e do respeito pelas opiniões que não sejam absolutamente coincidentes com as suas.

Provavelmente estou a ser lisonjeira. Provavelmente esta esquerda a que me estou a referir nunca teve o sentido das proporções, nunca praticou os valores democráticos e sempre foi intolerante e totalitária.

Mas enquanto a esquerda foi oposição, o fragor da luta contra regimes frequentemente retrógrados, intolerantes e despóticos, obscurecia todas aquelas facetas. Quando a peleja é extremada e sem quartel, é-nos impossível, por vezes, distinguir onde acaba a bravura e começa a crueldade e a malevolência; onde há ética ou onde há apenas facciosismo. Porém, quando a situação se inverte, as dúvidas desaparecem e os que eram, de facto, bravos na época de sofrimento e opressão, revelam-se gente honrada, tolerante e sensata e os outros, os apenas cruéis e facciosos, revelam-se indignos, intolerantes e émulos dos ex-opressores.

Sempre tive, e tenho, simpatia pelos dreyfusards e pela sua luta, que tanta influência teve na História. Reconheço todavia que a maioria deles pôs, nesse combate, tanta intolerância e desdém pelos outros, como a direita militarista. Zola foi tão intolerante quanto o general Mercier. A diferença é que o Ministro da Guerra estava envolvido, embora na altura não o soubesse, numa fraude que fundamentava uma acusação falsa, enquanto Zola defendia a verdade, embora na altura não tivesse provas disso. Isso não invalida que Zola estivesse no lado certo e Mercier no lado errado.

Nessa disputa que, embora hoje esquecida, marcou a evolução futura da França, e não só, a tolerância, a racionalidade e o heroísmo estiveram na parte sã do exército francês, no coronel Picquart, um conservador, com preconceitos contra os judeus, mas que quando começou a analisar as provas que tinham levado Dreyfus à Ilha do Diabo, descobriu que o documento incriminador era forjado e pôs a verdade acima das suas convicções políticas e sociais, lutou e sofreu por essa verdade (foi expedido para a zona de combate mais perigosa do norte de África e esteve preso algum tempo) e a ele se deve o deslindar do caso, embora, se não fosse a agitação promovida pelos dreyfusards, aquele caso tivesse provavelmente caído no esquecimento e Picquart nunca fosse chamado a analisar as peças do processo Dreyfus.

Mas esta luta marcou o declínio da época da prevalência da objectividade e da racionalidade na procura da verdade. No mesmo dia (13 de Janeiro de 1898) em que era publicada no Aurore a carta aberta a Félix Faure (J’Accuse), o grupo parlamentar socialista reunia-se e a maioria decidia, a alguns meses das eleições seguintes, que não deve ir contra a opinião pública para seguir Zola, que era apenas um escritor burguês. Dias depois os deputados socialistas assinariam uma resolução distanciando-se das «duas fracções rivais da classe burguesa», de um lado «os clericais» do outro, «os capitalistas judeus». «Na luta convulsiva das duas fracções burguesas rivais, tudo é hipocrisia, tudo é mentira. Proletários, não vos envolvais em nenhum dos grupos desta guerra civil burguesa ... ». Esta posição só mudou quando Jaurés percebeu os dividendos políticos que obteria se apoiasse os dreyfusards.

O terramoto pelo qual passou a Europa, a partir do deflagrar da 1ª Guerra Mundial e da Revolução de Outubro (que hoje faz 87 anos), acelerou a degenerescência da objectividade e do racionalismo. Ao contrário do que Lukacs escreveu, a Destruição da Razão (Die Zerstörung der Vernunft) não se deu apenas no pensamento alemão que, segundo ele conduziu de Schelling e Nietzsche até Rosenberg e Hitler, deu-se igualmente pela emergência e divulgação do marxismo soviético, na sua forma estalinista, à qual aquele livro, publicado no ano anterior à morte do Pai dos Povos constituía uma respeitosa elegia. O que houve de perverso é que a verdade deixou de ser matéria objectiva, para ser matéria operacional: a verdade era a interpretação (ou mesmo a deturpação ou a invenção) dos factos que servissem os interesses da classe que tinha por missão histórica derrubar o statu quo existente, e quem faria essa exegese sobre o que era a “verdade” seria a elite política que se atribuía a si mesma a direcção daquela classe.

Aliás, já na História e Consciência de Classe (Geshichte und Klassenbewusstsein), Lukacs se havia empenhado em demonstrar que as ideologias de classe não são equivalentes e que a ideologia da classe proletária é a verdadeira, porque o proletariado, na situação que lhe impõe o capitalismo, é capaz, e só ele é capaz, de pensar a sociedade no seu desenvolvimento, na sua evolução a caminho da revolução, e portanto na sua verdade. No mundo capitalista, o proletariado, e só o proletariado, pensa a verdade do mundo, porque só ele pode pensar o futuro para lá da revolução.

A perversidade teórica de que a verdade é aquilo que serve os nossos interesses, individuais ou de classe, e que os factos não passam de meros empecilhos, agiu como um vírus que já viciara a extrema direita e contaminou toda a esquerda que foi influenciada pelo marxismo. Como a extrema direita foi posta de quarentena a seguir à 2ª Guerra Mundial, coube apenas ao marxismo, na sua forma degenerativa corrompida pela praxis político-filosófica, colonizar o pensamento da maior parte da esquerda e não só.

A responsabilidade do combatente deve sobrepor-se aos escrúpulos do intelectual. A crítica ideológica joga, com naturalidade, em 2 tabuleiros. Ela é moralista contra uma parte do mundo, aquela a que nos opomos, mesmo que seja aquela onde vivemos, e em extremo indulgente perante os movimentos que querem destruir esse mundo. A repressão nunca é excessiva, antes pelo contrário, quando atinge a “contra-revolução” ou é ministrada por um movimento radical ou revolucionário (ou terceiro-mundista, ou islamista ...). A prova da culpabilidade é sempre insatisfatória, quando ministrada pela justiça dos países ocidentais sobre aqueles que os querem destruir.

