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setembro 04, 2004

Um Filho

Uma mãe olha desolada para o corpo sem vida do seu filho, uma das centenas de vítimas inocentes do massacre da escola de Beslan, na Ossétia. A sua mão pousa, docemente, na testa gelada da criança morta injustamente no alvor de uma vida que se supõe sempre promissora e repleta de esperanças. Os seus olhos estão secos, já não tem mais lágrimas para chorar. Pelo seu olhar vazio perpassam, provavelmente, as imagens dos dias alegres e descuidados em que o seu filho, agora um corpo gelado, ensanguentado, sem vida, se agitava, travesso, estuante de vida, uma vida que ela lhe dera com tanto amor e devoção e que agora lhe fora roubada, de uma forma incompreensível, brutal, criminosa.

Mas na sua mente ainda não houve tempo para se formar um pensamento de revolta. A morte de um filho deixa sempre, como primeiro sentimento, instintivo, de uma fêmea pela sua cria, a convicção que talvez não a tivesse protegido como deveria, que naquele instante supremo, definitivo, havia falhado irremediavelmente. Lembra-se daquele dia fatal, que seria o seu primeiro e último dia de escola, e do que poderia ter acontecido em alternativa, as razões que poderiam ter sido invocadas para servir de escusa à sua ida. Tratava-se apenas do dia da apresentação, que necessidade havia de ter ido? Nenhuma. Tanta coisa poderia ter sido feita e ela não fizera nenhuma. Teria protegido o seu filho como era seu dever? Provavelmente não e ele era um ser tão pequeno ainda, tão inocente, tão frágil, tão dependente do apoio maternal.

Há uma canção dos Delfins cuja letra afirma «quando alguém nasce, nasce selvagem, não é de ninguém». Quem escreveu esta letra nunca cuidou de um filho, nunca lhe deu o ser, nunca o transportou no seu ventre, nunca o viu nascer, nunca lhe deu o amor, a ternura e o carinho que esses seres tão dependentes carecem em absoluto para sobreviverem. Quem escreveu essa letra não sabe o que é uma criança. Quando alguém nasce, se não for de ninguém, não consegue sobreviver muitas horas. Um bebé é completamente dependente, nem é selvagem nem é livre: precisa desesperadamente de alguém que cuide dele, que o acarinhe e o proteja. Uma criança só se torna pessoa pela sua inserção familiar, primeiro, e familiar e social, depois. Até ao ano e meio nem sequer tem a noção do seu eu. Ele, a mãe, o pai e tudo o que o rodeia, são um todo sincrético.

Esta relação de dependência é um elo que une necessariamente a mãe e um filho e que só será resolvido, e sê-lo-á necessariamente, pouco a pouco. Enquanto ele dura, a criança sabe que pode contar com a família para a proteger, alimentar, vestir, conviver. Sabe, e precisa de estar perfeitamente segura e tranquila sobre isso, para bem da sua saúde psíquica e da sua formação equilibrada. E os pais, e a mãe em primeiro lugar, sabem que têm aqueles deveres para com o seu filho, e que se alguma coisa acontecer, eles se sentirão para sempre responsáveis, pois falharam.

Aquela mãe terá tempo de se revoltar contra as circunstâncias que lhe roubaram o seu filho querido. Terá tempo para se revoltar contra os terroristas, monstros horrendos e destituídos de qualquer sentimento humanitário, de uma moral repelente e tenebrosa. Terá tempo para se revoltar contra a incompetência e a frieza das forças de segurança russas. Terá tempo de se revoltar e pedir responsabilidades a todos os protagonistas deste drama.

Agora apenas se interroga: Porquê tudo isto? Que poderia ter feito para ter evitado este desenlace? Onde teria eu falhado? Como é possível o meu filho estar morto?

Publicado por Joana às setembro 4, 2004 06:39 PM

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Comentários

Um horror, o que se passou

Publicado por: Coruja às setembro 4, 2004 08:58 PM

Estou pura e simplesmente chocado e enojado com tanta malvadez!

