« Mitos e Ideologias 3 | Entrada | O Neoliberal Vital Moreira »

agosto 28, 2004

A Sociedade de Mercado e Agressões Ambientais

Acusa-se frequentemente a economia de mercado de situações nocivas para a sociedade. Um caso curioso em que o mercado é acusado de gerar situações gravosas para a qualidade de vida das populações, refere-se aos prejuízos ambientais. O que é curioso é que as acusações sobre um alegado mau funcionamento do mercado são injustas. Vejamos porquê:

As acções sobre o meio ambiente são designadas, em linguagem económica, como externalidades (custos ambientais e de escassez). Estas externalidades apresentam uma característica interessante: elas resultam da inexistência ou definição imprecisa dos direitos de propriedade, nomeadamente porque agem sobre os recursos naturais - ar, oceanos, rios, lençóis de água subterrânea, vida animal e vegetal. Se fosse possível o estabelecimento de direitos de propriedade sobre todos os recursos atrás referidos, tal eliminaria a maioria dessas externalidades ou favoreceria o seu controlo.

Se aquelas externalidades tivessem os seus preços determinados livremente no mercado, assegurando-se previamente a sua propriedade e controlo, a questão cairia no caso do óptimo de Pareto e não precisaríamos de nos preocupar com os seus efeitos. Em teoria (no mundo abstracto da concorrência perfeita), aquelas externalidades deixariam de existir.

Portanto, no caso dos efeitos ecológicos nocivos, a culpa reside nas imperfeições dos mercados. Em primeiro lugar pela impossibilidade de se estabelecerem mercados relativamente à utilização de bens ambientais, por inexistência ou definição imprecisa dos direitos de propriedade. Em segundo lugar porque nos mercados em que as empresas produtoras utilizam recursos ambientais como factores de produção, o custo desses factores era nulo porque esses recursos ambientais não tinham proprietário e eram, por via disso, gratuitos. A inexistência de mercados a montante tornava imperfeitos os mercados a jusante.

Enquanto a produção industrial e agrícola não foi intensiva, não se levantou a questão da escassez dos recursos ambientais. Eles eram em teoria infinitos. Actualmente tal não é possível e é necessário que o meio ambiente seja considerado como um factor económico, sujeito a escassez e com custo alternativo não nulo.

Portanto existe um conjunto de agentes económicos que obtém benefícios com a utilização de recursos ambientais (traduzíveis monetariamente ou não) na maioria dos casos a custo nulo, mas que tem um determinado valor para a sociedade (superior ao custo suportado por quem beneficia). Este valor designa-se por “preço-sombra”. A consequência é a existência de uma divergência entre o benefício ou custo marginal privado e social, levando a que o equilíbrio encontrado não seja óptimo, isto é, não exista uma alocação eficiente desse recurso. E não existe alocação eficiente justamente pela ausência de mercado.

Em termos analíticos, prova-se que o ponto óptimo é atingido quando o benefício marginal actualizado de utilizar uma unidade adicional de um dado recurso iguala o preço-sombra actualizado do recurso (custo de oportunidade para a sociedade de conservar esse recurso).

Como calcular estes valores? Estes custos e/ou benefícios têm metodologias próprias que se utilizam nas ACB (análises custo-benefício) que complementam os estudos de viabilidade económica dos projectos. Podem citar-se vários métodos de aferição dos custos alternativos, nomeadamente o método dos custos evitados, as funções de dose-resposta (caso particular das funções de produção), o método dos preços hedónicos, o método da avaliação contingencial (mercado hipotético), o método da transferência de benefícios, o método de aferir do valor do bem através da predisposição para pagar (WTP - Willingness to Pay) ou receber (WTR - Willingness to Receive) pelos benefícios obtidos ou pelos danos suportados na utilização do bem, conceitos associados ao excedente do consumidor, etc..

A utilização destas metodologias de quantificação do custo dos recursos ambientais gera algum cepticismo no que respeita à sua fiabilidade. Todavia, na fase dos estudos de viabilidade, é possível haver consenso quanto aos seus resultados, porquanto apenas se procura saber se o projecto é viável ou não. O mesmo não sucede no caso das empresas em funcionamento, como é óbvio, dado que aí é a doer .... Vejamos dois exemplos:

No caso do tratamento de efluentes a legislação portuguesa fixou normas gerais de descarga de águas residuais, estabelecendo os valores máximos admissíveis (VMA) das respectivas concentrações nas águas residuais descarregadas nos meios hídricos receptores. As normas de descarga são fixadas, para cada instalação, pela Direcção Regional do Ambiente competente, tendo em conta, cumulativamente, as normas gerais de descarga, os objectivos ambientais, as utilizações da água dos meios receptores e a sensibilidade dos mesmos. O licenciamento de qualquer descarga de águas residuais é condicionado pelo cumprimento das normas de descarga que lhe forem aplicáveis. A violação das normas de qualidade estabelecidas constitui contra-ordenação punível com coima. Se a empresa não tiver uma ETAR própria, associar-se-á a um sistema de tratamento e pagará de acordo com a carga poluente que emitir para a ETAR colectiva.

Portanto, neste caso, as empresas e as famílias (saneamento urbano) pagam custos ambientais relativamente ao que excede a capacidade de regeneração do meio ambiente. Continua a haver uma parcela de utilização do meio ambiente gratuita (1).