Basta citar o lamentável poema de Aragon no regresso do Congresso de Kharkov (1931), para nos apercebermos como o vírus da perversão da verdade e dos valores democráticos havia minado a base moral da nossa civilização:

O som da metralha acrescenta à paisagem
Uma alegria até então desconhecida
Estão a executar médicos e engenheiros
Morte aos que ameaçam as conquistas de Outubro
Morte aos sabotadores do plano quinquenal

A toda esta lamentável evolução se referiu então Julien Benda na La Trahison des Clercs, onde se dá conta daquela rotura. O intelectual era anteriormente o campeão do eterno, da verdade universal. «Os intelectuais de outrora afastavam-se da política pela ligação que estabeleciam com uma actividade desinteressada (Vinci, Malebranche, Goethe), ou então pregavam, em nome da humanidade ou da justiça, a favor de um princípio abstracto, superior e directamente oposto às paixões políticas (Erasmo, Kant, Renan) ... Graças a eles pode dizer-se que, durante dois mil anos, a humanidade praticava o mal, mas honrava o bem. Essa contradição era o ponto de honra da espécie humana e constituía a brecha por onde podia passar a civilização».

Para Benda, os intelectuais contemporâneos dele (e os que lhe sucederam, digo eu) colocaram-se ao serviço das paixões políticas, tornaram-se intelectuais de fórum:«O nosso século deve ser realmente o século da organização intelectual dos ódios políticos»

Esta doença degenerativa da espécie intelectual, que afectou sobretudo, no mundo ocidental, os países onde a consciência cívica estava menos disseminada por toda a sociedade: França e países do sul da Europa, criou o estatuto do intelectual comprometido, do jornalista de causas. Sartre (na apresentação dos Temps Modernes) teorizou essa degenerescência, elevada por ele a postulado teórico. Quer se queira quer não, «para nós o escritor não é Vestal nem Ariel – ele está “no momento”, e não importa o que faça, está marcado e comprometido mesmo no seu retiro mais remoto» ... «Cada palavra tem repercussões. Cada silêncio também ... as palavras são pistolas carregadas».

Este vírus tem sido endémico em toda a intelectualidade e jornalismo portugueses e tem vindo a condicionar, não apenas o discurso estritamente individual do plano ético, mas ainda e de forma excessiva o debate ideológico e político. Vejamos, a propósito disso, o comportamento dos nossos intelectuais da “verdade à medida dos nossos desejos”, face às eleições americanas. Comportamento aliás que não diferiu significativamente do que sucedeu no resto do Velho Continente.

George W. Bush foi permanentemente apresentado como um imbecil, ignorante, burro, em suma, um idiota chapado. Mas não será esta imagem excessiva? Pior, não é isto que os nossos doutos intelectuais têm pensado de todos os presidentes americanos. Carter, quando apostrofou a URSS devido à intervenção no Afeganistão e promoveu o boicote às Olimpíadas de Moscovo, foi igualmente alcunhado de imbecil e idiota. E a redenção do seu QI só começou a ocorrer quando ele se dedicou a missões “politicamente correctas”. De Reagan nem vale a pena falar. Milhões de pessoas desfilaram centenas de vezes, nas avenidas do Velho Continente, protestando coléricas contra a sua política de contenção da URSS, chamando-lhe os nomes mais ofensivos que encontraram nos seus dicionários. Bush pai teve sempre a fama de débil mental, ainda era Vice-presidente. Quanto a Clinton foi objecto das maiores zombarias, pela sua vida privada, e das maiores contestações, pelas suas decisões em matéria de política internacional (ex-Jugoslávia, bombardeamentos no Sudão e Afeganistão, etc.).

E Kerry seria melhor? Jon Stewart, o apresentador do Daily Show e ferrenho anti-Bush, perguntava há meses «porque será que uma mentira de Bush parece muito menos idiota que uma verdade de Kerry?». Kerry, que ao longo da sua vida política se tem notabilizado por uma completa incoerência e pelas cambalhotas mais inesperadas, não seria tentado, se fosse eleito presidente e para mostrar a sua “virilidade presidencial”, a tomar alguma atitude mais drástica que o seu antecessor?

Michael Moore e o seu Fahrenheit 9/11 tornaram-se, até à derrota de Kerry, um ícone para a intelectualidade “de combate e de causas”. Cannes deu-lhe a Palma de Ouro, a distinção máxima. Como é possível premiar aquele acervo de manipulações grosseiras, de omissões intencionais, de colagens forjadas? Leni Riefenstahl também ganhou a medalha de ouro da Exposição Mundial de Paris (1937), mas o seu Triumph des Willens (1935) é uma obra-prima e o seu efeito propagandístico não resulta de colagens forjadas ou de manipulações grosseiras: resulta do poder das imagens e dos acordes musicais, habilmente filmados e montados. Há manipulação pela arte de obter e coordenar as imagens e não pela fraude de colagens forjadas. O Triumph des Willens continuará a ser uma obra-prima do filme propaganda, enquanto o Fahrenheit 9/11 já está no caixote do lixo da História e da arte cinematográfica. Aliás, o Fahrenheit 9/11 estará mais próximo do Der Ewige Jude (1940) que do Triumph des Willens. Aqueles que o elogiavam interrogam-se agora se o filme não teria condensado «um dos erros políticos crassos da "intelligentsia" liberal americana e também da opinião pública europeia, a desconsideração de Bush em termos do chamado "dumb factor": que o homem é ignorante, burro e por aí adiante», como escreveu hoje um dos mais façanhudos «opinativos» (Augusto M. Seabra) e paladinos da “verdade que temos que transmitir”.

E este paladino da verdade “instrumental” mostra-se apreensivo porque se «quis atacar "Fahrenheit" em termos de "verdade" quando, suponho, a questão cinematográfica e ética que se coloca em cada documentário é o modo como interpela o real, para além da mais imediata visibilidade da qual não se deduz uma "verdade" imanente». Esta frase é o grau zero da racionalidade. Mais baixo que isto não se pode descer no totalitarismo informativo. Portanto a verdade não interessa, nem deve ser a medida da validade de um «documentário» ou «exposição de um facto». O que interessa «é o modo como se interpela o real», leia-se «como se distorcem os factos», para deduzir uma «verdade imanente», leia-se «a verdade do “intelectual de causas” liberta do empecilho incómodo dos factos». É esta a gente que defende a liberdade de expressão e verbera a alegada censura dos outros.