Um abração do
Zecatelhado

Publicado por: Zecatelhado às setembro 5, 2004 09:38 PM

É gente sem qualquer dose de humanidade

Publicado por: Mendes às setembro 6, 2004 08:04 AM

...«a incompetência e a frieza das forças de segurança russas»...

Esta frase pouco tem que ver com o núcleo central do comentário, mas aproveito a boleia para deixar duas ou três observações sobre uma tendência opinativa a que se assiste na comunicação social portuguesa.

A tendência é, como se sabe, a de repartir as culpas pelo massacre de Beslan entre os bandidos e os militares russos. Chega-se, até, a atribuir uma responsabilidade maior aos militares. Não se pense que a tolice é um exclusivo nacional. Basta ouvir o inefável correspondente russo da RTP para se perceber que a imbecilidade é uma categoria internacional.

Uma coisa é constatar a falta de preparação da generalidade das forças policiais e militares russas (nem vale a pena dizer aqui porquê) e outra, muito diferente, responsabilizá-las pelos resultados de uma operação que não iniciaram nem controlaram.

Quando muito, se se quiser encontrar responsáveis por essa falta de preparação, faça-se a mira aos políticos que escolheram esse caminho. E na passada aos motivos que ditaram essa opção.

Fala-se sobre Beslan como se se tivesse tratado de um comezinho caso de sequestro que qualquer força policial bem treinada resolveria num abrir e fechar de olhos.

Esquecem-se os papagaios de que não se tratava, ali, de eliminar meia dúzia de terroristas que tivessem sequestrado duas dúzias de refens numa sala.

Havia, pelo menos, meia centena de terroristas e mais de um milhar de refens, a maioria crianças. Estavam divididos por várias salas de uma labiríntica escola. Os terroristas tinham colocado atiradores no telhado. Estavam fortemente armados com armas automáticas e explosivos. Muitos deles eram suicidas.

Nestas circunstâncias, é evidente que não passaria pela cabeça de nenhuma força policial do mundo desencadear uma acção de libertação dos refens. Não há, em nenhum país do mundo, nenhuma força, por mais bem treinada que seja, capaz de executar uma operação com aqueles condicionamentos, sem que os resultados sejam os que infelizmente se verificaram.

Quando os bandidos começaram a atirar sobre crianças que fugiam da escola e se ouviram alguns rebentamentos e disparos no interior do edifício, a alternativa que se colocava às forças governamentais era avançar (com a possibilidade de salvar um número considerável de refens) ou ficarem quietas, permitindo que o massacre dos sequestrados fosse total.

Oxalá não se assista a uma reedição deste sequestro em territórios situados noutras latitudes. Mas, se essa fatalidade vier a verificar-se, cá estarei para ver e ouvir os comentários sobre a «incompetência e falta de preparação» das forças policiais e militares...

C'os diabos! Essa malta ainda não percebeu que aquilo já não é o Exército Vermelho?

Publicado por: (M)arca Amarela às setembro 6, 2004 09:33 AM

A mim parece-me que a estrofe dos Delfins que a Joana aqui «crucificou» tem uma interpretação poética (a de que todos devemos nascer livres) e não uma interpretação "à letra" como a que faz ...
Também concordo com o lúcido comentário de «(M) Amarela» que, talvez por respeito por esta indizível tragédia, disse (apenas) que "aquilo já não é o Exército Vermelho" ...

Publicado por: asdrubal às setembro 6, 2004 10:48 PM

A Joana, por vezes, também se deixa arrastar pela demagogia dominante. É pena.

Publicado por: Senaqueribe às setembro 7, 2004 11:35 AM

Joana – texto muito bom e, pela força das coisas, que impõe uma reacção ...

Nada pode substituir a vida das crianças e seres que morreram naquela escola...
Nada apagará o terror dos sobreviventes...

