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abril 25, 2004

O Fim de um Regime

Nas vésperas do 25 de Abril o país vivia o rescaldo da «primavera marcelista». Marcelo Caetano tinha sucedido a Salazar, em fins de 1968, apoiado pela ala liberal do regime.

Marcelo Caetano não era propriamente um liberal. Ainda muito jovem aderiu às correntes integralistas, conviveu com António Sardinha e, posteriormente, foi o ideólogo mais consistente do corporativismo. Todavia a lenta agonia do salazarismo, nomeadamente após o início das guerras coloniais e das contestações estudantis, levou-o a perceber que seria necessária uma liberalização do regime, quer política, quer, principalmente, económica.

A liberalização económica e o fomento industrial foram os maiores, e porventura os únicos, trunfos da governação marcelista. Era um modelo de desenvolvimento fortemente voltado para a abertura ao exterior e de apoio à iniciativa privada. As leis restritivas de inspiração corporativista foram eliminadas e o país conheceu uma época de forte expansão económica. A estratégia de Rogério Martins, o Ministro da Indústria, baseava-se numa avaliação inteligente das vantagens comparativas de Portugal – posição estratégica (polo de Sines); mão de obra barata e adaptável (inúmeras unidades estrangeiras que se fixaram em Portugal na área da electrónica, componentes de automóveis, etc.), químicas e químico-metalúrgicas pesadas, etc..

Todavia a liberalização económica teria, obrigatoriamente, que marchar par e passo com a liberalização política. E esta não foi possível. As eleições de 1969, certamente as menos fraudulentas do regime do «Estado Novo», nem por isso deixaram de ser fraudulentas: o recenseamento cobriu apenas uma parcela do eleitorado potencial, a campanha eleitoral não foi nem livre nem justa e não houve fiscalização adequada do acto eleitoral. Por sua vez a abertura sindical não teve continuidade e, a partir de 1970, deu-se uma reversão dessa política de abertura.

Por outro lado a manutenção das guerras coloniais sem que se descortinasse qualquer solução política ou militar, era um ónus terrível a nível internacional, dificultando as relações exteriores de Portugal com as evidentes implicações económicas, quer no investimento externo, quer nas pautas aduaneiras com os espaços económicos que se formavam na Europa. Era também um grave problema interno, embora não que houvesse um forte movimento popular contra a guerra. A própria oposição, durante a campanha eleitoral de 1969, evitou pronunciar-se a favor do “abandono do Ultramar”. A concepção imperial do Portugal «Uno e Indivisível do Minho a Timor» ainda era muito forte entre a população. Todavia muitos jovens fugiam ao serviço militar através da emigração clandestina, engrossando a forte emigração dos últimos anos do marcelismo, que sangrou abundantemente as camadas mais laboriosas da nossa população. Era, mesmo indirectamente, uma forma de contestação à guerra colonial, com reflexos muito negativos na economia e na demografia do país. Adicionalmente, o enorme esforço financeiro a que a guerra obrigava era um entrave ao fomento económico e industrial.

O modelo marcelista entrou em esgotamento durante 1973, pelas causas estruturais acima descritas, agravadas sobremaneira pelo choque petrolífero de 1973, com o aumento dramático do preço do crude e as implicações decorrentes: agravamento do défice comercial, derrapagem da situação monetária e financeira, etc..

Paradoxalmente um movimento de origem corporativa de jovens oficiais de carreira indignados com a promulgação de um decreto que prejudicava as suas possibilidades de progressão de carreira em detrimento dos oficiais milicianos deu origem, em poucos meses, a um movimento de contestação ao regime que levaria à liquidação deste por um golpe militar em 25 de Abril de 1974.

Nos meses que precederam o golpe, Marcelo Caetano tentou manter o regime a todo o custo: abriu secretamente negociações com o PAIGC para uma solução negociada e uma eventual independência da parcela colonial em que a situação militar era, de longe, a mais difícil e a repulsa por ser mobilizado para o seu contingente era total; nomeou Spínola e Costa Gomes para as chefias do Estado-Maior, talvez com o intuito de controlar a oficialidade intermédia, e depois demitiu-os quando verificou que não só não conseguiu esse desiderato, como Spínola e Costa Gomes se poderiam tornar os chefes de um eventual movimento insurreccional.

Marcelo Caetano estaria provavelmente convencido que as estruturas que apoiavam o regime eram muito mais fortes do que eram realmente. A «brigada do reumático» que em 14 de Março de 1974 lhe foi prestar vassalagem, já não tinha autoridade hierárquica real sobre as forças armadas. As estruturas políticas estavam desacreditadas. As cedências de Marcelo Caetano à ala conservadora não serviram de nada porque esta só tinha força no papel; na prática já não tinha um peso real. Quando o golpe militar saiu à rua, na madrugada de 25 de Abril, não apareceu ninguém a defender o regime. Nenhuma das unidades militares potencialmente aptas a fazê-lo, nenhuma entidade civil, ninguém se levantou em sua defesa.

O próprio Marcelo Caetano parece ter decidido que não valia a pena resistir. Em 16 de Março tinha ficado à frente do ministério, no Comando da Região Aérea, em Monsanto, como estava determinado. Em 25 de Abril decidiu, sem deixar quaisquer instruções aos outros membros do governo, refugiar-se no Quartel do Carmo, numa posição muito exposta.

É o destino dos regimes portugueses. Caiem de maduros – basta um ligeiro abanão. Foi assim em 1 de Dezembro de 1640, em 24 de Agosto de 1820, em 5 de Outubro de 1910 e em 25 de Abril de 1974. Posteriormente, em todas aquelas revoluções, passado o estupor inicial, houve tentativas de contra-revolução, mas todas incipientes, se exceptuar-mos o caso da guerra civil ocorrida na sequência da revolução liberal.

Publicado por Joana às abril 25, 2004 07:59 PM

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Comentários

Também estou de acordo com a sua visão do fim do regime anterior. Marcelo Caetano já estava vencido.

Publicado por: Novais de Paula às abril 25, 2004 10:25 PM

Há aqui muitas saudades do 24 de Abril.
Mesmo que não tenha vivido a época

Publicado por: Cisco Kid às abril 26, 2004 09:02 AM

A sua caracterização do fim do período marcelista está feita com bastante rigor e critério. Não há dúvidas que foi isso que aconteceu.
Marcelo foi como Gorbatchev. Teve muitos paninhos quentes com a ala conservadora, convencido que esta tinha força, quando não tinha.
Nesse ponto a sua análise está perfeita.

Publicado por: Vitapis às abril 27, 2004 01:08 AM

Excelente esta síntese do fim do marcelismo.

Publicado por: Ribeiro às abril 29, 2004 02:36 PM

Não penso que isto seja saudades do marcelismo. Pelo contrário. É uma análise com laivos de cientificidade da sua queda. Basta ler a última compilação de textos do Rosas para ver como está de acordo com esta visão.

Publicado por: miguel às julho 25, 2004 01:02 AM

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