Entre a intelectualidade europeia (e portuguesa) o tom em que se fala da derrota de Kerry é o de um desastre civilizacional, não o de um acto em que os mecanismos políticos da democracia representativa funcionaram normalmente. Os jornalistas perguntam angustiados: John Kerry tinha o apoio esmagador dos mídia, ganhou os três debates televisivos com George W. Bush e, no entanto, perdeu. Será que televisões, imprensa e rádio estão a perder influência?

A resposta é simples: a opinião dos jornalistas tem uma influência poderosa. Infelizmente, para eles, influencia sobretudo a própria opinião dos jornalistas. O comportamento do eleitorado português é disso um exemplo paradigmático: em todos os referendos votou sempre contra a opinião dominante nos meios de comunicação.

Infelizmente os paladinos da “verdade a que acham que temos direito” nunca reconhecerão isso. Só após todo o lastro do irracionalismo induzido pelas ideologias que se digladiaram no século XX for destruído, e com ele o pensamento instrumentalizador desses paladinos, é que será possível regressar ao intelectual «campeão do eterno e da verdade universal ... de um princípio abstracto, superior e directamente oposto às paixões políticas».


Ler ainda, sobre este tema:
Romanos, Gregos, Americanos e Europeus
O Falhanço dos Intelectuais Iluminados

Publicado por Joana às 07:59 PM | Comentários (22) | TrackBack

novembro 04, 2004

Romanos, Gregos, Americanos e Europeus

Ou o Mistério dos Casos que se Repetem

... fazendo votos para que nem todos se repitam ...

Nos tempos de Filipe, pai de Alexandre Magno, a Grécia caiu sob o domínio macedónio, após Queroneia. Quer durante o reinado de Alexandre, quer, após a sua morte, durante a dinastia macedónia que se lhe seguiu, houve revoltas frequentes contra o domínio macedónio, principalmente inspiradas por Atenas. No tempo da 2ª Guerra Púnica, com as tropas de Aníbal em Itália e Roma em riscos de sobrevivência, Filipe V da Macedónia, aliado de Cartago, encetou uma série de guerras para lhe assegurar um domínio mais absoluto sobre a Grécia e sobre a Ásia Menor e ilhas do Mediterrâneo oriental, agravando o jugo sobre os gregos.

O Senado romano via com apreensão a guerra que se ia alastrando no oriente, mas devido às feridas e às provações sofridas pelo povo romano na terrível guerra contra Aníbal, não desejava envolver-se nos negócios dos gregos e do Oriente. Todavia, as queixas dos helenos, as crueldades praticadas por Filipe contra as cidades gregas, a severa punição que este exercia sobre os vencidos, o dever de não consentir na destruição dos seus antigos aliados de Rodes e Pérgamo e do próprio Egipto, o temor natural com que via o aumento de uma potência inimiga, a Macedónia, aumento que podia ser altamente prejudicial ao comercio siciliano e itálico, foram motivos que levaram o senado a julgar necessária uma nova guerra contra Filipe. Apesar disso tudo, os romanos não quiseram precipitar-se e procederam por forma que Filipe fizesse algo que pudesse ser considerado um casus belli. E isso aconteceu com o ataque macedónio às fronteiras da Ilíria, quase em simultâneo com a liquidação do exército de Aníbal em Zama.

Depois de algumas tentativas com pouco sucesso, o comando das tropas romanas foi entregue a Tito Quintus Flaminius, que desbaratou Filipe da Macedónia em Cinoscéfalos (“Cabeças de Cão”), em 197. A falange macedónia sucumbia perante a legião romana. A Grécia estava livre do jugo macedónio e à mercê de Flaminius.

Flaminius era um homem de talento, jovem (tinha então 30 anos) e pertencia a uma geração que conjugava as virtudes patrióticas e o culto ancestral pelos seus maiores, com o sentimento da sua individualidade e o apreço pela cultura cosmopolita. Hábil diplomata, Flaminius era um apaixonado pela cultura grega e helenista. E era um «liberal». Não destronou Filipe, apesar dos protestos dos aliados gregos que reclamavam que a vitória de Cinoscéfalos era devida a eles, à semelhança dos franceses, após a 2ª guerra mundial, que se vangloriaram de terem vencido a Alemanha e merecerem o estatuto de ocupantes. Isto embora Filipe tivesse ficado reduzido às fronteiras antigas da Macedónia, e obrigado a pagar uma indemnização de 1.000 talentos (qualquer coisa como 100 a 150 milhões de euros em moeda actual) e a manter, no máximo, uma frota de 10 navios e um exército de 500 homens, não podendo fazer guerra sem “autorização” do senado romano.

Flaminius, durante os Jogos Ístmicos de 196, em Corinto, proclamou que todos os povos e cidades gregas eram livres, deixavam de estarem sujeitos a guarnições e a tributos, e podiam governar-se pelas próprias leis. Os ouvintes, que estavam à espera que o jugo romano viesse substituir o jugo macedónio, ficaram atónitos ao saberem que doravante poderiam viver em paz, gozando da plena soberania como aliados naturais de Roma.

Os gregos não tiveram tempo de pôr em dúvidas as intenções de Flaminius, uma vez que ele retirou imediatamente o seu exército da Grécia. Contudo, depois de o terem saudado como libertador e salvador encontraram motivos de censura pelo facto de ele, ao retirar-se, ter levado algum espólio artístico (era, na verdade, um apaixonado pela cultura!) e de ter emancipado algumas cidades da Liga Etólia, que nela estavam contra vontade, coisa que não satisfez os gregos, que só queriam a liberdade para alguns deles.

E os gregos chamaram Antíoco, Rei dos Seleucidas (cujo centro do poder era a Síria, mas que dominava a maior parte da Ásia Menor, todo o Crescente Fértil – incluindo Babilónia – a Palestina e parte do Irão) para os libertar. Libertar de quê? Flaminius ao retirar, 6 anos antes, tinha-os deixado livres!