Mas, a pesar de tudo, não posso deixar de pensar naquilo que eu faria se eu fosse Checheno, se o exercito Russo tivesse violado e matado a minha mãe, torturado o meu irmão e pai até a morte, tivesse destruído o meu lar assim como todos os da minha aldeia, onde nasci... se meus primos e amigos tivessem desaparecido depois de terem sido transportados como animais até campos de concentração e mais tarde abatidos como coelhos... e se ao meu filho os Russos tivessem cortado as orelhas, o nariz e arrancado todos os dentes para vende-los... o que eu teria feito? Como é que eu teria conseguido fazer ouvir a minha voz de pobre Checheno esquecido do mundo???

A comunicação social esquece-se de mostrar o holocausto checheno... porquê? Para depois dizer que os terroristas são os chechenos?

A Rússia é um pais ditatorial. Tentem entrar na Rússia com revistas estrangeiras, tentem ver tv russa para ver quem dirige todos os canais... tentem ler um jornal russo para ver até onde chega o braço de Putin...etc...

È sempre a mesma historia.. quando um pais tem riquezas, como a Chechénia, há sempre uma grande potencia que tenta controla-lo


Só queria deixar mais uma última pergunta, o que teriam pensado as pessoas se, em 1944, uma centena de judeus tivessem tomado uma escola e feito 1000 crianças reféns – e tivessem pedido a libertação dos países ocupados pelos nazis e tivessem pedido o fim do holocausto judeu???

Mais uma vez digo e penso sinceramente que é cobardia e não admissível aquilo que se passou ha uns dias a traz no sul da Rússia – mas é bom ter consciência que isto representa 0,1% da exterminação dos chechenos!!!

Publicado por: Ch'ti às setembro 8, 2004 12:20 AM

Ch'ti em setembro 8, 2004 12:20 AM

Os seus "argumentos" são tão exorbitantes que mais parecem um delírio.
Não poderá fazer raciocínios mais sensatos e mais realistas?

Publicado por: Senaqueribe às setembro 8, 2004 02:01 PM

olá
a única coisa que quero dizer é que não se tem consciencia daquilo que se passa na Chechenia porque os massacres nos são ocultados.

tenho pena que a comunicação social europeia diga que temos de um lado terroristas: Checheno e os terrorizados : os Russos...

quando me parece que seja o contrário que acontece... a Russia é uma ditadura que oprime a Chechenia ha anos (os exemplos dos quais falo, poderão parecer exorbitantes, porque os coloco à primeira pessoa como se eu fosse checheno--- - mas tudo o que digo, vi-o num programa tv que nunca irá passar em Portugal, infelizmente - não dei exemplos, apenas transcrevi aquilo que vi : tudo filmado pelo exercito russo: torturas, chechenos nus abatidos aos milhares como cães, aldeias destruidas, crianças violadas etc etc etc - um horror )

depois acontecem actos barbaros . quem é que iniciou a guerra? os chechenos ou os Russos?

Publicado por: Ch'ti às setembro 8, 2004 03:13 PM

(M)arca Amarela em setembro 6, 2004 09:33 AM:
Não sei se, neste caso, haveria, ou não, alternativa à intervenção das forças de segurança russas. Nem sei se alguém de fora o virá a saber. Todavia há um historial de intervenções musculadas das forças russas que se saldaram em massacres e isso deixa algumas dúvidas

Publicado por: Joana às setembro 8, 2004 07:05 PM

asdrubal em setembro 6, 2004 10:48 PM:
Da "Fala do Homem Nascido" do António Gedeão ao "Nasce Selvagem" dos Delfins vai um enorme abismo. Representam duas visões radicalmente opostas da "socialização" da pessoa humana. E confesso que não partilho da segunda.

Publicado por: Joana às setembro 8, 2004 07:13 PM

Senaqueribe em setembro 7, 2004 11:35 AM:
Não é demagogia. Apenas fiquei comovida com a fotografia publicada na 1ª página do Público de sábado passado (se bem me lembro).
Não me moveram quaisquer outras intenções.

Publicado por: Joana às setembro 8, 2004 07:16 PM

Ch'ti em setembro 8, 2004 12:20 AM:
Você tem razão no que respeita ao comportamento do exército russo, que tem sido detestável. Todavia isso não justifica as acções dos chechenos. Aliás, o terrorismo checheno é anterior à 2ª guerra do Cáucaso (a iniciada por Putin) e serviu de pretexto para o reinício da guerra.

