outubro 25, 2004

O Arrendamento Urbano

A nova Lei do Arrendamento Urbano, na sua actual formulação, vem acabar com uma situação que era insustentável, que havia levado os centros urbanos à decadência e à ruína, pervertido o mercado do arrendamento e da construção e gerado desequilíbrios profundos na sociedade portuguesa. Nessa óptica ela era necessária e é bem-vinda.

Todavia os efeitos que ela se propõe atingir só o serão a longo prazo. A curto e a médio prazo não haverá outros reflexos para além de uma actualização substancial das rendas de algumas dezenas de milhares de áreas urbanas. E mesmo a longo prazo ela só terá efeito significativo se outros factores que desincentivam o arrendamento forem eliminados. Vejamos porquê:

Em primeiro lugar acho muito duvidoso que vá ter um grande efeito dinamizador no mercado do arrendamento. Fala-se das centenas de milhares de casas que estão devolutas. Muitas estão devolutas porque não têm condições de habitabilidade, mas o imóvel onde se situam tem fogos alugados por preços irrisórios e o senhorio não tem quaisquer incentivos em fazer obras de reabilitação, que serão caríssimas, e para as quais não terá retorno, mesmo com a actual lei. Na maioria dos casos o senhorio nem tem dinheiro para fazer obras, nem aptidão para as mandar fazer. Nestes casos a solução melhor para o senhorio seria este vender o edifício a algum promotor imobiliário, mais apto a utilizar os benefícios que a nova lei lhe concede. Todavia, na situação actual, dificilmente encontrará um promotor que lhe pague o montante que ele acha justo. O mais provável é que esta situação se continue a arrastar.

Outro caso são casas semi-devolutas. Os inquilinos já não moram lá, por diversos motivos (o mais vulgar será por se terem reformado e ido viver para a terra deles). Nestes casos estes inquilinos dificilmente poderão manter o arrendamento com os novos valores e estas casas poderão ir para o mercado de arrendamento.

Todavia uma parcela importante das casas devolutas deve-se ao facto dos senhorios terem receio de arrendar as casas. Actualmente, arrendar uma casa é jogar à roleta russa. O inquilino paga os 2 primeiros meses (incluindo o de caução), às vezes mais um ou outro, e depois fica tranquilamente à espera de ser despejado judicialmente. Há a acção de despejo ... depois uma acção de execução da sentença, para a polícia ou a GNR ir proceder coercivamente ao despejo, e depois uma acção para tentar receber as rendas em atraso. As 2 primeiras podem demorar 2 anos, ou às vezes mais, a produzirem efeito. A 3ª não leva geralmente a nada. O inquilino e o fiador são normalmente insolventes. A prestação de uma garantia bancária no valor de um ano de rendas poderia ser uma solução. Todavia os bancos só prestam garantias a quem tem activos, o que só acontece, e nem sempre, em arrendamentos comerciais e de habitações de luxo. E se o senhorio for exigente em matéria de fiador (alguém com bens), o mais certo é não arranjar inquilino com essas garantias.

Adicionalmente o senhorio arrisca-se a receber a casa em situação tal que tenha que despender uma soma elevada em obras de beneficiação. Se se somar os custos dos processos (incluindo os advogados) e os custos das obras de beneficiação, o senhorio irá perder muito dinheiro com o arrendamento. Esse factor de risco tem feito subir o valor das rendas. Estima-se que mais de 40% desse valor é um factor de risco. Todavia é falacioso pensar que se o senhorio pedir menos pela renda, terá um inquilino mais “honesto”. A experiência mostra que são ocorrências independentes. O raciocínio do senhorio é que quanto mais receber inicialmente pela renda, menos perderá com o negócio. Ou então pura e simplesmente desiste de arrendar e deixa ficar o fogo devoluto que se vai degradando aos poucos. E ao fim de alguns anos o dilema é: faz obras para o colocar no mercado do arrendamento, ou deixa andar? E a resposta, alimentada pela experiência, é a de que não vale a pena gastar um cêntimo se não sabe se o vai recuperar. Esta é uma questão incontornável no arrendamento urbano.

Portanto, só será possível dinamizar o mercado de arrendamento se se agilizar o despejo das casas no caso de não pagamento das rendas, responsabilizando igualmente os inquilinos pelo estado em que deixam as casas. E encontrar formas simplificadas de cobrança coerciva para as rendas não pagas e para os estragos que os inquilinos fizeram nas casas onde moraram. A lei actual apenas vai ter efeito sobre os contratos antigos, que normalmente estão estabilizados (um inquilino com uma renda antiga dificilmente cometerá a imprudência de arranjar matéria para ser objecto de uma acção de despejo). Portanto, apenas a longo prazo terá um efeito benéfico.

Na situação actual, mais casas no mercado de arrendamento não irão produzir alterações significativas nos montantes das rendas nos novos contratos. Hoje em dia, a oferta “potencial” já é muito superior à procura, logo, aumentar essa oferta “potencial”, não irá, obviamente, ter reflexos no preço de equilíbrio. Esse preço, o preço actual, incorpora um factor de risco enorme decorrente da incerteza que o senhorio tem sobre se o inquilino cumpre ou não o contrato. E esse factor de risco não é eliminado com a actual lei. O que é importante é tornar essa oferta “potencial”, oferta efectiva.