Pérgamo e alguns pequenos reinos, aliados tradicionais de Roma, e que estavam no caminho entre Antíoco e a Grécia, pediram então protecção a Roma. O Senado, que nunca acreditara nas experiências «progressistas e liberais» de Flaminius, enviou um exército comandado por Cipião o Africano, que em Magnésia (190) desbaratou completamente o exército muito mais numeroso de Antíoco e regressou a Roma, mas sem tocar nas cidades gregas.

Esta época de liberdade teve como resultado, para além da hostilidade e desprezo para com os seus libertadores romanos, o aumento da cizânia entre os gregos (etólios, aqueus, beócios, espartanos e atenienses). A consequência natural deste comportamento foi os romanos, logo que conheceram o estado de coisas e a gravidade da desordem administrativa, ora sangrenta, desconfiada e aleivosa, ora ridícula e ambiciosa, sentirem, em vez da anterior simpatia, uma irresistível tendência para procederem para com os gregos sem consideração de nenhuma espécie.

Todavia, durante alguns anos Roma insistiu nesta política de tolerância e respeito, muito semelhante à que os EUA praticaram com a Europa a seguir à 2ª Guerra Mundial. Só intervinha nos assuntos internos se fosse solicitada e procurava apoiar a ordem estabelecida. Por isso colhia antipatias generalizadas, de todos os descontentes, em quase todas as cidades gregas, quer da aristocracia e timocracia, quer do partido democrático.

Era óbvio que os gregos estavam cheios de razão em se sentirem humilhados e em desprezarem os romanos: A Grécia fora o berço de uma cultura extraordinária, fértil em obras filosóficas, ciência e literatura. Também foi onde nasceu o conceito de democracia e algumas das ideias a ela associadas, embora estas apenas tenham sido praticadas por um número muito reduzido de cidades-estado, de forma intermitente e por um máximo de cem anos (até à conquista macedónica de Atenas, em 338). E os romanos não passavam de gente sem capacidade e competência teóricas, apenas interessados em questões práticas e comezinhas, como construir estradas, aquedutos, conjuntos urbanos funcionais e administrar a coisa pública (leis e jurisprudência sobre contratos, propriedade, compra e venda, responsabilidade, difamação, sucessões e património, igualdade de todos os cidadãos perante a lei, bem como os procedimentos relativos à fixação da prova, etc.). Ah! ... e manter forças militares com uma organização, disciplina e eficiência, sem paralelo na história, para os meios e equipamentos de que então se dispunha.

Perseu, o descendente de Filipe, ao suceder-lhe no trono da Macedónia, tirou partido deste descontentamento e uniu-se às cidades gregas para uma guerra santa contra Roma. Perseu foi rapidamente vencido em Pidna por Paulo Emílio e os seus arquivos mostraram a dimensão da conspiração contra Roma e o papel das cidades gregas nessa conspiração. Todavia, Roma apenas prendeu e trouxe para a Itália os indivíduos envolvidos na trama. As cidades foram poupadas, embora tenham sido colocadas sob uma espécie de protectorado romano, com o objectivo de as impedir de constituírem uma potência militar capaz de incomodar o poder romano, nomeadamente através de alianças com os potentados do oriente helenista, os selêucidas em especial.

Neste intermédio pontificava, em Roma, Marco Pórcio Catão, um político com o instinto moralizador de Bush, que zelava pelos bons costumes e pela destruição do eixo do mal, na altura reduzido a uma Cartago já desmuniciada de ADM, mas ainda vigorosa na actividade comercial. Terminava os seus discursos no senado exclamando Delenda est Carthago que significava Cartago deve ser destruída. Muitos consideram que esta obsessão de Catão pela intervenção militar em África, se destinava a desviar as atenções dos romanos do Oriente, e da Grécia em particular, onde a corrupção dos costumes poderia vir a constituir um exemplo péssimo para a simplicidade, a frugalidade e a austeridade da vida romana. Da Roma profunda, como diriam agora ... ou da Roma rural, como alguns amantes das “contradições nos termos” usam também dizer, quando analisam resultados eleitorais.

Quando deflagrou a 3ª guerra púnica, os gregos julgaram ter uma oportunidade e reconstituíram a Liga Aqueia para promover a libertação da Grécia. Mas Roma já tinha poderio suficiente para combater em 2 frentes. As legiões romanas tomaram, saquearam e destruíram Corinto e venderam os seus habitantes (os que ficaram, porque a maioria tinha entretanto fugido) como escravos, em 146 (curiosamente o mesmo ano em que Cartago era destruída e o Estado cartaginês aniquilado definitivamente). A Grécia e a Macedónia foram reunidas numa única província com um governador romano. Apenas Atenas e Esparta ficaram com alguma autonomia.

Todavia, os gregos foram tratados com mais benignidade que a maioria dos outros povos conquistados. Sob o ponto de vista do direito público, as municipalidades gregas conservaram intacta a propriedade de bens e terras e, posteriormente, tiveram também o direito de administração e competência jurídica, não sofrendo nenhuma modificação as disposições, leis e costumes existentes, perdendo apenas o direito de fazerem política própria, de resolveram por si a paz ou a guerra e de se despedaçarem umas às outras em lutas internas. Atenas manteve inclusivamente o direito de cunhar moeda até à época da ditadura de Sila (cerca de 7 décadas depois).

Se não foi possível uma colaboração entre Roma e as cidades gregas livres, mas sempre descontentes, passou a haver uma colaboração a outro nível: a exportação de “cérebros” (muitos na condição de escravos) da Grécia para Roma. Os gregos que, como um povo livre, desdenharam colaborar com os romanos, foram, como escravos ou libertos, preceptores ou mestres de várias gerações de romanos em matérias como retórica, filosofia, teatro, literatura, etc.

Foi o tipo de colaboração que escolheram.

E Catão, que morreu octogenário no ano anterior ao da destruição de Cartago e Corinto, afinal teve razão: Graecia capta ferum victorem cepit (a Grécia capturada conquistou o bárbaro vencedor). Políbio, o historiador, um dos cérebros que naqueles anos emigrou para Roma, retratou esta ainda com costumes sóbrios, austeros, quase monásticos, o que muito o surpreendeu, vindo ele donde vinha. E Políbio considerou esse Roman way of life a base do poderio da república e da sua invencibilidade. No século que se seguiu, toda a sobriedade e austeridade romanas foram desaparecendo. A república desapareceu pouco depois, substituída por um império semi-republicano, que não solucionou a crise, e finalmente por um império despótico, uma imitação dos despotismos orientais que Roma havia liquidado facilmente 3 séculos antes.