Publicado por: Joana às setembro 8, 2004 07:20 PM

Ch'ti em setembro 8, 2004 12:20 AM:
Queria acrescentar, relativamente ao exemplo que deu dos judeus, que foram cometidas diversas atrocidades e actos terroristas contra tropas alemãs, ou mesmo civis alemães, pelas resistências (soviética, iugoeslava e mesmo francesa). Sem falar dos bombardeamentos terroristas aliados (p.ex., Dresden, nos últimos dias da guerra, sem qualquer necessidade militar que o justificasse).
Uma dezena de milhões de alemães foram expulsos das suas terras, na Prússia Oriental, Pomerânia, Silésia e Sudetas checos.
Todavia o mundo evoluiu depois dessa época e o "vae victis" deixou de se aplicar e muito bem.

Publicado por: Joana às setembro 8, 2004 07:28 PM

Joana em setembro 8, 2004 07:05 PM

Eu conheço os «historiais» de intervenção das forças russas. E de outras forças também. Até de algumas intervenções pouco historiadas. Mas o objectivo do meu comentário não era fazer nenhum historial, nem armar em procurador das «forças russas». Quis, apenas, por em evidência a leviandade, quando não a alarvidade, de alguns crâneos da comunicação social portuguesa.
Quanto às dúvidas que levanta sobre o que se passou e respectivas alternativas, parece-me que só podem resultar da sua falta de tempo livre para absorver informação. É que os canais internacionais de televisão transmitiram tudo em directo desde a primeira hora. Houve, até, uma repórter da Sky News que entrou na escola com as tropas russas e esteve debaixo do fogo de atiradores pertencentes ao grupo terrorista e que se encontravam fora da escola.
Por isso, sabe-se muito bem as alternativas que havia ou não, mesmo estando «fora», porque as televisões nos meteram bem «dentro».
Trata-se de factos testemunhados ocularmente e em tempo real e, como sabe, contra factos não há argumentos... nem dúvidas.

Publicado por: (M)arca Amarela às setembro 8, 2004 10:02 PM

Os soldados russos têm sido umas bestas.

Publicado por: Cisco Kid às setembro 8, 2004 10:32 PM

ok Joana - concordo consigo

como já disse
nada justifica aquilo que se passou na escola e que foi super mediatizado

como, nada justifica as atrocidades não mostradas ao mundo comitidas pelos russos...

mas infelizmente a história repete-se... o homem procura vingar quem perdeu numa guerra criando, desta forma, uma nova guerra.

Publicado por: Ch'ti às setembro 8, 2004 11:38 PM

Um grupo de cientistas fechou 5 macacos numa jaula, colocou no
centro uma escada e, sobre ela, um cacho de bananas.
Quando um macaco subia a escada para apanhar as bananas, os cientistas lançavam um jacto de água fria aos que estavam no chão.
Depois de um certo tempo, sempre que um macaco tentava subir a escada, os outros enchiam-no de pancada.
Passado mais algum tempo, já nenhum dos macacos subia a escada, apesar da tentação ser grande.
Então, os cientistas substituiram 1 dos 5 macacos. A primeira coisa que ele
fez foi subir a escada, sendo rapidamente retirado pelos outros, que o surraram.
Depois de algumas surras, o novo integrante do grupo desistiu de tentar subir a escada.
Um segundo macaco foi substituído, e passou-se o mesmo, tendo o primeiro substituto participado, com entusiasmo, na surra do novato.
Um terceiro foi trocado, e a história repetiu-se.
Um quarto e, finalmente o último dos veteranos foi substituido.
Os cientistas ficaram, então, com um grupo de 5 macacos que, mesmo sem nunca ter tomado um banho frio, continuavam a bater nos que tentassem
chegar às bananas.

Se fosse possível perguntar a um deles porque batiam em quem tentasse subir a escada, com certeza a resposta seria: "Não sei, as coisas sempre foram assim por aqui..."

"É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito"

Publicado por: Ch'ti às setembro 9, 2004 12:30 AM

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