Uma última questão. Há maior “benevolência” com os arrendamentos comerciais que com os de habitação. Quer na lei do governo, quer nos comentários da oposição. Nos meios de comunicação são mais frequentes imagens de comerciantes recalcitrantes que de moradores em pânico. Ora a habitação tem uma função social, enquanto o arrendamento comercial é um factor de produção. Faz sentido proteger algo que tem uma função social, enquanto subsidiar a produção tem tido sempre efeitos económicos, a longo prazo, negativos. Basta ver como o comércio dito tradicional perdeu qualidade, se tornou obsoleto e tem constituído um factor de desqualificação dos centros urbanos.

Há ainda nesta questão uma situação paradoxal, ou talvez não: no que toca à evasão fiscal, os lojistas são quem tem pior fama. Provavelmente têm a fama e o proveito. É espantoso que, para além dos impostos, também não queiram pagar uma renda justa. E mais espantoso que meios de comunicação e políticos veiculem as suas posições. Dá ideia que o cérebro dessas entidades tem um septo: numa das partes disserta-se sobre a imoralidade da evasão fiscal dos comerciantes relapsos; na outra sobre a imoralidade dos infelizes comerciantes ficarem sob o gládio dos senhorios. O septo não permite transferência de informação entre as duas partes.

Nota - Ler ainda:
Lei do Arrendamento Urbano

Publicado por Joana em outubro 25, 2004 07:57 PM | TrackBack
Comentários

Aparentemente e para já fica quase tudo na mesma, tirando pagarmos mais. Será assim?

Afixado por: vitapis em outubro 25, 2004 10:19 PM

Para quem pagar mais a situação provavelmente melhora porque o senhorio é obrigado a obter a licença de utilização, ou seja, a garantir que o espaço arrendado está em condições (eventualmente após obras que fariam falta). O problema é principalmente para quem NÃO pagar mais...

Afixado por: Tiago Azevedo Fernandes em outubro 25, 2004 10:39 PM

Eu cá tenho um «septo» e que é que, por metade de um só andar (renda comercial actualizada), recebo a metade do rendimento total, de metade de um prédio de seis andares, incluindo uma loja do rés-do-chão e a cave. E ainda, de repente, tenho de ir à banca, para acudir a um trespasse do que sou, em teoria, proprietário ...

Afixado por: asdrubal em outubro 25, 2004 11:06 PM

Pois, e ainda por cima os comerciantes fazem trespasses no valor de vários séculos de rendas e os senhorios ficam a ver navios.
Às vezes nem são trespasses, mas cessão de quotas

Afixado por: jakim em outubro 25, 2004 11:15 PM

De facto o comércio é previlegiado contra os desgraçados dos inqulinos de habitação o que é uma imoralidade e mostra como o governo está do lado dos poderosos

Afixado por: Cisco Kid em outubro 26, 2004 11:55 AM

Esta lei vai levantar muitos problemas. Como a situação é complicada ela não vai agradar a gregos e a troianos

Afixado por: c seixas em outubro 26, 2004 01:40 PM

Concordo com o princípio da lei. A sua operacionalidade fica posta em causa. Parece-me -e passe o argumento mais comezinho- que os governantes portugueses têm 'pouco mundo', pouca vivência... Os portugueses estão a viver mal e a classe média está suportar todas as políticas.
Era bom que a classe política portuguesa andasse de metro, fosse às compras...
Não o faz, a não ser por eleitoralismo.

Um abraço,
Francisco Nunes

Afixado por: Planície Heróica em outubro 26, 2004 03:37 PM

Concordo com a Joana. O mercado do arrendamento só vai melhorar muito lentamente.
Nem sei se nos primeiros tempos não irá piorar

Afixado por: Gustavo em outubro 27, 2004 12:15 AM

Gustavo:concordo consigo. Ñão sei como o Governo vai gerir esta confusão toda

Afixado por: Fred em outubro 27, 2004 12:42 AM

Esta é uma lei corajosa, mas vai ser de aplicação muito complicada porque a situação é muito complicada.
E quanto mais remendos se fizerem para acudir às mais diversas situações, mais inoperacional fica.
E com uma lei inoperacional quem se lixa é o mexilhão.

Afixado por: fbmatos em outubro 27, 2004 12:46 PM

Esta nova Lei do Arrendamento, que vem incentivar os despejos, não será a melhor forma de fazer justiça. Pois só tende a levar a uma chantagem constante por parte dos proprietários.
"Ou paga o que eu proponho, ou vai para a RUA"
É O ABRIR CAMINHO AO PASSADO, AOS TEMPOS DO ALCAPONE, CRIANDO UMA ONDA ONDA GIGANTE DE VIOLÊNCIA E ASSASSINATOS ENTRE INQUILINOS E PROPRIETÁRIOS.

Afixado por: Salvador em dezembro 31, 2004 12:38 PM

Esta nova Lei do Arrendamento, que vem incentivar os despejos, não será a melhor forma de fazer justiça. Pois só tende a levar a uma chantagem constante por parte dos proprietários.
"Ou paga o que eu proponho, ou vai para a RUA"
É O ABRIR CAMINHO AO PASSADO, AOS TEMPOS DO ALCAPONE, CRIANDO UMA ONDA ONDA GIGANTE DE VIOLÊNCIA E ASSASSINATOS ENTRE INQUILINOS E PROPRIETÁRIOS.

Afixado por: Salvador em dezembro 31, 2004 12:47 PM
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