Publicado por Joana às 10:58 PM | Comentários (33) | TrackBack

novembro 03, 2004

O Falhanço dos Intelectuais Iluminados

Nunca, desde F.D. Roosevelt, houvera uma tão grande mobilização eleitoral. Nunca um candidato fora tão demonizado e acirrara tantos nomes sonantes contra si: Intelectuais, agentes culturais, actores e actrizes de Hollywood, cantores e bandas musicais (até Bruce Springsteen!), apresentadores das televisões, os principais jornais de referência e quase todos os políticos e intelectuais europeus se congregaram numa campanha maciça em favor de Kerry, ou melhor, contra Bush. Os jovens foram incentivados a recensearem-se e a votarem massivamente, para evitarem a possibilidade do regresso ao serviço militar obrigatório. Introduziram-se inovações: o swing eleitoral. Desde o multimilionário Georges Soros aos deserdados e oprimidos da sociedade, todos foram municiados, ou se municiaram a si próprios, com razões poderosas para afluírem às urnas e votarem responsavelmente. Nada foi descurado. E o resultado foi óbvio: votaram mais 15 milhões de eleitores em 2004 que em 2000. O trabalho de todos esses generosos activistas teve assim um merecido êxito. Estão de parabéns!

E o triunfo do candidato diabolizado também foi óbvio. O excesso de activismo no campo de Kerry deveu-se a uma esquerda fundamentalista para a qual Bush é a incarnação do mal. A esquerda fundamentalista tem uma enorme capacidade mobilizadora: empolga-se a si própria, pelo seu alarido e por nunca abdicar de trazer toda a sua tralha conceptual a terreiro (aborto, casamentos de homossexuais, etc.), elevando-se na exibição dos seus ícones ao êxtase ideológico mais absoluto e, simultaneamente, intimida, alerta e mobiliza os pacatos cidadãos que vêm ser postos em causa, de uma forma truculenta, definitiva e irrecusável, os seus valores e a sua mundividência.

E foi assim que toda a mobilização eleitoral, fruto de tanto empenho, conduziu a que Bush contasse, quando estão escrutinados 99 por cento dos distritos eleitorais, com cerca de 3,5 milhões mais que o seu rival democrata John Kerry. Bush obteve 58.640.799 de votos (51 por cento dos sufrágios escrutinados) e Kerry 55.101.702 (48 por cento). Bush, que tinha tido menos votos que Gore em 2000, inverteu a situação de forma substancial.

Igualmente o partido republicano conseguiu eleger, até ao momento, 231 representantes (ganhando 4 lugares) e os democratas 200, no total dos 435 lugares da câmara dos representantes, reforçando a sua actual maioria (há um congressista independente e estão 3 lugares por decidir). O Partido republicano reforçou também o controlo no senado. As projecções actuais indicam que os republicanos conseguiram eleger 55 dos cem lugares no senado, mais 4 do que já tinham. Os democratas ficam pelos 44 senadores (há um senador independente). O G.O.P. ficou pois com uma maioria substancial nas duas câmaras.

E tudo isto aconteceu após um mandato que foi desempenhado de forma muito discutível. Na condução da política externa americana, Bush cometeu diversos erros. A guerra do Iraque foi apresentada como preventiva face à existência das ADM. Ora não se verificou a sua existência. Em democracia, uma guerra não se deve basear numa hipótese falsa, mesmo que essa hipótese fosse considerada, a priori, credível. Após a queda de Saddam, os EUA têm gerido a situação de forma desastrada. Poucas forças no terreno, dissolução precipitada do exército e das forças de segurança iraquianas, saques, raptos, baixas militares e civis elevadas e caos generalizado. O panorama é pouco animador e não se prevê que melhore, com o os xiitas radicais e a quase impossibilidade de se realizarem eleições livres e justas. Entrar no Iraque foi muito mais fácil do que vai ser sair de lá. A guerra do Iraque também não parece ter contribuído eficazmente para a «guerra ao terrorismo». Teve um ponto em seu favor: enviou uma mensagem clara ao mundo político islâmico sobre os riscos que corriam, se tentassem desenvolver armas de destruição maciça. E essa mensagem foi, por exemplo, entendida pela Líbia. Igualmente a política económica de Bush (admitindo que teve uma política económica) não conduziu a bons resultados: agravamento monstruoso do défice externo, desaceleração económica apesar da queda do dólar, etc.

Outro erro, embora se trate de um erro partilhado, foi a clivagem introduzida nas relações entre os EUA e a UE. Todavia, essa clivagem não pode ser apenas levada a crédito do unilateralismo da administração Bush, mas também da nostalgia de grande potência de que sofrem alguns países europeus, mormente a França, que em matéria de situações como as do Iraque, ex-Jugoslávia, etc., não fazem nem deixam fazer ... e provavelmente já nem sabem, nem são capazes de fazer.

Se Bush revelou alguma incompetência na sua política externa e interna, embora se reconheça que o seu mandato viveu uma situação muito complexa (como o ter enfrentado um brutal ataque terrorista aos EUA), que exigia grande capacidade de decisão e uma grande determinação, o opositor que os democráticos escolheram como alternativa não augurava nada de bom. Kerry revelou-se um personagem errático, incoerente, de uma patente inabilidade em fazer passar as suas mensagens e com uma absoluta inconsistência de posições sobre os mais variados assuntos. Uma campanha eleitoral não poderia circunscrever-se em martelar permanentemente Bush. A campanha não poderia ser um filme de Michael Moore. A raiva, o ódio e a zombaria não servem para motivar um eleitorado, apenas para deliciar os próprios correligionários.

