novembro 09, 2003

Tucídides, o Peloponeso e o Iraque - 6º Acto

A democracia e a sua fragilidade

Vale a pena aqui voltar ao discurso de Péricles sobre a Democracia. No citado elogio ao soldado caído nas guerras contra Esparta, Péricles diz que os heróis se sacrificaram não meramente pela sua cidade, mas pelo que ela significava, uma democracia singular e que era o modelo e a escola da Grécia. E descreve as suas características. Nela não havia censura nem intromissão na vida privada do indivíduo. O cidadão era livre para exprimir a sua opinião, enquanto nas restantes cidades, por exemplo Esparta, o caso mais extremo de totalitarismo, o cidadão vivia em função exclusiva da colectividade e nenhuma opinião contrária aos regimes estabelecidos lhe era permitida. Atenas tinha as suas portas abertas. Qualquer estrangeiro poderia visitá-la. As suas praças e ágoras estavam em permanentemente efervescência com debates e discussões em que todos podiam participar e intervir. Era o teatro, a música e os desportos, e não as paradas militares, que empolgavam aquela sociedade. Mas nem por isso os seus soldados se mostravam inferiores no campo de batalha, quando chegava a hora de combater.

Porém, esta indelével figura de Atenas como cidade aberta, tão brilhantemente exposta por Péricles, não se manteve. Atenas perdeu a guerra. Terminou sua idade de ouro e caiu sob domínio de Esparta. Foi um domínio de curta duração, mas nunca mais se reergueu. Mas Esparta teve pior sorte. A sua derrocada, anos depois, levou-a a desaparecer da história, definitivamente. A Grécia entrou na decadência e acabou na dependência da Macedónia e depois de Roma.

O nosso mundo, no início do século XXI, é uma estranha amálgama de continuidade e de mudança. Alguns aspectos da política internacional não se alteraram desde Tucídides. Existe uma determinada lógica de hostilidade, um dilema de segurança/insegurança que acompanha a política entre Estados. Alianças, equilíbrios de poder e escolhas de políticas entre a guerra e o compromisso, permaneceram semelhantes ao longo dos milénios.

Uma ilação a tirar, paradoxalmente contrária à que foi tirada noutros textos aqui apresentados, é a de que a democracia é frágil perante estados totalitários, baseados na opressão interna, no cerceamento da liberdade de expressão, na desconfiança sobre o comportamento dos seus cidadãos e na repressão de quaisquer veleidades de oposição. Os sistemas fechados gozam da vantagem de não admitirem opositores internamente e de exercerem controlo sobre a informação. Por isso apresentam uma imagem de uma maior coesão, eventuais dificuldades e desaires não chegam à opinião pública, ou chegam com uma imagem distorcida e mesmo contrária à realidade. Foi essa a vantagem de Esparta sobre Atenas, foi essa a vantagem da Alemanha nazi e do Japão imperial sobre as potências aliadas no início da guerra de 1939/45.

No dealbar do século XXI, após o esmagamento do totalitarismo de direita em 1945 e o desmoronamento do mundo soviético há pouco mais de uma década, já não há uma grande potência totalitária, como Esparta, para se opor à grande potência democrática, Atenas.

Assim, na nossa época, a liberdade, a tolerância e o exercício da democracia e da participação cívica, na sua acção concertada, criaram sociedades de grande prosperidade que se impõem economicamente, mas também militarmente. Mas essa combinação de poder económico e militar está circunscrita aos EUA. O poder económico da Europa não tem suficiente contrapartida no poder militar. A Europa terá poder militar para se defender de uma agressão externa no interior das suas fronteiras, mas não o tem para defender os seus interesses fora dessas fronteiras.

Portanto, no que respeita à Europa, a lição de Tucídides de que a democracia é frágil perante estados totalitários, que controlam a informação e podem desviar verbas importantes para planos bélicos de armamento de destruição maciça sem que alguém, internamente, os impeça, é algo de fundamental a reter.

É algo que a Europa deverá pensar maduramente nesta fase de construção da sua identidade.

Publicado por Joana em novembro 9, 2003 11:00 PM | TrackBack
Comentários

Joana, queria dizer-lhe que acho excelentes este conjunto de textos sobre este historiador grego. Não só pela forma simples como foi colocando as ideias principais, com pela forma como mostrou o paralelismo com a actualidade.

Muito interessante

Afixado por: aj ribeiro em novembro 11, 2003 06:26 PM

Os meus parabéns por estes textos sobre Tucídides e pela sua integração na actualidade política.
Espero que a ausência de comentários não se deva ao desinteresse das pessoas, mas sim a que não têm mais nada a dizerem.

Afixado por: Humberto em novembro 22, 2003 08:35 PM
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