Outro exemplo é o caso da extracção de inertes. O equilíbrio a manter é entre o fluxo de sedimentos transportados e depositados no leito dos rios e a quantidade de inertes extraídos. O difícil é haver um cálculo fiável dos sedimentos transportados e depositados, nomeadamente tendo em conta as alterações no leito dos rios (construção de barragens e açudes, etc.). Mas mesmo que houvesse um equilíbrio entre os inertes depositados e extraídos, nada asseguraria que os locais de extracção seriam os mais adequados, como se viu no caso da queda da ponte de Entre-os-Rios. Adicionalmente há uma dificuldade económica: os inertes são materiais usados na construção civil e têm um custo tradicionalmente muito baixo. Na hipótese da introdução de custos reais (admitindo que fosse possível calculá-los) um aumento substancial do preço dos inertes poderia ter um efeito económico muito negativo. A solução que tem sido seguida é a da contingentação das quantidades extraídas e o pagamento de taxas. É uma solução técnica e economicamente errada, mas que decorre da insuficiência de estudos sobre os leitos dos rios e do mau desempenho dos organismos públicos encarregados do licenciamento e da fiscalização.

Resumindo, para influenciar os agentes económicos para uma utilização mais eficiente dos recursos naturais existem diversos métodos. Métodos económicos, onde se incluem os desincentivos ou incentivos financeiros (impostos ou subsídios), tarifas que cubram os custos de reposição da qualidade ambiental (tratamento de efluentes), licenças, ou o estabelecimento de mercados de quotas de poluição (com um preço e transaccionáveis) e métodos não económicos, que limitam de alguma forma a utilização (p.e. consumir apenas em determinadas situações particulares ou alturas do ano, ou em determinados locais de um rio e em quantidades previamente fixadas).

Conclusão: as agressões ambientais das empresas não decorrem de uma perversão dos mercados, mas da inexistência de mercados dos recursos naturais pelas razões acima aduzidas. A solução económica é simular a existência de mercados de recursos naturais e estabelecer custos alternativos para esses recursos. Uma solução extra-económica é limitar coercivamente a sua utilização.


(1) O custo de remoção das cargas poluentes aumenta exponencialmente à medida que se pretende baixar a concentração. Os VMA considerados na legislação pretendem constituir uma situação de equilíbrio que tem em conta a capacidade de regeneração dos meios receptores e a capacidade de solvabilidade dos utentes (empresas e famílias)

Publicado por Joana às agosto 28, 2004 12:20 AM

Trackback pings

TrackBack URL para esta entrada:
http://semiramis.weblog.com.pt/privado/trac.cgi/105233

Comentários

Portanto, a existência de propriedade do ar que respiramos melhoraria o seu uso.
É isto?

Publicado por: vitapis às agosto 28, 2004 02:54 PM

Espero que não seja uma propriedade individual

Publicado por: vitapis às agosto 28, 2004 02:55 PM

Excelente perspectiva sintética da teoria das externalidades

Publicado por: Novais de Paula às agosto 28, 2004 05:53 PM

Em certa medida tudo começou com o Teorema de Coase e a hipótese das transferências compensatórias.

Publicado por: Novais de Paula às agosto 28, 2004 05:54 PM

Felizmente não irá haver racionamento do ar, porque isso viola as leis do mercado!

Publicado por: c seixas às agosto 28, 2004 09:02 PM

Este é o blog de direita mais intelectualizado.

Publicado por: Carrilho às agosto 29, 2004 04:07 PM

Para além da base técnica ...

Publicado por: Carrilho às agosto 29, 2004 04:08 PM

vitapis: O protocolo de Quito e as vendas e compras de quotas de emissão de CO2 é uma espécie de atribuição de direitos de propriedade ao ar que respiramos. Uma propriedade mundial, visto que não é possível estabelecer fronteiras: o CO2 emitido não fica apenas no interior da atmosfera de um país.

Publicado por: Joana às agosto 29, 2004 04:16 PM

Carrilho em agosto 29, 2004 04:07 PM:
Rotular é o argumento mais fácil. Não se destina a convencer. Destina-se a pôr o "nosso lado" de sobreaviso contra uma alegada "subversão inimiga".

Publicado por: Joana às agosto 29, 2004 04:18 PM

Parabéns pelo blog. Tem uma série de posts interessantes e bem fundamentados, quer se goste ou não das teses defendidas

Publicado por: Reininho às agosto 29, 2004 05:58 PM

E para agressões ideológicas, há mercado?

Publicado por: Cisco Kid às agosto 29, 2004 10:31 PM

Há uma proprietária abastada: a Joana

Publicado por: Cisco Kid às agosto 29, 2004 10:32 PM

O Carrilho também escreve aqui?
Julguei que fosse só no blog do Manuel Alegre

Publicado por: cerejo às agosto 30, 2004 02:47 PM

A questão do ar ser de todos e não haver fronteiras torna muito difícil a aplicação dos acordos de Quioto. Os chico-espertos (USA, China e outros) não cumprem à espera que os "bons" cumpram.

Publicado por: J Correia às agosto 30, 2004 04:44 PM

Devia haver barreiras verticais nas fronteiras

Publicado por: Rui Sá às agosto 30, 2004 09:10 PM

O problema é que com o nosso desleixo, quem morria intoxicados éramos nós

Publicado por: Rui Sá às agosto 30, 2004 09:11 PM

Tem que ser criado o mercado do ar. Vendido em balões

Publicado por: Gros às agosto 31, 2004 09:32 PM

Comente




Recordar-me?

(pode usar HTML tags)