Assim, vitória de Bush não foi a derrota de Kerry. Kerry foi pouco mais que um títere submerso perante a militância furiosa dos seus activistas que lhe “roubaram” a campanha. A derrota foi da esquerda fundamentalista americana que parasitou o Partido Democrático; foi de todos os intelectuais bem pensantes que sempre olharam com desdém o “estúpido” Bush, o palhaço ignorante que tinha ascendido ao cargo de presidente contra a vontade da nação e mediante batota eleitoral; foi da comunicação social (americana e europeia) que, na sua maioria, amesquinhou Bush daquela maneira vil com que os detentores das verdades absolutas tratam os ignaros mortais; foi dos políticos franceses, nostálgicos das glórias napoleónicas; foi da velha Europa, achacada de reumatismo, que julga resolver os seus problemas com os outros, acenando apenas com o rol dos seus bens e o saldo da sua conta bancária.

Pirro teve vitórias que lhe foram mais custosas que derrotas. Mas os derrotados de 2 de Novembro são insensíveis aos custos, são menos clarividentes que Pirro: a esquerda fundamentalista (americana ou outra qualquer) continuará a não saber distinguir o essencial do acessório e a espavorir o eleitorado fora do seu círculo ideológico restrito; os intelectuais bem pensantes continuarão a olhar com desdém o “estúpido” Bush, o palhaço ignorante que ascendeu ao cargo de presidente em virtude da ignorância e imbecilidade do eleitorado americano; a comunicação social (americana e europeia) amesquinhará sempre Bush porque está na natureza dos detentores das verdades absolutas tratar os mortais ignaros com desdém; os políticos franceses continuarão nostálgicos das glórias napoleónicas; e a velha Europa só piorará os seus achaques de reumatismo ... a idade não perdoa.

Portanto, a única diferença será na forma, não no conteúdo. Alguns dirão que esta vitória concederá a Bush uma legitimidade acrescida. Improvável. A anterior vitória também era legítima, ainda que discutível e penosa ... levou mais de um mês a contar e recontar votos. Mas fora legitimada pelas instituições adequadas e reconhecida pelo adversário. Apenas, em vez da batota eleitoral, alegarão agora a estupidez do eleitor americano.

Publicado por Joana às 11:28 PM | Comentários (47) | TrackBack

novembro 02, 2004

A Sociedade dos Pigmeus Políticos

Vivemos actualmente numa sociedade enferma, sem capacidade de se regenerar a si própria, que não tem consciência do impasse em que se colocou, e que é, paradoxalmente, vítima dos valores que fizeram a sua grandeza e prosperidade. E esses valores são a democracia e a liberdade. A sociedade ocidental, nomeadamente a europeia, já não consegue distinguir o uso do abuso, a dosagem da sobredosagem. A democracia e a liberdade deixaram de ser factores de progresso e de fortalecimento da sociedade, para se estarem a tornar, paradoxalmente, factores de estagnação e de degeneração sociais.

A capacidade de julgamento dos líderes políticos, avaliada e referendada periodicamente pelo eleitorado, e que era uma das forças da democracia, deixou de ser determinante. Essa capacidade de julgamento é testada, dia a dia, pelas sondagens de opinião. Há uma dependência obsessiva de opiniões voláteis do público. Governa-se, ou pretende-se que se governe, ao sabor dos desejos diários da opinião pública determinada pelas sondagens e avaliada pelos analistas. O papel dos áugures cabe agora às empresas de sondagens e aos “fazedores de opinião”. E o voo das aves ou as vísceras dos animais são agora substituídos por inquéritos de opinião e por análises certificadas pela reverência da comunicação social. E a pressão contínua das sondagens, “fazedores de opinião”, voo das aves e vísceras dos animais exerce-se sobre governos, assembleias legislativas e todos os restantes órgãos representativos no sentido de estes se ajoelharem submissos a este novo Divus interpres.

Edmund Burke, há dois séculos, em campanha eleitoral, declarou: «O vosso representante deve-vos não só os seus actos, mas também o seu julgamento e trai-o se, em vez de vos servir, sacrifica esse julgamento à vossa opinião [...] escolheste um representante, na verdade, mas quando o fizeste, ele não [é já apenas o vosso] representante, mas um membro do Parlamento». E Kennedy, há meio século, rejeitou liminarmente a ideia de que a função de representante do povo (neste caso Senador) era simplesmente reflectir a posição dos seus eleitores: «Tal ponto de vista pressupõe que a população do Massachusetts me mandou para Washington para servir apenas de sismógrafo com a função de registar as mudanças de opinião pública [...] Os eleitores escolheram-nos porque tinham confiança no nosso julgamento e na nossa capacidade de o exercer, segundo o que possamos determinar serem os seus interesses, dentro dos interesses da Nação. Isso significa, se for necessário, ter o dever de dirigir, informar, corrigir e, por vezes, ignorar a opinião pública de que fomos eleitos representantes».

Estas afirmações de Burke e de JF Kennedy são os fundamentos esquecidos da democracia representativa. Tendo o povo delegado os seus poderes legislativos para o exercício governativo durante um período previamente fixado (4 ou 5 anos), essa delegação mantém-se durante esse período - delegata potesta non potest delegari. A democracia representativa não pode funcionar devidamente quando é possível, em qualquer instante, derrogá-la, ou se o seu exercício é continuamente posto em causa pela permanente interpretação da vontade popular (sondagens, acções de rua, opiniões dos órgãos de comunicação, análises de gurus politicólogos, etc.).

Esta genuflexão perante a “voz do povo” não é de agora. Durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill, o protótipo do líder com opiniões firmes, foi criticado por um outro político, por não prestar atenção ao sentir do povo britânico, e aconselhado que deveria pôr «o ouvido no chão». A resposta foi “à Churchill”: «a nação britânica terá alguma dificuldade em olhar de frente para líderes que sejam apanhados nessa posição».

Churchill tinha razão. Nunca, como agora, a classe política foi tão pouco respeitada. E isto é válido para todo o mundo ocidental, em maior ou menor grau. O que mudou não foi os políticos se terem afastado do eleitorado e desdenharem a sua opinião. O que mudou foi os políticos terem como preocupação primeira, e às vezes única, satisfazerem o que julgam ser a opinião do eleitorado estimada pelas sondagens e avalizada pelos “fazedores de opinião”. O que mudou não foi a classe política desdenhar a democracia, mas sim o estar a tomar uma overdose democrática.

Todas as sociedades ocidentais, e Portugal principalmente, precisam de reformas estruturais profundas, senão afundar-se-ão inexoravelmente. São reformas que exigem sacrifícios, cujos resultados só serão visíveis a médio ou longo prazo, e cujas alternativas conduzem à ruína, também ela só visível a longo prazo. Essas reformas não podem ser conduzidas sob a pressão permanente dos mídia e das sondagens semanais, porque contendem com muitos interesses particulares.

O que se tem verificado é que as medidas estruturais e as medidas com efeitos a longo prazo têm sido tomadas por entidades não sujeitas às pressões da opinião pública: os Bancos Centrais, os “burocratas de Bruxelas”, etc.. O recente Nobel da Economia atribuído a Kydland e Prescott premiou os seus estudos sobre a inconsistência intertemporal, que relaciona a discrepância entre as decisões políticas tomadas em diferentes momentos do tempo e as expectativas de diversos sectores da sociedade. Trabalhos que ajudaram a fortalecer instituições credíveis e independentes do poder político, como dar cada vez mais autonomia e independência aos Bancos Centrais, a criação do Banco Central Europeu e o estabelecimento do PEC. Isto é, entidades não eleitas e não sujeitas ao permanente escrutínio público.

Na ausência destas entidades “não eleitas”, os políticos (e não apenas os portugueses) deixar-se-iam embalar pelas vozes que se elevam das sondagens e legislariam para a rua, em vez de legislarem no interesse a longo prazo dos seus países. E desculpam-se das políticas impopulares impostas externamente, alegando exigências dos “burocratas de Bruxelas, não eleitos pelo povo”. Em Portugal, o bom aluno, os governos ainda não encetaram com esse tipo de justificações, muito vulgares aliás em diversos países da UE.

Mas a sociedade despreza aqueles que bajulam os seus favores, na ânsia permanente de satisfazerem os seus caprichos voláteis e levianos. Vinga-se não lhes dando crédito. Os inquéritos de opinião mostram que as instituições não dependentes do sufrágio popular são aquelas que mais confiança despertam nas pessoas. A opinião pública tem muito mais confiança no Banco de Portugal que nos órgãos que elege periodicamente. Mesmo o poder judicial, que funciona extremamente mal, é mais respeitado que governos e deputados. O clero católico, que nunca foi escrutinado pela população, é muito mais respeitado, mesmo pelos não crentes, que os políticos eleitos. A comunicação social, que nunca foi eleita por ninguém, um elemento corporativo que se auto-reproduz, que serve quotidianamente à população a ementa mais repelente e empolada de todas as misérias e massacres sangrentos, tem mais créditos junto da opinião pública que a classe política. E entre os políticos, Cavaco Silva, que sempre se mostrou pouco simpático para com os mídia, e avesso aos “fazedores de opinião” e às opiniões “instantâneas”, foi provavelmente o político que, enquanto exerceu o cargo, foi o mais respeitado (ou pelo menos o menos desacreditado).

A democracia está a ser vítima de um “excesso de democracia”, ou melhor, a nossa sociedade está a ser vítima de não encontrar líderes que conduzam os destinos do país com firmeza no leme e rumo seguro, e não os encontra porque o frenesim da auscultação permanente da volúvel “vontade popular” expressa nas sondagens e análises mediáticas, obscurece o discernimento para fundamentar medidas políticas, económicas e sociais consistentes e eficazes a médio e longo prazo.

As sociedades europeias, e a portuguesa em particular, vivem numa paranóia ininterrupta de contestação, de pôr em causa, de lançar a suspeição sobre quaisquer decisões ou apenas iniciativas dos poderes políticos. Essa paranóia é potenciada pelos órgãos de comunicação social, e sustentada por análises políticas “certificadas” e por sondagens, cujo significado, em vez de relativizado, é tornado um valor absoluto e inquestionável. E, em Portugal, essa paranóia é igualmente potenciada pela fragilidade política do governo e pela sua inabilidade em lidar com ela.

Se um governo não consegue dar-se ao respeito perante a opinião pública terá desta o desrespeito; se o governo não consegue relativizar a paranóia da comunicação social, obterá desta uma paranóia maior e mais destrutiva. A comunicação social é um vampiro que se vivifica, que se alenta, do sangue e da miséria dos outros. Basta ver os jornais televisivos. Onde há rigor, competência, gravidade, dignidade, a comunicação social torna-se inócua e granjeia-se o respeito da opinião pública.

A democracia representativa baseia-se na delegação de poderes. O eleitorado delega nos parlamentares a sua representação durante uma legislatura. E delega não só pelas promessas que lhes foram feitas, mas também pela capacidade de discernimento que lhes atribui. No termo da legislatura julgará se os seus representantes actuaram devidamente e fará as suas novas escolhas em face do seu novo julgamento. É esta a essência da democracia: delegata potesta non potest delegari. O “excesso” de democracia, de pretender governar de acordo com a volubilidade das opiniões “instantâneas”, não é uma melhoria da democracia, mas a sua perversão; não é mais democracia, é pior democracia. Mais democracia obtém-se melhorando a relação dos eleitores com o seu eleito e estabelecendo um sistema eleitoral em que estes possam ser julgados com mais rigor pelas suas prestações individuais. Mais democracia obtém-se aumentando a transparência das decisões e dos actos da administração pública que afectam o cidadão; mais democracia obtém-se pelo rigor, isenção e espírito de missão de serviço público dos governantes no exercício dos cargos.

Com “eleições” semanais escrutinadas nas sondagens ou nas análises dos pretensos “fazedores de opinião” não se consegue mais democracia, mas a sua perversão. Não existem políticos, mas sismógrafos.

Os cônsules romanos eram eleitos anualmente. Mas eles não tinham que tomar medidas económicas de longo prazo ou de médio prazo. Só tinham que se assegurar que os navios largos e bojudos, vindos do Egipto ou da Sicília, continuassem a demandar o porto de Óstia para permitirem as distribuições de trigo aos proletários romanos, e organizar os espectáculos circenses para alegria e distracção da populaça. As virtudes no exercício dos seus cargos eram medidas pela espectacularidade e grandiosidade dos jogos circenses. Um ano era suficiente para a populaça, e demais para os cônsules, que depois iriam ressarcir-se dos seus gastos, espoliando alguma província distante com o cargo de procônsul.

A nossa sociedade não pode ser governada tentando satisfazer opiniões “instantâneas”, numa situação ainda mais volúvel que a dos cônsules romanos. Não se conseguem resolver os problemas, e os governantes que se colocaram de cócoras perante a opinião pública semanal, têm o respeito que normalmente se atribui a quem é apanhado com frequência inusitada nessa incómoda e desfavorável posição: nenhum.

Uma palavra de esperança, todavia. A nossa sociedade tem progredido pela luta entre a sua afirmação e a sua negação. Os meios modernos possibilitam auscultações quase instantâneas dos sentimentos da opinião pública. Este é um dado que não pode ser postergado. Não é ele que está em causa, mas a forma como tem sido usado pelos diversos protagonistas sociais. Mas a democracia aprende-se no seu exercício contínuo.

Contrariamente à ideia que muitos têm sobre as virtudes “absolutas” da democracia, a história mostra que não é bem assim. A maior quantidade de democracia pode não se traduzir, no imediato, na melhor qualidade da democracia. Louis-Napoléon, para chegar a Príncipe Presidente e depois a Napoleão III, instituiu primeiro o sufrágio universal, que então não existia. A sua ascensão teve uma adesão eleitoral esmagadora. Sem o sufrágio universal nunca atingiria o poder discricionário. Bismarck, para consolidar a sua política nacionalista e diminuir o peso parlamentar dos seus críticos, acabou com o sufrágio censitário, tornando-o parcialmente universal (as mulheres estavam excluídas). Igualmente na Grã-Bretanha, as sucessivas reformas eleitorais, que foram diminuindo o censo, tiveram, na maioria dos casos, o intuito de aumentar os apoios à política imperial. O primeiro efeito do alargamento da base do sufrágio na monarquia austro-húngara, em fins do século XIX, foi a eleição de um líder da extrema-direita.

E Portugal, só em 1918, com um decreto de Sidónio Pais, se alargou o sufrágio a todos os cidadãos do sexo masculino maiores de 21 anos. Contudo, este alargamento só duraria um ano, com a reposição do antigo regime de incapacidades, logo que Sidónio Pais foi assassinado, a “República Nova” banida e o regime democrático restaurado. Portanto, foi um alegado aprendiz a ditador quem estabeleceu o sufrágio universal em Portugal, e foram os opositores à ditadura e democratas certificados quem restauraram as restrições eleitorais.

Hitler subiu ao poder aproveitando o regime democrático da República de Weimar, certamente um dos regimes mais abertos da época. Os nazis passaram de 2,6% (em 1928) para 18,3% (em 1930) e 37,3% (em Julho de 1932), havendo um pequeno recuo eleitoral em Novembro de 1932 (33,1%), mas que não favoreceu a esquerda, visto se ter dirigido para a direita clássica. As eleições no Lippe, em Janeiro de 1933, mostraram uma nova subida importante dos nazis e serviram de argumento para a indigitação de Hitler, em 30 de Janeiro, como Chanceler (afinal ele era o chefe do maior partido do Reichstag) à frente de um governo onde os nazis ainda eram muito minoritários (para além de Hitler, Frick no Interior e Goering na Aeronáutica). Um mês depois, nas eleições de 5 de Março, as últimas eleições livres na Alemanha de então, eleições que tiveram uma participação recorde, o NSDAP teve 44% (288 mandatos em 647) a 36 lugares da maioria absoluta. Como os Nacionais Alemães e os Populares (a direita clássica) obtiveram 52 lugares, estava constituída a maioria “democrática” para liquidar a democracia.

Se o mundo ocidental foi aprendendo a gerir o “aumento da democracia” e o sufrágio universal no sentido do fortalecimento da democracia e da liberdade, tal ainda não aconteceu com outras regiões do globo. O dilema nos países árabes é entre a manutenção de ditaduras, mais ou menos corruptas, mas que asseguram alguma tolerância religiosa e estabilidade política, ou a realização de eleições livres e a ascensão ao poder dos fundamentalistas islâmicos, intolerantes e fanáticos. Mesmo mais perto de nós, temos o exemplo das vitórias eleitorais de Hugo Chavez.

É importante meditarmos nas palavras de Tocqueville, há século e meio, ao afirmar que «a democracia tende a generalizar o espírito de corte, entendendo-se que o soberano, que os candidatos aos cargos adularão, é o povo e não o monarca. Mas adular o soberano popular não é melhor do que adular o soberano monárquico. Talvez seja até pior, uma vez que o espírito de corte em democracia é aquilo a que chamamos, em linguagem corrente, a demagogia».

Estes receios de Tocqueville foram simultaneamente confirmados e superados. A sociedade, perante a desregulação da democracia, aprendeu a regulá-la em novos moldes. A rádio e, posteriormente, a televisão, permitiram o advento dos ditadores, que as souberam controlar e usar, mas também ajudaram a à transparência social e política que dificultam o caminho para a ditadura e consolidam a democracia. Actualmente o cerne do problema já não está no controlo da informação. A informação está de tal forma banalizada, é de tal modo incontrolável em face da quantidade de emissores, que o problema é a “obesidade” da informação, a sua triagem, o saber separar o pouco trigo do muito joio, separar a verdade do boato, separar a realidade da manipulação, separar o fenómeno da sua imagem refractada sob ângulos diversos. A essência da política liberal e democrática é a construção de uma rica e complexa ordem social, não de uma ordem dominada pela manipulação, o boato, a meia-verdade, as imagens virtuais.

São estes os desafios que se colocam actualmente. Colocam-se directamente a cada um de nós, mas colocam-se indirectamente a todos nós, porque têm posto em causa a capacidade das nossas sociedades serem governadas com discernimento, com políticas coerentes e consistentes no longo prazo, e adequadas a tornarem as nossas sociedades mais prósperas, com melhor qualidade de vida e mais justas.

A história tem provado que os inimigos da democracia aprendem mais depressa a usarem o aumento da “quantidade” da democracia para a perverterem. Mas também tem provado que a sociedade tem sido sempre capaz de lhes responder e de transformar esse aumento da “quantidade” da democracia em maior “qualidade” da democracia.

Publicado por Joana às 07:17 PM | Comentários (19) | TrackBack